Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
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Jul 12
publicado por José Geraldo, às 12:44link do post | comentar

O ganso grasnou na neblina leitosa e Janaína chegou à janela para ver os raios infantis de sol nas teias de aranha que punham um véu nas folhagens úmidas, o orvalho parecia um salpico de perolazinhas: não havia maior troféu no mundo que estar viva e ver aquilo!

Dona Gertrudes trouxe uma bandeja de torradas com manteiga, café de rapadura e queijo. Tudo cheiroso como na infância soterrada pelo tempo. Há momentos na vida que parecem durar eternidades, mesmo sendo poucas semanas. E Janaína ouvia os ecos da infância como se tivessem sido numa era anterior, quase inimaginável. Estava de volta à cidade pequena e à casa da mãe. Nada era mais surpreendente do que isto. Depois que a mãe saiu num passo abatido, suspirou e começou a morder o desjejum enquanto contemplava o mundo, tão distraída que talvez não notasse um tiro de canhão.

Havia um pé de girassol além da cerca, algo melancólico de se ver, todos os dias, aquele movimento inconsciente da flor, aquela vitalidade vazia de planta… Nem as aranhas são tão desesperadas: fazem teias por instinto, mas não parece que ficam tão presas a um ciclo. Ao contrário dos girassóis elas podem pular de árvore em árvore. E tantas pessoas parecem girassóis. E tantas querem ser aranhas.

Quando deu por si mastigava o resto do queijo, que rangia gostoso na boca. Mal notou quando a mãe tirou a bandeja, resignada.

Afastou-se da janela com o cuidado que se precisa e foi ler outro capítulo do livro de Miguelito. O rapaz era atencioso, trazia-lhe livros e gastava horas preciosas de sua vida dando-lha atenção. Adorava Miguelito, ingênua e desesperada, mesmo sendo tão bonito — era um sonho inconsequente e necessário.

Dessa vez lhe trouxera um romance. Finalmente ela o convencera a parar com obras espirituais: “Não preciso me agarrar tanto a Jesus, pobrezinho. Se ficar o tempo todo falando em seu ouvido ele vai cansar e talvez não me ouça quando eu precisar”.

Miguelito se ofendera com a ideia. Sugerira, ácido, que Janaína “não aprendera nada”. Mas trouxe um livro que não era de orações nem exemplos edificantes. Demorou, porém, deixando-a com medo de ter perdido o amigo. Mas ele voltou, parecendo querer voltar — e isso importava muito.

Logo cansou do livro e preferiu pensar no amigo. Ele tinha uma pele morena muito uniforme, como se jamais tivesse sido agredido pelo sol, um tom moreno de nascença, de herença atávica. Seus olhos eram pretos, completamente pretos, como botões. Olhos que brilhavam, líquidos, quando a contemplavam. E tinha cabelos escorridos, cabelos de índio, grossos e saudáveis. Gostava de pensar nele, mas pensava melhor sob as cobertas.

Aproximou-se da cama com cuidado e com toda a energia que lhe sobrava nos braços. Ainda estava aprendendo muita coisa, ainda estava adquirindo força e delicadeza. Deixou a cadeira de rodas e passou para o leito. Enrolada nas cobertas, pensando nele, voltou a explorar restos de sensações na pele, mapeando-se, descobrindo onde ainda o sentia, imaginando o que poderia oferecer-lhe. Pois Miguelito merecia mais que seus sorrisos.


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