Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
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Jun 11
publicado por José Geraldo, às 09:00link do post | comentar
Este texto é parte do romance “A Casa no Fim do Mundo”, de William Hope Hodgson (1907), que estou traduzindo em capítulos semanais. Visite o Índice para lê-los em sequência.

Como o tempo passava devagar, e nunca se via nada a indicar que um bruto ainda infestava meu jardim!

Foi no nono dia que, por fim, decidi correr o risco, se havia algum risco, e sair em excursão. Com isto em mente eu carreguei uma das espingardas, cuidadosamente escolhendo uma que a curta distância fosse mais mortal que um rifle, e então, depois de uma vistoria final do terreno, a partir da torre, chamei o Pimenta para me seguir e tomei o caminho do porão.

Diante da porta devo confessar que hesitei por um momento. O pensamento do que poderia estar me aguardando entre as moitas escuras não eram de forma nenhuma próprio a me encorajar a decisão. Mas pouco mais de um segundo depois eu já havia puxado as trancas, e estava de pé no trilho que fica do lado de fora da porta.

Pimenta me seguiu, mas parou à porta para farejar, desconfiado, e passou o focinho para cima e para baixo pelas dobradiças, como se achasse um rastro. Então, de repente, se virou e começou a correr para lá e para cá em semicírculos ao redor da porta, finalmente voltando ao limiar. Ali ele começou de novo a farejar.

Até então eu tinha ficado olhando para o cão, mas todo o tempo eu tinha conservado metade de minha atenção na macega do jardim que se estendia ao meu redor. Então fui até ele e me inclinei para examinar a superfície da porta, que estava farejando. Ali vi que a madeira estava coberta por uma rede intricada de arranhões, que cruzavam e recruzavam uns sobre os outros, uma confusão inextricável. Além disso, notei que os portais, por sua vez, haviam sido mastigados em alguns pontos. Além desses, não consegui achar mais nenhum sinal e então, pondo-me de pé, comecei a fazer a ronda da parede de fora.

Tão logo comecei a andar Pimenta saiu de perto da porta e correu à minha frente, ainda fuçando e farejando ao correr. Às vezes ele parava para investigar. Aqui era um buraco de bala no trilho, ali uma touceira manchada de pó. Mais adiante poderia ser um torrão arrancado, ou uma trilha entre as ervas que parecia mexida. Mas, a não ser por estas ninharias, não achou nada. Observei-o criticamente enquanto ele andava e não pude notar nenhuma intranquilidade em seus modos, nada que indicasse que ele sentia a presença próxima de qualquer das criaturas. Só com isso já tive a certeza de que o meu jardim estava vazio, pelo menos livre da presença daquelas Coisas odientas. Pimenta não era fácil de enganar, e era tranquilizador saber que ele saberia e que me daria o alarme a tempo, se houvesse algum perigo.

Chegando ao lugar onde tinha atirado na primeira criatura, detive-me em um exame atento, mas não vi nada. Dali fui para onde caíra a grande pedra da cornija. Ela estava lá inclinada, parecia ainda do jeito em que fora deixada pelo bruto que a tentara mover. Pouco mais de meio metro para a direita dela havia a marca de onde caíra, uma larga ruptura na calçada. Do outro lado ela ainda estava meio dentro da depressão que formara. Chegando mais perto eu contemplei a pedra com mais cuidado. Que grande peça de escultura ela era! E uma das criaturas a tinha movido, com as próprias mãos, na tentativa de chegar à que estava por baixo.

Contornei a pedra até o outro lado. Ali percebi ser possível ver por debaixo dela, até um metro ou menos. Mesmo assim, não deu para ver sinal algum das criaturas atingidas por ela e fiquei muito surpreso. Eu tinha suposto, como disse antes, que os restos delas tinham sido removidos, mas não concebia como isso pudera ser feito com tanto capricho a ponto de não ficar sinal algum debaixo da pedra, a indicar o que acontecera. Eu vira vários brutos atingidos por ela com tanta força que bem poderiam ter sido enfiados no chão, e então não havia vestígio deles à vista; nem mesmo uma manchinha de sangue.

Fiquei ainda mais confuso do que antes ao pensar sobre isso, mas não consegui imaginar nenhuma explicação plausível. Então, enfim, deixei de lado esta preocupação, afinal de contas, era só mais uma coisa entre tantas que ficava sem explicação.

Desviei a minha atenção dali para a porta do escritório. Eu via bem melhor, do lado de fora, os efeitos da tremenda carga a que fora submetida, e me maravilhei que ela tivesse conseguido, mesmo com o apoio de escoras, resistir aos ataques tão bem. Não havia marcas de golpes — na verdade, nenhum golpe fora dado — mas a porta fora, literalmente, arrancada dos seus gonzos pela aplicação de força silenciosa e enorme contra si. Uma coisa que observei me afetou profundamente: que a ponta de uma das escoras estava atravessada em um dos painéis. Isto era bastante para mostrar como fora grande o esforço feito pelas criaturas para romper a porta, e quanto haviam chegado perto de conseguir.

Saindo dali, segui minha ronda da casa, sem achar mais nada de interessante, a não ser, nos fundos, onde encontrei o pedaço de encanamento que eu havia arrancado da parede estendido na grama, abaixo da janela quebrada.

Então voltei para casa e reforcei a porta dos fundos, depois subi para a torre. Ali eu passei a tarde, lendo e ocasionalmente olhando nos jardins. Estava determinado a ir até o Abismo de manhã, se a noite passasse em silêncio. Talvez fosse possível descobrir, então, alguma coisa do que acontecera. O dia terminou, a noite veio e foi embora mais ou menos da mesma forma que as noites recentes.

Quando levantei a manhã tinha rompido bonita e clara e reafirmei minha intenção de levar os planos à ação. Comia o café e pensava no assunto, cuidadosamente, então fui para o escritório verificar minha espingarda. Além dela, busquei e carreguei comigo no meu bolso uma pistola pequena, mas de calibre grosso. Eu tinha perfeita noção de que, se havia um perigo, ele vinha da direção do Abismo e eu precisava estar preparado.

Deixando o escritório, fui até a porta dos fundos, seguido por Pimenta. Uma vez do lado de fora, fiz a ronda dos jardins em volta bem rapidamente, e então dirigi-me ao Abismo. A caminho eu mantive minha atenção bem difusa e segurava a espingarda à mão. Pimenta ia correndo à frente sem nenhuma hesitação aparente, não que eu notasse. Isso me fez pensar que não deveria haver nenhum perigo considerável e eu comecei a ir mais rápido atrás dele. Ele tinha chegado à borda do Abismo e já farejava em volta da beirada.

Um minuto depois eu estava ao lado dele, olhando para baixo dentro do Abismo. Por um momento eu mal pude crer que fosse o mesmo lugar, de tanto que havia mudado. A ravina escura e arborizada de quinze dias antes, com um curso d'água oculto na folhagem, correndo preguiçosamente ao fundo, não existia mais. Em lugar dela meus olhos me mostravam um buraco rude, parcialmente preenchido por um lado escuro e de água turva. Todo um lado da ravina estava despido de vegetação e exibia a rocha nua.

Um pouco mais para minha esquerda, todo o lado do Abismo parecia desmoronado, abrindo uma rachadura profunda em formato de cunha na face do rochedo. Esta greta seguia da parte de cima da ravina até quase chegar à água e penetrava na margem do Abismo por uns doze metros, abrindo-se por uns cinco metros de largura, estreitando-se enquanto descia, até desaparecer a uns dois metros abaixo da margem. Mas o que me chamou a atenção, mais que a estupenda ruptura que surgira, era o grande buraco, a bem pouca distância da rachadura, e bem no ângulo da cunha. Ele era bem claramente definido, e com formato não muito diferente do de uma porta abobadada, embora, por estar na penumbra, eu não o consegui ver distintamente.

O lado oposto do Abismo conservava ainda a sua verdura; mas tão rasgada em certos pontos e tão coberta de poeira e detritos que era até difícil determinar que se tratava disso.

A minha primeira impressão, de que fora um desmoronamento, logo vi que não era suficiente, sozinha, para explicar todas as mudanças que via. E a água? Olhei para o lado de repente, porque notara barulho de água corrente vindo de meu lado direito. Não dava para ver nada, mas como minha atenção tinha sido desviada até lá, consegui perceber, facilmente, que vinha do lado leste do Abismo, em algum lugar.

Lentamente caminhei naquela direção, com o som ficando mais claro à medida em que avançava, até que, pouco depois, senti-me logo acima dele. Mas ainda não soube qual a causa até ajoelhar-me e colocar a cabeça para dentro do barranco. Então o barulho chegou até mim claramente e eu vi, abaixo de mim, uma torrente de água limpa que nascia de uma pequena fissura daquele lado do Abismo, que descia pela face das rochas até o lago no fundo. Um pouco mais longe no mesmo barranco eu vi outra, e depois dessa mais duas. Estas todas poderiam explicar toda a água no Abismo e, se a queda de pedras e de terra tinha bloqueado a saída da corrente no fundo, restava pouca dúvida de que ela também contribuía em grande volume.

Porém eu ainda me admirava pelo estado de total reviravolta do lugar, os filetes de água e aquela rachadura enorme, mais acima na ravina! Parecia-me que para tanta mudança teria sido preciso mais que um desmoronamento comum. Eu poderia imaginar que um terremoto ou uma explosão grande poderiam criar condições tais como as que eu via, só que nada disso tinha acontecido. Então me levantei rápido, lembrando o estrondo e a nuvem de poeira que o seguira logo depois, subindo pelo ar. Mas balancei a cabeça, incapaz de acreditar. Não! Aquilo que ouvira então devia ter sido só o barulho de pedras e terra caindo, claro, porque poeira sobe fácil, naturalmente. Ainda assim, apesar de meu raciocínio, tinha a sensação inquietante de que esta teoria não bastava para satisfazer meu senso de probabilidade, mas haveria uma outra que pudesse sugerir que fosse pelo menos parcialmente plausível? Pimenta tinha ficado sentado pela grama enquanto eu conduzia o meu exame. Quando dei a volta pelo lado norte da ravina ele se levantou e me acompanhou.

Devagar, mantendo a atenção divida em todas as direções, circundei o Abismo, mas achei pouca coisa que não tivesse visto. Desde o oeste eu pude ver as quatro pequenas cascatas, que fluíam ininterruptamente. Elas estavam a distância considerável da superfície do lago, algo em torno de quinze metros, segundo calculei.

Ainda me demorei um pouco por ali, mantendo meus olhos e ouvidos atentos, mas não vi nem ouvi mais nada suspeito. Todo o lugar estava maravilhosamente silencioso e a não ser pelo murmúrio contínuo da água, não havia nenhuma espécie de som que rompesse a quietude.

Durante todo esse tempo Pimenta não exibira sinal nenhum de irritação, o que me parecia indicar que, naquele momento pelo menos, não havia nenhuma criatura suína pelas redondezas. Pelo que deu para ver, sua atenção parecia concentrada principalmente em arranhar e farejar por entre a grama, na beirada do Abismo. Às vezes ele saía correndo em direção à casa, como se fosse seguir pegadas invisíveis, mas sempre voltava depois de uns minutos. Eu não tinha dúvida de que estava mesmo achando os rastros das coisas suínas e o próprio fato de que todas que seguia pareciam trazê-lo de volta até o Abismo provava que os brutos haviam voltado para o lugar de onde tinham vindo.

Ao meio dia eu voltei para casa, para comer. Durante a tarde dei uma busca parcial dos jardins, acompanhado pelo Pimenta, mas não encontrei mais nada que indicasse presença das criaturas.

Uma vez, enquanto passávamos por entre as macegas, Pimenta correu para uns arbustos, latindo alto. Com isso eu saltei para trás, amedrontado, e apontei a arma engatilhada, só para depois rir nervoso quando ele apareceu de volta perseguindo um pobre gato. Ao entardecer, desisti da busca e voltei para casa. Então, de repente, quando nós estávamos passando por uma grande moita de arbustos à nossa direita, Pimenta desapareceu e pude ouvi-lo farejar e ganir entre eles, de maneira suspeita. Afastei os galhos usando o cano da espingarda e olhei para dentro. Não havia nada para se ver, a não ser que muitos dos galhos estavam curvados ou quebrados, como se algum animal tivesse feito um ninho ali, não muito antes. Devia ter sido um dos lugares ocupados, na noite do ataque, por uma das criaturas suínas.

Voltei à minha busca pelos jardins no dia seguinte, mas não obtive resultado. Ao cair da noite já tinha percorrido todos eles, e verificara que não poderia mais haver nenhuma das Coisas escondida no lugar. De fato, como costumo pensar, eu estava certo em minha suposição inicial, de que foram todas embora logo após o ataque.


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