Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
27
Fev 11
publicado por José Geraldo, às 13:46link do post | comentar

Uma história à moda de Malba Tahan…

O comerciante Ali ben-Amin al-Assad el-Hajj tinha uma vida regalada em Basra. Herdeiro de longa tradição de mercadores do Golfo Pérsico, de família aparentada à de uma das viúvas de Maomé, desfrutava de fortuna e de prestígio. Mas nunca cuidou de educar seus filhos nos preceitos do Islã ou nas artes humanas. De sorte que seu único filho homem, Ahmed, ao herdar do pai o amplo bazar defronte o porto, foi alvo de um duro comentário do mulá Omar Ibrahim al-Qassam: “é um depravado, filho de um apóstata e uma infiel, que recebeu dinheiro, mas não sabedoria e será uma desgraça para muitos até que o Juízo de Alá recaia sobre ele.”

Ao ouvir esta admoestação rigorosa, Ahmed deu de ombros e a ignorou. Era uma época decadente aquela, em que filósofos eram mais ouvidos do que profetas e a submissão aos desígnios de Alá era apenas uma preocupação secundária. Ele não sofreu recriminações públicas, não precisou ocultar seu rosto em vergonha e nem fugir da cidade à noite para escapar de um apedrejamento. Tampouco preocupou-se com os pobres, em vez disso até reduziu sua esmola semanal, dizendo:

— Por que devo dar meu dinheiro a gente que se reúne na mesquita cada sexta-feira para ouvir aquele barbudo fedorento falar mal de mim e de minha família? Eles que peçam ao mulá Omar que lhes dê de comer e vestir, e não a mim, já que me odeiam tanto.

E desta forma Ahmed continuou tendo suas ceias fartas de tâmaras do Iêmen, figos de Chipre, queijos da Sardenha e até mesmo proibidos licores trazidos das terras dos povos do Livro.

Aos poucos trabalhar para ele deixou de ser algo respeitável. Mesmo diante da dificuldade de conseguir outros empregos, pessoas que prezavam a salvação de suas almas do mármore do inferno passaram a buscar outra coisa que fazer. Os bazares da família começaram a ser servidos por homens de moral duvidosa, seus navios, a ser tripulados por gente de aparência estrangeira e passado nebuloso, de quem se dizia, à boca pequena, terem sido famosos e cruéis piratas dos mares do Oriente. Não tardou que os lucros declinassem, que navios deixassem de voltar, que mercadorias faltassem. Ao completar seus trinta anos de idade Ahmed ben-Ali al-Assad já não era um homem rico, mas um herdeiro falido que lutava para não ter de desfazer-se de seus palácios de prazeres para pagar os numerosos credores.

Um dia, no auge de seu desespero, uma de suas esposas, que ele fizera vir das distantes estepes da Ásia Central, disse-lhe:

— Meu senhor, por que não trazes sedas do Oriente através da rota que passa pelo Kush? Os mares da China estão infestados de piratas, mas as rotas terrestres estão seguras nas mãos de emires muçulmanos até Samarcanda, minha terra, onde encontrarás as mais finas sedas da China e de Cipango.

Ahmed nunca dera ouvidos às suas esposas, especialmente não os dera àquela estrangeira de olhos amendoados que tão rapidamente perdera sua beleza exótica e se tornara uma matrona precoce de formas gordas, rosto pálido e feições exíguas que pareciam rasgadas a faca. Mas era inegável que aquela mulher de nome impronunciável lhe dera uma boa ideia.

— E onde fica esse lugar, essa tal Samarcanda de que só agora ouço falar?

— Fica na antiga terra dos Tocários, entre a China e a fria estepe da Sibéria, entre o gélido Góbi e as montanhas do Teto do Mundo. Segue a velha Rota da Seda que chegarás a Samarcanda e terás diante de ti as melhores mercadorias de três impérios.

A necessidade é uma péssima conselheira, mas Ahmed nunca chegou a saber disso. Depois de confabular com alguns de seus amigos mais confiáveis, nenhum dos quais digno da confiança de mais ninguém em Basra, decidiu investir suas últimas economias na viagem sugerida por sua mulher. Como se tratava, realmente, de uma ideia fascinante, conseguiu reunir sócios suficientes para montar uma caravana e no ano da Héjira de 322, uma semana após o final dos jejuns do Ramadã, partiu com eles em sua longa busca.

Nenhum dos caravaneiros jamais estivera em Samarcanda. Eram todos loucos como Ahmed, ambiciosos da riqueza fácil que fariam ao trazer para Basra lotes e lotes de pura seda. Eram todos gananciosos e imprudentes jovens, alguns viajando com o consentimento de seus pais, na esperança de aprenderem coisas úteis no mundo. Alguns poucos eram de fato pessoas cujas famílias obviamente desejavam manter afastadas por alguns anos ou, com um pouco de sorte, definitivamente.

Esperavam, no entanto, conseguir ao longo do caminho guias que os levassem através dos desertos chamejantes da Pérsia, das montanhas traiçoeiras do Kush, dos altiplanos frios e desolados do Pamir e até mais além. De fato encontraram muitos que se diziam antigos guias da Rota da Seda, gente que dizia ter antepassados báctrios ou sogdianos, gente que jurava ter visto não apenas Samarcanda, mas também Timbuctu e al-Andalus. Gente que, mediante uma ração de comida e algumas moedas, se dispunha a acompanhar a caravana até o Pamir ou até o Tártaro, desde que não permanecessem vagabundos e famintos em sua cidade.

E assim, guiada por incertas opiniões, seguia a caravana, ocasionalmente em círculos, através dos complicados caminhos do Oriente. Todas as noites os viajantes se reuniam em torno da fogueira para aquecer-se do intenso frio dos desertos, enregelados e tristes por estarem tão longe de casa e sem noção de chegar a algum destino.

A conversa nessas ocasiões girava, invariavelmente, em torno do que fazer quando chegassem. Era preciso economizar todo o dinheiro, para que pudessem adquirir bastante seda quando chegassem a Samarcanda. Era preciso manter a esperança, porque apesar das dificuldades do caminho, em breve lá chegariam e banhar-se-iam em suas piscinas de água limpa, teriam suas costas massageadas por jovens de olhos amendoados e quando voltassem, carregados de seda e de especiarias, seriam celebrados nos bazares como homens bem-sucedidos.

Sempre havia alguém que expressava desagrado pela demora, que ameaçava desistir. “Não podes desistir” — diziam. “Se nos deixas morrerás de frio ou fome, ou nas mãos de algum ladrão que ronda estas estradas. Quem sabe que feras não haverá por estes caminhos?” Quando chegavam a algum lugar habitado, a tentação crescia a ponto de ser necessário organizar-se rondas para impedir deserções. Tal precaução começou a se tornar muito necessária desde que um maldito circassiano entrou em delírio dizendo que os guias eram incompetentes, que estavam todos perdidos. “Samarcanda não existe, é só uma lenda que lhes contaram para fazê-los sair do conforto de suas casas!” Infelizes como ele não podiam ser tolerados em um grupo coeso, têm de ser mesmo sacrificados. Tal foi o destino do circassiano, e suas vestes e suas provisões e seu dinheiro, tudo foi distribuído entre os demais. Deixar o seu cadáver nu para que os leões o devorassem foi visto como exagero por alguns, mas naquela ocasião a medida extrema foi aceita como um ato de defesa contra a insídia de um inimigo.

E assim, ao longo das estradas esquecidas, seguia a caravana. Apesar da contínua insistência de todos em afirmar os objetivos da viagem, os guias não puderam evitar certas confusões. Esta situação foi a mais difícil de todas que enfrentaram durante a viagem, pois não apenas divergiam sobre que caminho seguir até Samarcanda, como não sabiam tampouco o que dizer sobre o que lá fazer. Por fim, Ahmed, que ainda desfrutava de uma posição de relativa liderança, tomou o que todos chamaram de “uma medida sensata”, anunciando em voz grave:

— Amigos, me parece que os guias já não estão mais tão seguros se querem levar-nos a Samarcanda ou se foram corrompidos pelo desejo de continuarem comendo a comida que compramos com nosso dinheiro. Parece que já nos disseram tudo que sabiam, do caminho e da cidade. E agora, ou não sabem mais nada ou não querem mais dizer nada. Por que precisamos, então, continuar pagando guias inúteis? Sigamos com o que já aprendemos e vamos aprender o resto no caminho.

Os mais exaltados, inclusive alguns que haviam sido punidos por duvidar dos guias, não perderam tempo em aderir à proposta ousada de Ahmed. Na manhã seguinte, quando a caravana partiu havia mais alguns cadáveres nus para os leões.

Em Fergana, cidade mítica a que chegaram depois de dois duros anos perdidos no Teto do Mundo, tiveram oportunidade de ouvir muitas histórias mais sobre as cidades do Oriente, e de contratar outros guias. No entanto, estes não foram tão bem-sucedidos quanto os primeiros, visto que suas informações não apenas contradiziam tudo que se sabia sobre Samarcanda como ainda desiludiam os viajantes: “Samarcanda está perto, mas não é tudo isso que dizeis. É uma cidade importante, mas já não mantém boas relações com a China e nunca houve lá sedas de Cipango.” Por fim, diziam que a cidade não estaria mais a leste, rumo à China e ao deserto de Gobi, mas sim mais o Oeste, além de Chach, quase nos próprios confins da Pérsia!

Por fim os caravaneiros decidiram partir de Fergana levando apenas o que já sabiam, sem guias, para cruzar a última parte da viagem, confiantes de que Samarcanda estaria a poucos dias de caminhada:

— Vê-se pelo ar e pelos rostos das pessoas — dizia o mercenário sírio — que já estamos na Terra da Seda.

Seguiram por vários meses ainda, sem chegar a nenhum lugar que se parecesse com Samarcanda. Aos poucos, o clima ficava mais frio, não apenas porque se aproximava o inverno, mas também porque se aproximava o temível deserto de Góbi, onde a morte punha incontáveis armadilhas e apenas os mongóis eram senhores relutantes.

Já não mantinham mais calendário, já não sabiam que mês ou estação era, lá onde o clima era tão diferente e parecia não haver um verão de fato. Sabiam apenas pelo ciclo do sol no céu que deviam ser passados sete anos desde a partida de Basra, e que àquela altura já deviam ser dados como mortos por seus parentes e credores.

— Se de fato Samarcanda existe — a contragosto murmurou o sírio — deve ser um lugar triste e frio, perdido nessa planície interminável.

No dia seguinte ficou mais um corpo nu na estrada, mas por lá não havia leões para devorá-lo: os nobres tigres não se rebaixam a devorar carcaças mortas, exigem a iguaria fina da carne quente, do sangue que jorra. E não se intimidam com pequenas fogueiras ou armas de fio estreito. Por uma sorte imensa não atacam em bandos, por uma felicidade extrema um homem é manjar suficiente para uma noite.

Somente a ajuda preciosa e cara dos caçadores uigures permitiu que os audazes viajantes cruzassem o trecho final, e mais cruel, de sua incrível viagem. E provavelmente foi por volta do Ramadã do ano 330 da Hégira que os nove sobreviventes, dos quarenta que haviam partido de Rages na Pérsia, entraram em um lugar que os taciturnos uigures lhes disseram chamar-se “Karamay”, que os viajantes entenderam ser o nome local para Samarcanda.

Era uma cidade, mas que não tinha nada da glória esperada de um grande entreposto de comércio na Rota da Seda. Estava localizada, de fato, à borda desta, mas a bacia da Dzungaria, nome dado pelos uigures ao lugar onde estavam, era desolada e pouco populosa. Raras caravanas passavam, levando poucos produtos. Parecia ser uma época de pouca atividade, de fato. Em Karamay isto significava decadência. A cidade parecia muito mais descuidada do que qualquer outra onde tivessem estado. Os habitantes viviam preguiçosamente à espera das estações, criando camelos e ovelhas, plantando milhete, rábanos ou sorgo vermelho.

— Esta não pode ser Samarcanda!

A afirmação, peremptória, causou a última grande briga dos caravaneiros. Ahmed tentou em vão segurá-los, mas na manhã seguinte, além de dois corpos nus numa viela, o amplo céu de Alá viu seis homens, em direções diferentes, enfrentarem os caminhos traiçoeiros do Tarim e do Taklamakan, para nunca mais se ouvir falar deles.

Em Karamay, tendo gastado suas últimas moedas, Ahmed ben-Ali al-Assad tornou-se um vagabundo, um esmoler. Sem a caridade do pobre povo, tornou-se um salteador. Sem a complacência dos governantes, evoluiu para um condenado. E graças a um lance de sorte, foi vendido como escravo a um comerciante de olhos estreitos que falava em língua persa.

Somente depois de deixar para trás as montanhas do Pamir foi que Ahmed ousou contar ao desconhecido quem realmente era. Seu proprietário, com um sorriso amável no rosto, respondeu-lhe:

— Eu já ouvi falar de Ahmed ben-Ali al-Assad, de Basra. Mas tu, tu não podes ser ele. Faz já nove anos que ele deixou sua terra, seus amigos e sua família, em busca de Samarcanda, onde queria comprar tecidos e ganhar glórias. Desde então tudo que se soube dele foi que andou com mercenários, piratas, ladrões e escroques de toda espécie, aterrorizando as estradas.

— Sabes que isto não é verdade, amo. As pessoas costumam culpar os estrangeiros por todo o mal que acontece em sua terra. Eu mesmo juro que nunca matei nem roubei ninguém.

Era uma mentira, obviamente, pois mesmo não sendo culpado de aterrorizar as estradas do Oriente, Ahmed matara e roubara. Não apenas aos habitantes da Transoxiana, da Bactriana e de Fergana, mas também aos próprios companheiros de sua malfadada viagem, guiada por estúpidos que nada sabiam.

— Na verdade — disse o homem que falava em persa — é bem apropriado que Ahmed ben-Ali al-Assad esteja morto, pois se fores tal homem e eu o anunciar em Basra, não escaparás de ser vergastado cruelmente por seus credores, pelos pais de suas esposas. Há circunstâncias na vida, estranho, em que melhor é ser escravo e estar vivo do que seres quem és, ou dizes ser, e pagar com a vida as dívidas desgraçadas que não pagaste com honra.

Há palavras que amargam na boca quando dizemos, outras que saem sem deixar gosto algum, outras que trazem a doçura venenosa do escárnio. Nem sempre o seu som, quando chegadas ao ouvido, traduz a mesma intenção que a língua emprestou-lhes. Estas, ditas pelo homem que falava persa, pareceram extremamente cruéis a Ahmed ben-Ali al-Assad que as ouviu naquela língua docemente fluida. Em outras épocas ele não teria se importado, pois não tivera nunca honra alguma. Os nove anos de vagar pelo mundo lhe haviam mudado, porém, e a perspectiva de que era impossível retornar ao antigo lar, pelos exatos motivos explicados, abateu demais o seu semblante.

Quando saiu para um canto do acampamento, para ouvir o rosnar dos tigres na noite, como gênios do mal conspirando nos desertos, ele já não era o mesmo. Mal sabia ele que há vezes na vida em que palavras duras são usadas como açoite porque o carrasco, por amor ou outro tipo de afeição, prefere vergastar a alma e absolver o corpo.

Quando amanheceu e o triste espetáculo se revelou, com os raios do sol iluminando através do pórtico do velho templo idólatra a sombra pendente ali, desesperou-se o homem que falava persa, a ponto de chorar diante da cena:

— Meu pai, por que fizeste tal loucura?


26
Fev 11
publicado por José Geraldo, às 20:50link do post | comentar
  1. Admita que se tornou um viciado tecnológico e que este vício o está destruindo.
  2. Acredite que é possível encontrar a salvação. Para inspirar-se, abra uma janela, exponha seus olhos à luz brilhante que há no mundo lá fora, bem devagar para que o sol não queime suas retinas acostumadas a trevas e luz artificial. Depois de alguns dias seus olhos terão aliviado os sintomas da síndrome de abstinência de radiação eletromagnética do monitor e poderão suportar a luz do sol melhor, ponha óculos escuros e dê uma volta no parque durante o dia. De preferência vá sem usar pesadas roupas pretas.
  3. Experimente atividades construtivas ou recreativas que não envolvam o computador: jogar paciência com um baralho, brinque com seus filhos (se os tiver) ou dê um passeio de bicicleta (sem levar tablet nem notebook), dar milho aos pombos, tomar cerveja num boteco.
  4. Procure dentro de si mesmo os pensamos que levam à conexão indefinida. Resista à tentação de blogar o que viu no passeio ou de filmar alguma cena curiosa para postar no YouTube. Permita que algumas coisas sejam registradas apenas em sua memória. 
  5. Procure resolver as suas deficiências sem recorrer a metáforas tecnológicas. Não existe um Google para achar o que você perdeu. Não há como exibir cartões com emoticons enquanto fala. Organize seus pertences e treine expressões faciais correspondentes aos sentimentos que deseja transmitir. Encontre autonomamente soluções para os problemas de seu dia-a-dia, sem pesquisar sobre isso na Internet.
  6. Fique aberto a novas experiências não tecnológicas. Não rejeite tecnologias apenas por serem «antiquadas» e não cultive a obsessão pelo «novo». Leia um livro de papel. De preferência um que tenha sido publicado há mais de vinte anos e NÃO seja sobre informática. Visite um ponto turístico em vez de fazer download de fotos dele. Tente chegar lá sem usar o Google Maps.
  7. Procure aquele amigo de infância com quem você não fala há anos porque, embora saiba onde ele mora, perdeu seu endereço eletrônico. Convide-o para tomar uma cerveja no boteco da esquina enquanto assistem a uma partida de futebol em vez de jogarem Winning Eleven. Arranje um relacionamento sem recorrer ao Facebook. Não blogue sobre isso e nem altere seu status no MSN.
  8. Cumprimente conhecidos na rua. Cumprimente alguns desconhecidos na rua. Compre em uma loja que não tenha website. Ao fazê-lo, tente interagir com o/a vendedor/a. Torne-se conhecido dos vendedores das lojas e supermercados que frequenta regularmente.
  9. Procure dedicar-se a hobbies que não requeiram o uso permanente de computadores: escultura, pintura, ciclismo, pelada com os amigos, motocross etc.
  10. Livre-se de todos os perfis, logins, senhas, acessos etc. que não sejam estritamente necessários para seu trabalho ou que não lhe pareçam realmente divertidos ou úteis.
  11. Mantenha o telefone celular desligado enquanto for possível, mas procure manter contato com as pessoas que importam em sua vida, por meio de cartas, viagens, telefonemas etc.
  12. Determine horários nos quais ligará o computador (exceto para trabalho) e faça saber a todos que você respeita o que se propôs a fazer. Convide seus antigos amigos virtuais para encontros pessoais e lhes fale sobre as maravilhas do mundo real.

21
Fev 11
publicado por José Geraldo, às 13:09link do post | comentar

Estou chegando à conclusão de que a literatura tornou-se a principal inimiga da educação. Esses livros de são perigosos demais para serem manuseados por nossas crianças, eles portam a pestilência de um passado que não foi perfeito, de uma história que foi feia. E isso traumatiza as crianças, não podemos contar-lhes que o mundo é feio, elas precisam crescer sem esse confronto para não se transformarem em cidadãos como eu e você, que crescemos em contato com essa sujeira existencial. O acesso deve ser cuidadosamente controlado, sabe-se lá que estrago um Machado de Assis, um Monteiro Lobato ou um Euclides da Cunha pode causar num jovem impressionável!

Nenhum literato do passado ou do presente é um modelo desejável para nossa juventude. Oswald de Andrade era mulherengo e alcoólatra. Machado de Assis era um negro que não pegava em armas contra a polícia para combater o racismo e nem processava o governo pedindo cotas —- e ainda por cima cometeu o acinte de se casar com uma branca! Euclides da Cunha era um machista empedernido que morreu num episódio mal esclarecido. Monteiro Lobato era racista, manipulador e adepto de várias outras ideias ultrapassadas. Jorge Amado traiu o comunismo e foi escrever novelas para a Globo.

Deixar que esses homens depravados e suas obras decadentes continuem influenciando gerações de jovens é um crime. A literatura burguesa e seus valores representam a perpetuação do atraso de nosso país. Somente poderemos progredir educacionalmente se abolirmos estas leituras sórdidas e evitarmos o contato de nossos jovens com o preconceito e os valores antiquados por elas representados. Onde já se viu construir um romance inteiro em cima do tema da “honra” da mulher e de uma suposta traição. Aquele porco chauvinista do Bentinho não pode inspirar nenhum jovem de hoje a achar que tem direito exclusividade sobre sua mulher. Imagine o efeito catastrófico que “O Alienista” pode ter! Imagine uma geração inteira de jovens desconfiados da autoridade e da ciência! E “Os Sertões”, então? Com sua perigosa sugestão de que as forças do atraso (superstição, monarquismo) estavam “certas” em sua luta contra a República e os valores modernos. Como permitir que nossas crianças leiam as obras do cínico racista, o Monteiro Lobato? Como deixar que tão precocemente tenham contato com o preconceito de cor? O que se quer com isso? Será que nossas crianças precisam de saber certas coisas?

Acredito que está mais do que na hora de levarmos adiante o que começou Rui Barbosa. O ilustre jurisconsulto baiano mandou queimar os documentos sobre a escravidão que havia no Arquivo Nacional. Acho que está na hora de banir — e se possível queimar — os livros de nossa literatura que contenham qualquer traço indesejável, inclusive racismo. Somente assim poderemos assegurar que as futuras gerações, limpas das sujeiras do passado, poderão crescer puras e saudáveis. Uma nova raça brasileira para uma nova pátria, livre dos males passado e mirando em um futuro grandioso.

Claro que para o lugar desta literatura banida deverá ser criada uma outra, pois sem obras literárias não se mantém um sistema educacional. Mas estas novas obras não podem surgir deste acaso criminoso que, no passado, permitiu que homens desequilibrados e doentes com os preconceitos e superstições de sua época produzissem excrescências como “Caçadas de Pedrinho” ou “Gabriela, Cravo e Canela”. Estas novas obras precisam seguir padrões pedagógicos progressistas e realistas. Padrões que incluam a igualdade de gênero, a igualdade racial, toda uma série de igualdades em substituição ao caos de categorias e hierarquias que caracterizava os valores do passado.

Os autores que aceitarem produzir segundo estes cânones, evidentemente, serão sempre os preferidos para inclusão nos currículos. Os prêmios literários oficiais serão dirigidos a eles também. Como não estamos em uma ditadura, obras divergentes serão toleradas, mas apenas para adultos e de forma nenhuma terão curso no sistema educacional. Como o governo não tem condição de fiscalizar toda a produção literária nacional, seria ideal que os próprios autores interessados nas diretrizes literárias do MEC se organizassem para controlar entre si mesmos a adesão aos referidos princípios, recomendando as necessárias adequações, quando possíveis, antes que o livro tenha que passar pelo crivo do Ministério.

Assim agindo, conseguiremos remover definitivamente de nossa sociedade a influência funesta de obras literárias inçadas de preconceitos e valores retrógrados, abrindo caminho para a criação de uma nova safra de obras, orientada ao futuro e produzida de acordo com os valores de sociedade que almejamos.


publicado por José Geraldo, às 10:59link do post | comentar

Nada é tão difícil na vida quanto superar fases. Tomar decisões é algo muito fácil, enfrentar as consequências é algo mais complicadinho. No momento em que você decide tomar uma atitude você se sente um super herói, capaz de ir até o fim com todas as suas decisões e determinações. Infelizmente o super herói não é o Superman, mas o Ultraman. Explico: nossas decisões não são invulneráveis e imaculadas, motivo de admiração para todos que nos veem e conhecem. Em vez disso, elas são precárias e frágeis, tomá-las já implica em uma confissão que faz com que as pessoas nos olhem torto. O pobre Ultraman não conseguia lutar contra os monstros por mais do que alguns minutos e precisava ir embora. Na vida de hoje a impressão que eu tenho é que eu estou sempre indo embora, sempre suportando alguns minutos e depois voando para o meu planeta distante. Como é difícil persistir!

Hoje admito que tenho um problema: estou viciado em internet. Não, não sou hipócrita de dizer que esse é um vício terrível que me destruirá porque eu não sou desses alarmistas. O «vício» a que me refiro é algo como um hábito que se arraigou e do qual é difícil ficar livre. Não é difícil por causa de uma noia incontrolável, mas porque vivemos em um mundo que nos exige interagir eletronicamente.

Então eu vivo, como muita gente, o dilema de saber que o uso da internet está me modificando, mas ao mesmo tempo reconhecer que eu não tenho a opção de me abster dela definitivamente. Eu não gosto das mudanças que estão acontecendo, tanto quanto não gosto de envelhecer. Melancólico isso.

O que me resta é controlar o acesso daquilo que me faz mais mal. Desde sábado estou vivendo sem Orkut. Resta-me ainda um perfil fake para usar, vinculado a uma única comunidade, mas ele também será apagado até o final do mês. O meu perfil original não será apagado, mas isso apenas porque eu ainda posso querer um dia voltar e copiar algum texto meu que deixei naquele saite de relacionamentos. Essencialmente posso dizer que vivo sem Orkut, que estou vivendo sem Orkut.

E que bela vida é! Estou trabalhando de novo no romance que eu comecei a escrever faz quatro anos! Quem sabe até o termine antes de morrer senil! Hoje consegui fazer uma longa caminhada, cumprimentei mais de vinte conhecidos. Agora depois do almoço vou andar de novo, apesar do calor. Vou visitar algumas lojas, comprar uma bicicleta, marcar consulta no dentista. Coisas que só fazia pela internet ou por telefone eu vou fazer pessoalmente. Talvez consiga até visitar alguns amigos nestas férias. Estou devendo uma visita ao Nando Pinto, lá em Astolfo Dutra, faz quase dez anos. Eu tenho um amigo que mora a menos de um quilômetro de mim e eu não o visito faz um ano!

Mas apesar disso, resta a síndrome de abstinência, este monstro de olhos vermelhos e cabeça inchada que persegue os que tentam se livrar de suas pequenas escravidões. Estou aqui imaginando como desenvolver a trama do romance e não consigo ficar nem dez minutos sem pensar em verificar o que terão respondido nos tópicos que criei nas últimas comunidades de que participei. Mas estou resistindo.


20
Fev 11
publicado por José Geraldo, às 20:22link do post | comentar | ver comentários (1)

Hoje acordei mais cedo, às 8h00, graças ao fim do horário de verão. Tive tempo de dar uma caminhada pelo centro da cidade e comprar o jornal de domingo (como sempre, edição fechada às 12h00 de sábado, mas pelo menos tem os cadernos especiais com reportagens mais aprofundadas). Depois disso, toquei de carro pro sítio da família, em Itamarati de Minas.

Passei o dia conversando com meu pai sobre muitas coisas. Descobri, espantado, o quanto desaprendi a arte da conversa, o quanto estou apressado e afastado de contatos. Nem tive vontade de caminhar pelo sítio (embora, nesse caso, o sol forte e os 35° fossem um bom motivo). À noitinha retornei para casa.

Desde ontem às 17h00 eu não entro no Orkut. Deletei todas as comunidades que possuía, saí de todas de que participava, deletei dois fakes meus. Agora estou quase em paz. Vida que segue.

Nos próximos dias, aproveitando as férias, vou tentar finalmente terminar meu romance sobre a Mula Sem Cabeça, para tentar participar de um concurso literário que tá vindo por aí.

Sem Orkut, dá mais vontade ainda de postar no Blog. Hoje estou, talvez pela primeira vez, fazendo uma postagem estilo «querido diário». Mas a sensação de liberdade é muito grande.

Nenhuma outra rede social é tão viciante e tão estéril quanto o Orkut. Houve um tempo em que perdi muito tempo ali, mas agora, talvez beneficiado pelo refluxo do site, consegui de volta minha liberdade. Ali você encontra um número imenso de comunidades sem dono, de perfis abandonados. É uma verdadeira casa assombrada da Internet, uma casca vazia em comparação com o que já foi. Ficou fácil abandonar, mas a cada dia me convenço de que teria sido melhor se eu tivesse conseguido largar antes.


publicado por José Geraldo, às 00:01link do post | comentar

Adormeci na frente do computador, sem terminar a monografia. Com o prazo quase esgotado, passara mais de quatro horas digitando como louco a partir de notas desconexas que reunira nos meses de pesquisa, mas em vão. Tanto esforço que minha mente começou a sair de controle e acabei caindo de cara no teclado no meio da madrugada, apesar de todo o café.

Não sei quanto tempo fiquei apagado. Podem ter sido segundos ou horas, porque não estava prestando atenção ao relógio quando dormi. Sei que quando tomei um susto e joguei a cabeça para trás em um gesto brusco, eram 04:12 e fora disparado o maldito alarme de um automóvel que dormia na rua.

Levantei grogue de sono, com a cabeça pesando meia tonelada, e fui tomar um banho antes de ir dormir. O calor não estava mais insuportável, mas eu tinha suado demais. Tomei um banho rápido e frio, dos que gosto quando vou me deitar. Quando voltei do banheiro, pelado e me enxugando na toalha felpuda que cheirava a mofo e a álcool, tomei um susto, que espantou todo sono que ainda pudesse ter.

Tinha deixado o computador ligado. Saíra tão depressa para o banho que não o desligara. O documento da monografia estava aberto no editor de textos e o cursor piscava na tela de fósforo verde. Então notei que o ponto de luz não estava parado à espera do toque seguinte: movia-se rápido pela tela, deixando atrás um rastro de letras e números, mesclados a códigos de formatação LATEX.

Minha primeira reação teria sido — ou deveria ter sido — entrar desastradamente na frente do aparelho e ver que raio era aquilo, mas eu costumava ser um sujeito frio, não o tipo que se apavora e surta. Fiquei parado onde estava, ainda sob o batente da porta, olhando de soslaio para o monitor. Acredito que o computador não me “viu”, pois continuou cuspindo código como se os Digitadores do Inferno estivessem ali. Permaneci observando a cena, tentando decifrar mentalmente a sucessão de códigos que aparecia. Olhei a tomada, na esperança de ver o modem conectado à linha telefônica, mas não. Teria sido fácil admitir como explicação que alguém havia tomado o controle de meu computador doméstico e estava fodendo com a minha pobre monografia, mas não poderia haver acesso remoto se não havia conexão. Ou poderia?

O computador não chegou a notar minha presença. Quando finalmente parou, havia sido digitado \fi e uma sequencia de linhas em branco, como eu tinha por hábito fazer ao terminar os capítulos. Eu não teria notado mudança no código do documento se não tivesse tomado o banho rápido demais.

Sentei-me fingindo que estava tudo bem, dei Control-End e digitei algumas ideias aleatórias do capítulo seguinte. Depois salvei o arquivo no disco rígido, sempre fazendo a cópia de backup no disquete e desliguei aquela máquina do diabo.

Não consegui dormir. Tinha a curiosidade de saber que raio de conteúdo teria sido inserido em meu texto, sabe lá por quem ou que. Poderia ter compilado e impresso o documento, mas teria demorado muitos minutos se houvesse uma matriz XY. Também o computador poderia desconfiar. Preferi deixar para o dia seguinte e tentar pensar melhor.

Quando amanheceu, desisti de tentar dormir e levei o disquete comigo à universidade. Sentei-me diante de um terminal público na biblioteca e abri o arquivo para analisar, como legítimo “escovador de bits”, embora soubesse pouca programação. Logo achei indícios da patranha.

Ao final do terceiro capítulo, havia um \iffalse\iffalse\fi e pouco antes de onde começaria o capítulo seguinte, um \iffalse\fi\fi. Estas enganosas sequências de códigos realizavam algo diferente do que prometiam ao olhar distraído. Tanto o início quanto o fim do código oculto estavam, na verdade, ocultando os comandos de início e fim dos comandos de ocultação, se é que você consegue entender. Talvez esta história maluca só faça sentido para quem manja um pouco de LATEX. Mas digamos que tudo após \iffalse é ignorado, até chegar um \fi. Quem tiver algum talento lógico perceberá a malícia.

O bloco de código não era legível. Era uma sucessão de comandos descrevendo curvas, gráficos, matrizes. Talvez alguém realmente louco de usar LATEX conseguisse o milagre de visualizar a plotagem daquelas fórmulas, mas para mim era como contemplar uma sopa de letrinhas verdes no quadro negro do monitor. Queria logo compilar e descobrir no que dava.

Para isso teria, porém, que ter permissão da bibliotecária, porque os terminais tinham capacidade limitada e a fila de uso era grande. Ela não se opôs, diante da pequena quantidade de alunos que estava na faculdade naquele dia anterior a um feriado prolongado. Dirigi-me ao terminal, então, e ordenei:

latex mono.tex

Naquele tempo os computadores podiam levar horas a compilar documentos complexos, como parecia ser o meu. Por isso logo me cansei de ver a dança interminável das letras elétricas que brilhavam verdes como a fosforescência de uma aparição. Fossem quais fossem os erros, não teria mesmo chance de consertar porque não sabia o que continha o misterioso código. Ainda fiquei uns minutos refletindo sobre mensagens de overfull hbox, lamentando a quebra da margem direita, ou underfull vbox, lamentando os parágrafos separados demais; mas logo me levantei e fui até à cantina tomar um café.

Não contei os minutos na cantina. Ninguém faz isso, a não ser os que já estão loucos e eu não estava. Voltei com um copo cheio de café preto, para espantar o sono que ficara da noite sem dormir, e biscoitos salgados que controlariam a fome enquanto não pudesse ter uma alimentação saudável na lanchonete mais próxima.

Quando retornei ao saguão da biblioteca, notei uma movimentação estranha em frente ao computador que deixara compilando. Havia uns três ou quatro caras do último período de Sistemas que contemplavam a dança das letras parecendo fascinados.

— Caralho, o que é isso que esse louco fez? Vai fritar os circuitos do terminal antes de compilar! — dizia um deles, risonho e preocupado. Aproximei-me quieto, tentando captar a conversa, mas falavam pouco e olhavam muito.

— A Alana precisa ver isso — finalmente disse um, dirigindo-se à porta em frente, com rapidez de elfo. Pigarreei para anunciar minha presença e os outros olharam com respeito inesperado. Os caras de Sistemas não têm o hábito de olhar com essa expressão quem não é de sua própria estirpe.

— Isto aqui é seu? — perguntou um deles, um grandalhão de cabelos ressecados e de cor de cenoura.

— É sim, por que?

— Como pode alguém de Matemática ser besta de programar um loop num documento LATEX?

— Um loop? Merda!

— Eu não sei de nada, a gente estava passando, viu o computador compilando sozinho e resolvemos olhar o código, para tentar adivinhar o que é. Foi aí que notamos que o código está em loop. O que você estava querendo fazer?

Meus olhos percorreram o cabeamento da sala, notando para meu imenso espanto que aquele terminal, sim, estava conectado.

— Contaram quantos loops ele deu? — perguntei, já me sentando.

— Uns dez ou doze nesse meio tempo em que estamos aqui.

— Dez ou doze, hem? Que diabo será isso?

— Você não sabe?

Eu tinha vergonha de confessar, mas preferi ser honesto, afinal eu precisava de ajuda para não ter que, humilhantemente, apertar o botão de reset, como um novato. Eu jamais seria encarado com respeito, sequer pelas namoradas dos caras de Sistemas, aquelas garotas de peitos grandes que cursam “Estudos Sociais” e só passam de ano porque são líderes de torcida.

— Não sei. Achei um documento cheio de códigos os mais estranhos e resolvi compilar para ver o que era.

— Caralho, você é maluco? Sabe-se lá se não é um código malicioso!

— Bem, eu não sei se é nocivo, mas malicioso isso tenho certeza que é.

Eles me olharam, sem entender.

— Alguém entende de LATEX?

O outro cara, que tinha ficado quieto esse tempo todo olhando a dança das letras elétricas, acenou com a cabeça e fez o característico “ahã” dos que estão dizendo que sim.

— Devemos deixar compilar ou tentar interromper?

LATEX não vai fritar os circuitos, a menos que comece a ficar recursivo. É exatamente isso que eu estou tentando entender, se é um loop recursivo ou se é apenas circular. Se for recursivo, você vai ter que desligar no botão de reinício porque vai travar os sistemas de entrada e saída.

Ele tomava notas no seu bloco, em um tipo de taquigrafia pessoal que parecia árabe. Demorou quatro minutos ate ele finalmente decretar:

— Parece que não é recursivo. Deve haver uma condicional em algum lugar que está fazendo o TEX dar várias passagens no mesmo código. Mas essa condicional pode resultar verdadeira em algum momento, então o loop acaba e o arquivo imprimível é gerado.

Alana chegou. Era a única mulher do último ano de Sistemas, era obcecada com criptografia e lia todo tipo de teoria de conspiração. Não era bonita e nem simpática, mas os caras da turma queriam tê-la por perto, fosse como bicho de estimação ou fonte permanente de análise matemática apurada. Era um legítimo “crânio”, capaz de efetuar cálculos mentalmente com facilidade humilhante. Acima de tudo, tinha a capacidade algo sobrenatural de visualizar gráficos a partir de suas fórmulas. Mais que isso, contribuía sob pseudônimo para vários projetos de programação de várias faculdades, inclusive a nossa. Alana não assinava seu nome em documento algum.

No momento em que ainda estava sendo informada do acontecido, dois pares de peitos loiros surgiram à porta chamando os rapazes de forma que nem Alana e nem eu soubéssemos. Não sei se ela soube, mas tenho a visão periférica muito desenvolvida. Os dois caras se despediram e saíram dizendo que tinham que estudar para uma prova e foram levar as duas a alguma festinha. Alana e eu ficamos olhando a tela onde dançavam infernalmente as letras.

— Você já sabe o que é isso, Alana?

— Ainda não.

— Eu imaginei que…

— Não sou uma máquina, Tony — ela me interrompeu.

Tive vergonha do modo como a tratava. Naquele dia, em que justamente o seu lado maquinal estava sendo usado, ela me jogava na cara que era um ser humano. De certa forma, mesmo eu não a achando bonita, naquele dia eu me sentia ligeiramente atraído. Talvez fosse por notar que as suas orelhas tinham um formato curiosamente harmonioso, suas mãos minúsculas pareciam esculpidas. Era só não olhar para seus dentes que teimavam em querer sair dos lábios ou os óculos pesados, que ela parecia ter roubado de sua avó.

Subitamente as letras mudaram de feição. A dança infernal parou e o monitor começou a cuspir uma série de linhas com nomes de arquivo. Era o fecho da compilação. O loop fora interrompido ao encontrar valor positivo. O prompt de comando apareceu então, desafiando enigmaticamente nossa curiosidade. O cursor piscava como se estivesse rindo de mim. Alana foi rápida. Curvou-se sobre o teclado e recuou a sequência de comandos até identificar o arquivo que eu compilara. Então digitou:

more mono.tex

O terminal começou a listar o código, página a página, enquanto ela, ainda curvada, parecia ignorar que eu, olhando por dentro do decote folgado do vestido, contemplava seus dois belos seios, que pareciam as divinas mamas da Vênus de Milo e exalavam um perfume madeirado delicioso. Ela não se interessou nem minimamente pelo meu trabalho, mas quando chegou ao famigerado bloco de código, arregalou os olhos como se tivesse achado um pote de ouro e usou o braço esquerdo para se apoiar no encosto da cadeira, tocando com ele minha nuca, que arrepiou como se estivesse ligado a uma tomada elétrica. Comecei a suar, talvez de sono ou embriaguez do perfume diabólico e da visão daqueles seios miúdos, que pareciam duros como pedras e me imploravam para que os pegasse nas mãos e apertasse gentilmente como botões para abrir uma passagem secreta ao paraíso. Mas quando tentei dizer alguma coisa, acabei dizendo:

— Não prefere se sentar?

Ela ergueu-se, acusando alguma dor nas costas devido à posição, e arrastou uma cadeira. Sentou-se tão perto que todo seu lado esquerdo encostou no meu corpo. Um daqueles seios pontudos cutucava minha axila e minha mente rodopiava sem controle. Queria perder os sentidos rapidamente, antes que ficasse louco e tentasse algo inadequado. Mas não aconteceu nada, porque Alana era rápida com os dedos e com a mente: não demorou a terminar de listar o código. Levantou-se e andou em círculos batendo os saltos pesados dos tamancos nos tacos coloridos do chão da biblioteca enquanto gesticulava e balbuciava multiplicações.

— Acho melhor você não entregar a monografia — disse, por fim.

— Preciso entregar, ou não consigo créditos para passar em trigonometria.

— Tenho um mau pressentimento sobre isso. De onde disse mesmo que saiu esse documento?

Eu não tinha dito nada, mas ela me olhava com a expressão aguda, como se soubesse até as vezes que tinha me masturbado no semestre anterior. Alana intimidava, parecia saber de tudo. Mas não me importava, naquele momento, eu sabia que nenhuma outra mulher do universo teria graça para mim.

— Não sei, nesse exato momento só consigo me lembrar que dormi mal essa noite e preciso sair com você na sexta-feira.

Esta frase a desarmou. Talvez fosse a última coisa que imaginava de mim.

— Sair… comigo? Na sexta-feira?

— No sábado, se preferir.

— Mas por que isso logo agora?

— É a primeira vez que consigo conversar com você a sós.

— Eu… preciso pensar.

— Posso ligar?

Ela deu o número de seu telefone e saiu apressada da biblioteca, me deixando sozinho com minha obra. Então, aproveitando que o lugar estava vazio, comecei a imprimir o dvi, sem testemunhas.

A impressora matricial deu alguns arrotos e rosnados, antes de finalmente acertar a margem do papel. Então o cabeçote começou a dançar, rabiscando linhas interrompidas que formavam o desenho de letras e gráficos.

Uma página, duas, três, vinte, quarenta, noventa e cinco. Quando a impressão terminou, dobrei com cuidado toda aquela tripa de formulário contínuo e guardei com carinho na maleta e voltei ao meu apartamento no campus.

A primeira coisa que fiz, porém, foi ligar. Sentia-me idiota por estar apaixonado, mas nenhum idiota era tão feliz, e não importava nada mais se ela apenas dissesse que sairia comigo. E ela disse. Mas depois disso, enfatizou:

— Você não deve entregar a monografia.

— Tem alguma ideia do que é aquele código?

— Sim. Os comandos lá codificam instruções vetoriais em PostScript. Alguém inseriu no seu texto um código que “desenha” coisas em uma ou mais páginas.

— “Coisas”, que coisas?

— Não sei. Podem ser gráficos, desenhos, uma fonte, um texto até…

Assim que desliguei o telefone, tratei de cortar e encadernar as noventa e cinco páginas, com todo cuidado para que nenhuma rasgasse. Fixei-as num fichário e comecei a folhear, tentando ver onde haviam sido feitas mudanças. Ao fim do terceiro capítulo começava a coisa. Saltava uma página, no meio da qual haviam posto algo que parecia uma ofensa direta contra mim:

«Esta página foi intencionalmente deixada em branco.

«E as anteriores deveriam ter sido mantidas assim também.»

A página seguinte era outra capa, com meu nome, identificação da faculdade, o mesmo título, um subtítulo ligeiramente diferente e um reinício do documento, inclusive numeração, sumário, tudo. Se o tema ainda era «Método de plotagem trigonométrica de órbitas para satélites geoestacionários», o conteúdo quase não tinha a ver. Meu texto ainda estava em grande parte lá, mas entremeado de uma montanha de citações de autores de que nunca ouvira falar e fórmulas de cálculo avançado que eu nem sabia o que eram. Algumas me pareciam referenciar coisas avançadíssimas de física quântica. Várias citações eram em alemão (Schrödinger, Planck, Heidegger, Cantor, Kant), outras em francês (Lamaître, Galois). Autores clássicos eram citados ao lado de outros que talvez fossem novos e pouco conhecidos. Vários trechos não tinham citação, mas fórmulas acompanhadas de ousadas afirmações à banca, do tipo “como se pode provar pelo cálculo a seguir”.

Li todo o trabalho e fiquei embasbacado por não conseguir entender nem metade do que ali estava, muito embora meu estilo de redação estivesse em cada parágrafo. Do pouco que entendi, cheguei à conclusão de que propunha um método através do qual satélites poderiam ser içados a uma órbita, em vez de lançados até ela por um foguete. Os cálculos provariam que a energia necessária a tal sistema seria dezenas de vezes menor, reduzindo o custo do lançamento de satélites a uma fração do então possível, algo revolucionário demais. Eu tinha de entregar a monografia, apesar do alerta de Alana. E o fiz.

Na sexta-feira pela manhã fui buscá-la em seu apartamento. Estava vestida do modo sóbrio de sempre. Trazia apenas bagagem de mão e hesitou em entrar no meu carro. Seus seios pareciam invisíveis naquele vestido. A maioria dos caras da faculdade a chamavam «tábua de carne» por isso. Era difícil crer que uma mulher aparentemente tão reta tivesse seios tão curiosamente belos e harmônicos, e de um formato e consistência tão atraentes.

Almoçamos em um restaurante à beira mar, fomos ao cinema e tomamos cerveja no bar panorâmico do píer; terminando a tarde no meu apartamento, ouvindo Stones e conversando descontraidamente. Não ousei muito coisa. Eu sonhava Alana como se fosse para sempre, e algo que é para sempre não precisa de pressa. Apenas nos beijamos, e nesse beijo senti seus seios contra meu peito e tive a certeza do que queria.

— Alana, pode me achar louco por dizer isso, mas acho que a amo. Acredita em amor à primeira vista?

— Acredito, Tony. Mas amor à primeira vista tem que esperar o mesmo tempo que o amor à décima oitava vista — disse ela, algo cruel, apertando o botão da gola do vestido sem decote que usava.

— Ora, Alana. O que a gente sonha para sempre não precisa começar agora.

Ela riu e me beijou nos lábios, com um tremor na boca que só mais tarde soube ser amor também.

— Por favor, Tony. Leve-me para casa antes que implore para fazer amor com você. Isso não seria bom para nenhum de nós dois agora. Estou me sentindo totalmente frágil e insegura. Não se aproveite de mim.

Os dias seguintes foram de expectativa. Ninguém da Banca Examinadora me contactara ainda, mas eu tinha a estranha sensação de que quando lessem o meu trabalho o meu telefone fatalmente tocaria.

Saí com Alana na sexta-feira seguinte mais uma vez. Não havíamos tido encontro no fim de semana porque ela viajara para visitar os pais, numa distante fazenda nas chatas planícies do Norte. Da segunda vez o encontro se desenvolveu com muito mais fluidez, em parte graças ao traiçoeiro vinho licoroso que lhe servi. Porém, quando ela percebeu que sua cabeça não estava mais tão firme sobre o pescoço, mais uma vez me pediu que a levasse para casa e eu, mais uma vez, me vi moralmente forçado a isso.

Levei-a de volta ao seu apartamento no campus. Àquela hora quase não havia viva alma na universidade. Somente os pobres e que vinham de longe, como nós dois, passávamos os feriados lá. Quando saía, ela me chamou para dizer, depois de jogar um beijo:

— Não entregou aquela monografia, entregou?

Fiquei envergonhado:

— Alana, me perdoe, mas eu a entreguei naquele mesmo dia.

Ela levou as duas mãos à boca, com os olhos totalmente arregalados, e me pediu para entrar. Atirou-me a um sofá e começou a trancar obsessivamente janelas e portas. Depois se atirou sobre mim e quando finalmente percebi o que estava acontecendo já estávamos nus fazendo amor. Ao terminamos, ainda estendidos no tapete macio da sala, tive que perguntar:

— Por que isso, Alana? Não tínhamos que esperar, não havia aquela história de que o que é para sempre não precisa começar hoje.

— Querido, lamento, mas precisava disso. Se não fosse hoje, talvez não fosse nunca. O que vai terminar hoje precisa começar hoje.

Faróis altos brilharam no pátio e um ruído sibilante cortou o ar. Exceto por ele, porém, não havia nenhum outro som em todo o campus. Bateram à porta.

— Oh, querido, lamento muito, muito.

Bateram de novo à porta.

Alana se enrolava no tapete para cobrir sua esguia nudez, enquanto eu tentava me vestir, procurando as peças de roupa espalhadas.

Arrebentaram a porta.

Lá fora uma luz fria e azul oscilava. Entraram homens altos e magros, magros como Alana. Falavam uma língua estranha e eram estranhamente pálidos, como Alana. Senti algo picar o meu peito, olhei e vi um dardo tranquilizante.

Acordei aqui. Você tem que acreditar em mim. Não sei de nada da morte da Alana. Tem que acreditar em mim.

— É difícil, Tony. Muito difícil. Você entregou à Banca Examinadora um bilhete contendo a confissão de que pretendia matá-la, e fez exatamente o que o bilhete dizia. Seu esperma foi encontrado no corpo, suas impressões digitais estão por toda parte, e a polícia o achou lá, ao lado do cadáver ainda quente. O que tem para me convencer de que nada dessa história é verdade?

— Você tem que acreditar em mim, Rick. Os aliens, eles usam a rede elétrica para comunicar-se, alguns são brincalhões e ficam corrompendo arquivos em nossos computadores, ou talvez queiram nos avisar. Alguns estão espionando por aí. Alana era uma espiã, Rick.

— Por isso a matou?

— Não a matei, Rick. Mesmo ela sendo uma deles não a matei porque a amava, porque era a mulher mais interessante que conheci em toda a minha vida. Não a matei, foram eles. Mataram-na porque me avisou para não entregar a monografia, mas não me impediu.

— Tudo bem, Tony. Vou ver o que posso fazer. Mas acho que é melhor alegar insanidade. Se não fizer isso, vai encarar o corredor da morte. Alana poderia ser alienígena, mas apareceram dois pais pobres, lá do interior do Canadá, que confiavam no diploma da única filha para seu sustento na velhice. Uma história comovente, Tony. Nenhum jurado desse país terá simpatia por você.


19
Fev 11
publicado por José Geraldo, às 13:46link do post | comentar | ver comentários (1)

Não sei se já contei para vocês que sou fã dos Smiths. Para mim não existe letrista mais agudo e inteligente do que Morrissey, que é simplesmente aquilo que Renato Russo queria ser quando crescesse. Em suas letras ácidas e amargas ele descasca e devassa as conturbadas relações informais de poder que se estabelecem no convívio entre os seres humanos. Mas não escrevi esta crônica para louvar os Smiths, apesar de todo meu fascínio por versos como “Se não for amor será a bomba que vai nos reunir” e “Agora entendo como se sentiu Joana d’Arc quando as chamas chegaram ao seu nariz adunco e o seu walkman começou a derreter”. Escrevi-a para, recorrendo aos versos de Morrissey, deixar marcado meu orkuticídio.

Que fique bem claro que é um “orkuticídio”, não um suicídio. Estou saindo da vida apenas no metafórico sentido daquele “mundinho azul”. Aqui fora, continuarei ganhando cabelos brancos e crescendo barriga enquanto tento continuar escrevendo e criando minhas filhas. Como toda carta que justifica uma morte (neste caso virtual), esta também será longa, e também só será lida pelos “legistas” interessados na “causa mortis” ou nos segredos sórdidos de quem se tornou o cadáver.

Cometo este ato insano porque that joke isn’t funny any more. Houve um tempo em que o Orkut me divertiu. Talvez tenha feito mais do que isso: graças a ele eu obtive meu contrato de publicação e fiz alguns amigos. Mas não muito mais do que isso. Hoje entendo que este hábito me tirou mais do que me deu. Tirou de mim energias que eu deveria ter gastado olhando o céu (um azul mais bonito que o plano de fundo do saite), pisando na grama da praça (apesar de algumas bostas de cachorro), caminhando pelas ruas (apesar da fumaça dos carros, dos cheios urbanos e do sol áspero), brincando com a Gabi e com a Duda (e também “brincando” com a Dani).

“Pare o carro ao lado da estrada, / você deve saber / que a onda do tempo amaciará você, / assim como a mim.”

Houve uma época em que até o Orkut me inspirava a escrever, mas ultimamente eu tenho sentido cada vez mais que minhas horas passadas frente ao monitor se tornaram momentos “zumbis” em minha vida. Cada vez mais, inspiração me vem quando corro, ando, tomo banho, como, trabalho ou vejo vacas pastando. Olhar os píxels esvazia o meu cérebro. É como uma droga e eu já adiei muito isso e agora está na hora de desintoxicar.

“Quando você ri de pessoas / que são tão sozinhas / o único desejo delas é morrer.”

Comecei a me “matar” quando Sinki me expulsou da Novos Escritores do Brasil. Talvez eu tivesse resolvido continuar “vivendo” se alguma das iniciativas que tomei entre julho e setembro tivesse dado certo. A comunidade Textos & Texturas, os concursos da Contos Fantásticos, a Revista Textura. Cada uma delas poderia ter sido um entorpecente (ou uma morfina) capaz de me fazer seguir com a farsa. Mas misericordiosamente nenhuma delas continuou.

“Bem, eu acho que / essas coisas não me fazem rir, / eu bem queria conseguir.”

Isto levou-me a um afastamento voluntário do Orkut entre setembro e dezembro. Embora tenha sido somente parcial (eu realmente tive várias sequencias de dias sem acessar, mas não consegui atravessar os três meses sem postar), estas férias serviram para me mostrar que eu não precisava do Orkut para ter inspiração mais. Nesse ínterim descobri outras maneiras de interagir com escritores, fiz algumas amizades, encontrei algumas pessoas, participei de eventos, recebi comentários. Gradualmente me afastei das “comunidades” onde convivia e percebi que antes passava horas vivendo vidas irrelevantes e irreais, lutando contra moinhos de vento apenas imaginários, dedicando minhas forças a combates que nem ficariam registrados para a posteridade (pois o meio eletrônico é como a areia da praia).

“Mas essa piada não tem mais graça.”

O que me levou a um desencanto, que somente foi agravado pelo fato de que minha participação no Orkut havia produzido um efeito negativo em minha interação. Tornara-me uma “personalidade” detestada por minhas opiniões incisivas, tinha mais desafetos do que admiradores, meus textos atraíam críticas mais rigorosas porque as pessoas tinham necessidade de apontar os meus erros enquanto desculpavam os alheios. Claro que eu não me ofendi com isso, pois é natural que as pessoas exijam mais de quem acham bom. Mas incomodou-me ver que eu estava sendo sempre, sutilmente, visto como o “garoto de fora”, o estranho na turma.

“Estamos muito perto de casa / e vai muito fundo, até o osso, / mais fundo do que você acha.”

De fato o era. Minha idade, minha maturidade e minha mentalidade. Três fatores que me separam da maioria dos jovens escritores orkutianos. O senso do ridículo caiu em mim como uma bomba quando eu, lendo a história dos Alcoólicos Anônimos, no saite “Agent Orange”, li a biografia de Frank Buchman, um dos inspiradores do movimento. Aos 37 anos anos (a idade que hoje tenho) ele tentou se instalar no dormitório dos estudantes em Harvard, a fim de “ficar mais perto” daqueles com quem deveria interagir, na qualidade de capelão da faculdade. Ele acabou expulso de lá pela faculdade, diante dos insistentes protestos dos alunos, que não conseguiam conviver com sua presença. Acabou até sofrendo acusações de pederastia por conta disso. Ao ler este episódio burlesco da biografia de alguém que não ficou famoso como um cara bacana, eu procurei visualizar em minha mente as cenas de sua vida no dormitório estudantil. De repente o rosto de fuinha de Frank Buchman se metamorfoseou no meu e eu percebi que tinha que sair do dormitório, mesmo que pulando pela janela, porque certamente os rapazes ficavam constrangidos pela minha presença. Meu lugar não era lá.

“Chute-os quando caem! / Por que também você /Tem que chutá-los quando caem?”

Torna-se natural a impaciência quando você quer ir longe. Quanto mais você aprende, menos prazer tem em revisitar os estágios iniciais de sua jornada. Os professores, essas almas abnegadas e tão raras, certamente não derivam o seu prazer do conteúdo, mas da experiência sociológica do ensino. Eu, porém, sou viciado em conteúdo, eu sinto o vento soprando na estrada do conhecimento e não gosto de voltar atrás para buscar quem está correndo atrás de mim.

Esse tipo de sensação de impaciência leva quase certamente à violência verbal, algo muito barato quando no Orkut. Na vida real você não discutirá Proust com um bêbado no bar, mas no Orkut esses pudores costumam cair, e acabamos perdendo a medida das palavras.

Não é bonito descobrir que você é um dos que chutam os que estão caídos, especialmente quando os próprios caídos mostram os dentes quebrados. Não é bonito você descobrir que está fazendo hoje o que lhe ofendeu tanto quando fizeram com você no passado. Mas eu não tenho a morbidez de veterano que gosta de humilhar calouro, eu “passo” esse papel a quem tenha essa depravação. Não vou chegar a ser um J. R. Pereira, vou me “orkuticidar” antes disso.

“Estava escuro quando dirigi para casa / sentado em bancos de couro. / Então, de repente tive a impressão / de que talvez venha a morrer /com um sorriso no rosto, enfim.”

Decidi me “matar” virtualmente em janeiro. Até pus data para isso na descrição do meu perfil. Nos primeiros dias as pessoas argumentaram muito comigo, vieram os bombeiros trazendo parentes, amantes, filhos, cobradores e um psicólogo. Todos chegaram no parapeito dizendo que valia a pena continuar, e eu fui continuando.

Decidi brincar com eles. Sairia do Orkut fazendo uma brincadeira que sempre quisera fazer. Criei um perfil falso, chamado Filipe C. Pinto (uma “tradução” do nome do genial Philip K. Dick). Usei o perfil para postar um conto MEU na Contos Fantásticos, depois de ter deixado pistas, com dois “amigos” virtuais” de que o conto seria de Stephen King ou de um autor soviético cujo trabalho teria semelhanças com o do King. Eu esperava que ambos “dessem com a língua nos dentes”, fazendo todos pensarem que o conto era de alguém famoso, quando era meu. A patranha seria completa quando eu postasse no concurso seguinte um conto de um autor famoso e fizesse todos pensarem que era meu. Eu já tinha tudo até traduzido. O conto seria “O Quarto Vermelho”, de H. G. Wells; uma reconhecida, mas pouco conhecida, obra prima da literatura universal.

“Eu já vi isso acontecer com outras pessoas / e agora está acontecendo comigo.”

Desisti, no entanto, de levar esta farsa até o fim. Teria dado muito trabalho manipular as pessoas em cada vez — e eu não sou nada bom nisso. Além do mais, por que eu também teria que “chutá-los caídos”? Se eu tenho impaciência com os garotos e com suas obsessões, como tratá-los com tanto desrespeito? Senti-me ridículo fazendo isso e resolvi parar com essa trollagem gratuita.

“Mas essa piada não tem mais graça.”

Então, amigos, despeço-me de todos vocês aí do Orkut. Meu perfil será apagado quando terminar o horário de verão. Peço desculpas à Åsa Heuser, que me confiou a moderação da Sociedade da Terra Redonda, mas não tenho mais como continuar. O “orkuticida” que considere seus compromissos não consegue se “matar”. Somente consegue o Ato Extremo quem fecha os olhos, algo egoisticamente, e ignorando as pessoas que deixará na mão.

A piada não tem mais graça para mim, é só isso que eu quero que vocês entendam. Não me obriguem a continuar no palco só porque vocês gostaram do show.

Ficarão assuntos pendentes, obviamente. Perderei contato com algumas pessoas, pelo menos com aquelas que não estão ainda no meu MSN e nem no Facebook. Mas o buraco deixado pelo tempo que eu gastava no Orkut será fechado com muito trabalho literário novo: tenho CINCO romances para terminar, minha gente, e estou chegando ao meio-dia da vida. Tenho muito que viver e que escrever.

Lasciate ogni speranza voi ch’entrate.


18
Fev 11
publicado por José Geraldo, às 09:00link do post | comentar

Fagundes Varela, notório poeta do romantismo brasileiro, foi um ser humano à frente de seu tempo, ousando externar em sua literatura coisas que somente Raul Pompeia voltaria a abordar, quase cinquenta anos depois. No caso específico deste poema, pode-se argumentar uma influência de Rimbaud e Verlaine quanto à temática, ainda que isto não esteja claro.

Segundo Gretovski (1969, p. 21), o poema Flor do Maracujá é a primeira obra abertamente homossexual da literatura brasileira. Kuranyi (2000, p. 76) não apenas concorda como interpreta o poema como uma ode ao ânus, transformado em uma fonte de prazer poético e de imagística retroativa e relativa à vida imaginária que o poeta sonhava, mas que a sociedade lhe negava, tal como Rimbaud e Verlaine haviam feito no antologizado e muito famoso Sonnet au Cul.

A análise dos dois autores depende muito do que disse Mário de Andrade (1929, 69) a respeito do poeta fluminense e do que disse Mário Filho (1957, 171) sobre o flamengo. Massimo Buraccio e Roberto Occo, dois renomados insemiólogos intalianos escreveram em “Transposições Vocálicas” (1996, 88) que na imagística pederástica é comum haver uma inversão da ordem das vogais, de forma a que simbolizem outras sons, especialmente quando uma determinada vogal apresenta uma rima mais homossexualmente rica.

Evocando Rimbaud, eles atribuem um sentido de cor às vogais. Apenas que o poeta gaulês lhes dava valores segundo a mítica francesa de Joseph Pujol (1909) enquanto Varela inventou uma nomenclatura tipicamente fluminense para as vogais na qual:

A significa U, E, significa O, I, significa I mesmo, O, significa E e o U significa A (Buraccio; Occo, 1996 p. 96).

Desta forma as abundantes rimas em “á”, que escorrem do poema do rio-clarense mais famoso do Brasil passam a ser rimas em “ú”:

Mas todo mundo sabe — ou devia saber — que o “u” não recebe acento, mas sim o assento é que recebe o “u” (Toledo, 1989 p. 24).

Como o “u” no simbolismo representa o azul e o roxo, segue-se que a flor (roxa) do maracujá possui um sentido evocativo “muito sugestivo” (Buraccio; Occo, 1996 p. 24).

Pennyman (1996, 666) enxerga no poema uma prefiguração do símbolo homossexual do arco íris. O autor cita Piruzzini (1973, p. 33), que atribuiu a escolha da bandeira gay à influência de um desconhecido “poeta dos trópicos” que os gays de Nova Iorque não quiseram nomear. O autor, então decodifica do texto de Varela, as sete cores do arco íris, expressas através de sete seres citados no texto:

  • Rosa (vermelho)
  • Maracujá (laranja)
  • Cravo (amarelo)
  • Folhas do gravatá (verde)
  • Fonte de água (azul)
  • Borboleta do Panamá (anil)
  • Flor do maracujá (roxo)

O fato de que as duas cores mais expressivas do movimento gay estejam presentes na flor do maracujá, que possui em seu centro dois cetros, ou espadas, foi visto como Lambistti (2002, 29) como um indício ignorado antes.

Desta forma, “A Flor do Maracujá” pode ser visto como um exemplo clássico de poesia homossexual em nossa literatura, e assim deve ser reconhecido.

Apareceu em uma comunidade literária do Orkut um aluno desses preguiçosos que estão sempre procurando quem lhes faça seus trabalhos escolares (afinal, é preciso sobrar tempo para o videogame). O trabalho em questão era uma interpretação do poema “À Flor do Maracujá”, de Fagundes Varella, clássico de nossa literatura romântica; não exatamente o mais complexo dos poemas da literatura universal, mas certamente num prateleira bastante alta para quem tenha o nível de texto exibido pelo aluno em questão que (pasmem!) se dizia estudante universitário. A título de mera galhofa, postei este texto, com a esperança de que o aluno tivesse, ao menos, capacidade para saber que não deveria utilizá-lo.

Este texto é de caráter satírico e se inspira no hilário “Ibid”, de H. P. Lovecraft. Obviamente você deve ter sabido agora que havia algo de Lovecraft neste texto, mas se só agora percebe que o texto é simplesmente humorístico-pastelão, espero que lhe sobre bom senso para não contar isso a ninguém.


17
Fev 11
publicado por José Geraldo, às 16:06link do post | comentar
Em resposta a alguém que disse: «Se é mensagem positiva, me interessa.»

Não há uma saída fácil,
tua fé não vencerá os muros e
a ingenuidade não lhe servirá de escudo
quando vierem as botas e os rifles
quando caírem as mãos sobre ti.

Não há uma resposta fácil,
tua força não dobrará as regras e
os teus sorrisos não lhe comprarão simpatia
quando os dedos apontarem para ti.

Lá fora não jaz o cadáver de Deus:
mataram-no com um tiro no escuro,
mas ele não caiu, nem se ouviu nenhum grito.
O tiro apenas ecoou na noite muito longa
e os campos não amanheceram diferentes.
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Fev 11
publicado por José Geraldo, às 08:35link do post | comentar | ver comentários (1)

Meus olhos percorriam preguiçosamente a sala, retendo-se em detalhes que eu já conhecia muito bem, apenas para terem o que olhar, porque a minha ansiedade me embaraçava e as minhas visitas insistiam em não ir embora, ainda que eu não lhes oferecesse nada.

Acredito que sou bom, mas não há crente que resista à presença de visitas que querem comover-nos com lembranças num momento em que preocupações materiais se interpõem entre os sentimentos e os fatos. Difícil suportar perguntas que querem mostrar uma súbita consideração, mas apenas bisbilhotam em cantos perdidos do passado que eu já não desejo revolver. Que examinem minha vida, ainda é suportável. Só não suporto que o fizessem justamente quando se aproximava a hora do táxi que me levaria em outra importante viagem comercial.

Eu sou um homem bom, creiam-me! Mas acho que estive tempo demais vivendo sem a companhia de quem se importa comigo. Agora fica difícil aceitar pacificamente que se demorem mais de uma hora. Eu quero paz, quero silêncio, quero me esqueçam e quero meu dinheiro quando chegar o dia vinte.

Era àquela altura difícil esconder meu total desinteresse de qualquer que fosse o motivo da visita. E mesmo assim continuavam sorrindo e pedindo opiniões sobre os mais inconcebíveis assuntos. Sempre aplaudindo o que eu ruminasse.

Como fazer para desagradar a duas simpáticas pessoas que me agridem com o prolongamento de sua presença educada? Disfarçadamente olhava o relógio da parede. Não tão disfarçadamente que não pudesse ser percebido por um espírito sutil. Mas isto não surtiu efeito porque parentes não têm espíritos sutis.

Já era um desespero que me invadia: dois sorrisos sinceros e simpáticos me constrangendo a manter-me dentro dos limites da urbanidade. Até que subitamente uma buzina lá fora rompeu com o formalismo custoso que eu mantinha: tive de ir à janela ver do que se tratava, enquanto as visitas permaneceram educadamente conversando em voz baixa.

Depois de me haver certificado que era mesmo o táxi, com os meus companheiros de viagem e a corrida paga, não foi mais possível continuar falseando. Voltei para a sala e os mirei, olhos nos olhos.

Sorriam um ao outro ainda sem ainda me verem e suas mãos estavam entrelaçadas definindo uma certeza simples que eu não previra até então. Como dizer que deveriam ir? As palavras se agarraram firmemente à garganta quando os olhos deles se ergueram, tão misericordiosos e compreensivos.

É claro que em sua beatitude não havia mesmo espaço para entenderem às imperiosas necessidades profissionais, para aceitar minha premente necessidade de sair. Eram olhos de quem não admite desculpas. Possuíam sentimentos de quem nem mesmo admite que tenhamos sentimentos diferentes.

Outra vez a buzina lá fora, e acordei. Não há como fugir da obrigação de agir quando estão lá fora te chamando.

“Lamentavelmente não vai ser possível continuarmos hoje a conversa. Sei que estão com saudades, eu também. Mas eu tenho que sair. Tenho uma viagem de negócios e estão me esperando justo agora. Por que vocês não voltam outro dia?”

Uma certa incredulidade os atingiu enquanto eu falava. Eu me sentia um monstro, mas sabia antes que seria assim.

“Agora que estão juntos de novo e que vivem aqui tão perto, eu sei que sempre poderei visitar e juro que vou fazer isso no próximo feriado, mas temos de deixar para colar o resto dos cacos outro dia; ou eu posso perder outro emprego.”

Assustei-me com a dureza de minhas palavras. Creia-me, não sou um mau sujeito. Incomodou-me o ar de surpresa que fizeram, como se eu estivesse cometendo algo tremendamente criminoso. Lembrei-me das vezes em que fora vítima de chantagens emocionais e do quanto me havia custado a permanência sob as asas protetoras de mamãe, antes de criar coragem de enfrentar o mundo. Com que direito se julgavam merecedores de que eu comprometesse minha posição e meu emprego para continuar lambendo velhas feridas? Com que direito apareciam subitamente em minha vida anunciando que as velhas brigas que tanto me haviam magoado estavam superadas e que o amor vencera?

Por pura crueldade passou-me pela cabeça o pensamento de que o motivo verdadeiro da reconciliação tinha sido tão-somente o medo de passarem ambos a velhice solitária dos descasados e que aquela reconstrução de um velho lar era só uma espécie de aposentadoria que ambos se concediam do fogo da que arde dentro de todos nós. Talvez uma maneira de atrair solidariedade em um tempo de vacas magras.

Principalmente irou-me o ar de inocência neles. Como se eu já não estivesse vestido para sair quando chegaram, como se meus livros não estivessem cobertos, os móveis sob lençóis. Como se as panelas não estivessem vazias e os talheres, embrulhados. Como se as malas não estivessem junto à porta.

Por fim mamãe se desculpou e começou a despedir-se. Claro que cutucando sutilmente minha piedade e dever filial. Por um momento senti-me culpado por estar prestes a partir para uma cidade estranha onde aguardava-me a promoção que eu esperava havia tantos anos em vez de permanecer em casa juntando os pedaços de uma vida familiar infeliz. “Não queremos atrapalhar a sua vida, filho.” disse papai de modo levemente ríspido e decepcionado.

“Vá cuidar da sua vida. Temos muito tempo para conversa” — disse mamãe com uma nódoa de tristeza no olhar.

E dirigiram-se à porta com uma secura no gesto, com um vagar calculado nos passos. Depois de acompanhá-los à saída, voltei para buscar as minhas malas e fui embora da cidade para não voltar por muitos meses.

Semanas depois, já orgulhosamente instalado no posto de chefia que tanto almejara, fui interrompido no trabalho por um telefonema. Um tio distante me comunicava a morte de meus pais num misterioso acidente de carro.

Pousei o fone no gancho sentindo uma ânsia indefinida crescendo dentro de mim e olhei o horizonte cinzento. “Nunca mais!” Que peso há nestas palavras!

Súbito e cruel um pensamento mesquinho brotou dentro de mim: “Eles me venceram! Não há como insistir no ódio agora”.


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