Um dia, conversando casualmente com o meu amigo e também escritor Emerson Teixeira Cardoso, ele me contou uma história curiosa que se passou com ele nos anos 1960, época em que era ator amador em nossa Cataguases natal. Uma história cuja moral, se é que existe alguma, demorei muito para entender.
Era de um grupo não apenas amador, mas também autodidata, que encenava peças diversas na base do amor e do instinto. Certa vez, enquanto ensaiavam para a montagem de “Rinoceronte”, do Eugène Ionescu, calharam de ter a ideia de escrever ao então famoso dramaturgo romeno exilado em Paris, autor da peça. Não sei como conseguiram o endereço, mas conseguiram, e um dos membros do grupo sabia francês, coisa que se sabia naquela época muito mais do que hoje.
Após várias hesitações sobre o conteúdo da carta, que acabou sendo um trabalho escrito a muitas mãos, decidiram que a carta seria mais ou menos assim. Começariam se apresentando como um grupo de teatro amador, localizado no interior do Brasil, em uma cidade que tinha, à época, cerca de 30 mil habitantes. Depois de enfatizarem que tudo o que sabiam de teatro haviam aprendido dos livros que haviam lido sobre o assunto e das peças que haviam ousado encenar, descreviam com minúcias as dificuldades por que passavam e a incompreensão que enfrentavam (e apesar de tudo uma peça teatral daquelas deve ter tido mais público em 1969 do que teria hoje, na mesma cidade, já crescida e mais “desenvolvida”). A carta concluía com uma pergunta ao dramaturgo, como se ele fosse uma espécie de oráculo: “o que devemos fazer?”
A resposta de Ionescu veio quase três meses depois, quando a peça já tinha sido apresentada todas as duas ou três vezes que poderia ser. Era uma frase única, seca, isolada no centro de uma folha de papel ofício:
Meu amigo me contou que todos ficaram perplexos com aquele imperativo formidável pousado na página como um abutre, sutil como uma chifrada de rinoceronte. Não sei se meu amigo já desenvolveu uma teoria sobre as motivações do conselho de Ionescu, ou mesmo se existe uma razão para ele, além do mau humor de um exilado que devia receber centenas de cartas de fãs cada dia.
De fato, tendo refletido posteriormente sobre o enigma desta frase, ainda mais pela carga de gravidade que a exiguidade lhe empresta, eu desenvolvi uma teoria, que vai muito ao encontro (e às vezes de encontro) de certas ideias que eu advogo desde os tempos da revista literária trem azul.
Ionescu, ao tomar conhecimento da existência, no interior do Brasil, de um grupo de pessoas que se dedicava a estudar teatro a partir de livros e montar precariamente as peças teatrais escritas por famosos dramaturgos como ele, deve ter se sentido bastante incomodado com a pergunta que ainda hoje não quer calar em mim quando vejo algo equivalente: o que essa gente pensa que está fazendo?
Veja bem você, vivendo em uma realidade tão específica, e tão oposta à Europa do pós-guerra, enfrentando tantas restrições que te impedem de efetivamente ter acesso à cultura cosmopolita, em uma sociedade que de forma alguma valoriza seu esforço ou compreende o seu trabalho. Se tudo que você faz é tosco, se os seus aplausos são a compaixão de amigos e parentes, se o seu entendimento de teatro se limita aos livros, se seus meios lhe obrigam a improvisar, deformando a cenografia pensada pelo autor etc. Se esta é a sua realidade, você tem mais é que se matar mesmo. Se você vive de costas para a cultura do seu país e busca, ainda que instintivamente, a aprovação de um autor que, por mais talentoso que seja, pertence a outro continente, e praticamente a outro século, então você está se anulando para poder abrir espaço para a imitação do outro. Se você se anula, você se mata metaforicamente. Se você já está morto, matar-se não é uma violência tão maior. Acabe, então, com o serviço já começado. Mate-se.
“Matar-se” adquire, então, um caráter de libertação. Ionescu sabia que os jovens não se matariam por causa de sua frase (que se matassem, porém, se quisessem, que ele provavelmente nem ficava sabendo). Mas ao serem provocados desta forma, certamente eles tiveram uma sacudida que lhes fez pensar muito sobre suas vidas, sua cultura e seus valores.
Talvez tenham se tornado como aquele que, porém, recusa-se a obedecer a esta ordem e, em vez dela, brada de volta aos modelos e ídolos, cuja aprovação inutilmente buscara:
Com esta determinação em mente, seguir a vida fica mais fácil, porque temos uma desculpa para vivermos. Se não temos um norte, fica fácil seguir o conselho de Ionesco, aliás, o seguimos em modo automático o tempo todo. Talvez, se o norte for firme e a vontade vier acompanhada de algum engenho, talvez não seja preciso confrontar assim, mas com uma frase mais sutil:
Porque, talvez, a melhor reação diante de uma determinação que nos destrói não seja destruir o que nos ameça, mas sobreviver. Às vezes a destruição do inimigo nos destrói também.
Pensando desta forma, quer tenha Ionesco pensado assim ou não, o conselho adquire um caráter de verdadeiro oráculo, e os jovens cataguasenses acabaram tendo na mão o direcionamento que esperavam, apenas não da forma que queriam.
Era de um grupo não apenas amador, mas também autodidata, que encenava peças diversas na base do amor e do instinto. Certa vez, enquanto ensaiavam para a montagem de “Rinoceronte”, do Eugène Ionescu, calharam de ter a ideia de escrever ao então famoso dramaturgo romeno exilado em Paris, autor da peça. Não sei como conseguiram o endereço, mas conseguiram, e um dos membros do grupo sabia francês, coisa que se sabia naquela época muito mais do que hoje.
Após várias hesitações sobre o conteúdo da carta, que acabou sendo um trabalho escrito a muitas mãos, decidiram que a carta seria mais ou menos assim. Começariam se apresentando como um grupo de teatro amador, localizado no interior do Brasil, em uma cidade que tinha, à época, cerca de 30 mil habitantes. Depois de enfatizarem que tudo o que sabiam de teatro haviam aprendido dos livros que haviam lido sobre o assunto e das peças que haviam ousado encenar, descreviam com minúcias as dificuldades por que passavam e a incompreensão que enfrentavam (e apesar de tudo uma peça teatral daquelas deve ter tido mais público em 1969 do que teria hoje, na mesma cidade, já crescida e mais “desenvolvida”). A carta concluía com uma pergunta ao dramaturgo, como se ele fosse uma espécie de oráculo: “o que devemos fazer?”
A resposta de Ionescu veio quase três meses depois, quando a peça já tinha sido apresentada todas as duas ou três vezes que poderia ser. Era uma frase única, seca, isolada no centro de uma folha de papel ofício:
« tuez-vous »
Meu amigo me contou que todos ficaram perplexos com aquele imperativo formidável pousado na página como um abutre, sutil como uma chifrada de rinoceronte. Não sei se meu amigo já desenvolveu uma teoria sobre as motivações do conselho de Ionescu, ou mesmo se existe uma razão para ele, além do mau humor de um exilado que devia receber centenas de cartas de fãs cada dia.
De fato, tendo refletido posteriormente sobre o enigma desta frase, ainda mais pela carga de gravidade que a exiguidade lhe empresta, eu desenvolvi uma teoria, que vai muito ao encontro (e às vezes de encontro) de certas ideias que eu advogo desde os tempos da revista literária trem azul.
Ionescu, ao tomar conhecimento da existência, no interior do Brasil, de um grupo de pessoas que se dedicava a estudar teatro a partir de livros e montar precariamente as peças teatrais escritas por famosos dramaturgos como ele, deve ter se sentido bastante incomodado com a pergunta que ainda hoje não quer calar em mim quando vejo algo equivalente: o que essa gente pensa que está fazendo?
Veja bem você, vivendo em uma realidade tão específica, e tão oposta à Europa do pós-guerra, enfrentando tantas restrições que te impedem de efetivamente ter acesso à cultura cosmopolita, em uma sociedade que de forma alguma valoriza seu esforço ou compreende o seu trabalho. Se tudo que você faz é tosco, se os seus aplausos são a compaixão de amigos e parentes, se o seu entendimento de teatro se limita aos livros, se seus meios lhe obrigam a improvisar, deformando a cenografia pensada pelo autor etc. Se esta é a sua realidade, você tem mais é que se matar mesmo. Se você vive de costas para a cultura do seu país e busca, ainda que instintivamente, a aprovação de um autor que, por mais talentoso que seja, pertence a outro continente, e praticamente a outro século, então você está se anulando para poder abrir espaço para a imitação do outro. Se você se anula, você se mata metaforicamente. Se você já está morto, matar-se não é uma violência tão maior. Acabe, então, com o serviço já começado. Mate-se.
“Matar-se” adquire, então, um caráter de libertação. Ionescu sabia que os jovens não se matariam por causa de sua frase (que se matassem, porém, se quisessem, que ele provavelmente nem ficava sabendo). Mas ao serem provocados desta forma, certamente eles tiveram uma sacudida que lhes fez pensar muito sobre suas vidas, sua cultura e seus valores.
Talvez tenham se tornado como aquele que, porém, recusa-se a obedecer a esta ordem e, em vez dela, brada de volta aos modelos e ídolos, cuja aprovação inutilmente buscara:
« je tuerai vous »
Com esta determinação em mente, seguir a vida fica mais fácil, porque temos uma desculpa para vivermos. Se não temos um norte, fica fácil seguir o conselho de Ionesco, aliás, o seguimos em modo automático o tempo todo. Talvez, se o norte for firme e a vontade vier acompanhada de algum engenho, talvez não seja preciso confrontar assim, mas com uma frase mais sutil:
« je survivrai »
Porque, talvez, a melhor reação diante de uma determinação que nos destrói não seja destruir o que nos ameça, mas sobreviver. Às vezes a destruição do inimigo nos destrói também.
Pensando desta forma, quer tenha Ionesco pensado assim ou não, o conselho adquire um caráter de verdadeiro oráculo, e os jovens cataguasenses acabaram tendo na mão o direcionamento que esperavam, apenas não da forma que queriam.