Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
28
Fev 09
publicado por José Geraldo, às 07:54link do post | comentar

Num mundo em que tamanho é documento (carrão, peitão, sonzão, pancadão, etc.) é paradoxal que em relação à cultura se valorize o oposto (mini-conto, mini-poema, noveleta, músicas de dois ou três minutos, etc.).

Dizem que é porque as pessoas hoje “não têm mais tempo” para ler, para ouvir música, enfim, para fazer coisas que não sejam sexo nem necessidades básicas.

A moda hoje é a literatura transistorizada: se você pode fazer menor, então isso quer dizer que é melhor. Só que arte não é eletrônica e nem sempre menos é mais. Aliás, geralmente menos é menos mesmo em tudo: a miniaturização do computador não é feita pela diminuição da complexidade, mas pelo refinamento da estrutura. O melhor paralelo da evolução seria um livro em papel-bíblia e fonte tamanho 7.

Mas os que amam o pequeno acham que se podem fazer um tecladinho miniatura de vinte centímetros, fizeram “um piano moderno”. Mais que isso: criticam o piano antigo para que as pessoas assimilem a ideia de que o moderno é melhor. Não se menciona o som chocho e pasteurizado do tecladinho “Made in China” em comparação com a voz potente do pianão Fritz Dobbert, mas se ressalta o fato de que “hoje em dia ninguém mais tem tempo para aprender piano”, “piano ocupa muito espaço”, “faz barulho de noite” etc.

Lamento a todos que gostam do tecladinho, mas nada se compara ao velho pianão de cauda. A diferença é a mesma entre uma mulher de verdade e uma mulher inflável. Por mais que a mulher de verdade tenha personalidade e uma TPM, não dá para se satisfazer com a versão moderna.

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24
Fev 09
publicado por José Geraldo, às 16:53link do post | comentar

Através do LaTeX é possível obter um grau razoável de separação entre conteúdo e apresentação, o suficiente para ter certo controle sobre a forma do documento. Em nossa experiência tentaremos gerar quatro versões de um mesmo documento (um texto de romance com 140 páginas em a5):

  • uma versão em paperback tamanho a5
  • uma versão "hardcover" com papel ligeiramente maior
  • uma versão "pocket" com papel menor e bem mais estreito
  • uma versão otimizada para leitura on-line

A segunda versão terá menos páginas (cerca de 15% de páginas a menos) e a terceira terá bem mais páginas (cerca de 30% a mais). A versão para leitura on-line terá mais ou menos a mesma quantidade de páginas que a versão "pocket".

Para isso o documento será composto de oito arquivos:

  • arquivo mestre
    • arquivo de configurações básicas
    • arquivo de configuração de papel
    • arquivo de hifenização
    • arquivo de configuração de fontes
    • arquivo de configurações avançadas
    • gerador de capa e conteúdo pré-textual
    • conteúdo

Sugiro que você crie uma pasta com o nome do documento e dentro dela um arquivo nomedodocumento.tex. Os demais arquivos se chamarão:

  • preamble.tex
  • paperback.tex / hardcover.tex / pocket.tex / screen.tex
  • hyphenation.tex
  • fontspec.tex
  • config.tex
  • maketitle.tex
  • content.tex

Você poderá mudar os nomes dos arquivos sempre que quiser, mas eu recomendo começar com esses nomes — que são os que eu uso — para simplificar.

Arquivo mestre

O arquivo mestre deve conter o seguinte:

\RequirePackage{ifpdf}\ifpdf\documentclass[pdftex,twoside,12pt]{scrbook}\usepackage[brazil]{babel}\else\documentclass[twoside,12pt]{scrbook}\usepackage[brazil]{polyglossia}\fi\newcommand\book{} % título do livro\newcommand\covertop{} %  aqui dividimos o título em até três\newcommand\covermid{} % partes a fim de facilitar a formatação\newcommand\coverbottom{}\title{\book}\usepackage{sectsty}\partfont{\thispagestyle{empty}\huge}\chapterfont{\centering\Large}\sectionfont{\centering\large\sffamily}\newcommand\flourish{\fontspec{DejaVu Sans}❦} % separador\newcommand\genre{} % para uso na ficha catalográfica\newcommand\indiceum{Novela: Século \textsc{xxi}: Ficção brasileira}\newcommand\indicedois{Ficção: Novela: Novelas brasileiras}\newcommand\covertopfont{\fontsize{40bp}{40bp}\selectfont\bfseries}\newcommand\covermidfont{\fontsize{40bp}{40bp}\selectfont\bfseries}\newcommand\coverbottomfont{\fontsize{40bp}{40bp}\selectfont\bfseries}% os comandos das três linhas acima formatarão a capa\input{paperback} % configura o tamanho do papel\input{hyphenation} % arquivo global de hifenização, opcional\ifpdf\input{pdflatex} % configura as fontes, se usar pdfTeX\else\input{fontspec} % configura as fontes, se usar XeTeX\fi\input{config} % outras configurações avançadas\input{maketitle} % capa personalizada\input{content}
Observe na configuração acima que o mesmo arquivo pode ser compilado tanto pelo pdfTeX (mais conservador, apenas fontes do LaTeX) quanto pelo XeTeX (mais avançado e menos estável, incluindo fontes em geral).Se não quiser utilizar ainda todas as configurações avançadas, comente as linhas {paperback}, {config} e {maketitle}, crie um arquivo content.tex com o seu texto e vamos experimentar o que o LaTeX pode fazer.

23
Fev 09
publicado por José Geraldo, às 19:20link do post | comentar

Shaul pensa no buraco negro que se aproxima, interrompe o gole de uísque para pensar nos tentáculos da destruição que se espraiam pelo cosmos em direção à Terra, prestes a engolfá-la em breve. Esse pensamento parece arejar sua mente com uma rajada de lucidez. De repente tudo se revela tão instável, e cada vez mais próximo.

— Há muitos anos — confessa a Randall — eu conheci uma garota lá em Minas Gerais. Era uma pobre coitada que vivia com a avó caduca e três irmãos excepcionais. Mas que bonita era a Romilda! Seu pai e mãe ainda eram vivos, eram gente simples, da roça, gente trabalhadora e honesta. E eu, um estrangeiro pálido em uma terra onde cabelos ruivos são mais ou menos como antenas de marcianos…

— Não me diga que vocês se envolveram?

— Sim!

— Shaul você não me parece o tipo de homem que seduziria uma pobre camponesa e a abandonaria. Nem mesmo uma camponesa goy com antecedentes genéticos tão aparentemente desfavoráveis.

— Isso foi antes destas leis eugênicas, bem antes. Naquele tempo as pessoas se acasalavam como animais, e o Estado mantinha a sobrevida dos subprodutos.

— Você era então pouco mais que um moleque, as leis eugênicas estão em vigor no mundo todo há quase quarenta anos!

— Digamos que minha genética me beneficia, Randall. Eu sou bem mais velho do que você acha que eu sou. Mas não tenho o hábito de exibir minha carteira de identidade somente para resolver discussões de bar.

— O que houve entre vocês?

— Ora, o que poderia haver? Ela fascinada por mim, pelo estranho alienígena de cabelos vermelhos que nunca saía ao sol e que falava com um sotaque engraçado. Eu me deixei fascinar por ela, a estranha camponesa de cabelos pretos, mãos calejadas e lindo sorriso. O curioso é que hoje nem lembro mais da aparência dela.

— Ficaram pouco tempo juntos, então?

— Pouco, apenas o suficiente para eu ter que pagar pensão a um bastardinho.

Randall ficou chocado com a maneira como Shaul se referia ao próprio filho, e à mulher com quem o tivera:

—Shaul, eu não consigo ter sua frieza. Para mim toda mulher com quem transei, a menos que tenha me dado ótimos motivos, é como se fosse uma amiga. Eu respeito cada mulher com quem trepei como se fosse a minha esposa.

— Você é um bobo, Randall.

— E você um niilista.

Riram e continuaram bebendo cachaça com limão, sem preocupar-se com azia ou coma alcoólico. Não havia futuro mesmo.

— Quando ocorrerá a colisão, Shaul?

— Não sei, Randall. Ninguém sabe. O que sabemos é que ela é inevitável e que a essa altura nenhum artefato construído pelo homem conseguiria superar a velocidade de escape necessária para sair do horizonte de evento do buraco negro. É o fim, amigo.

— Como não percebemos antes?

— Randall. Você nunca entenderá. Você não é astrofísico como eu, mas um mero jornalista perseguidor de personalidades.

— Mas sou esforçado nas minhas histórias.

— Então aproveite que eu estou escancarando para o mundo esse segredo. Ninguém tinha como saber porque o buraco negro era suficientemente pequeno para ocupar uma região pequena do céu, menor que uma ponta de agulha, mesmo magnificado 100 vezes. Além disso, ele produzia uma lente gravitacional. Você sabe o que é isso, não sabe?

— Continue falando, Shaul. O que eu não souber eu pergunto depois ou então vejo na enciclopédia.

— Muito bem. A lente gravitacional o tornava invisível. Somente percebemos que havia algo errado quando as primeiras perturbações gravitacionais começaram a ocorrer, ainda na nuvem de Oort. Mas demorou quase uma década para que ele se aproximasse o suficiente para que pudesse ser detectado.

— E o que vai acontecer?

— A humanidade está prestes a descobrir, dentro de poucos anos, o que realmente acontece dentro de um buraco negro. Isso se as perturbações gravitacionais não provocarem colisões catastróficas entre os planetas. Com sorte seremos ejetados do sistema solar e ficaremos perdidos no espaço interestelar por alguns milênios até, talvez, sermos capturados por outra estrela. Estas catástrofes, qualquer delas, podem ocorrer até antes do próximo drinque, só no ano que vem, ou daqui a vinte anos. A única coisa certa é que as crianças que hoje nascem nunca chegarão a ter carteira de motorista.

Randall sopesou seu copo recentemente cheio de cachaça, lambeu a fímbria de açúcar na borda e perguntou outra vez:

— E enquanto a catástrofe não vem. O que pretende fazer?

— Muitas coisas que não tinha feito antes. Talvez até procurar pela Romilda.

— O buraco negro… De que tamanho é?

— Não sabemos. O buraco inicialmente detectado desapareceu diante dos instrumentos quando o Grande Colisor de Hádrons mediu pela primeira vez sua influência. Mas continuamos sentindo a presença de alguma coisa grande que se aproxima.

Randall agradeceu a entrevista e saiu, enigmático e calmo, levando seu furo de reportagem. Shaul Reismann o observou tomar um táxi e desaparecer na noite. “Esse tolo goy não acreditou em uma vírgula do que eu disse” — constatou.

Uma dançarina se aproximou, usando uma fantasia felina, com rabo grosso firmado por um arame. Tinha cômicas orelhas presas à cabeça por um arco de plástico. Acompanhou-a desde o momento em que a viu surgir dos infectos fundos da baiúca, passando através da cortina de contas de plástico como se através de um esfíncter. Tinha um sorriso assustador e seus olhos verdes artificiais eram um anúncio do que era oferecido por sua púbis e embalado por sua roupa ridícula. Saulo a cobiçava apenas pela beleza do rosto, apenas pelo que passa. O eterno não tem graça quando morreremos amanhã.

— Deseja alguma coisa especial hoje, gringo?

Shaul ajuntou seus rudimentos de português para murmurar um agradecimento que quase a ofendeu. Não se sentiu mal com isso. Tinha nojo daquela mulher pública e malemolente cujos abraços eram feitiços pestilentos que destruíam famílias e reputações.

Em algum lugar no fundo de sua contraditória mente a outra metade de sua personalidade teve uma ereção ao ver a felina afastar-se, maravilhou-se com seu perfume de xampu de farmácia. Essa metade era lúcida, sabia que somos precários e que amanhã não existiremos. Essa metade sabia que no fundo todos, belos e feios, sujos e limpos, estaremos idênticos além do horizonte de eventos. Essa metade acenou para a mulher com uma desculpa. E foi ela que a abraçou de um jeito que namorados antigamente faziam.

— O que é isso, darling? – ela se surpreendeu.

— Perguntou se preciso de algo especial hoje. Bem, preciso. Quero alugar uma amiga.

— Uma amiga? Para quanto tempo?

— Não sei, talvez só por hoje, talvez por dezessete anos, onze meses e nove dias, ou seja, até eu morrer.

— Ai, que complicado!

— Não precisa explicar. O que quero é que você venha comigo, ouça minha música, me deixe fazer carinho nos seus cabelos, chupe o meu pau devagar e termine a noite sem me roubar nada. Quanto custa isso?

A mulher o olhava atônita, certamente pensando que ele era um desses maníacos estrangeiros que vêm ao terceiro mundo brincar de estripar gente nos submundos. Saiu de perto dele sem dar preço e sem olhar de volta.

“Não sei — disse Shaul consigo mesmo – se foi algo que eu disse ou se realmente o que eu quero não tem preço.”

Saiu de lá com uma lata de cerveja na mão, andando devagar pela noite da Lapa. Àquela hora a Associated Press já estaria divulgando ao mundo todo que o cientista desaparecido fora encontrado bêbado e com a barba por fazer em um bar do Rio de Janeiro. Talvez o maldito Randall até tivesse coragem de contar a história do buraco negro, ou talvez a vendesse para um tablóide.

“Ainda bem que não vou morrer virgem e com hemorróidas — filosofou enquanto acenava para as putas da rua.”

O céu não dava nenhuma notícia do iminente cataclisma. Estava tão brando como normalmente o céu das cidades é, leitoso e sem estrelas. Pensava nas fronteiras do espaço desconhecido, nas dobras do improvável, onde se escondia o misterioso corpo celeste negro e invisível que crescia à medida em que se aproximava, trazendo consigo o inarredável fim de tudo. “A última violência da natureza contra o homem.”

— No fim, não conseguimos nocautear você, sua vagabunda. O que é uma reles poluição atmosférica contra esses tentáculos de morte que você joga contra nós?

Brandiu os punhos contra o céu, os olhos marejados de lágrimas. Pela primeira vez na vida sentiu remorsos por Romilda, pelo filho cujo nome nem sabia, aliás, nem o sexo. De repente, diante da perspectiva de morrer tão logo, certas coisas pareciam tão eternas, tão importantes. Alugaria um carro no dia seguinte e tentaria encontrar a minúscula cidadezinha onde ela morava. Tentaria saber como estava, como estava seu filho. Decerto estavam bastante bem, pois lhes mandava mensalmente o equivalente a três salários mínimos do Brasil. Com esse dinheiro, e mais o que o resto dos moradores da casa recebesse, de aposentadoria ou de salário, certamente a criança teria tudo do bom e do melhor. Talvez até um pai. Uma mulher com três salários mínimos de renda é um excelente partido em lugar pequeno. Instintivamente voltou a odiar Romilda. Mas depois teve a certeza de que alugaria mesmo o carro.

Lembrou-se de uma antiga palestra que ouvira de ums física indiana durante umas férias que tiraram em Fiji:

— Tudo o que somos já foi parte de alguma outra coisa, deste planeta, em outro momento no passado. Cada átomo já esteve em cada lugar que você vê, se você pensar na escala de bilhões de anos que é o tempo que a Terra tem durado. Hoje você é você, mas seus átomos já foram lava, dinossauros, árvores, fezes, asteróides… Eu penso que talvez esta seja uma forma racional de conciliar o conceito hindu de transmigração com a ciência.

Na época Reismann apenas sentira asco de pensar que os átomos de seu corpo já haviam sido todo tipo de coisas nojentas. Especialmente os átomos de carbono. Estes não são mesmo confiáveis.

Chegou ao hotel e subiu até seu apartamento. Despiu-se e tomou um longo banho. “Para que economizar água? Logo não existirá mais água nem aquecimento global, nem nada para me atazanar a consciência.” Enquanto se enxugava o telefone tocou. Era Randall.

— Como me achou aqui nesse hotel?

— Tenho minhas fontes, Shaul. Quer jantar comigo hoje?

— Por que eu quereria jantar com um cara que conheci hoje?

— Sei lá, esse cara não ter mais ninguém conhecido no Rio de Janeiro é uma boa razão para você lhe dar uma recepção civilizada.

— Tudo bem, mas que seja no restaurante do hotel mesmo.

Eram onze da noite quando Randall chegou. Desta vez não estava fantasiado de turista americano.

— Certamente você já deve ter conhecido algum brasileiro, e certamente um de bom coração.

— Por que?

— Porque já lhe explicaram como se vestir nesse país sem ser visto como um palhaço gringo.

— Ora, eu posso ter sido um palhaço gringo quando arrumei minha mala, mas eu aprendo rápido observando os outros.

Era verdade. Seus óculos discretos e a feliz coincidência de ser negro o tornavam indistinguível de um brasileiro, desde que não abrisse a boca, pois só sabia falar um carregado scots.

A única mulher no saguão era uma africana alta que falava aos cochichos em seu telefone celular.

— Aquela mulher, Randall. Você a conhece?

— Já a notei. Não conheço.

— Tenho certeza de que é uma agente de algum serviço.

— Como sabe disso?

— A gente fica vidente quando sabe que vai morrer.

— Shaul, em nome desses velhos tempos…

Reismann ergueu o brinde mecanicamente.

— Você está querendo alguma coisa, Randall. Eu pressinto.

— Sim. Quis falar com você por causa de algo que me ocorreu. Se é verdade que é impossível observar o estado de um objeto a nível quântico sem mudar sua trajetória, e impossível observar sua trajetória sem mudar eu estado, não será que a observação do estado desse buraco negro o desviou de sua trajetória original? Qual é o tamanho dele? Quanta energia seria necessária? Quanticamente falando não se pode interagir sem influência.

— Randall, você é um jornalista. Não é um físico. Então não se preocupe com esses detalhes. Você nem sabe calcular, talvez ninguém saiba sem a ajuda de um poderoso computador. E eu nem tenho os dados completos comigo.

— Você quer que eu não me preocupe, mas esse “pequeno buraco negro” vai destruir o mundo.

— Mesmo assim é uma péssima ocasião para querer aprender sobre o assunto.

— Não existe ocasião ruim para aprender, Shaul.

— Antes da morte.

— Se fosse assim não valia a pena aprender nada. Toda a vida de um ser humano é “antes da morte”. Shaul, são dezoito anos. Vamos fazer o que nesses dezoito anos. Esperar a morte chegar?

— Bem, Randall. Uma coisa eu sei. Quero morrer antes. De preferência, bêbado.

E virou a dose de cachaça pura que o garçom lhe trouxera.


21
Fev 09
publicado por José Geraldo, às 15:01link do post | comentar

Cenário: um confessionário silencioso. Um bandidão famoso, ligado a um grande empresário, se confessa com um padre.

BANDIDÃO: Vossa Eminência precisa me conceder esta graça.

BISPO: Não sei, meu filho. É algo difícil. Não sei como avaliar.

BANDIDÃO: Por favor, Eminência, é um caso importante.

BISPO (consultando um enorme livro e com uma calculadora HP 12C na mão): então vejamos…

(minutos depois)

BANDIDÃO: Já tem a resposta, Eminência?

BISPO: Acho que sim, mas ficaram dúvidas. Serão nove, correto?

BANDIDÃO: Nove. Estou pondo dois extras se ocorrer algum imprevisto.

BISPO: Dos nove, então, dois serão de forma não planejada e rápida e somente sete estão já decididos…

BANDIDÃO: Confere.

BISPO: E como será?

BANDIDÃO: Do jeito nordestino, capando e sangrando devagar.

BISPO: Hum… Hum… E estará envolvido algum ato libidinoso?

BANDIDÃO: Talvez enfiar a peixeira no cu de cada um…

BISPO: Isso pode ser visto como ligeiramente libidinoso.

(faz cálculos)

BANDIDÃO: E então?

BISPO: Considerando que não é por sua vontade que o faz, mas por necessidade profissional e que desde já manifesta sincero arrependimento, acho que podemos fechar com 49 terços rezados em um semana, além de 49 mil reais pagos a vista.

BANDIDÃO: E os outros dois?

BISPO: Esses ficam como legítima defesa se chegarem armados ou como acidente se for apenas eliminação de testemunhas que não deviam estar lá.

BANDIDÃO: OK. Eminência. Posso pagar com cheque?

BISPO: Claro que não. Isso denunciaria sua participação. Pague em dinheiro vivo.

BANDIDÃO: OK. Eminência. Prazer fazer negócios com o senhor.

BISPO: Vai em paz meu filho.

(bandidão sai)

BISPO: Sacristão, mande entrar o próximo…

PROLETÁRIO: Eminência, eu levantei a mão contra minha mulher.

BISPO (analisando as roupas puídas e os dentes cariados do miserável): A mulher é a imagem da mãe de Nosso Senhor e agredi-la um crime hediondo! Reze 72 terços para cada vez que ergueu a mão e passe a ser dizimista regular.

PROLETÁRIO: E estou livre do purgatório?

BISPO: Se fizer o que disse, está livre do inferno. Do purgatório, só na misericórdia de Deus.


14
Fev 09
publicado por José Geraldo, às 04:20link do post | comentar

Em algum momento, em 1995, eu datilografei em uma página de papel-ofício os seguintes versos: O que seria / de minha rebeldia / se eu não fosse um rapaz da burguesia / acometido pelo tédio da escrita / e um diploma superior?

Decerto eu estava pensando nas polêmicas de Lobão, artista cuja arte pouco me interessa, mas cuja filosofia sempre me instigou. Acho que se João Luís Wönderbag escrevesse logo o primeiro volume de suas memórias produziria uma obra mais relevante que toda sua música junta.

Minhas palavras tinham a ver com algo que já se notava em 1995, mas hoje está tão escancarado que nem se pode mais deixar de ver: a rebeldia se transformou primeiro em uma estética, e hoje é uma ideologia. Primeiro escavou seu nicho na cultura, hoje se tornou a face mais comum do sistema.

Você sabe o que é o “sistema”? Bem, metade dos revoltados do mundo falam mal dele mas parece que tampouco sabem. O sistema é uma entidade abstrata, cada vez mais abstrata. Interessa-lhe que seja abstrato porque nos controla. Você reconhece um falso rebelde pelo simples fato de ele ter a permissão de ser um sucesso.

Dia desses, enquanto lia um artigo surreal do Hermano Vianna elogiando Chimbinha e Joelma eu percebi com toda força o que já se insinuava há quase duas décadas: está havendo uma ideologização da arte, uma politização do fazer artístico. Trocando em miúdos: as pessoas estão analisando as obras de arte (sejam música, pintura, literatura ou outra coisa) não pelo seu valor propriamente dito, mas pela sua “postura” — real ou suposta — em relação ao “sistema”.

Hermano Vianna tece elogios quase sexualmente explícitos a Chimbinha porque a Banda Calypso fez sucesso à revelia do “sistema”, porque ela representa um sintoma de que a as “elites” (outra entidade abstrata que serve de Judas para o esquerdismo cultural) estão “perdendo o controle”. A música da Banda Calypso não importa, o importante é seu papel no combate ao sistema.

Esse bolchevismo substituiu o comentário especializado sobre as características da arte em si, vista como algo “elitista”. O próprio Hermano Vianna lamenta que Chimbinha não seja legitimado como artista, apesar dos milhões de discos que vendeu – o tipo de discurso dos que defendem a prosa rala de Paulo Coelho. Até mesmo o pseudo-funk é tido por ele como um “movimento” (outro termo político) que merecia ser tratado pela Secretaria de Cultura e não pela de Segurança Pública. Talvez porque na opinião do crítico exista algo de cultural nas mortes e na violência que cercam o “movimento”.

Acontece que está na moda ser rebelde, embora o Brasil nunca tenha sido um país comunista (ou talvez exatamente por isto) as nossas elites culturais se travestem de profetas da revolução pela via cultural, já que nunca conseguiram avançar na luta pela via política devido à acomodação (já no século XIX Martins Pena detectava que no Brasil ninguém é mais conservador que um liberal no poder). Esta revolução cultural, é claro, não passa de uma desculpa porque, feita pela via do popularesco, ela destrói mais do que constrói. Talvez alguns líderes de tal ideologia realmente achem que estão limpando o trecho para o nascimento de uma nova cultura ou de um novo país, mas suspeito que muitos querem apenas ganhar dinheiro com isso. Porque hoje em dia a revolução se transformou em uma lucrativa indústria.

Desta forma, a “elite cultural” de nosso país resolveu se apropriar da estética popular e utilizá-la como instrumento de sua influência sobre o próprio povo. Quanto mais vazia for esta estética popular, mais útil ela se torna como instrumento. O pseudo-funk que as elites querem que saia da Secretaria de Segurança Pública não é mais o gênero praticado por Cidinho e Doca, com sua mensagem de orgulho e amor-próprio (“Eu só quero é ser feliz / andar tranqüilamente na favela em que eu nasci”), mas a trilha sonora de acasalamento de brontossauro cantada por pseudo-gente como o MC Créu (“Créu, créu, créu, créu, créu, créu, créu, créu, créu”).

Da mesma forma, o popular por que se interessam estas elites não são artistas de talento nascidos no seio do povo, como a maravilhosa cantora baiana Virgínia Rodrigues, mas qualquer coisa que seja caricata e popularesca, que apresente o povo como uma massa desmiolada em permanente cio. E mesmo no seio do popularesco (que é a perversão do popular) não escolhem artistas que trazem elementos de choque. Não basta que seja ruim, é preciso que seja um ruim sem discussão.

Em “1984”, George Orwell predisse que no futuro as sociedades totalitárias buscariam o controle do povo justamente pela difusão de música ruim:

Aquela canção estivera assombrando Londres nas semanas anteriores. Era uma das incontáveis canções parecidas publicadas para benefício dos proletários por uma sub-seção do Departamento de Música. As letras de tais canções eram compostas sem qualquer intervenção humana em um instrumento conhecido como “versificador”.

E exatamente de que letra estamos falando? De uma que diz coisas assim:

Foi somente uma ilusão sem sentido
Que passou como um dia de abril
Mas com um olhar e uma palavra
Os sonhos me agitaram
E roubaram meu coração.

E que tal compararmos isso com um dos recentes sucessos de certo cantor popular?

O que posso fazer
Se a vida é assim
Apostei tudo em seus beijos
E assim mesmo te perdi
Não me peça perdão
Não chore, por favor
Suas lágrimas são falsas
De mentira foi teu amor
Não me diz mais nada
Nem sei como me enganou
Se a lua não é queijo
Nem as nuvens de algodão
Para que seguir mentindo
Com amor e ilusão?

Não existe rebeldia alguma nesta letra composta para emburrecer quem a ouvia e manter as massas sob controle. Não existe rebeldia alguma nas letras da música popularesca que toca no rádio hoje. E também não existe rebeldia alguma nas fórmulas de rebeldia que os autores e compositores de hoje produzem.

Em 1991 Lobão já esculachara os rumos do pop nacional dizendo que num futuro não muito distante o rádio estaria inteiramente ocupado por “rebeldes Barbie”: gente de pose rebelde que, no fundo, não têm nenhuma consciência artística e apenas seguem a fórmula da moda.

Segundo o Sr. Wönderbag estaria na moda ser rebelde, falar palavrão, combater “o sistema”, usar drogas, fazer tatuagem, etc. Doze anos depois de suas proféticas palavras já tivemos RBD, hoje temos “Crepúsculo” (com seus vampiros cuidadosamente desinfetados) e o pseudo-funk e o pseudo-calipso: o sistema abraçou a rebeldia e a transformou em mais um departamento.

Imagino que no futuro haverá até associações de anarquistas, clubes de rejeitados, vampiros que não chupam sangue, tarados que não estupram, assassinos que matam apenas em sonhos, etc. Tudo cuidadosamente planejado para que a arte seja sempre algo seguro, tal como os versos do brega Wanderley Andrade, cheios de duplo sentido e de oxímoros que fazem pensar:

Sou um psicopata / Mas eu tenho muito amor / Pra dar, amor pra dar.

Afinal, além dos quinze minutos de fama, todos temos o sagrado direito de sermos rebeldes dentro do curral.

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13
Fev 09
publicado por José Geraldo, às 20:50link do post | comentar

Leia o artigo que motivou esta resposta

Chimbinha me deu de presente seu CD solo, chamado Guitarras que Cantam, hoje uma raridade que deveria ser relançada para os fãs conhecerem suas origens. Era um disco de guitarrada, claramente herdeiro das invenções dos mestres Vieira e Aldo Sena, que foram muito populares em toda a Amazônia no início dos anos 80, antes da febre da lambada. Sou fã de guitarrada — então foi fácil ficar fã do Chimbinha. As músicas Dançando Calypso e Na Levada do Brega, que abrem o Guitarras que Cantam, estão entre as minhas favoritas de todos os tempos.

Nada como começar com um elogio totalmente despropositado. Quem musicalmente é o Chimbinha para que um crítico diga que duas de suas músicas são suas “favoritas de todos os tempos”? Esse elogio não pode ser sincero ou então o Hermano Vianna é um imbecil que praticamente nunca ouviu música. Chimbinha ainda tem que comer muito pato no tucupi para pôr duas de suas músicas entre as favoritas de todos os tempos de alguém que entenda de música.

Não estou desmerecendo o talento de Chimbinha, apenas lembrando que ele é guitarrista no mesmo planeta onde já existiram ou ainda existem Jukka Tolonen, Celso Blues Boy, Jeff Healey, Steve Morse, Richie Blackmore. Até Robertinho do Recife.

O brega, se ninguém ainda percebeu, é rock. Digo mais: é o mais amado e duradouro estilo do rock brasileiro. Tudo começou com a jovem guarda, e sua adaptação do rock internacional para o gosto popular nacional. Quando Roberto Carlos colocou em segundo plano as guitarras elétricas e se transformou em cantor romântico acompanhado por orquestras, a fórmula inventada pela jovem guarda se descentralizou, primeiro passando pelo Goiás de Amado Batista, depois pelo Pernambuco de Reginaldo Rossi, até chegar ao Pará do ex-governador Carlos Santos, também cantor brega, autor de dezenas de discos.

A Jovem Guarda foi uma porcaria melosa e sem raiz que apenas por exceção produziu algum artista de qualidade (mais por causa dos talentos dos artistas envolvidos do que pela qualidade do gênero). Hermano Vianna aponta com todas as letras o rumo (cada vez mais apelativo, popularesco e tosco) seguido pela degeneração da Jovem Guarda até desembocar, supostamente, no Calypso. E mesmo fazendo isso, ousa não botar o dedão na ferida.

Hoje Belém é a capital do novo brega. Centenas de CDs são lançados anualmente, a princípio para um consumo regional, mas que começa a atingir também o público nordestino. Os músicos locais já nem chamam o que fazem de brega, dizem que é “calipso”, música mais “sofisticada”.

Começamos pelo tradicional “Apelo ao povo” (se o povo gosta, então é bom) com o leve suporte do “Apelo ao poder” (se lança centenas de CD’s por ano, então é bom). A mudança de nome, uma decisão de marketing, é aceita como natural, mesmo que disfarce a origem impura do gênero.

Chimbinha, com 23 anos, tocou guitarra em mais de 200 CDs, só em 1997. É uma das maiores revelações entre novos músicos brasileiros de qualquer estilo, sendo herdeiro direto das invenções de Renato dos Blue Caps — que criou o chacumdum da guitarra brega ao ser obrigado a tocar num disco de bolero, sem saber tocar bolero — e das guitarradas de Vieira.

Ou seja, o precário, o ignorante, o mal-feito, se torna uma estética.

Posso falar alguma coisa? Legal, porque a nossa música paraense de hoje é uma mesclagem do ritmo calipso com o twist, na onda de Jerry Lee Lewis. A gente deu muita sorte, porque hoje essa mesclagem, graças a Deus, roda em dezessete estados brasileiros. Essas ondas todas aqui não têm nada de ridículo. É um papo dez, é uma mistura de Nina Hagen, com aquela onda dos Sex Pistols, do Pink Floyd, do Dire Straits, e aí eu peguei o Pepeu Gomes daqui do Brasil e fizemos essa onda: o negócio é sério. Sempre gostei de Elvis a Morengueira.

Eu queria saber o que cantor quis dizer com isso. O que ele vê de Jerry Lee Lewis no brega paraense, o que vê de Nina Hagen.

Existe uma concepção na “esquerda musical” brasileira segundo a qualquer tudo que seja misturado fica bom. Daí os cantores aprenderam que para ordenhar elogios da crítica musical basta introduzirem elementos aleatórios em suas música e citarem algumas referências cultas.

Este trecho é particularmente interessante porque embora Hermano Vianna tenha cultura musical suficiente para traçar a rota correta que liga a Jovem Guarda ao brega paraense, ele é suficientemente devotado a elogiar para engolir a balela do cantor parense que citou todos estes nomes do rock para ele.

Imagino que esse músico deve estar até hoje rindo da cara do Hermano Vianna, porque ouvir um descerebrado dizer isso e dar crédito é passar recibo de otário.

Era um tratamento de choque para a platéia paulistana, já um debate sonoro sobre o que é tradição musical no Brasil.

Expor o povo de São Paulo a doses maciças de música ruim de outras partes do Brasil com a desculpa de que “isso é Brasil” é mesmo algo análogo a tratamento de choque: busca remover as resistências do paciente e torná-lo dócil.

O telefonema, de madrugada (a hora mais fácil para encontrá-lo), durou horas. Chimbinha me contou tudo que havia acontecido desde a festa de lançamento do Música do Brasil. Falou de como perdeu todo o dinheiro que acumulou como músico de estúdio para manter a Banda Calypso nos seus primeiros anos, quando não tocava em nenhuma rádio nem era contratada para nenhum show. Ele mesmo percorria todas as rádios de poste (que têm alto-falantes espalhados nos postes das ruas de Belém) pedindo para suas músicas serem programadas. Foi por causa de um desses alto-falantes de rua que um organizador de shows de Marabá, de passagem por Belém, ouviu a Calypso e convidou a banda para uma série de apresentações no sul do Pará. De lá é que seguiu para Pernambuco, onde passou meses fazendo show diários por uma ninharia. O sucesso aconteceu aos pouquinhos, entre vários momentos de desespero.

Note que a argumentação, que inicialmente desdenhara da Banda Calypso agora começa a mencionar as agruras porque passou Chimbinha. Esta menção aos “tempos difíceis” do artista tem sempre o objetivo de preparar o leitor para sentir simpatia pelo elogiado da vez. Isto se chama “Apelo à misericordia”. Hermano Vianna sabe que a música da Banda Calypso é ruim, mas ele procura fazer com que gostemos dela através de nossa simpatia por alguém que sofreu lutando pelo que acreditava. Mais que isso, ao mencionar a falta de espaço na mídia, estamos usando a falácia do “apelo anti-autoritário”: aquilo que vai contra “o sistema” é bom.

Tais argumentos são bastante comuns, especialmente quando a música é ruim. Artistas que fazem música boa não costumam gostar de expor sua vida pessoal.

Eu respondi que a produção poderia tentar alugar um jatinho. Do outro lado da linha: “avião eu tenho, o problema é que lá não tem pista de pouso.” A ficha caiu: logo descobri com quem eu estava falando - não era mais aquele garoto de 23 anos só com uma guitarra na mão.

De novo o “Apelo à riqueza”. Depois de mostrar como Chimbinha sofreu quando era pobre, Hermano Vianna esfrega em nossa cara o quanto ele é podre de rico. Construindo a imagem de que ele é sucesso, poderoso, tenta convencer-nos a gostar de sua música.

Depois de ultrapassar a poderosa barreira de seguranças do condomínio Alphaville, cheguei numa mansão luxuosa, com colunas na porta. Dentro, só a família, os compositores e músicos que trabalham com a banda, o pessoal que cuida da agência pernambucana que vende os shows, e alguns amigos, como Zezé di Camargo.

De novo a exaltação da riqueza e do sucesso. Aliás, vocês notaram que Hermano agora quase não fala da música do Calypso? É claro que o que importa não é mais a arte, mas o produto oferecido.

Joelma e Chimbinha trouxeram um chef de Santarém — o melhor da culinária paraense, segundo o casal — para preparar o jantar com peixes frescos que chegaram na sua bagagem.

Claro, tinha que ser o melhor cozinheiro do Pará… E peixes frescos vindo de bagagem…

Mesa posta, Chimbinha veio me apresentar cada prato. Ele falava sobre detalhes da vida de cada peixe (“este aqui gosta de nadar perto das pedras”), que não eram os peixes óbvios de todo restaurante amazônico. Perguntei curioso, achando que era um hobby biológico: “mas como você sabe isso tudo?” A resposta veio natural, não era nada para causar espanto: “ora, eu vendia peixe na feira com meu pai.” Nova ficha caiu, dessa vez com peso de toneladas. Meus olhos lacrimejaram, pensei comigo contendo o choro: “outro dia ele vendia peixe na feira, agora está aqui numa mansão num condomínio em São Paulo, de um extremo a outro da injusta estrutura social do país, quase sem escalas, totalmente na marra… que símbolo incrível das mudanças pelas quais o Brasil está passando!”

Agora o apelo emocional foi intenso. Hermano até narra suas lágrimas, decerto querendo que choremos também, querendo que admiremos Chimbinha.

Outro componente importante aqui é a noção de que alguém que veio do povo precisa ser valorizado. Mais uma vez se apela ao acessório, em vez do essencial: estamos falando de arte ou de inclusão social? Estamos falando de política ou de música?

Pensei no Lula, que dorme hoje no Palácio da Alvorada, para incômodo de muita gente (incômodo parecido com aquele que gera o sucesso da Calypso…)

Agora Hermano Vianna quer nos fazer culpados: Em sua lógica torta, é errado, é até preconceito não gostar da Banda Calypso. Porque o sucesso do povo incomoda as elites. Este discurso de pseudo-esquerda justifica a má qualidade, aliás, a ignora, em nome de uma luta de classes cultural na qual o que importa é o homem do povo ganhar dinheiro e respeito da elite.

Fazer música que preste até nem importa.

Chimbinha se fez sozinho do lado de lá do cultural divide, sem gravadoras, sem televisão, sem elogios da crítica - eu mesmo, já fã, não tinha dado importância para a sua banda.

A legitimação pelo sucesso, argumentada por Hermano Vianna, nada mais é do que o conhecido apelo ao povo. Infelizmente a voz do povo não é a voz de deus: argumentos precisam de lógica e isso é algo que este texto nunca tem: o autor inventa desculpas e falácias para ter meios de falar bem de uma nulidade artística, tal como Caetano Veloso, no dia de sua morte cultural, elogiando a voz da Tiazinha (quem?).

Outros artistas das chamadas classes populares, para atingir o estrelato precisaram do apoio de mediadores de elite (mesmo Cartola “precisou” de Sérgio Porto…) — agora meu anfitrião estava inaugurando um outro caminho para o sucesso de massas, direto, sem o aval de ninguém do “centro”.

Interessante é que esta mediação da elite adicionava um polimento cultural ao talento natural. Cartola só foi autor de versos tão perfeitos porque convivia com pessoas que falavam bem e que lhe apresentavam trabalhos de qualidade, as referências psicodélico-roqueiras do começo da carreira de Jorge BenJor não estariam lá se ele não convivesse com pessoas de todos os ambientes. O que Hermano Vianna vê como uma descaracterização, os próprios artistas do passado viam como um processo enriquecedor no aspecto cultural, uma troca.

Justamente esta salutar troca de conhecimentos é o que Hermano Vianna vê como perniciosa. Para ele o bom é o bruto, o não polido, o rascunho. Qualquer tentativa de elaboração é uma “mediação da elite” e o artista do povo tem que ser aceito como é, tem que ser mantido em sua jaula de “autenticidade” seja lá para que estudo científico se queira.

Essa é uma novidade e tanto para a cultura brasileira. Que bom que as tais “elites” estão perdendo o controle.

Considerando que o termo elite tem mais de um significado, e no contexto pode ser visto como uma referência ao grupo seleto de artistas que fazem arte de qualidade, a frase é carregada de duplos sentidos pois não distingue seu alvo. Será que Hermano Vianna está se insurgindo contra a elite econômica ou o conceito de elite cultural? Ou algum outro.

E de que tipo de controle estamos falando? Está ele celebrando o fim do preconceito social no Brasil? Ou está celebrando o fim da valorização do verniz cultural que as elites aplicavam em nossa barbárie?

Chimbinha, também emocionado, me contou mais de sua história — a época que morou com sua mãe numa invasão em Belém, os maus tratos quando — aos 13 anos — tocava guitarra toda noite num cabaré e pedia para sua mãe para não voltar mais lá, mas sabia que não podia largar o “emprego” pois a família dependia daquele trocado para comer.

Como a musica é muito ruim, é preciso insistir muito no apelo emocional.

Os melhores amigos de Chimbinha em São Paulo são Zezé, Leonardo e Bruno (de Bruno e Marrone). Isto é: metade do PIB musical brasileiro hoje.

O uso da expressão “PIB musical” expressa muito bem os valores em nome dos quais Hermano Vianna escreve: temos um defensor do popularesco com a justificativa do apelo econômico. A busca da qualidade, definitivamente superada pelo gozo agressivo do dinheiro ganho com música. Não se trata mais de arte, mas apenas de um modo de ganhar dinheiro e poder.

Interessante que tenham se encontrado e que tenham amizade tão forte.

Na verdade é natural que se busquem. Estranho é quando alguém que supostamente tem cultura se mistura com eles.

Mas o sucesso não serve de blindagem contra o sofrimento e a dificuldade de ter que lidar com uma situação que sempre — repito: apesar do sucesso — insinua cruelmente que ocupam um lugar que não lhes é devido, que deveria ser ocupado por músicos com formação de “qualidade”.

Se o autor tivesse dito que o sucesso não implica em qualidade, aí teríamos chegado a algum lugar. Mas em vez disso ele prefere negar valor ao conceito de qualidade (o que é, afinal, qualidade diante da capacidade de ganhar milhões?).

Chimbinha passou o jantar me agradecendo por estar ali, por ter aceito o convite, por ter apoiado sua carreira, por ter colocado sua banda na televisão.

Ué? Mas o Chimbinha não fez sucesso “contra tudo e contra todos?” Aliás, e os shows em São Paulo quando ainda era desconhecido?

O pessoal que cuida da empresa que vende os shows da Calypso me confirmou: “às vezes chegamos numa cidade lá no interior do Tocantins — o show está lotado com o nosso público, mas o cara que aparece na TV e que não juntaria 100 pessoas tem o melhor cachê, o melhor camarim, é recebido pelo prefeito…

De novo o apelo ao povo. Quem enche estádio é que merece ser recebido pelo prefeito. A qualidade da arte envolvida não entra em questão. Se o sujeito enche estádio então é ele que merece ser recebido pelo prefeito.

É evidente, mais que evidente: o sucesso por si só não traz respeito.

Porque o respeito não advém do dinheiro ganho, mas de como se ganha o dinheiro. Sucesso obtido com música ruim é como dinheiro de crime: as pessoas podem até te invejar, mas não respeitam.

No final do jantar sentamos ao redor de um piano de cauda branco (igual ao do Elton John, igual ao do Leandro Lehart),

p>Fetichização ao extremo. Será que ter um piano de cauda branco na sala de alguma forma iguala Chimbinha e Elton John?</p>

É já um outro tipo de relação com os compositores, contratados pelas bandas para escrever seus próximos sucessos. Todos são trabalhadores do pop: parece que têm o método para o sucesso de massa, para a canção que vai agradar a maioria. Imagino que a Motown também funcionasse assim.

De novo comparações incomparáveis. A gravadora Motown reuniu artistas de altíssimo gabarito, em um país encharcado de cultura musical. Os compositores contratados por Chimbinha e Cia. são pessoas sem muita formação e de pouca cultura artística e o seu trabalho não possui um sentido cultural. Mas essa observação pode ser meu preconceito. Talvez daqui a vinte anos estejamos encarando estes caras tal como hoje encaramos Stevie Wonder, Diana Ross, Michael Jackson, Isaac Hayes, etc…

Eu ia escutando as novas músicas e já podia ouvir as multidões cantando aos berros nos futuros shows lotados.

Para quem ainda não tinha aprendido o que era apelo ao povo.

Já repeti várias vezes aqui que não tinha muito interesse pela música da Banda Calypso, gostava do Chimbinha guitarreiro… Então valorizava mesmo o aspecto antropológico do sucesso, um sucesso bem diferente daquele que a indústria fonográfica tradicional produzia no Brasil. Mas este CD, o Volume 10, eu gosto, pra valer. Musicalmente. É um hit perfeito atrás do outro. Há poucas canções melhores de se ouvir no rádio do que “Mais Uma Chance”, cantada por Joelma e Leonardo. Quando ouço na rua, meu dia se alegra e saio cantando junto. A situação de amor descrita na letra também é cativante, no seu narcisismo calculadamente desamparado e espertamente ingênuo: “meu amor se eu fosse você, eu voltava para mim, eu viria me socorrer”. Um dia, quando um cantor chique fizer uma versão, todo mundo vai achar bacana… Mas é preciso tempo: o popular muito popular só se torna elogiável quando sua popularidade é coisa do passado, não é mesmo?

De novo um elogio exagerado, do tipo que nem chega a convencer. Como alguém que falou tão mal da Banda Calypso pode de repente dizer que seu dia se alegra e sai cantando junto quando ouve “Mais uma chance”?

Notem a sutil “piscada de olho” na última frase. Hermano Vianna está sugerindo que o tempo legitima o lixo musical. Talvez ele esteja precisando dar uma olhada nas listas de sucessos dos anos 60 e 70 e ver de quem nos lembramos e quem foi embora.

E se não fosse a determinação de gente como Hermano Vianna em elogiar lixos do passado, como Reginaldo Rossi e Carlos Santos, esse “popular muito popular” não chegaria a ser visto como elogiável.

É um estilo, objeto claramente identificável. A voz de Joelma tem calor e graça — entendo bem porque todas as crianças são apaixonadas por ela. E a guitarra do Chimbinha continua a tal. Ele me disse que ainda pretende gravar outro disco de guitarrada. Nem precisa: não há necessidade do Chimbinha me provar mais nada. Mas que seria bom ouvi-lo novamente em gravação solo, por puro divertimento, ou por egocentrismo meu, isso seria: fecharia um ciclo completo em minha vida. Mas de qualquer maneira: Salve Chimbinha! Salve Joelma! Os músicos mais populares no Brasil hoje! Quando vão ganhar a medalha do mérito cultural?

Ao ler este parágrafo eu me pergunto quanto Hermano Vianna ganhou para escrever essa merda. Ou o que foi que fumou… “Não há necessidade de Chimbinha provar mais nada, ouvi-lo em gravação solo seria puro divertimento, fecharia um ciclo completo em minha vida”… A intensidade dos elogios chega a dar calafrios, principalmente se temos em questão que o objeto de tais elogios é um compositor burocrático e nada original que produz sucessos comerciais do rádio. Chega a ser possível pensar em mais do que interesses comerciais, talvez até carnais, porque não é concebível que se elogie com tal desespero e com tal gana alguém que o próprio autor do artigo teve tanto trabalho para achar um jeito de gostar. Alguém que requereu tantas falácias e distorções cognitivas para vencer as resistências do autor do texto.

E para fechar com chave de outro, tasca lá outro apelo à popularidade, confundindo, como bom falacioso, valor artístico com “PIB musical”. De quebra ainda acha jeito de ver calor e graça no canto desafinado e cheio de calos nas cordas vocais que a Joelma desfila de forma até constrangedora pelos palcos.

Sinceramente eu não entendo como pessoas aparentemente cultas se prestam a tecer elogios assim para artistas que decididamente não os merecem.


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