Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
28
Mai 07
publicado por José Geraldo, às 09:00link do post | comentar

Júlia era uma menina cheia de manias. Principalmente era cheia de manias ruins ou esquisitas. Manias que aprendia de seus colegas, parentes, vizinhos, etc. Recentemente Júlia aprendeu a chorar.

Nas primeiras vezes ela chorou naturalmente. O choro que as crianças choram quando perdem ou quando não acham, quando não têm ou quando quebram, quando querem e não podem ou quando não querem e têm que fazer.

Mas a mãe de Júlia não tinha paciência e tinha tanta pressa em se livrar logo do choro da menina que Júlia acabou percebendo que entre chorar e ganhar o que queria era muito pouco tempo. E menos tempo ainda entre chorar e deixar de ter que fazer algo que não queria. Assim foi que Júlia aprendeu a chorar.

Depois que aprendeu a chorar Júlia começou a tentar o controle sobre sua vida. Chorava para não comer cedo, depois chorava porque estava com fome. Chorava para não ter que comer tudo, depois chorava para poder comer biscoito. Chorava para não ter que dormir no escuro, depois acordava de noite chorando com dor de cabeça porque a luz estava acesa.

Os pobres pais de Júlia nem conseguiam mais dormir direito, pois toda noite ela chorava pelo menos duas vezes. E pelo menos duas vezes por noite lá vinha um pai ou uma mãe com cara de sono e pés pesadas pisando o chão. Vinha ver o que havia com a menina manhosa que chorava até encher.

E não adiantava eles ameaçarem com castigos, não adiantava dizerem que Papai do Céu não gostava, que Papai Noel não gostava, que o Coelhinho da Páscoa não gostava, nada funcionava. Por fim a mãe de Júlia se lembrou de uma antiga história de quando era criança, sobre monstrinhos que vêm morar no quarto das crianças que choram durante a noite, mas nem essa história adiantou: só fez a menina ficar com mais medo.

Havia duas coisas importantes que faziam Júlia chorar de noite. Primeiro era vontade de mamar outra vez — mas tinha noite que ela não conseguia acordar para pedir a mamadeira. Outra era quando ela tinha pesadelos e acordava com medo de tudo.

Os medos de Júlia eram de qualquer coisa que houvesse no escuro — ou que pudesse haver. Teve uma noite em que ela acordou, viu um vulto se mexendo no chão e acordou o prédio inteiro com berros desesperados de tanto medo. Mas era só a sombra de um galho de árvore à luz da lua. Tomou um castigo de ficar uma semana sem brincar com as coleguinhas e depois de muito tempo ficou com receio de seus pais.

Depois disso Júlia ficou com medo do armário de madeira em que guardava seus brinquedos. Muitas vezes ela acordava soluçando de muito medo, jurava que ouvia o barulho de unhas na madeira ou uma respiração barulhenta, respiração de monstro. Nunca tinha coragem de ir ver o que era. E também tinha medo de chamar os pais desde o castigo que levou por ter feito escândalo com a sombra da árvore.

Mas os pais de Júlia logo viram que havia alguma coisa errada com a menina. Ela acordava todas as manhãs com os olhos vermelhos, o rosto amassado de quem não dormiu. Nunca respondia às perguntas e isso começou a incomodar-lhes muito.

Uma noite a mamãe de Júlia acordou no meio da noite e foi à cozinha tomar um pouco de água. Ao voltar escutou uma respiraçãozinha medrosa dentro do quarto da menina e abriu a porta para ver o que era. Júlia estava sentada na cama, encostada à cabeceira. Tinha os olhos arregalados e o rosto cheio de lágrimas.

— Minha filha, o que está acontecendo?

— O monstro, mamãe. O monstro do armário — disse, apontando com o dedinho.

A mãe de Júlia abanou a cabeça:

— Filhinha, essa história de monstro morando no armário é só uma historinha…

— Mas foi a senhora que me disse.

A mãe de Júlia se sentia péssima por ter mentido à filha e, meio envergonhada, confessou:

— Filhinha, algumas coisas são só historinhas. As que são de verdade não têm monstros, não têm fadinhas, não têm nada que você não tenha visto.

E tendo dito isto foi dormir.

Júlia ainda ficou uma meia hora ou mais na mesma posição, olhando firmemente para o armário. Então levantou-se, foi até ele e, agitando o dedinho, falou através da greta entreaberta da porta do armário:

— Eu sei que você não existe. Mamãe me disse que você é só uma historinha. Então faça o favor de ir embora porque a historinha já acabou. Se você ficar aí eu vou dizer para a minha mãe que tem baratas no armário e ela vai te encher de veneno!

E dizendo isso, fazendo beicinho, ela deitou na cama e dormiu.

Algumas horas se passaram, a lua começou a baixar no céu e Júlia dormia calmamente. Havia um silêncio enorme no prédio, um silêncio do tipo que só há nas cidadezinhas. Então uma mãozinha peluda e verruguenta apareceu através da greta da porta entreaberta do armário de Júlia. Logo veio também um nariz comprido e brilhoso, que ficava na ponta de um focinho bigodudo e engraçado. Então apareceram dois olhinhos vermelhos, que pareciam muito ferozes no escuro.

O monstrinho farejou o ar, sentiu pelo cheiro da respiração e do suor que Júlia estava mesmo dormindo. Então criou coragem e pulou para fora do armário, tendo o cuidado de cair no tapete fofo e não no chão de ardósia dura.

Era uma criaturinha medonha, mas ridiculamente engraçada. Uma mistura de rato com gambá, gato e porco-espinho. Tinha mãozinhas de esquilo e orelhas que pareciam de coelho. Seu corpo era todo peludo, mas de um pelo que parecia muito sujo porque a cor variava entre diversos tons de marrom, de preto e de bege. Uma longa cauda que parecia um rabo de lagarto ficava o tempo todo se mexendo. Quem visse aquela coisinha de repente poderia bem pensar que era um bonequinho de plástico que caíra numa chapa quente e ficara todo deformado — ou então que eram pedaços de muitos bichinhos de pelúcia e de alguns animais mortos que haviam se juntado numa coisa só.

O monstrinho coçou a cabeça, depois a barriga, e resmungou com uma vozinha rouca e soluçando:

— Primeiro essa chatinha me chama lá da terra do escuro. Fica noites e noites chorando para eu vir. E agora me espanta assim! Isso não se faz.

Depois olhou para o armário de brinquedos e pequenas lágrimas cor-de-rosa se formaram nos seus olhinhos vermelhos:

— Adeus macaquinha do lacinho de fita, adeus ursão fofo. Vou sentir muitas saudades de você, bonequinha de pano.

Então ele retirou de dentro do armário uma trouxinha de trapos cheia de coisas impossivelmente nojentas. Suspirou e começou a usar uma cadeirinha para alcançar a janela.

Quando chegou à janela, olhou para trás, fez um gesto ofensivo em direção a Júlia e resmungou outra vez:

— Onde vou achar outro armário tão grande, tão escuro, tão quentinho e tão cheio de brinquedos velhos?!…

E dizendo isso, começou a desdobrar asinhas de morcego que logo bateram e o fizeram voar no resto de madrugada, de volta à Terra do Escuro, de onde os pesadelos e os monstrinhos de armário vêm.

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12
Mai 07
publicado por José Geraldo, às 07:16link do post | comentar | ver comentários (1)

Hoje saí para passear com minha filha e descobri que, apesar do prazer da paternidade, o que eu quero mesmo é minha “Torre de Marfim”. Um lugar bem alto, distante e isolado, em que eu pudesse estar a salvo dos ruídos do mundo e ouvir apenas música boa. Um lugar aonde não chegasse mala-direta, Padre Marcelo Rossi, Mr. Catra, missionários, o cheiro do Ribeirão Feijão-Cru, notícias de balas perdidas…

Como todo poeta eu amo às nuvens, aos lugares sagrados, às coisa antigas. Existem até alguns que fingem amar o oposto disso — mas nesses eu não confio. E como todo poeta eu abomino a bovinice, o comportamento de rebanho, a conformidade do sistema, a arte pela colheita da grana.

Acima de tudo eu odeio o ruído, odeio especialmente essa abominação chamada tele-mensagem. Já avisei a todos que me conhecem que se me mandarem tele-mensagem eu fujo. Se me puserem ao microfone eu mando todo mundo tomar no cu. E se eu descubro quem foi o infeliz, já era: se foi minha mulher, me divorcio. Se minha filha, sem mesada por pelo menos 730 dias. Se for amigo, era.

Se eu pudesse viver em minha torre de marfim eu seria dedicado à quietude. Seria capaz de votar certos dias ao silêncio absoluto.

Na minha torre de marfim eu passaria deliciosas horas de solidão, ouvindo esse silêncio mórbido e eterno que o mundo de hoje expulsou. Se ainda não estiverem extintos e nem engaiolados, os passarinhos virão pousar à minha janela e cantar no meu amanhecer. Mas se estiverem todos mortos eu poderei pelo menos gozar do silêncio — e nesse silêncio poderei ouvir meus pensamentos melhor.

Minha torre não será um condomínio. Creio que no inferno existem vizinhos, mas no céu cada alma bendita terá uma sesmaria ao redor de sua cabana.

Do alto de minha Torre eu certamente verei no horizonte as luzes de muitas cidadezinhas ou a nebulosa de uma metrópole. Para isso é que porei películas escuras nas vidraças. Quero minhas noites negras. Mesmo que as luzes da modernidade me roubem as estrelas eu ainda quero, pelo menos, o prazer de poder dormir na escuridão.

Entre as inúmeras coisas que abolirei de minha vida quando me mudar para a Torre eu enumero três que certamente não deixarei de deixar… O telefone, a televisão e o celular. Não quero telefone, mas quero computador com internet. Não quero televisão, mas quero meu DVD-player. Usarei minha conexão de banda-larga para piratear todos os filmes que quiser ver, todos os discos que quiser ouvir. Enquanto isso não quero ter de atender o telefone, não quero ter de assistir a essas coisas horrendas que a televisão insiste em nos mostrar. Eu não sou essas coisas e não sou essa música ruidosa que assombra a cidade.

Talvez você me ache louco, ou tenha pena de mim porque na minha Torre de Marfim não haverá amor. Talvez eu tenha razão, talvez tenha você. Essa Torre agora é só um sonho porque nela não caberiam todas as pessoas que eu teria de levar — e cada pessoa teria outras a quem levar. Assim, a minha solidão se tornaria um condomínio e a primeira coisa que toda essa gente faria seria organizar um churrasco regado a cerveja e pagode.


02
Mai 07
publicado por José Geraldo, às 15:00link do post | comentar

Teresa era uma menina de apartamento. Como toda criança ela gostava de bichinhos, não só dos de pelúcia mas dos de verdade também. Teresa gostava muito de passarinhos e de cavalos: seu grande sonho era um dia poder cavalgar um pônei pelo pasto afora, sentindo o vento nos cabelos e o sol no rosto.

Mas o apartamento é um lugar pequeno: ali não dá para ter um cavalo. Coitado do bichinho! Onde ele pastaria? Em que riacho poderia brincar?

Teresa até pensou em pedir que sua mamãe lhe desse uma gaiola de passarinho, mas pensou: que tristeza o pobrezinho ficar preso numa coisa tão pequenina como uma gaiola, logo ele que pode voar, que gosta de brincar por toda parte.

Quando Teresa pensava na tristeza do passarinho engaiolado ela pensava também um pouquinho em si mesma: como se sentia triste por ficar tanto tempo dentro de casa, longe das outras crianças, longe das flores, dos riachos e dos bichinhos. Por isso mesmo Teresa não queria ter um passarinho na gaiola.

Mas Teresa vivia triste e pensativa, sonhando em poder cavalgar pelo pasto no lombo de um cavalinho, poder colher flores, tomar banho de riacho, brincar na terra com outras crianças, longe das paredes cinzentas dos prédios da cidade, esses caixotes de guardar gente.

Um dia o pai de Teresa voltou da rua com uma caixa grande, toda colorida. Quando Teresa rasgou o embrulho não conseguia acreditar: seu papai tinha comprado um pônei de brinquedo, tão grande que ela podia montar nele! O pônei tinha também rodinhas nos pés, até dava para Teresa fingir que estava cavalgando pela casa.

Desde esse dia Teresa passou a ser um pouquinho mais feliz. Ainda não havia cavalgado pelo pasto no lombo de um cavalinho de verdade, mas pelo menos tinha seu pônei de brinquedo — e com ele ela podia fingir que estava pelas montanhas afora, andando entre flores e animaizinhos.

Mas o tempo foi passando e Teresa perdeu a graça de brincar com o pônei, ele foi ficando lá num canto do quarto e Teresa voltou a ficar pensativa.

Um dia ela estava tão triste de vontade de poder passear a cavalo que foi dormir chorando, baixinho para os seus pais não ouvirem.

Mas Deus ouviu e resolveu dar uma pequena alegria para Teresa. Ele mandou que um anjinho muito brincalhão fosse levar um sonho colorido para a menina. Só que o anjinho resolveu fazer diferente: em vez de dar um sonho bonito para Teresa ele a acordou de mansinho no meio da noite e lhe mostrou o cavalinho de brinquedo:

— Venha, Teresa. Porque essa noite você vai andar a cavalo, vai ver flores, vai ver os bichinhos…

Teresa, ainda meio com sono, montou no pônei de brinquedo, e então o anjinho deu um beijo na testa do cavalinho e ele começou a se mexer! Virou um pônei de verdade, com um longa crina negra e um par de imensas asas castanhas, escuras como seu pêlo.

Teresa nem teve tempo de se assustar: o pônei bateu as asas e saiu voando, voando, alto bem alto acima das luzes da cidade e das nuvens. Teresa olhou para baixo e teve até medo, de tão alto que estava: lá embaixo os carros pareciam baratinhas e as pessoas pareciam formigas.

O pônei voou para além das montanhas altas e foi até o mar. Lá ele baixou para que Teresa pudesse estender a mãozinha e tocar a água fria e salgada do mar. Teresa levou o dedinho a boca e viu que a água era salgada mesmo, como uma lágrima.

Depois o pônei voou de novo através das montanhas, parou num lugar muito alto, cheio de cachoeiras, onde cresciam muitas flores diferentes, com perfumes estranhos. Teresa colheu algumas e fez um lindo ramalhete para sua mamãe, então montou de novo e seguiu passeando.Para além das montanhas havia uma grande mancha escura no chão.

— Você sabe o que é aquilo? — perguntou o pônei.

— Não sei, mas tenho medo — disse Teresa.

— Não tenha medo, pois é lá naquele lugar escuro que existem as coisas mais bonitas.

E desceu até a escuridão. Quando chegou perto Teresa viu que era uma floresta enorme, onde ainda não havia ruas e nem prédios. Dentro dela passava uma fita brilhante que Teresa logo percebeu que era um riachinho.

O pônei pousou junto ao riacho, bem perto de onde havia um bichinho esquisito bebendo água. Teresa teve medo do bichinho, mas o pônei lhe disse para chegar perto:

— Não tenha medo.

— Mas eu não quero assustar. Ele é tão bonitinho. Parece um rato com cara de gato, ou será um porco com cara de rato?

— É uma capivara, Teresa — disse o pônei.

Teresa achou o nome do bicho muito engraçado e deu uma risada. Justo nesse momento ela lembrou de casa e disse ao pônei:

— Xi, temos que voltar! Se mamãe não me vê na cama ela vai ficar muito assustada!

Então o pônei a levou de volta para casa. Teresa escondeu os chinelos sujos de barro debaixo da cama e foi dormir de novo.

No dia seguinte quando acordou não havia sinais de barro nos chinelos e nem o ramalhete que trouxera para a mamãe estava em cima da escrivaninha, mas havia ainda um aroma delicioso que ela nem sabia direito do que era, pois não era de nenhum perfume.


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Muito bom o seu texto mostra direção e orientaçaoh...
Fechei para textos de ficção. Não vou mais blogar ...
Eu tenho acompanhado esses casos, não só contra vo...
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