A Montanha pontificava sobre o vale como um farol no mar de morros do interior de Minas Gerais. Inexplicavelmente os Estranhos não haviam se ocupado dela. Era lá que ficava o refúgio que abandonáramos, era lá que… «Mas, que merda é essa?»
A menos de duzentos metros de nós, uma das coisas voadoras veio pousar, com uma levez realmente Estranha e dobrando-se e estalando sobre si mesma como um origami diabólico. Por fim aquela forma surreal, reduzida a um mero pacote do que fora, caiu pelo chão como uma concha de lesma e foi rapidamente conduzida para dentro de um galpão por alguns seres vestidos com albornozes negros. O ciclo se fechava ali: eu havia presenciado tudo o que precisava para entender muita coisa que me intrigara desde o alto do morro, minha aventura louca fora recompensada.
O sol continuou subindo, estalando nas folhas ressequidas da grama de inverno e nos dando a impressão de que poderia sanear aquela pústula que se abatera sobre o mundo, mas essa esperança vaga começou a morrer quando me dei conta de que nenhum carro passara pelo asfalto desde dias antes, e nenhum passava naquele momento.
Continuamos andando em uma direção qualquer, para longe da cidade, seguindo o caminho de menos esforço. Antes de virarmos a curva seguinte, tive tempo ainda para olhar para trás e ver, sendo rolada para forma do mesmo galpão, outra daquelas dobraduras loucas, que logo adquiriu asas e decolou, para amaldiçoar com sua sombra o que um dia fora um belo vale, sede de uma cidadezinha razoável.
Logo adiante percebemos que não seria fácil chegar a algum lugar: os fios de luz cortados, postes telefônicos tombados, os radares da polícia rodoviária explodidos e estranhas listras escuras marcadas na face dos morros, listras onde o pasto morrera e se transformara em pó, onde as árvores pareciam desesperados carvões acenando para um vento inútil.
Um carro estava parado exatamente sobre a ponte, parecia ter sido queimado. De perto vimos que não era bem isso: ele estava inteiro por dentro e por fora, apenas sua pintura esfarelenta denunciava algum tipo de acelerada corrupção. Os pneus rachados haviam deixado escapar todo ar, e se desfaziam aos cavacos, como a borracha estivesse irremediavelmente leprosa. Ao volante, um esqueleto limpo, com os ossos ligeiramente alaranjados.
Madalena não me perguntou nada sobre o carro. Pobre coitada, imagino como se sentia. Eu mesmo não conseguia falar coisa nenhuma. Em mim, porém, brotou naquele momento a constatação da raride de restos mortais, humanos ou não, desde que penetráramos a cidade. Era muito pouco tempo desde o aparecimento dos estranhos, pouco mais de uma semana, deveria haver uma fedentina insuportável de corpos em decomposição, mas não havia nada. O que poderia haver de mais sinistro nesta constatação eu nem tentei imaginar. Apenas respirei fundo, sentindo-me sortudo por ter conseguido atravessar o vale das sombras da morte como se o Senhor fosse o meu pastor.
Continuamos andando, porém, como se a própria vida dependesse disso. Apesar do peito ofegante, do corpo suado de medo que esquentava à medida em que o sol subia, apesar da alma carregada de dúvidas e das pernas doendo da caminhada de já quase sete quilômetros, traçada entre tantas interrupções, com calma e pavor. Deviam ser seis da manhã, ou menos ainda. No verão o sol nasce muito cedo.
Olhei para Madalena com curiosidade. Ela estava fitando o caminho à frente, com teimosia de quem quer viver. Seu cabelo estava tão empapado de suor que se transformar numa túnica negra que caia sobre as suas costas. O desodorante vencera dias antes e um cheiro forte saía de seu corpo, mas um cheiro que não me repelia totalmente, um cheiro de deserto, de idade da pedra. Fosse outra circunstância eu teria me sentido excitado, mas diante dos fatos o meu cérebro desligou esta emoção. Procriar seria inútil se não achássemos segurança.
O riacho corria preguiçoso e o mundo andava tão silencioso que eu conseguia ouvir o barulhinho da água. O mau cheiro que ele exalara dias antes estava quase inteiramente dissipado. Esta constatação me encheu de esperança, e eu acabei dizendo que era bom estar vivo, afinal, pois o mundo parecia ter sobrevivido.
Passada a curva seguinte encontramos o primeiro automóvel intacto. Ou quase. Estava cuidosamente estacionado em uma entrada que dava para um matagal, ponto conhecido de meus anos loucos de juventude: quando não tinha dinheiro eu estacionava ali para transar. Uma listra negra cruzava o asfalto alguns metros antes, a primeira que pisaríamos em vários dias. Sobre ela estava o que parecia ser outro resto incendiado de automóvel. Mas aquele, escondido entre as folhas ainda vivas daquela moita de beira de estrada, não fora tocado por nenhum fogo divino.
— Parece que tem alguém lá dentro — observou Madalena, que, obviamente, estava enxergando melhor do que eu, pois tinha olhos naturalmente bons enquanto eu lutava contra a gordura acumulada em minhas lentes.
Tentei limpar os óculos no lenço já ensebado de suor, só piorando a situação. Lambi-os em desespero, melhorando um pouco sua transparência, mas criando um cheiro horroroso de mau hálito em torno de meu nariz. E enquanto isso Madalena e eu nos aproximamos cuidadosamente do veículo para ver quem estava dentro.
Era um casal de namorados, obviamente, mas ambos mortos. Hediondamente mortos por balaços através da cabeça.
— Morte matada — novamente Madalena se adiantava, deixando transparecer a leve influência de seu falar.
Nunca lhe perguntara de onde viera. Não se pode conversar muito com putas, ou se corre o risco de descobrir sua humanidade, ou talvez até de brotar uma paixão vexaminosa dessas. Mas aquela expressão, aquele jeito diferente de rolar as vogais, tudo me sugeria que ela vinha de longe, bem longe, ou estivera por lá durante muito tempo. Isso, porém, já não fazia sentido algum. Ainda existiria o «longe»?
Madalena tapava o nariz, contrariada pelo cheiro e pelas moscas nojentas que voejavam em torno dos cadáveres, que já começavam a sorrir, expostos que estavam à umidade e aos vermes.
— Enterramos esses pobres diabos? — perguntei.
— Pelo amor de Deus, não!
— Não é nada humano deixar dois cadáveres assim sem socorro.
— Não se preocupe com esses, não se importam mais. Eles tiveram foi sorte.
Tive de concordar. A única sorte maior que a de estar vivo era ter morrido. Não sabíamos qual era a terceira alternativa, mas nossa passagem por dentro da cidade sugeria que pudesse ser algo bem pior.
Deixamos aquele carro servir de esquife para os dois, apenas tendo o cuidado de usar a gasolina para atear-lhe fogo. Foi um funeral limpo e puro no alto daquela elevação de beira de estrada, coberta por um ralo matagal. As chamas subiram feias e misturadas com a negra mancha do hidrocarboneto, mas o cheiro daquela combustão purificava o ar da putrefação daquelas pobres vidas.
Uma série de estalos graves vindos da direção da cidade me despertou para o perigo. Agarrei Madalena pelo braço e nos atiramos barranco abaixo, através dos galhos e cipós. Caímos estatelados e arranhados à sombra de uma goiabeira e olhamos para cima, apavorados. Duas enormes e negras sombras voejavam em círculos sobre o incêndio, como urubus. Nunca vira os Estranhos tão de perto, nem mesmo em nosso encontro ao amanhecer, na saída da cidade.
Ele voejou e voejou, como se perscrutasse a cena, mas não pareceu nos ver. Talvez o calor forte da queima de tanta gasolina o inebriasse, ou ofuscasse. Lembrei-me da cena na escola e tive esperanças de escapar. Estas esperanças me fizeram congelar de novo, sem dizer palavra. Mas quando Madalena sentiu o vento movido pelo farfalhar abjeto daquelas asas inomináveis ela surtou e se levantou e saiu correndo e chorando em direção ao córrego.
O Estanho logo abandonou seu movimento circular em torno do carro em chamas e soltou um longo assobio que me estalou nos ouvidos e confundiu totalmente os meus sentidos. Senti grogue, tive vontade de vomitar. Voltei o rosto para o lado, preparado para isto, e vi Madalena tropeçar e cair.
No instante a seguir eu acordei em uma poça de vômito. Não havia nenhum Estranho voejando por perto. Levantei-me do chão tão rápido quanto consegui e olhei na direção onde Madalena caíra. Havia algo lá.
A custo movi o primeiro passo. Minhas pernas estavam pesadas, embora me obedecessem. Levantar-me fora relativamente fácil, mas ficar de pé não era. Minha cabeça estava estranhamente confusa e eu não sabia exatamente o que deveria fazer a seguir. Sentia-me como se tivesse estado fortemente sedado, mas só me lembrava daquele longo assobio. E lembrar dele me fez ter novamente vontade de vomitar.
O que estava caído no chão era mesmo Madalena. Ela respirava. Embora tivesse o rosto imerso no próprio vômito, não sufocava porque caíra com metade do rosto sobre o barranco do córrego. Levantei-a daquela posição vexaminosa e atirei na água, para purificá-la do que tivesse acontecido. Desci junto, lembrando da mancha esverdeada entre a minha cara e o peito.
Madalena acordou com água fria e me olhou, soluçando.
— Perdão, perdão, eu não aguentava mais.
— Não tem problema, Madalena, não foi nada.
Na verdade não tinha nenhuma noção do que poderia ter sido. Difícil asseverar que não fora nada.
Apontei-lhe uma casa ali perto, oculta entre as folhagens densas de árvores frutíferas:
— Devemos nos esconder, eles podem voltar.
— Ali não — ela disse. Aquele carrou chamou a atenção deles, não duvido que procurem aqui em volta. Nossa única chance é conseguirmos sair daqui.
E assim, trôpegos e enfraquecidos pelo efeito sonoro inesperado e pelo vômito que provocara, nos levantamos e seguimos o leito do rio, fracos demais para escalar o barranco até o asfalto. Mais abaixo a estrada e a vargem se encontravam em uma ponte, ali seria mais fácil buscar a estrada de novo e tentar achar mais gente, talvez um carro funcionando. Com sorte um carro cujo ocupante tivera a educação de não se matar sentado ao volante para enlamear com sua carne putrescente o estofamento. Talvez de lá conseguíssemos fugir para mais longe, talvez encontrar um lugar onde houvesse mais gente como nós, onde fosse possível cultivar uma simples horta e resistir vivendo, apesar do Inesperado. Seria difícil conseguir isso. A vargem não era nenhuma mesa de bilhar, e não havia árvores que nos servissem de esconderijo.
Enquanto arrastava Madelana comigo — ela estava bem mais enfraquecida — eu olhei para o céu e notei as nuvens negras que se formavam:
— Tomara que seja chuva.
— O que será que nos pega primeiro — perguntou Madalena, algo cínica — a chuva ou os Estranhos?
— Tomara que seja a chuva.
Atrás de nós, na distância, ouvíamos os tétricos estalos daquelas asas malditas. Ao mesmo tempo em que o ar carregado anunciava um aguaceiro de verão a caminho.
— Se tivermos sorte, Madalena, a chuva vai confundir os Estranhos, e nos dará a chance de escapar. Se não chover, querida, essa vargem transformada em pasto não esconde nem um sapo.
— De qualquer forma, com chuva ou sem, vamos andando.
E continuamos andando, torcendo para vir logo a chuva.