Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
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Mai 07
publicado por José Geraldo, às 09:00link do post | comentar

Júlia era uma menina cheia de manias. Principalmente era cheia de manias ruins ou esquisitas. Manias que aprendia de seus colegas, parentes, vizinhos, etc. Recentemente Júlia aprendeu a chorar.

Nas primeiras vezes ela chorou naturalmente. O choro que as crianças choram quando perdem ou quando não acham, quando não têm ou quando quebram, quando querem e não podem ou quando não querem e têm que fazer.

Mas a mãe de Júlia não tinha paciência e tinha tanta pressa em se livrar logo do choro da menina que Júlia acabou percebendo que entre chorar e ganhar o que queria era muito pouco tempo. E menos tempo ainda entre chorar e deixar de ter que fazer algo que não queria. Assim foi que Júlia aprendeu a chorar.

Depois que aprendeu a chorar Júlia começou a tentar o controle sobre sua vida. Chorava para não comer cedo, depois chorava porque estava com fome. Chorava para não ter que comer tudo, depois chorava para poder comer biscoito. Chorava para não ter que dormir no escuro, depois acordava de noite chorando com dor de cabeça porque a luz estava acesa.

Os pobres pais de Júlia nem conseguiam mais dormir direito, pois toda noite ela chorava pelo menos duas vezes. E pelo menos duas vezes por noite lá vinha um pai ou uma mãe com cara de sono e pés pesadas pisando o chão. Vinha ver o que havia com a menina manhosa que chorava até encher.

E não adiantava eles ameaçarem com castigos, não adiantava dizerem que Papai do Céu não gostava, que Papai Noel não gostava, que o Coelhinho da Páscoa não gostava, nada funcionava. Por fim a mãe de Júlia se lembrou de uma antiga história de quando era criança, sobre monstrinhos que vêm morar no quarto das crianças que choram durante a noite, mas nem essa história adiantou: só fez a menina ficar com mais medo.

Havia duas coisas importantes que faziam Júlia chorar de noite. Primeiro era vontade de mamar outra vez — mas tinha noite que ela não conseguia acordar para pedir a mamadeira. Outra era quando ela tinha pesadelos e acordava com medo de tudo.

Os medos de Júlia eram de qualquer coisa que houvesse no escuro — ou que pudesse haver. Teve uma noite em que ela acordou, viu um vulto se mexendo no chão e acordou o prédio inteiro com berros desesperados de tanto medo. Mas era só a sombra de um galho de árvore à luz da lua. Tomou um castigo de ficar uma semana sem brincar com as coleguinhas e depois de muito tempo ficou com receio de seus pais.

Depois disso Júlia ficou com medo do armário de madeira em que guardava seus brinquedos. Muitas vezes ela acordava soluçando de muito medo, jurava que ouvia o barulho de unhas na madeira ou uma respiração barulhenta, respiração de monstro. Nunca tinha coragem de ir ver o que era. E também tinha medo de chamar os pais desde o castigo que levou por ter feito escândalo com a sombra da árvore.

Mas os pais de Júlia logo viram que havia alguma coisa errada com a menina. Ela acordava todas as manhãs com os olhos vermelhos, o rosto amassado de quem não dormiu. Nunca respondia às perguntas e isso começou a incomodar-lhes muito.

Uma noite a mamãe de Júlia acordou no meio da noite e foi à cozinha tomar um pouco de água. Ao voltar escutou uma respiraçãozinha medrosa dentro do quarto da menina e abriu a porta para ver o que era. Júlia estava sentada na cama, encostada à cabeceira. Tinha os olhos arregalados e o rosto cheio de lágrimas.

— Minha filha, o que está acontecendo?

— O monstro, mamãe. O monstro do armário — disse, apontando com o dedinho.

A mãe de Júlia abanou a cabeça:

— Filhinha, essa história de monstro morando no armário é só uma historinha…

— Mas foi a senhora que me disse.

A mãe de Júlia se sentia péssima por ter mentido à filha e, meio envergonhada, confessou:

— Filhinha, algumas coisas são só historinhas. As que são de verdade não têm monstros, não têm fadinhas, não têm nada que você não tenha visto.

E tendo dito isto foi dormir.

Júlia ainda ficou uma meia hora ou mais na mesma posição, olhando firmemente para o armário. Então levantou-se, foi até ele e, agitando o dedinho, falou através da greta entreaberta da porta do armário:

— Eu sei que você não existe. Mamãe me disse que você é só uma historinha. Então faça o favor de ir embora porque a historinha já acabou. Se você ficar aí eu vou dizer para a minha mãe que tem baratas no armário e ela vai te encher de veneno!

E dizendo isso, fazendo beicinho, ela deitou na cama e dormiu.

Algumas horas se passaram, a lua começou a baixar no céu e Júlia dormia calmamente. Havia um silêncio enorme no prédio, um silêncio do tipo que só há nas cidadezinhas. Então uma mãozinha peluda e verruguenta apareceu através da greta da porta entreaberta do armário de Júlia. Logo veio também um nariz comprido e brilhoso, que ficava na ponta de um focinho bigodudo e engraçado. Então apareceram dois olhinhos vermelhos, que pareciam muito ferozes no escuro.

O monstrinho farejou o ar, sentiu pelo cheiro da respiração e do suor que Júlia estava mesmo dormindo. Então criou coragem e pulou para fora do armário, tendo o cuidado de cair no tapete fofo e não no chão de ardósia dura.

Era uma criaturinha medonha, mas ridiculamente engraçada. Uma mistura de rato com gambá, gato e porco-espinho. Tinha mãozinhas de esquilo e orelhas que pareciam de coelho. Seu corpo era todo peludo, mas de um pelo que parecia muito sujo porque a cor variava entre diversos tons de marrom, de preto e de bege. Uma longa cauda que parecia um rabo de lagarto ficava o tempo todo se mexendo. Quem visse aquela coisinha de repente poderia bem pensar que era um bonequinho de plástico que caíra numa chapa quente e ficara todo deformado — ou então que eram pedaços de muitos bichinhos de pelúcia e de alguns animais mortos que haviam se juntado numa coisa só.

O monstrinho coçou a cabeça, depois a barriga, e resmungou com uma vozinha rouca e soluçando:

— Primeiro essa chatinha me chama lá da terra do escuro. Fica noites e noites chorando para eu vir. E agora me espanta assim! Isso não se faz.

Depois olhou para o armário de brinquedos e pequenas lágrimas cor-de-rosa se formaram nos seus olhinhos vermelhos:

— Adeus macaquinha do lacinho de fita, adeus ursão fofo. Vou sentir muitas saudades de você, bonequinha de pano.

Então ele retirou de dentro do armário uma trouxinha de trapos cheia de coisas impossivelmente nojentas. Suspirou e começou a usar uma cadeirinha para alcançar a janela.

Quando chegou à janela, olhou para trás, fez um gesto ofensivo em direção a Júlia e resmungou outra vez:

— Onde vou achar outro armário tão grande, tão escuro, tão quentinho e tão cheio de brinquedos velhos?!…

E dizendo isso, começou a desdobrar asinhas de morcego que logo bateram e o fizeram voar no resto de madrugada, de volta à Terra do Escuro, de onde os pesadelos e os monstrinhos de armário vêm.

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