Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
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Jan 11
publicado por José Geraldo, às 19:51link do post | comentar

Ela se foi e eu fiquei sozinho o resto da noite naquela casinha de pedras no meio do nada. Não tive, porém, tempo para sonhos loucos ou terrores noturnos: apesar do breve sono da tarde, eu estava cansado demais pelos três ou quatro dias de estrada para negar-me a dormir na cama macia e segura, apesar de suja.

Acordei na manhã seguinte com um sobressalto: nos últimos estertores do sono eu havia encontrado uma abertura para ter um pesadelo e lembrei da misteriosa mulher que se jogara no abismo.

Ao me levantar, deparei-me com o fogo aceso e com a mesa posta para o desjejum. Era curioso que isso acontecesse, visto que eu fora dormir sozinho naquela cabana. Mas sobre a mesa estava um envelope rústico contendo um bilhete numa caligrafia que parecia saída de um manuscrito medieval:

Tente não demorar muito nessa casa: ela não o salvará de si mesmo, e o exporá a muitos perigos que você não conhece. Não deixe que minha irmã Lua o engane.

O caderno que eu subtraíra da suicida estava dentro do envelope: sua capa de couro marrom estava úmida, como se manchada de sangue, do sangue dela. Mas não estivera assim quando o pegara. O cheiro dele era quase insuportável, como se o seu texto revelasse horrendos e imemoriais segredos. Coloquei-o na mochila pensando em tentar ler depois.

Tomei do amargo café e comi dos pães duros, untados de manteiga rançosa, e fui ver o que havia do lado de fora. O cavalo da desconhecida estava pastando no relvado próximo à cabana, e pareceu dócil à minha aproximação. Abracei-o carinhosamente, lembrando a pele áspera, mas feminina, de sua dona morta. O cavalo me olhou profundamente, como se tivesse inteligência em vez de ser apenas uma besta de carga.

Selei e montei aquele animal com o respeito que merecem os cavalos, pelo menos no mundo estranho em que eu tão de repente me perdera. Saímos pelas estradas

A estrada era larga, maltratada e pedregosa. Um cavalo poderia facilmente derrapar e cair naquele chão traiçoeiro. Ninguém seguia no rumo oposto, ou no mesmo, e o silêncio da paisagem conspirava como se todo o mundo se tivesse desabitado de seres humanos e das trevas o mal me espreitasse. Cavalgava por horas sem destino, observando cada traço da paisagem, sempre buscando alguma indicação de rumo.

Quando o sol estava alto no céu, parei à sombra de um imenso pau-ferro à margem da estrada e roí algum pão enquanto observava as estranhas runas do caderno. À luz do sol elas pareciam bem menos misteriosas, dava para ver que estavam em alguma língua humana, embora talvez antiga demais para que eu a reconhecesse. Montei novamente e segui meu rumo sem sentido.

Ao cruzar a crista de um morro bastante íngreme, entrei em um território onde parecia ter chovido recentemente. As folhas estavam tão viçosas que dava vontade de fazer-lhes carícias, e os grilos por toda parte se preparavam para a noite que em breve cairia.

Todo o meu dia foi passado em uma estrada interminável, serpenteando por entre montanhas e vales e matas e rochas. Nenhuma casa, nenhuma viva alma, nenhuma encruzilhada. Mas quando já começava a cair à noite, num raro trecho de vargem à beira de um rio largo, limpo e tão silencioso quanto um lago cheio de sapos, eis que achei a primeira bifurcação da estrada desde que entrara naquele mundo. Lembrei-me dela imediatamente, pois fora através dela que eu entrara naquele lugar.

Contemplar aquele lugar me fez sentir firmeza novamente: ali estava o elo que me levaria de volta aos lugares conhecidos, onde as coisas todas têm explicação. Bastava guinar o cavalo à direita e subir aquele morro baixo e triste, tão cheio de feridas avermelhadas. Do outro lado, salvo engano, haveria a cachoeira onde eu me banhara pouco após sair do cemitério da cidade sem nome.

Porém não havia força no universo capaz de me forçar a tomar aquele caminho. Por ele certamente eu retornava ao mundo conhecido, mas por ele eu igualmente retornava ao mundo no qual havia homens cruéis determinados a me conduzir à presença da lei arbitrária que me enquadrava como um facínora. Permanecer naquele mundo estranho era permanecer longe do pau de arara e da cadeira do dragão.

Por isso não tomei nenhuma atitude, apenas deixei que o cavalo, preguiçosamente, seguisse o caminho do menor esforço, o caminho através do qual eu continuaria margeando o rio e me dirigindo à noite que nascia com a lua entre duas montanhas redondas como seios.

Não demorou que começassem a surgir outras encruzilhadas. Estas, porém, eu não conhecia. Cada uma delas poderia ter me levado de volta, ou ainda para mais longe. Mas nelas eu não tive de deixar que apenas o meu livre arbítrio me guiasse.

Logo na primeira delas havia um lenço dependurado em um galho de goiabeira. Poderia ter sido uma indicação, ou poderia ter sido apenas um pedaço de roupa rasgado quando um cavaleiro passara em disparada. Aquele alvo pedaço de pano já estava tão úmido pelo tempo que não guardava traço algum do perfume ou da catinga de quem o usara um dia.

Na encruzilhada seguinte havia uma pedra grande. De cada lado havia uma fratura que se assemelhava a um assento. Mas somente em um dos lados havia algo diferente: um livro, também mostrando sinais de ter sofrido com a chuva. Apeei e fui buscá-lo, pensando nas informações que ele poderia ter, mas era somente um daqueles livros baratos com histórias para moças.

A noite começava a se desdobrar, como um vestido escuro cobrindo a linda nudez da paisagem. O livro tinha a capa arrancada, indício de que fora talvez comprado a quilo em um encalhe de banca de jornal. Mas ao folheá-lho percebi que a sua presença ali poderia não ser casual: havia frases sublinhadas, palavras isoladas marcadas a tinta. Concatenando os trechos soltos parecia haver uma mensagem, mas ela fazia pouco sentido:

Vivendo em uma linda casa … morrendo por … isso a … enganara … pensava talvez em fugir … enfeitiçar … quem vier …

Segui pelo caminho sugerido por aquele livro. Notei sem espanto que ali a noite caía silenciosa, nenhuma viva alma passava, nenhum pássaro piava. Uma negra solidão foi me envolvendo ao mesmo tempo em que eu sentia uma necessidade absurda de fazer amor outra vez, com a misteriosa morta.

Na virada do morro seguinte se descortinava um vale desolado, um amontoado de construções de pedra muito mal acabadas com um ar mais de fortaleza que de residência. Uma alta torre encimada por uma cruz inscrita dentro de um círculo predominava sobre as demais construções, mais baixas, indicando que aquele lugar, em algum momento perdido de um passado, fora consagrado. Ao lado da enorme e negra igreja de pedra nua, coberta de trepadeiras, um mar de cruzes quebradas e lápides gastas indicava que aquelas colinas cobertas de touças altas de capim haviam sido, num passado distante, uma aldeia populosa.

Mas quando me aproximei eu vi que todas as covas haviam sido escavadas, sabe Deus quando, e que os antigos residentes delas tinham sido levados, somente Ele sabe para onde. O cavalo trotava com familiaridade por aquele terreno, como se tivesse sido apascentado ali desde que fora um potrilho. Depois de passar pelo cemitério o caminho passava a ser calçado de lajotas irregulares de pedra calcária, muito gastas pela chuva de séculos e por cascos e pés de todas as espécies. Detrás da igreja aparecia uma construção que destoava do resto: baixa, clara, geométrica e aparentando modernidade. Estava silenciosa como tudo, e escura também. Outra construção, um imenso paralelepípedo negro com janelas, repousava na parte mais baixa, já perto de um regato que quase não murmurava. Uma luz acesa ali indicava que alguém vivia, ou vegetava, naquele lugar.

Mal podendo imaginar o que me aguardava, em vez disso agradecendo a sorte de um pouso — e talvez até de um lugar onde ficar pelo tempo que fosse preciso — eu me dirigi à porta daquela medonha habitação. A sua porta alta indicava uma construção totalmente fora dos padrões de hoje, com um pé-direito de três metros ou mais. A pesada madeira nem se moveu quando a toquei, nem pareceu sentir quando a pesada aldrava de ferro soou.

Um homem veio atender, macérrimo e pálido. Tinha a fisionomia desolada e os lábios finos. As suas unhas estavam crescidas e as suas costas eram curvadas. Ele poderia ter oitenta anos ou mais.

— O que deseja?

— Encontrei o cavalo por aí venho saber se não pertence a esta propriedade.

— Não criamos cavalos — ele respondeu secamente.

— E nem ao menos pode me dizer de onde é o animal?

O homem deu dois passos para fora e olhou o triste cavalo em que eu viera. Ao vê-lo a besta curvou a cabeça e soltou um relincho de reconhecimento. O homem resmungou alguma coisa que eu não entendi, acariciou o cavalo com uma doçura surpreendente e tirou do bolso algo que lhe deu. Mas quando se voltou tinha os olhos cheios de lágrimas.

— Então o cavalo é daqui?! — eu devolvi secamente.

Ele permaneceu ainda em silêncio por um tempo. Por fim acenou com a cabeça.

— Reconheço a criatura, mas ela não pertence a nenhum proprietário das redondezas.

— Não compreendo.

— O que lhe importa, com mil demônios?! Pode deixá-lo comigo. Quanto à recompensa, receberá do diabo.

— Sua falta de educação finalmente me irritou. Com que então eu tenho a boa vontade de trazer um animal perdido e o senhor me manda buscar recompensa com o demo! Vá à merda e que ele o leve!

A intensidade da minha rudeza surpreendeu-me. Nunca antes me imaginara sendo tão agressivo com alguém, especialmente com alguém que parecia estar visivelmente assustado e agindo contra sua vontade. Mas era bom exercer minha prepotência depois de tantos dias humilhado na estrada, mesmo que ela me atirasse de volta ao desamparo.

— Você não sabe o que diz!

Ele respondeu com um desprezo e uma expressão de desolação tão profunda no rosto que por um momento eu quase me arrependi. Mas logo recompus minha dureza. Nesse momento, uma voz familiar gritou de cima perguntando quem era e simplesmente ao ouvi-la eu retomei minha firmeza absoluta. Uma chuva fina e fria começara a cair, um vento cortante assobiava nas árvores e uma mulher apareceu à porta, com uma expressão gelada no rosto, como se jamais me houvesse conhecido. Ela era loura bela, como a jovem grisalha que eu vira na descida da montanha fatal.

— Jorge!?

— Ele trouxe o cavalo — disse num fio de voz o Jorge.

— Muito obrigada — disse a mulher, estendendo-me a mão com um sorriso — serás recompensado. Jorge, não vamos deixar que este homem siga viagem sob esta chuva cruel e este frio que vem com a noite, faça-o entrar e lhe prepare um quarto de visitas.

— Realmente, senhora, não é de bom-tom deixar que ele atravesse esta noite inclemente a pé…

E me fez entrar.

A aparência interna do lugar não era melhor que seu exterior desolado. Os móveis eram todos muito grandes e de desenho bruto, o chão era de lajotas enceradas e as paredes caiadas não ostentavam nenhum ornamento. Prepararam-me uma mesa na cozinha e comi alimento recém-preparado pela primeira vez em muitas semanas. Jorge e sua mulher, uma criatura gorda e sorridente, eram os únicos empregados daquela imensa casa.

Depois de terminar, me conduziram escada acima até um pequenino quarto de hóspedes localizado logo à direita, antes de um imenso portão de ferro trancado com um cadeado maior que a minha cabeça. Além do portão um longo corredor com várias portas. Seguramente aquele edifício fora um convento e aquelas eram as celas em que dormiam solitariamente os frades ou as freiras do lugar.

Depois que me fez entrar em meu quarto, pude ouvi-lo girar a chave na fechadura e tive medo pela primeira vez em muito tempo. Segurei a maçaneta, mas já era tarde: Estava trancado! O quarto, uma das celas do antigo monastério, era grande o bastante para caber um guarda-roupa, uma cama e uma mesa de cabeceira. Para mais nada, porém. Havia uma única janela vazando as paredes muito grossas que davam para o exterior. Apesar de estreita, era larga o bastante para que eu pudesse debruçar-me nela e contemplar a noite de lua crescente sobre os campos.

Um ar pesado soprava do norte, como se alguma coisa horrível estivesse vindo. A janela, localizada do lado que dava para o riacho, se abria sobre uma escuridão difícil de avaliar. A luz da lua não chegava até ali porque as montanhas e as construções mais altas se interpunham obliquamente no caminho do luar.

Apesar disso, dispus-me a dormir. Mesmo porque não havia remédio. Despi-me parcialmente e me estendi na pequena cama de colchão duro. Quando estava semi-adormecido, apesar do nervosismo, ouvi uma janela batendo, senti o frio da madrugada beijando meu rosto e levantei-me para ver o que era. Minha janela estava aberta. Enquanto imaginava como pudera ela abrir-se, senti uma presença familiar atrás de mim e me voltei.

— Que bom que vieste…

Era a mulher loura que me recebera à porta. Olhei-a de alto a baixo, apreciando cada detalhe de seu corpo entrevisto através da camisola diáfana que usava. Ela sorriu-me e desprendeu-a de seus ombros, fazendo-a cair e deixar diante de mim uma nudez fulgurante. Então abriu os braços e me chamou ao seu seio e fizemos amor com uma intensidade maior que a da vida.

Em dado momento, ouvimos um ruído ecoar pelos campos, um ruído de tiro. Os olhos dela se iluminaram.

— Ei-lo que chega!

A cancela da entrada rangeu e minhas pernas amoleceram. Suei frio e ergui-me num sobressalto. Um ríspido diálogo se travou embaixo na cozinha:

— De quem o cavalo? — pergunta uma voz estrondosa.

— Não sabemos, um cavalheiro chegou nele, dizendo tê-lo encontrado pelos campos. Veio perguntar pelo dono porque quer a sua recompensa. — Respondeu servilmente Jorge.

— E por que pousou aqui em minha casa este estranho?

— Choveu depois que ele chegou e ficamos constrangidos de ordenar-lhe que seguisse viagem sob tão cruel tempo.

Uma torrente de palavrões ribombou pelo salão, simultânea a dois tiros. Catarina, que até então estivera radiante, rompeu em pranto convulso, levantou-se da cama e atirou-se pela janela antes que eu a pudesse impedir! Pesa segunda vez ela me escapava! Assustado, vesti-me rapidamente e, instintivamente, abri o armário. Lá encontrei, por obra de Deus ou de Satanás, não sei, um rifle carregado!

Enquanto o engatilhava ouvi os passos pesados do recém-chegado logo além da porta e o chocalhar de chaves. Apaguei a única vela que havia no quarto e cerrei a cortina. A escuridão mais completa se fez. Apontei a arma para a porta e aguardei que ela se abrisse para atirar duas vezes no peito do desconhecido, antes que ele tivesse tempo de me ver.

O homem arregalou os olhos, deixou cair a pesada carabina que carregava e tombou pesadamente para trás. Fui até seu cadáver e, reacendendo a mesma vela do castiçal ao lado da cama, pus-me a mirar-lhe. Era uma criatura formidável aquele homem: teria mais de dois metros de altura e uma musculatura firme e poderosa. Seu rosto estava tomado por uma cicatriz que lhe dava um ar cruel e os seus dentes eram bastante ruins. Vestia uma espécie de hábito de tecido rústico, bem pouco suficiente para abrigar-lhe do frio que fazia naquela noite. Toquei-lhe a fronte para certificar-me de seu falecimento e, comprovado este fato, desci as escadas.

No salão estava o pobre Jorge com a cabeça aberta pelo rombo do único tiro que levara. A arma usada para isso teria matado um elefante. A sua pobre mulher fora atingida no meio das costas, mas ainda respirava. Aproximei-me dela e dei-lhe a mão. Ela olhou-me nos olhos, lacrimejando de medo na presença do frio do Juízo próximo e disse:

— Maldito seja ele, maldito!

Eu não tinha nada que fazer por aquela pobre criatura. Apenas acariciei o seu rosto com ternura. Ao sentir a sinceridade de meu toque ela me disse:

— Cuida de Inês.

Imaginei imediatamente que este seria o verdadeiro nome da loura e, não desejando aumentar a tristeza da agonizante, informei que Inês estava bem e que eu cuidaria dela. A mulher cuspia sangue pela boca, indicando que seus pulmões haviam sido atingidos. Num último esforço, olhou-me e disse “pobre coitado de ti!”, vindo a morrer em seguida.

Saí em busca de Inês logo em seguida — e não a encontrei. Não havia nenhum corpo abaixo das janelas daquela construção sinistra, nenhum sinal que indicasse qualquer coisa semelhante à remoção de um cadáver. Para mais estranheza ainda, a provável janela de meu quarto era sobre uma horta, cujas alfaces intactas eram ainda mais intrigantes que o formato barroco daquela lua que parecia uma gargalhada no céu.

Pela manhã, sepultei Jorge e sua esposa em duas das covas vazias do cemitério. As armas, eu achei prudente enterrar no solo fofo do fundo da horta, a fim de que aquela noite ficasse esquecida. E tendo feito isso, enquanto tomava da salobra água do único poço que servia à casa, me perguntei o que deveria fazer em seguida. O sol me respondeu que era preciso descansar. Mas descansar não me parecia nada sábio, diante das circunstâncias.


publicado por José Geraldo, às 00:38link do post | comentar

Estava concluindo o terceiro volume da tetralogia épica sobre uma sociedade secreta maçônico-judaica-ocultista que se refugiara no Brasil durante a colonização portuguesa. Conceber e detalhar os rituais mesclando o Antigo Rito Escocês com outras influências cabalísticas lhe custara meses de pesquisa e o amor de Rafaela, que não suportara mais as longas horas de ausência perambulando por sebos e bibliotecas, não aceitara perder outro dos três quartos do apê para mais prateleiras de livros. Estava ali imerso em seu mundo particular e em contas a pagar já quase impagáveis. Sentiu então o característico cheiro sulfúreo de que as lendas falam. Era ele de novo.

— Boa tarde, amigo.

— Muito boa tarde, Memê. O que anda fazendo?

Sua surpreendente familiaridade com o escamoso, a ponto de lhe ter dado um apelido desses, já não o surpreendia.

— Andando por aqui e por aí…

— Andaste sumido nos últimos meses.

— Ora, aquela nega que você arrumou era muito supersticiosa e encheu a casa de velas, de incensos, de arrudas e de bentinhos para manter-me longe.

— Rafaela? Curioso, nunca notei nada demais de estranho.

— Ora, foram muitas as coisas dela que você não notou, não foi, Totó?

O desviado também tinha lhe dado um apelido de colegial.

— Por favor, este não é um momento legal para conversarmos sobre isso.

— Lhe doem ainda os chifres?

— Não tanto quando uma próclise no começo da frase. Mas… peraí, chifres quem tem é você.

— Me faça o favor, Totó… é coisa feia caçoar do defeito físico de alguém.

— Tudo bem, desculpe-me… Mas… chifres?

— Lhe surpreende que eu diga isso?

— Ah, não sei. Mas poderia, por favor, parar de colocar esses malditos pronomes nos começos das frases! Isso me irrita.

— Ora, mas irritar aos outros é algo realmente diabólico de se fazer…

— Pára, Memê. Seu papo já andou melhor. O que quer hoje?

— Olha, voltei para lhe fazer de novo a velha oferta.

— Não, Memê, não vou lhe apresentar a prima Teresa. Tenho medo da cria que pode nascer disso.

— Não é nada disso, seu tarado!

— Tarado!?

— Aqueles comentários foram irônicos! Eu teria que ser muito pervertido para pensar em ter alguma coisa com aquela mulher. Aliás, eu sou muito pervertido, me dá o telefone dela?

A gargalhada dele era obscena.

— Memê, eu vou lá buscar as velas da Rafaela para lhe mandar pros quintos.

— Tá bom, eu prometo que não falo mais nisso. Aliás, meu assunto é outro.

— Sim.

— Vim lhe repetir a oferta.

— Oferta… oferta…

— Oh, sim, faz tanto tempo. Como da última vez: eu lhe dou o sucesso em troca de sua alma e etcétera.

Os olhos de Fausto percorreram a pilha de notificações extrajudiciais sobre a escrivaninha e ele se sentiu balançado a aceitar.

— Não sei se vale a pena vender-lhe minha alma em troca de alguns anos de prazeres e de riqueza.

— Certamente que não vale. Mas existem compensações. Uma delas é que, ao contrário do que dizem, eu não me empenho em torturar ninguém.

— Eu sei, eu sei. Já me disseram que o problema do inferno não é o clima, mas as companhias…

— De toda forma, eu resolvi lhe facilitar. Deixo-lhe meu cartão: se decidir aceitar os termos do contrato — ele tirou do bolso um documento de trinta e seis páginas, em três vias — é só me chamar.

— Você tem telefone celular?

— E por que não teria? Existe coisa mais infernal do que o celular?

Fausto riu gostosamente e aceitou das mãos de Mefistófeles a minuta do contrato. O diabo lhe alertou para que lesse atentamente, rubricasse cada folha, reconhecesse firma em cartório (uma coisa infernal, claro) e então ligasse.

Assim acertados, Memê foi embora deixando, como sempre, uma garrafa de bebida de alta qualidade. Daquela vez foi slivovitz artesanal búlgaro, feito com ameixas espremidas pelas mãos de lindas camponesas louras dos Cárpatos.

Tinha muito tempo que Fausto não provava uma bebida boa. Somente na base da água e da cerveja barata. Não tinha sangue de barata. Abriu a garrafa e sentiu o aroma suave, que evocava os calmos regatos dos Bálcãs. Pensou nas mãos calejadas das lindas camponesas búlgaras e isso o excitou. Gostava de mulheres trabalhadoras. Quanto criança, na época de uma distante guerra fria, muitas vezes se masturbara diante da capa de uma revista soviética que recebera de brinde da embaixada: Rabotnítsa, “mulher operária”. Na capa ia uma moça de rosto arredondado, olhos ligeiramente amendoados, cabelos que pareciam fios de teias de aranha, tão finos e brancos. Ela tinha um sorriso lindo e uma roupa colorida, padrão folclórico de algum lugar do Cáucaso. A revista estava em russo e Fausto nunca conseguira saber nada a respeito da moça, cuja biografia estava em destaque no interior, entre fotos pálidas em preto e branco, que a mostrava entre seus pais num lugarejo rústico. Pensava nas mãos calejadas da camponesa soviética e … oh, como o mundo é imenso e cheio de delicadas pequenas maravilhas para aqueles que têm dinheiro e tempo para percorrê-lo!

Tomava o slivovitz devagar. Sorvia cada gota como se fosse o próprio hidromel do paraíso. O roxo pálido daquele líquido tingia os seus olhos de tristeza por ser tão pobre, e de repente a trilogia pareceu sem sentido.

Revirou nos dedos o cartão de Mefistófeles. Por fim, não conseguir mais suportar a vontade de sentir acariciando o seu sexo as mãozinhas pequenas e calejadas das louras camponesas dos Bálcãs, ou do Cáucaso ou da Puta que o Pariu. Digitou apressadamente o número: 3613-0666.

Oi informa: você não tem créditos suficientes para fazer esta ligação.

Xingou todas as gerações de locutoras que emprestaram suas vozes melífluas para as companhias telefônicas e discou de novo, a cobrar. Era uma vergonha fazer isso, mas Mefistófeles já era seu chegado, não se importaria.

— Boa tarde, aqui é Fausto.

— Booooa tarde, Fausto. Então, leu o contrato inteiro?

— Sim — mentiu.

— Estás de acordo?

— Sim.

— Já registrou?

— Não precisa, eu assino com sangue como você gosta. De qualquer forma, não tenho dinheiro para reconhecer firma desta joça.

Mefistófeles apareceu de novo diante dele. Com uma seringa hipodérmica extraiu 10 ml de sangue e injetou na sua caneta Montnoir Plus dizendo, divertidamente:

— Você devia fazer isso é com a sua impressora: fica mais barato do que comprar cartuchos de tinta. Aliás, se você puser ouro líquido ali ainda fica mais barato.

Passou-lhe a caneta e Fausto rubricou o documento, em todas as vias. Quando terminou Mefistófeles lhe cumprimentou:

— Muito bem, bem-vindo à companhia. Será um prazer tê-lo conosco no time. Espero que tudo fique conforme o seu agrado. Agora, por favor, me desculpe, mas tenho de me retirar, nesse exato momento tenho um ocultista carioca que já foi letrista de rock me evocando e eu sinto que ali vai ser algo grande.

E Fausto ficou sozinho em casa, com suas contas, e sem perceber nada de mudado em sua vida.

Semanas depois, no entanto, começou a receber ofertas de inúmeros editores. Ofertas com valores bem razoáveis. Desovou todos os livros que já havia escrito, cada poema. Os contratos lhe renderam uma grana preta. Investiu em ações e em menos de dois anos, graças a um faro sobrenatural para o risco, havia se tornado um dos maiores milionários do mundo. Tinha um castelo na Bulgária, onde era servido por sete jovens de mãozinhas pequenas e sorrisos alvos. Os aldeões faziam o sinal da cruz ao vê-lo passar.

Até que um dia notou que as suas gavetas estavam vazias. E os editores ainda queriam mais. Sentou-se então para tentar terminar a trilogia e descobriu, espantado, que não tinha nenhuma ideia.

Vinte dias depois, ainda sem conseguir escrever nenhum bilhete, telefonou para Memê.

— O que houve, não consigo escrever nada! Até a lista de compras tenho que ditar para a Natasha! E olha que eu até aprendi a falar búlgaro!

— Mas, Fausto, você não me disse que tinha lido o contrato?

— Bem, eu menti!

— Então abra a gaveta e leia a sua via, por favor.

E desligou.

Fausto pegou a sua via do contrato e foi prescrutando as infindáveis causas até que, espantado, parou:

CLÁUSULA VIGÉSIMA QUARTA – Em compensação pela facilidade para enriquecer que lhe será proporcionada, o contratado entrega ao contratante a sua originalidade artística.
PARAGRAFO ÚNICO – Caso o contato final seja feito por meio deuma chamada a cobrar originada de  telefone móvel,  ademais daoriginalidade o contratado também entregará o seu talento.

Como requinte de crueldade, no verso da folha anterior, Mefistófeles havia rabiscado em sua caligrafia barroca e aljamiada: “mas pelo menos você vai ficar rico antes.”


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Muito bom o seu texto mostra direção e orientaçaoh...
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Eu tenho acompanhado esses casos, não só contra vo...
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