Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
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Abr 09
publicado por José Geraldo, às 08:23link do post | comentar

Fernanda recebia cada bloco de mármore como outro desafio. Havia muitos, mutilados, espalhados pela sua oficina. Com o tempo aprendera a emendar seus erros transformando grandes obras em pequenos objetos. Uma estátua fracassada virava um monte de pequenos ornamentos, utensílios, pesos de papel em formatos variados. Liberta da necessidade de produzir algo grandioso, infundia ao mármore a inocência de cachorrinhos, escaravelhos, palhacinhos. Tais minúsculas manifestações migravam de seus sonhos para suas mãos e se instalavam na pedra como garatujas de uma adolescente em um caderno macio. A única diferença era que o mármore era um caderno cruel, que exigia calos e perseverança até nestas pequenas travessuras inconsequentes.

Aquele bloco era outro. Outro infeliz pedaço arrancado do seio da terra e trazido diante de uma escultora incipiente para ser retalhado por seu cinzel inseguro até partir-se inesperadamente e causar lágrimas de espanto e remorso na aluna inepta, mas devota. Uma outra massa a por fim jazer pelas prateleiras como uma miríade de mínimas amenidades, mercadorias almejadas por meninas tolas, mas ignoradas pelos insignes e doutos instrutores, portadores de séculos acadêmicos de fórmulas, mas isentos de piedade em suas fúteis exigências. Mas como era belo! Os veios rosados percorriam a rudeza sem arremates da rocha. Desenhos sugeridos pelas cores povoavam os pensamentos de Fernanda enquanto acariciava a superfície áspera e manejava ameaçadoramente o martelo com a mão sinistra.

— O que faria de você? — perguntou, já no futuro do pretérito, plana de consciência de que fracassaria.

Ergueu com a mão direita o cinzel já meio cego e mediu alguma coisa que estava dentro da pedra. Mirou num olho que piscava através das manchas minerais. Sopesou o martelo e tocou com o cinzel frio uma greta imperceptível. Bateu pela primeira vez e sentiu o conforto das lascas agredindo dua pele. Mas parou. Chorava. Que direito tinha de seviciar daquela forma um puro mármore?

Tocou o telefone. Interrompeu sua hesitação e deixou que o martelo e o cinzel caíssem pelo chão em um estardalhaço inadequado.

— Quem é?

Alguém do outro lado da linha se esforçava para cuspir uma frase que entalara na garganta.

— Quem?…

De repente Fernanda se lembrou e quase que deixou cair também o telefone.

— Luzimar?

Era ele mesmo. Continuava tímido como nos tempos de segundo grau, continuava com sua voz rouca e fina, certamente continuava também com suas sardas, seu aparelho ortodôntico e seus cabelos despenteados.

— P-preciso falar com v-você — gaguejou ele.

— Como soube o meu número?

— P-pelo s-seu end-dereço.

— E como soube do meu endereço?

— Eu moro no m-mesmo p-prédio q-que v-você…

Fernanda quase caiu de costas ao ouvir a campainha tocar. Desligou o telefone e correu até a porta. Pelo olho mágico aparecia um homem alto e moreno, de sorriso torto e triste, mas belo. Estava trajado com um terno tão fora de moda que parecia ter sido sobra do inventário de um defunto. E tinha um botão de rosa à mão.

Talvez Fernanda não tivesse deixado Luzimar entrar se não fosse o ex-colega tolinho do segundo grau, talvez tivesse se sentido insegura por estar despenteada, interrompida que fora no meio de um estudo. Mas deixou.

Luzimar ofereceu-lhe o botão de rosa e olhou-a de um jeito divertido, talvez aliviado em sua tensão por vê-la empoeirada, desgrenhada, e com o esmalte das unhas em lamentável decadência. Ela sorriu e disse apenas “que surpresa”, “há quanto tempo”, “como você mudou” e todas estas frases absolutamente sem sentido que as pessoas trocam por puro costume quando encontram alguém que não têm visto há algum tempo.

— Mas a que devo a lembrança? — teve de ousar perguntar depois que o estoque de “nada a dizer” terminou.

— Eu a tenho ouvido bater. A princípio não sabia que era você, pois esse prédio é tão grande e esse seu apartamento de subsolo fica tão isolado. Tão isolado que eu nem sabia que havia apartamentos no subsolo.

A fala de Luzimar havia se firmado. Ele continuava rouco, mas conseguira trazer o tom de voz para dentro da faixa de frequência normalmente associada ao sexo masculino. Pronunciava as palavras com uma formalidade dolorosa, como se cada uma delas tivesse sido ensaiada por semanas — e realmente Fernanda imaginava que isso devia ter acontecido.

— Eu o incomodei?

— Não porque as batidas soavam distantes. Eu mesmo só as ouvia quando encostava a cabeça nesta pilastra.

Uma das gigantescas pilastras de concreto e ferro que sustentavam o paquidérmico espigão formava um lado de uma das paredes da oficina de Fernanda.

— Quando me mudei, há seis meses, pus a cabeceira de minha cama junto a esta pilastra. Logo na primeira noite eu batidas distantes, como alguém brincando com os dentes de um pente. Depois as batidas ficaram mais nítidas, como alguém tocando uma celesta fora de ritmo.

— O que é uma celesta?

— Ora, um daqueles pianinhos que tem barras de ferro em vez de cordas.

— E depois?

— Comecei a procurar saber do que se tratava. Perguntei a muita gente. Ninguém soube me dizer.

— Não sei se você sabe, mas eu fiz questão de isolar acusticamente esse apartamento para evitar problemas com os vizinhos. Todas as minhas portas têm batentes de cortiça, inclusive no rés-do-chão. Todas as minhas paredes receberam uma camada de isopor debaixo do reboco e todas as janelas têm caixilhos exatos e, como você pode ver, persianas de madeira com contatos de cortiça também.

Ao falar isso Fernanda começou a tremer de medo. Quando fora a última vez que ousara trazer um homem ao apartamento? Tentou lembrar e não conseguiu. Nunca. Sempre fizera questão de ir a outros lugares, mas nunca trazia ninguém ao seu esconderijo subterrâneo. Por que? Instintivamente ela temia que seu lar hermético impedisse que alguém ouvisse algum grito de socorro se alguma coisa desse errado. E Fernanda estava por demais calejada com coisas que dão errado. Mais do que blocos de mármore, os homens também sempre davam errado e em vez da Grande Obra de uma família eles a deixavam com miniaturas de felicidade em forma de fotos e saudades, quando não a abandonavam nua e só, com gelo na alma e na pele, hematomas.

— E como você me descobriu aqui? E por que veio até aqui?

— Uma dia, antes mesmo de saber que você era “o espírito batedor”, eu a vi entrar. Reconheci imediatamente a Fernanda que estudara comigo no Colégio do Carmo. Você, de certa forma, me fez esquecer o poltergeist do prédio e eu passei a pensar somente em maneiras de me aproximar de você.

Fernanda começou a se sentir meio lisonjeada e meio apreensiva. Lembrava de Luzimar como um rapazola pobre e recalcado, que ia à aula com sapatos formais, calças impecavelmente vincadas, camisas imaculadamente brancas. Ele escrevia em cadernos baratos, mas que jamais conheceram um vinco, que jamais perderam uma folha para fazer um avião de papel ou para um rabisco. Escrevia com canetas da pior qualidade, mas que em suas mãos duravam dolorosamente até o fim, sem uma mordida na tampa. Sentia sua presença como a de um metódico psicopata.

— E como me descobriu, afinal! — perguntou, sofregamente.

— Pela lista telefônica.

Fernanda desviou o olhar para a mesinha de canto, na qual estava o volume desajeitado do catálogo. Sim, ela figurava na lista.

— Seu nome estava lá, “Fernanda R Ramos”. Residente no Apartamento R-21 do subsolo.

— Então você me ligou.

— Sim. Eu estava muito nervoso, porque não sabia como você reagiria, depois de tantos anos, depois de tudo.

Fernanda se lembrava, claro. De como humilhara o pobre Luzimar lendo em voz alta para a turma os versos tortos com que ele, coitado, tentara conquistá-la.

— Mas o que você quer de mim?

— Um trabalho. Quando eu descobri que você era escultora, resolvi convidá-la a fazer a capa de meu livro.

— Que idéia! Como uma escultora pode fazer a capa de um livro?

— Eu sou fotógrafo amador. Penso em fotografar uma escultura sua e usar a imagem como capa de meu novo livro.

— Não seria melhor encomendar a um desenhista?

— Por mais talentoso que seja um desenhista, há certas sutilezas tridimensionais de luz e sombra que somente um objeto real, iluminado por uma luz real, consegue ter. Por isso eu preferiria que você me permitisse fotografar uma escultura sua e pôr na capa de meu livro, com o devido crédito, é claro. Quanto custaria isso?

Fernanda sentiu uma vertigem. Olhou de alto a baixo o corpo sempre esguio do Luzimar e lamentou por não ter mais talento. Lamentou estragar blocos de mármore que, no fim, resultavam em quinquilharias para vender na feira hippie em vez de em novas obras primas para as ilhas de cultura no obscuro oceano de ignorância que circunda o mundo.

— Não tenho nenhuma obra grande, no momento — admitiu, envergonhada.

Luzimar não pareceu se abalar.

— Mostre-me então uma de suas pequenas obras primas. Ser pequena até facilitará o jogo de luzes coloridas que pretendo usar para ressaltar as sombras.

E dizendo isso, fez sair do bolso uma câmera digital e começou a inquirir com ela a personalidade do montão de artesanato apertado nas prateleiras.

— Não!

Fernanda se interpôs inutilmente entre a lente e as estatuetas e utensílios, como uma mulher nua que precariamente tapa sua vergonha com as mãos.

— Por que não? — impiamente ele perguntou.

— Não, Luzimar. Eu não sou uma artista, ainda. Eu não quero aparecer para o mundo com uma “coisa” destas.

E chorando, empurrou a prateleira que caiu ruidosamente sobre o bloco, fazendo espalharem-se pelo chão sapos, cachorrinhos, porta-jóias, fadinhas e duendes e toda espécie de coisa que as pessoas compram para enfeiar suas residências.

O bloco de mármore, esse, não sentiu o golpe. Ele é do tipo de coisa que só se doma em pequenas agressões cotidianas, passa ileso pelas grandes tragédias. Luzimar contemplou, patético, a cena toda. Fernanda se sentou no chão, com uma perna esticada e outra encolhida, e cobriu o rosto com as mãos. Ouviu então um ruído ríspido e uma luz amarela apareceu no ambiente. Abriu os olhos, mas a porta já se fechava.

Levantou-se, tão rápido quanto pôde, e descalça mesmo saiu pelo corredor na tentativa de alcançar o brutal, impiedoso e frio Luzimar, que levava no ventre maldito de sua máquina fotográfica a cena lamentável de sua vergonha. Mas ele já dobrava a esquina e tomava a escada que levava ao térreo e quando lá chegou ele já se mesclava à multidão de cabeças pretas que desciam e subiam, abrindo caminho a cotoveladas, pela ampla rua de pedestres. Retornou, arrasada, e se trancou no apartamento. Tomou o que supunha ser uma overdose de barbitúricos e foi dormir, sem banho e sem esperanças.

Acordou no dia seguinte, já pela uma da tarde. Só dava para saber a hora por causa do relógio elétrico, visto que as persianas herméticas estavam cuidadosamente cerradas. Saiu da cama como uma defunta abandonando o ataúde, a força lhe faltava.

Chegou a sala e contemplou na penumbra o mostrengo de mármore aboletado ali, testemunha de seu fracasso. Um envelope pardo havia sido introduzido através do complicado mecanismo isolado de recepção de correspondência que instalara ao lado da porta. Abriu-o quase com medo, mas profundamente com raiva. Imaginando o que haveria dentro.

Era inegável que a câmara de Luzimar era de excelente qualidade. O fortíssimo flash iluminara adequadamente o ambiente e a cena ali restara reproduzida com a precisão impossível que só existe nos piores pesadelos. Lá jazia ela, descomposta, entre um mar de inúteis adereços de mármore e um monólito impiedoso e virgem.

Ficou a contemplar aquela foto por quase meia hora. Cada detalhe novo que nela percebia era uma gota de sangue que caía do cadáver enforcado de sua auto-estima. Pensou na mesada que ainda recebia do rico pai ausente: por quanto tempo ainda? Teve vontade de morrer, mas principalmente de ter uma outra vida.

Num momento raro de vontade vencendo a inércia, levantou-se de onde estava, calçou apenas um sapato velho e atravessou a rua até a livraria para comprar os livros com a matéria de um concurso de que lhe haviam falado na semana anterior.

Resolveu dedicar-se a isso. Nunca fora afeita a afazeres domésticos, não se imaginava dona de casa e nem herdeira, pelo menos não se via mais assim. Estudou e conseguiu um bom emprego em uma multinacional. No dia em que recebeu seu primeiro salário rasgou o cheque da mesada e depois o emoldurou, como um símbolo. Ao lado da fotografia recebida de Luzimar. Mas como doía ter abandonado tanto.

Nunca ouviu falar de nenhum livro dele. Nunca viu a foto em capa alguma, ou em coisa alguma. Mas a chaga daquele momento não cicatrizava. Era como viver com a perspectiva de ser destruído pela humilhação a qualquer instante. O tipo de sentimento que só pode resultar… em poesia.


19
Abr 09
publicado por José Geraldo, às 22:24link do post | comentar

Existe uma certa magia nas grandes, labirínticas cidades. Uma magia que seduz principalmente aos jovens acostumados aos horizontes curtos de Minas Gerais, onde o hábito de contemplar montanhas bloqueia os voos da imaginação da maioria que não ousa escalar até os topos para descortinar uma vista desafiante. E certas cidades possuem um ar ainda mais labiríntico e um fascínio ainda mais palpável do que outras, tal é o caso de Juiz de Fora, com seus quarteirões em formatos estranhos, variando entre quadrados, paralelogramos e triângulos, com suas avenidas retas e, mais que tudo, suas galerias convolutas que escondem lojas e outra galerias que escondem lojas e outras galerias, que escondem, no fim de corredores onde nunca o sol chega diretamente, lugares inauditos, cheios de experiências que fazem as pupilas do jovem interiorano se expandirem.

Existe uma destas que parece a entrada de um estranho universo de fantasia, o portal para um tempo-espaço onde as leis da Física e o rumo da História seguiram uma direção alternativa. Você entra ao lado do Cine Central, passa por entre as mesas de um restaurante, penetra por um sombrio corredor meio iluminado por lâmpadas fluorescentes onde abundam lojas pequenas, com amplas vitrines de vidro que expõem desde discos a roupas, tudo de estilos que destoam do comum. As pessoas que frequentam este lugar possuem um modo próprio de vestir-se, maquiar-se e cortar o cabelo. Usam acessórios e tatuagens que podem chocar até aos olhos de alguém acostumado a lugares e mentes pequenas.

Mas não é exatamente nesta primeira galeira que se acha aquilo que me levou a escrever. Se você chegar ao fim dela, perceberá que ali há uma bifurcação, duas galerias dentro do fim da primeira galeria. E cada uma destas galerias possui outra bifurcação no final, segundo me disseram, e é possível que este esquema fractal se reproduza ao infinito levando a outras dimensões até. É possível porque nunca fui verificar e o desconhecido esconde a possibilidade do impossível.

Nem está neste improvável labirinto que me contaram, está, em vez disso, em uma escada estreita que aparece no meio da galeria inicial, à direita. Subindo por ali, não há elevador, chega-se a outra galeria na sobreloja, onde há outros cômodos comerciais abrigando vários tipos de negócios e ócios e também portas vazias que eu nunca abri, outras escadas que parecem e não parecem existir. Está aqui, no segundo andar deste prédio tão no centro e ao mesmo tempo tão distante. Foi neste lugar que uma vez eu vi a livraria dos livros impossíveis, a biblioteca dos livros que ou não foram nunca escritos ou restaram esquecidos. Infelizmente tal biblioteca já não estava mais lá da segunda vez que a tentei visitar, em companhia de um cético amigo meu chamado Carlos – que descrê até de Deus, mas estava disposto a crer em coisas místicas porque estas, sim, são a verdade. Subi em companhia do Carlos, querendo mostrar-lhe o lugar como se tivesse sido uma descoberta equivalente à da pólvora:

— Você tem que ver isso, Beto. É o lugar mais estranho onde já estive. Parece que lá não existe.

Beto disse que acreditaria em minha palavra:

— Eu não estou vindo com você para ter a prova, porque confio no amigo. Estou vindo porque o lugar de que você fala é algo que eu gostaria muitíssimo de ver.

Eu o encontrara casualmente naquela manhã, enquanto tomava um café e comia uma fatia de broa de fubá em um bar qualquer da Rua Halfeld. Éramos amigos de muitos anos, mas fazia um bom tempo já que não nos víamos. Por isso ele, que me viu pelas costas antes que eu o notasse, fez questão de entrar, cumprimentar-me e pedir para si um café também. Gastamos uma boa hora ali, conversando animados sobre os anos que vivêramos em separado, adiantando planos e, na maior parte do tempo, pondo em revista perspectivas realizadas ou não desde que nos faláramos da outra vez.

Não sei direito como foi que o assunto da Livraria surgiu. Lembro-me vagamente de um comentário, não sei dele ou meu, sobre livros que têm títulos fantásticos mas são tão ralos e ruins de conteúdo que parece, às vezes, que não mereciam ter sido escritos, que deviam ter ficado no belo título sonhado por um autor mais talentoso em sinopses do que em textos. Não sei nem mesmo se esse comentário aconteceu ou se minha memória seletiva deturpou o registro da conversa inserindo esta explicação racional para o fato de, apenas saídos do bar, termos subido a rua juntos, entre gargalhadas, como dois colegiais narrando peripécias de fim-de-semana, e entrado pela obscura galeria. Só sei que começamos nosso périplo com um convite meu, cujos termos ainda tenho em mente:

— Então tem um lugar, aqui bem perto, que você gostaria muito de conhecer. Vamos lá comigo. Eu o conheci por mero acaso, não sei exatamente o que estava procurando. Entrei por uma galeria e peguei uma escada. De repente eu estava no corredor do segundo andar, entre a Rock Mania e algumas lojinhas de artesanato, e ao dobrar a esquina vi uma porta entreaberta, com um cartaz improvisado em sulfite, afixado com fitas adesivas, escrito com pincel atômico verde, em letras que imitavam cursivas medievais ou incunábulos da Renascença: “Livraria Futuro do Pretérito”.

— “Futuro do Pretérito” é mesmo um nome genial para uma livraria. Se eu visse esse cartaz pensaria de imediato que era uma livraria onde se vendem livros que teriam sido escritos.

— Você é mais perspicaz do que eu, Beto. Já lhe disse isso um monte de vezes. Eu não tenho a sua imaginação esperta e admirável, sou apenas um ledor compulsivo que já não fantasia. Por isso, quando vi aquele cartaz na porta, a última coisa em que pensei foi em algo que deixasse de ser normal. Entrei pensando que encontraria ali apenas livros comuns.

— E não foram livros comuns?

— De forma alguma. Quando entrei havia ali apenas uma fileira de estantes, todas iguais, de madeira escura, todas cheias de volumes dos mais variados estilos. Capas de couro, de cetim, de papel-cartão, de papel-vergê. Coloridas, monocromáticas, em tons de cinza, em toda variedade de projetos gráficos que se possa conceber. Comecei a andar por entre as prateleiras fascinado por aqueles livros tão bonitos. Havia alguns grossos como bíblias, outros finos como folhetos. Os títulos vinham em variadas fontes, desde desenhos rebuscados, góticos, barrocos, renascentistas, bauhaus ou modernistas, até sóbrias letras humanistas, transicionais ou textuais.

— E eram livros bons?

— Ah, essa é a pergunta que vale um milhão. Eu não sabia e nem tinha como saber, pois ao examinar, um a um, aqueles livros todos ali colecionados, eu não consegui encontrar, entre eles, sequer um título de que ouvira falar, embora alguns até soassem familiares, embora alguns autores até fossem conhecidos.

— Nenhum livro conhecido? Que espécie de livraria poderia ser essa?

— A princípio eu imaginei que aqueles livros fossem obras raras, dessas edições de poucas centenas de volumes que algumas editoras fazem, geralmente edições luxuosas, ilustradas, autografadas pelos escritores. Por isso eu logo supus que havia encontrado um tesouro. Senti algo doer em meu bolso, só de imaginar quanto me custariam aqueles livros, mas tinha uma vontade feroz de comprar alguns deles. De voltar sempre e comprar mais, mesmo sem ainda saber de que se tratava.

— Mas por que você queria comprar se não conhecia? Eu teria querido conhecer primeiro.

— Você é um maldito cético, Beto. Você exigiria enfiar o dedo nas chagas de Jesus para crer na Ressurreição.

— Mais que isso, exigiria um DNA.

Assim gargalhamos e chegamos à escada. Enquanto subíamos os dois lances de degraus, sem pressa como dois amigos que matam saudades antigas, eu continuei a dar detalhes do caso da livraria.

— Eu queria comprar, Beto, porque aqueles livros tinham títulos fascinantes, capas belíssimas, sinopses que prometiam leituras arrasadoramente interessantes. “Dias de um Futuro Perdido”, “Anjos ou Estranhos”, “Deuses que Morrem”, “A Árvore de Gelo”, “A Morte é o Parto do Futuro”, “A Velha Face do Novo Mundo”, “A Vida Secreta do Homem Público”, “Um Beijo à Margem da Meia-Noite”, “Viagens Desafortunadas”, “O Sacrílego Outono”, “Isto Que Este Livro Não É”, “Atos e Efeitos da Sincera Arte de Fingir”, “A História Eu Conto Depois”, “Lágrimas de um Matador de Sonhos”!

— Caramba! Que títulos! Alguns aí eu até teria vontade de comprar mesmo. E sobre o que eram esses livros?

Parei com Carlos, em frente à Rock Mania, e apontei para o corredor, à direita, onde ficava a livraria. Aproveitei mais alguns minutos para terminar de contar, entre cochichos, minhas impressões.

— Bem, aqui a coisa começa a ficar estranha. Alguns livros tinham sinopses na contracapa. Sinopses que prometiam mundos e fundos. Outros não tinham nada ali, apenas outra figura, ou um curioso espaço em branco, ou meramente recoberto por uma cor ou textura. Folheei alguns daqueles livros tentando descobrir do que se tratavam e, para meu espanto, em sua maioria eles estavam inteiramente em branco. Alguns tinham números de páginas, outros tinham títulos de capítulos, raros tinham algum capítulo escrito no início, pouquíssimos tinham outro no fim também, outros tinham apenas um índice, alguns tinham até prefácio mas não tinham texto, vários continham rabiscos irados e borrões, ou então páginas amassadas com fúria.

— Amigo, o que você tinha bebido nesse dia? Será que não batizaram sua cerveja com absinto ou com ácido?

— Não bebera nada, a não ser água mineral Hélios, e a tampinha não estava violada.

— Mas isto que você está me contando não faz nenhum sentido!

— Pode ser difícil de crer, Beto. Mas fazer sentido faz. Afinal, era a “Livraria Futuro do Pretérito”, o lugar onde estão expostos os livros que os autores nunca terminaram, os livros que teriam sido escritos, que seriam publicados, que poderiam ter sido os mais vendidos, que teriam transformado desconhecidos em celebridades, obras que teriam revelado novos gênios, talvez até algum Nobel literário para o hemisfério sul.

Meu amigo sorriu, desacreditando com todas as suas maquinações céticas. Acenou decididamente um “não” com a cabeça enquanto inspirava forte e declarou, como São Tomé diante de Jesus:

— Eis algo que só acredito vendo.

— Pois é ali, vamos até lá que, de repente, até aquele seu livro está à venda junto com os outros.

Estendi o braço convidando-o ao primeiro passo e ele, como ousado descrente que sabia ser, praticamente me deixou para trás. Dobramos a esquina e lá estava a porta, entreaberta, ainda com as marcas da fita adesiva que não me deixavam mentir, mas sem cartaz algum escrito em letras fora de moda.

Empurrei a porta e constatei, com irremediável desolação, que o lugar estava deserto, as paredes recém-pintadas e o chão, coberto de jornais antigos, cheios de notícias que ninguém mais queria ler.

— Parece, meu caro amigo, que a sua livraria não está mais aqui.

Eu não tinha o que dizer, meu rosto estava quente como se uma malária impiedosa me tivesse contaminado. Saí de lá derrotado, sentindo até vertigens. Meu amigo, solícito como só os bons amigos sabem ser, percebeu minha consternação total e tentou desviar o assunto:

— Pelo menos a gente veio parar aqui, e veja que discos interessantes estão à venda. Parece que relançaram a coleção do Jethro Tull.

Satisfeito em poder falar de Jethro Tull eu puxei a porta e fui saindo, não antes de olhar de novo para dentro daquela maldita sala comercial. Ao fazê-lo, notei, com o coração batendo arrebentado e fora de ritmo, que as manchetes dos jornais pareciam ter saído do mesmo universo que produzira os curiosos livros que ninguém escrevera: “Juscelino Recebe a Faixa de Jango e Promete Fazer o País Avançar Mais Cinquenta Anos em Cinco”, “Etiópia Lidera Cúpula Africana e Isola Ditaduras”, “Reino do Havaí Comemora 200 anos de Independência”, “Polônia Concede Cidadania Plena aos Alemães de Gdańsk”.

Ainda tive tempo, antes de fechar a porta, de notar no cesto de lixo, rasgado em pequenas tiras, um cartaz amarelado escrito em verde. Não tive nenhuma curiosidade de tentar saber o que nele estava escrito. O Futuro do Pretérito sempre fora o meu tempo verbal mais odiado, e eu acabara de ter mais imensas razões para aprofundar o meu ódio. Fechei a porta do Futuro do Pretérito e fui comprar as versões “remasterizadas” dos antigos discos do Jethro Tull.

Mas desde então fico imaginando se esta curiosa livraria não perambula pelas cidades do mundo, exibindo para quem queira ver o fracasso de autores que tiveram excelentes ideias mas não conseguiram transformá-las em nada mais que sonhos de livros que teriam centenas de páginas, bonitas capas e prefácios de amigos famosos. Talvez algum dia eu a reencontre em minha cidade. Talvez o leitor a encontre em algum lugar discreto de sua cidade.

Se isto ocorrer, não faça como eu. Compre um livro para ver o que acontece.


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