Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
09
Jan 11
publicado por José Geraldo, às 16:57link do post | comentar | ver comentários (1)

Tudo começou inocentemente. Comecei a pensar quando frequentava certas festas, de vez em quando, como uma maneira de me enturmar. Inevitavelmente, porém, um pensamento levava a outro e não demorou que eu me tornasse mais do que um pensador social.

Comecei a pensar sozinho — “para relaxar”, conforme acreditava, mas eu sabia que isso não era verdade. Pensar se tornava cada vez mais importante para mim, até que eu comecei a pensar o tempo todo.

Eu comecei a pensar enquanto trabalhava. Eu sabia que pensar e trabalhar não são compatíveis, mas não conseguia parar.

Comecei a evitar os meus amigos que não pensavam, para que pudesse ler Kafka ou Thoureau no intervalo do almoço. Eu voltava para o serviço tonto e confuso, perguntando-me o que exatamente significava o meu trabalho e o que estava fazendo no mundo.

As coisas tampouco estavam bem em casa. Certa noite eu desliguei a televisão e perguntei à minha esposa o sentido da vida. Ela teve que passar aquela noite na casa da mãe, de tão amedrontada que ficou.

Logo adquiri a reputação de um pensador compulsivo. Um dia meu patrão me chamou ao escritório e disse-me: “Cara, eu gosto de você e me dói dizer isso, mas seus pensamentos se tornaram um problema real. Se você não parar de pensar aqui no emprego, você terá que encontrar outro emprego.” Isto me deu muito em que pensar. Eu voltei para casa cedo depois de minha conversa com o patrão.

— Querida — disse ao chegar em casa — andei pensando que…

— Eu sei que você anda pensando — ela disse. Pensando demais para que alguém possa suportar viver com você. Quero divórcio!

— Mas, querida, não pode ser tão grave assim!

— É muito grave — ela disse, tremendo o lábio inferior. Você pensa tanto quanto professores, e professores não ganham quase nada. Então, se você continuar pensando, acabaremos sem dinheiro.

— Este é um silogismo falacioso — eu lhe disse, impaciente, e ela começou a chorar. Foi demais para mim. Meti o pé na porta e saí dizendo que ia para a biblioteca.

Fui até a biblioteca sentindo uma vontade enorme de ler Nietzsche, ouvindo a Cultura FM no rádio. Eu acelerei até o estacionamento e corri até as portas de vidro… mas elas não se abriram. A biblioteca estava fechada.

Até hoje eu acredito que um Poder Superior estava cuidando de mim naquela noite. Ao cair de joelhos no chão diante do vidro insensível, implorando por Zaratustra, um cartaz me chamou a atenção: “Amigo, pensar demais está arruinando a sua vida?” — ele perguntava. Você provavelmente conhece esta frase: ela é encontrada nos cartazes padronizados dos Pensadores Anônimos.

E ela é a razão pela qual estou aqui hoje: eu sou um pensador em recuperação. Nunca perco um encontro dos P.A. e sempre compareço para assistir programas deseducacionais. Na semana passada foi “Big Brother”. Depois nós compartilhamos experiências sobre como evitamos pensar desde o encontro anterior.

Eu ainda tenho o meu emprego, as coisas melhoraram muito em casa. A vida parece… mais fácil. De alguma forma o mundo me parece menos complicado desde que eu parei de pensar.

Autor Anônimo. Traduzido do site “Agent Orange

publicado por José Geraldo, às 09:47link do post | comentar

O que estou prestes a contar pode parecer sem pé e nem cabeça a você que me lê (porque a mim mesmo parece), mas sinto algo que me pressiona a falar e não posso desviar-me da missão de te dizer as coisas que vivi naqueles dias.

cabana de madeira

Às vezes tenho a impressão de que, na verdade, tenho sonhado isto que parece ser minha vida — e ainda não consegui acordar. Depois de haver guardado nas gavetas do esquecimento os traços deste pesadelo por muitas semanas, ele volta a me perseguir. Não dá mais para carregar este peso nos ombros, espero que você me ajude a pousá-lo no chão.

Contar essa memória que não me abandona é dividir esta saca pesada de medos e angústia para que, talvez por um breve momento que seja, eu possa tentar reorganizar meus sentimentos e livrar-me dessas imagens intermitentes e insanas.

Em um dia quente e desesperado eu me achei caminhando por uma estrada empoeirada sob um sol abrasador. Nem pássaros ousavam cantar diante da pressão que o ar exercia sobre as montanhas desbotadas.

Às minhas costas eu levava uma mochila pesada de culpas e projetos, alguns já malogrados em broto. Estava fugindo nem me lembro mais de que e temia que todos os meus amigos estivessem mortos ou presos. Tempos depois tive a certeza. Ou será que nunca, de verdade, tive amigos?

Para não ter de enfrentar nenhum dos doidos destinos que se me apresentavam eu saí de casa no meio da noite, furtando apenas roupas, comida para dias e uma Bíblia.

A comida se esgotara rápido, e já eram três dias que eu passava a roer-me de fome, tendo de roubar de comer.

As roupas, não podia trocar porque estava imundo, suado e coberto de pó e a comarca estéril em que estava vagando padecia de seca e infelicidade.

A Bíblia eu trocara por um pão com salame.

Depois de mais alguns dias de caminhada sem rumo pelos lugares aonde ninguém nunca vai, eu já estava exausto e bastante desesperado para fazer qualquer coisa. Mas só havia frutas murchas da estação fracassada nos galhos despojados das raríssimas propriedades habitadas.

Certa noite cheguei a uma cidade cujo nome não se dava a conhecer em nenhuma placa, em nenhuma saudação, em nenhum monumento. Um lugar pequeno, afastado das estradas principais e de Deus, incrustado numa encosta de morro onde não havia nenhum aspecto de beleza a ser ressaltado.

Uma cidade feia e cinzenta, com cerâmica industrial barata cobrindo as paredes das casas, ornadas com estéreis motivos geométricos, parecidas com monumentos funerários. Havia casas abandonadas e decadentes até mesmo nas ruas principais, ruínas ao lado da prefeitura, calçamento revirado na própria praça da matriz. As luzes estavam apagadas para economizar o gerador porque todos dormitam tranquilamente, seguros dentro de suas edificações residenciais sem vida.

Passeei pelo deserto urbano como um fantasma através de uma cerimônia, invisível e suave. E em nenhuma parte vi hotel, lugar nenhum em que se desse pouso a quem se perdesse por lá. Meus últimos trocados lamentaram de dentro do bolso não poderem dar para uma boa cama e um banho tépido, capaz de atravessar as teias de vertigem e o cansaço do tédio.

Com ossos doloridos de um longo dia e ainda por cima faminto, imaginava meios de dormir. Havia bancos na praça, mas me recusei a entregar-me ao nível dos pedintes reles. A dignidade vociferava em mim e me obrigou buscar onde ao menos pudesse ocultar a situação em que estava, e foi no cemitério que vi um lugar perfeito para terminar aquele dia de pesadelo.

Não me pareceu provável que o lugar fosse visitado durante a noite, ou mesmo pela manhã, já que era afastado e mal cuidado. Além do fato óbvio de ser um cemitério de uma cidade que parecia estar morrendo em vez de crescer. Apenas corujas piavam na escuridão e não havia sequer uma vela acesa em túmulo algum.

Buscando um lugar para deitar, encontrei no fim da alameda mais larga um mausoléu imponente cujo portão de ferro estava apenas encostado. Dentro, algumas velas ali postas a arder anos antes e muita, muita poeira e teias de aranha. Apesar disso, não podia negar que era um dos lugares melhores para deixar-me dormir e me rendi a uma grande mesa de mármore junto à entrada, usando minha mochila como travesseiro, e dormi sem pesadelos e nem esperanças.

Despertei com o sol agraciando meu rosto e sentindo a brisa leve e fresca. Pus às costas a mochila e saí pelo mundo para ver onde estava.

As cidades, a dos mortos e a dos que morriam, estavam em um morro um pouco mais ou menos alto do que os outros em torno. Todos morros redondos, pastos nus e salpicados de feridas avermelhadas, inteiramente desprovidos de árvores e imersos na cinza tristeza do outono-inverno, essa espécie de devastação que acomete o interior de Minas Gerais todos os anos a partir de abril.

O cemitério estava fora dos limites, cerca de uns quinhentos metros acima da última rua e apenas um muro baixo o isolava da terra secular. Temeroso de que alguém testemunhasse a minha vergonha apressei-me a sair e continuar a caminhada.

Tendo caminhado cerca de três quilômetros para além, pude ouvir o estrondo de água em pedras e me dei subitamente conta da delícia de poder lavar-me após… quantos dias?

Um segundo depois sorri ao dar-me conta de que minha vida de andarilho me estava devolvendo a sensibilidade aos ouvidos, podia ouvir os grilos no capim, as aves piando a uma distância considerável e o rumor do mundo em movimento. Mesmo na desgraça o ser humano tem motivos para sorrir.

Desci a encosta em direção a um fundo de vale arborizado onde havia a água que criava aquele som familiar. Seguindo a direção do ruído, encontrei uma pequena maravilha à minha espera: uma cascata de uns dois metros de altura que caía sobre um poço com fundo de areia, em meio a árvores que pareciam ter estado ali durante muitos milênios.

Despi-me e brinquei alegre como criança durante algum tempo, finalmente abri o sabonete que trazia de casa e me dei um banho como poucas vezes. Depois de escovar os dentes pela primeira vez em dias e de usar desodorante pela primeira vez desde que saíra de casa eu vesti uma roupa limpa, mesmo calçando os mesmos surrados sapatos e olhei para mim mesmo com um pouco mais de orgulho. Apenas a fome atentava contra a minha auto-estima.

Com tristeza deixei o pequeno pedaço de paraíso onde, apesar da beleza, não havia alimento e voltei ao caminho. Devagar para não suar muito, tão sem destino quanto antes, mas sentindo-me mais limpo e mais leve. Nisso ouvi um cauteloso trotar de cavalo atrás de mim e me virei para averiguar quem caía em meu mundo.

Uma mulher, montando um cavalo castanho e usando um vestido e um chapéu. Bela mulher. Aparentemente apenas o vestido e o chapéu denunciavam alguma irregularidade. Teria trinta anos mais ou menos, mas logo percebi que não era uma das mulheres comuns da região. As mulheres do interior não têm no olhar aquela malícia e nem no semblante aquela firmeza indômita e algo cruel. “Também não usam roupas desse jeito e nem um chapéu assim”. Toda ela me pareceu recuada do tempo, alheia ao mesmo mundo meu. Dominava o cavalo com displicência, mantendo um silêncio ardoroso em seus gestos. Quando me viu, me chamou com um sorriso e fez diminuir o andar do animal, audácia que me chocou.

“Senhora, boa tarde”, eu disse, com palavras que me soaram raras depois que saíram de minha boca porque não pareceram minhas, mas a fala de um personagem de uma lenda antiga.

Ela respondeu com um aceno aberto mostrando dentes claros de padrão algo feroz. Ela continuou e me mantive entre envergonhado e excitado até que finalmente resolvi segui-la.

Ela não olhava para trás, mas para os lados, fingindo ver a paisagem, como para certificar-se de que a estava seguindo. Naquele momento em que a inspiração me faltava e meu olhar vacilava, eu era capaz de dizer qualquer besteira, mas não disse.

Ela não deixou o cavalo parar e nem esperou que eu a alcançasse. Sem o que dizer, eu apressei o passo, vendo que o cavalo soprava com ansiedade, tentando ir mais rápido.

Os passos do animal eram contidos por uma mão mais firme que a minha e por olhos que viam aonde eu não sabia. Mas lentamente estas mãos meticulosas libertaram o trote e tive de cada vez ir mais rápido para não ficar para trás.

A rapidez cada vez maior de meus pés pareceu cancelar as precauções que eu devia ter em minha mente. Logo eu já me havia esquecido de meus pensamentos e até de onde andava. Era como se não enxergasse nada à esquerda ou à direita. Depois de meia hora de perseguição eu estava suado, ofegante, desidratado e com cada músculo esvaído e doendo demais.

Então ela se embrenhou por uma trilha à esquerda, uma que se abria quase imperceptível na parede de galhos que orlava o caminho. Entrei após, pisando folhas e arbustos. Meus passos estalam nos gravetos e ecoavam no ar vazio como se o mundo inteiro estivesse dentro de uma redoma.

Acordei horas depois de um sono impreciso que tive. Estava nu, deitado sobre um gramado pontilhado de flores amarelas à beira de um riacho. Ao meu lado, também nua, a mulher que eu perseguira, adormecida e indefesa.

Olhei em torno num relance e nada reconheci. O murmúrio da água parecia renovar a minha sonolência e eu não conseguia ter noção do tempo — a não ser que, talvez, estivesse terminando o dia; pela brisa fresca que soprava lá.

Não consigo imaginar como cheguei a esse lugar estranho e nem porque subitamente aquela mulher, cujo nome eu ainda não sei, jazia nua ao meu lado, salpicada de pétalas amarelas e com o sol da tarde fazendo luzirem as gotas de suor em sua pele (como se muito recentemente tivesse terminado um grandes esforço! Um esforço comparável ao do amor!).

Quis fugir dali! Mas como? Olhei outra vez em torno e não vi montanhas no horizonte. A clareira estava cercada de escuras paredes de árvores e trepadeiras e eu nem mesmo imaginei por onde deveria tentar sair para estar de volta… À estrada que seguia sozinho e sem saber para onde ir?! Sufoquei-me pensando que não havia nenhum motivo para fugir, nenhuma alternativa que me convencesse de que vale a pena fugir da presença daquela mulher, que de resto era tão bela.

Não consegui senão render-me à contemplação de sua nudez tão bela e simples. Uma sensualidade clássica e farta, com pernas grossas, braços roliços, seios bem feitos e cintura larga. O rosto de uma Vênus de Rubens com mãos maltratadas de serviços, unhas roídas e irregulares, nódoas nos dedos. O seu sexo era coberto de uma penugem macia que parecia não haver sido jamais raspada de tão suave e curta. O seu corpo era de uma cor que parecia não ter jamais tomado sol. De uma cor que não existe mais.

Enquanto eu permaneci atônito a contemplá-la, esqueci o tempo e não vi se anoiteceu ou não (deveria?). Foi com muda surpresa que a vi acordar e espreguiçar-se.

Ela olhou em torno, viu-se e me viu. Cobriu-se subitamente envergonhada e me atingiu:

— Que fizeste, bandido?!

— Nada que eu saiba. Diz-me tu que fizeste comigo?!

— Nada que ferisse. Agora responde que fizeste comigo!

— Nada que te acordasse.

Ela se pôs a chorar, acusando-me de ter tirado proveito do sono que a rendera. Embora certo de minha inocência, não tentei abrir a boca para dizer coisa alguma, ao mesmo tempo em que me embebedava em sua beleza.

Depois de lamentar por um tempo, ela se levantou, tomou as suas roupas e se vestiu  vagarosamente. Assobiou e o cavalo pareceu aparecer do nada. Manso e arreado. Veio pacatamente receber de suas mãos um carinho e um “venha, menino”.

— Você não devia ter tentado me interromper.

— Mas não tentei fazer nada!

— Não pense que isso mudou alguma coisa. Só vai trazer-lhe mais

sofrimento.

— Quem é você, e onde estamos?

Ela montou sem me responder e cavalgou, muda, rumo ao riacho. O animal não hesitou em achar uma travessia através dos bancos de areia enquanto eu me ocupava em vestir-me tão rápido quanto podia para poder tentar acompanhá-la ainda. Sabia que onde estava não podia continuar e que voltar era impossível.

Após o rio e além da primeira curva se erguia uma casa de pedras com teto de folhas de sapé, que eu apenas observei de passagem. Dentro da casa algumas pessoas pareciam ocupadas em talvez um tipo de piquenique.

Passada a curva e seguindo a segunda estrada pelo morro acima, terminei numa clareira ampla entre árvores, com mesinhas de pedra, próprias para piqueniques ou bruxaria. Uma longa escada de lajes de pedra dispostas através da encosta permitia que se subisse ao topo da montanha coberta de relva verdejante (“nessa época do ano? Estranho!”). É pela escada que ela subia a pé — e eu a segui.

Não a tempo de conseguir impedir que chegasse ao alto do mirante antes de mim. Ela olhou para trás, viu que eu estava chegando, disse alto algo que não ouvi, me acenou um gesto que não reconheci… e se deixou cair!

Eu gritei mas não acordei porque não estava dormindo. Eu corri, mas não pude chegar lá a tempo porque não era sonho. O mirante se abria sobre um abismo imenso, cujo fundo era de pedra viva. Lá estava, ensanguentado, o cadáver da mulher que eu seguira e amara sem nem saber por que.

Havia uma escadinha perigosa esculpida na parede de granito. Movido sei lá por que mórbida curiosidade eu a desci em direção ao poço, que fedia a sangue de muitos corpos e a culpas de muitas almas. Noto que havia muitos ossos, mas raramente alguma joia ou coisa de valor.

A misteriosa estava morta. Vasculhei seu corpo e percebi que não trazia brincos, nem pulseiras, nem relógio, nem cordões, nem tatuagens, nem obturações, nem nada de ouro ou prata. Não trazia bolsa e nem dinheiro.

Sua roupa era um vestido negro e largo, por baixo umas anáguas rendadas em branco. O único objeto que portava era um pequeno envelope pardo. Continha um pequeno livro em papel tão fino e letras tão miúdas que mal daria para tentar ler, ainda que fosse escrito em nossa língua. Em vez de uma carta contendo explicações ou qualquer outra coisa, eu encontrei uma escrita estranha e angulosa (ou será que neste sonho ou vida era analfabeto?).

Havia também uma espécie de talismã costurado em couro, com alguma coisa macia por dentro e pendente de um cordãozinho trançado em palha. Tomei aqueles objetos na mão e olhei para cima. A Lua ia alta no céu, embora ainda não fosse escuro.

Pus o conteúdo todo do envelope em meu bolso. Olhei em volta e me vi mais perdido do que jamais antes estivera. Não havia nenhum sentido em estar ali entre aqueles mortos.

“Que diabos vim fazer aqui? Por que raios eu saí de casa?” Deixei a estranha morta lá entre aqueles outros cadáveres mais antigos. Lá onde esperaria as chuvas que o decomporiam e purificariam sua alma de seu gesto.

E subi outra vez, cuidadosamente, pela perigosa escada na pedra. No alto do mirante me dei conta de que estava anoitecendo ainda. Gastei mais uns minutos olhando a paisagem, como se lembrá-la valesse a pena depois e desci de volta ao vale entre as árvores, pensando em que fazer de minha vida a partir de então.

No meio da descida encontrei seu cavalo. Ele pastava tranquilamente e, aparentemente, não me rejeitava enquanto eu me aproximava. Tomei-o pelas rédeas e continuei a descer.

Os que faziam piquenique já haviam ido todos embora. Restava apenas uma jovem de cabelos grisalhos.

“Que estranha essa mulher também!” Ela tinha olhos que pareciam uvas, tão escuros e brilhantes mas ao mesmo tempo cheios de uma luz azulada ou roxa. Usava um vestido semelhante ao da morta e também subia. Sem cavalo.

Olhou-me com uma expressão de espanto no rosto:

— O que está fazendo? Por que está descendo esta montanha e de quem é esse cavalo?

— Boas perguntas. Eu estava atrás de alguém que pudesse me salvar, mas esta pessoa queria se matar. Estou descendo a montanha porque não quero morrer e nem ficar entre os mortos. E esse cavalo ficou sem dono, portanto pode ser meu.

— Que audácia a sua vir até aqui! Você não sabe o que está acontecendo! Aliás você nem devia ter conseguido encontrar esse lugar! Quem o trouxe?

— Eu já contei a verdade. Creia se quiser. Mas não me ofenda porque não sou um ladrão e nem profanador de corpos.

— Este cavalo não poderá nunca ser seu!

— Tudo bem. Então fique com ele se quiser, mas eu peço, por favor me ajude! Eu estou perdido!

— Muito mais perdido do que imagina!

Por um momento um pouco de doçura veio a seus olhos.

Então um certo sentimento de culpa passou em mim. Abri meu bolso e lhe entreguei o envelope:

— Desculpe-me, acho que menti ao dizer que não sou um profanador de corpos. Tirei isso do cadáver da estranha.

— Você nem tem ideia do que é isso, tem?

— Está em alguma língua estranha. Nem é útil para mim. Trouxe porque pensei que poderia obter alguma resposta.

— Querer respostas não é sempre uma boa ideia.

— Mas é melhor uma resposta que continuar vagando sem rumo pelo mundo.

Ela me olhou pensativa:

— Eu posso te oferecer umas respostas, mas isso vai ter um preço. E o preço é que deverás viver aqui entre nós.

— “Nós”?

— Só posso dizer se concordas com o que cobramos.

Lembrei-me dos agentes do governo que queriam o meu sangue e até confesso que senti certa tranquilidade. Tendo alimento, saúde e paz; diante das circunstâncias; eu achei que podia me dar por feliz.

— Está bem.

— Então vamos subir de volta.

Lá do alto, sob o luar estranho que nos banhava, ela me mostrou um horizonte muito largo, sem nenhuma luz que denunciasse a presença da humanidade. Muito profundo era o silêncio daquela noite e muito pesado o cicio dos pássaros e o cricri dos grilos.

De repente, sem que ela precisasse me dizer coisa alguma, eu comecei a perceber.

— Por isso temos este lugar. Nem todos são fortes.

— Eu a tentei salvar!

— Eu li isto em você. Talvez isso me tenha convencido.

Descemos de volta à casa. Ela me mostrou um quarto e me disse que eu deveria viver ali por algum tempo.

— E alguém virá — continuou.

— Quanto tempo?

— Não se sabe. O que for necessário.

— Tenho medo.

— Todos temos.


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Eu tenho acompanhado esses casos, não só contra vo...
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