Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
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Jan 11
publicado por José Geraldo, às 19:40link do post | comentar

As gotas de chuva eram pouco para vencer o calor que se empoçara na cidade prematuramente em nosso agosto, subia um vapor queixoso e sibilante dos canteiros ainda não inteiramente encharcados e Berenice cruzava a praça sem guarda-chuva.

Eu estava em um ponto de ônibus, recém-saído de meu dia de trabalho e não me confortava nada a certeza de que aquela chuva de sexta-feira prometia durar a noite toda. Ela chegou ao meu abrigo com o corpo suado, chuva escorrendo pelos cabelos e o lindo rosto moreno brilhando de calor. Percebeu a insistência com que eu observava e entre dois sorrisos lamentou a chuva depois de toda uma semana seca e opressiva de calor. Eu comentei a minha teoria particular de que estatisticamente chove mais entre a tarde de sexta-feira e a manhã de domingo do que durante todo o resto da semana, acrescentado a possível conspiração do mundo contra a possibilidade de eu vir a ter um fim-de-semana perfeito.

Finalmente ela desarmou-me apresentando a sua teoria particular de que os homens se dividiriam em duas categorias: os de manteiga — que não saem de casa quando está quente — e os de açúcar — que não saem quando está chovendo. Quando eu tentei abrir a boca para tentar criar algum conhecimento entre nós, ela interrompeu-me dizendo que seu ônibus chegara e entrou nele tão depressa que eu mal tive tempo de dizer-lhe um “tchau” tão tímido que ela nem ouviu.

À noite eu a vi, por imenso acaso, sentada com outras pessoas em um bar, de dentro do meu carro ouvindo o tamborilar das gotas grossas eu pensei por tempo demais se deveria retornar àquela rua e tentar entrar na vida dela: quando tomei a decisão era já tarde demais e não estavam mais lá. Sem o que fazer, sentei-me ao balcão com um chope e uma nódoa de solidão no sorriso que eu distribuía tão barato aos poucos conhecidos que passavam. Enquanto aguardava que o destino, ou alguma outra forma de inspiração, caísse sobre mim; a chuva foi descendo o seu peso e a cidade foi morrendo outra noite.

Na agitação das pessoas que se aglomeravam no único local abrigado eu me senti tolhido, solitário no meio duma multidão que me ignorava e espremia. Pude vê-la passar pela avenida dentro de um Passat cinza, mirei-a com olhos famintos mas ela não recebeu minha transmissão de pensamento e nem soube onde eu estava. Abri caminho por um oceano de braços e copos de cerveja afora até romper na calçada vazia, o carro estava parado em frente ao bar seguinte. Corri até lá rabiscando na capa de meu talão de cheques o número do meu telefone, mas antes que eu chegasse a alcançar a janela o carro saiu, jogando água em mim.

E o sábado foi uma flor amarga que nasceu.

Publicado em 1999 na Revista da Associação Nacional de Escritores, é um dos pontos altos de minha primeira fase depressiva e pessimista (1994–1998) e deve ter sido, provavelmente, escrito em começos de 1998.


publicado por José Geraldo, às 00:28link do post | comentar
Continuando minha série de frases de efeito que vão acabar afastando todos os meus amigos, exceto a Ilka Canavarro, que não precisa conviver comigo, eis outra série de «Aforismas de um Ogro» (se você quiser mais motivos para me odiar, leia a série anterior).
  • Se as baratas sobreviverem ao apocalipse, isso ainda não mudará o fato de são estúpidas baratas. Sobreviver não é nenhum mérito, porque para cada Oscar Niemeyer existem uns trinta japoneses que passaram a vida inteira em sua cidadezinha bebendo saquê e nunca projetaram uma cidade.
  • O aspecto mais lamentável da literatura atual é que a maioria de seus praticantes não entende o que significa «lamentável».
  • Se Nietzsche estivesse vivo ele certamente gostaria de ... (complete com a coisa idiota cujo hábito você pretende justificar pateticamente).
  • Eu sei que o futebol é um jogo de cartas marcadas, mas eu ainda quero que o Galo seja campeão e o Flamengo se exploda.
  • A vírgula não humilha o ignorante, que não aceitará que errou, e nem o sábio, que se perdoa pequenos enganos ocasionais. Quem se ferra por causa dela é revisor.
  • Eu não acredito em crentes verdadeiros e nem ateus absolutos. Todo crente interpreta como metáfora o mandamento que não lhe convém e todo ateu acha um jeito de se alienar, mesmo que seja com a crença de ser um ateu absoluto.
  • Dizem que em algum lugar do interior da Bósnia-Herzegovina, em 1983, alguém teve uma ideia original. 
  • O dinheiro compra qualquer coisa, mas quem escolhe é você.
  • Estou acostumado a sentir no rosto o peso dos obstáculos que a vida nos impõe: fui goleiro de handebol na escola primária — e era o menor da classe.
  • Eu não levaria você para uma ilha deserta, nem quero que você me leve.
  • A maior prova de afeto não é levar alguém para uma ilha deserta, é acreditar que ela é uma pessoa que não deve ser deixada lá.
  • Ao contrário da maioria dos nossos jovens fãs de literatura, eu acredito que ideias originais quase não tem importância se você não tiver capacidade de criar a partir delas uma obra que valha a pena ler. Na verdade, um autor porco com uma boa ideia deve ter sido o que inspirou Jesus Cristo a inventar a parábola das pérolas aos porcos.
  • A frase mais sábia da história da música popular brasileira quem disse foi Raul Seixas: «Enquanto Deus explica, o Diabo dá uns toques.» Por isso eu não acredito que Deus seja brasileiro, visto que a maioria das pessoas (incluindo eu mesmo) não entende porra nenhuma daquilo que se propõe a fazer e se garante seguindo um «burrinho» ou perguntando para um colega.
  • Não é verdade que o Brasil só tem duas estações: Além da Globo e do SBT, tem a Record, a Bandeirantes, a Gazeta ...
  • Não é verdade que Sandy e Júnior são filhos de Chitãozinho e Xororó.
  • Bob Dylan abriu o caminho para que os desafinados cantassem e o mundo pôde conhecer artistas incríveis que teriam ficado mudos: Jimi Hendrix, Fish, Roger Waters, Paulo Ricardo e o Herbert Vianna. Hoje precisamos de outro Bob, que abra o caminho para os que sabem cantar cantem de novo.
  • É mais fácil tirar o homem de dentro da igreja do que a igreja de dentro dele.
  • Desconfie de quem agrada todo mundo. Somente pela qualidade dos inimigos a gente pode realmente avaliar o caráter de um desconhecido.
  • Não acho injusto que um árbitro de futebol ganhe mais do que um juiz do Supremo Tribunal Federal: nunca um dos Supremos Árbitros da Nação conseguiu decidir num piscar de olhos. E eu nem vou querer pensar no que pode lhe acontecer se a mãe deles entrar no meio.
  • A fidelidade é uma virtude humana espantosa: mesmo com o marido sendo processado por dezenas de estupros, sua linda e jovem esposa se mantém fiel à conta bancária.
  • A esperança morre com um simples tapa: que bicho frágil.

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Eu tenho acompanhado esses casos, não só contra vo...
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