Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
31
Mar 11
publicado por José Geraldo, às 12:04link do post | comentar

Cheguei de viagem cansado, ansioso por dormir. Deixei meu carro na garagem e saí pela noite anódina e sem lua. O ar estava profanado pela chuva ainda recente, exalando uma catinga de morrinha de cachorro molhado e os meus pés chapinhavam nas poças de água barrenta que salpicavam as calçadas. No céu parcialmente limpo algumas estrelas, nenhuma vencendo de todo a iluminação artificial.

Havia uma mulher sentada num banco de praça no meio do meu caminho, uma mulher vestida roupas negras e longos cabelos, com o rosto afundado entre as mãos. Estava imóvel como uma morta e meio apoiada, de um lado, sobre algo escuro e disforme. Observei que curvava a cabeça sobre os antebraços e as mãos ficavam perdidas entre as madeixas escuras, que a brisa da noite discretamente agitava.

Poderia ser uma mendiga, ou qualquer imagem sobrenatural, ou talvez apenas uma jovem drogada. Alguma coisa me fez simpatizar com sua solidão no vazio daquela madrugada perigosa. Por isso, contrariando o senso que sempre me mandava, de noite ou de madrugada, ignorar tudo que tivesse duas pernas e estivesse fora de mim, cheguei mais perto e lhe dei boa noite.

Foi como se rasgassem a mortalha de um féretro antigo. Ela ergueu o rosto pálido e macerado de lágrimas contra a luz apática das lâmpadas elétricas, mirou nos meus com uma devastadora expressão de luto em sua boca e uma potente tristeza torcendo seu cenho. Dava para ver que ela havia chorado recentemente. Não! Chorava ainda: um brilho perolado aparecia na pele ao redor dos olhos, pondo um apelo ainda mais puro aos misturados sentimentos que me acometiam. Percebi, surpreso, que seu rosto não levava maquiagem, que seus dedos não portavam aneis e que havia suspenso em seu pescoço somente um rústico pingente prateado em forma de luar.

A voz que respondeu ao cumprimento foi quase inaudível, como o sussurro de uma profecia em um sonho. Não, eu não poderia ajudar-lhe em nada. Sua expressão desolada certificou-me disso tão logo eu pensei perguntar se precisava de alguma coisa. Mas depois de refletir por um momento, talvez temendo que eu seguisse meu caminho, abordou-me com uma audácia ignorante:

— Tu me amas?

Aquelas palavras ventaram como uma vertigem em meus ouvidos. Como poderia pensar que alguém pudesse amar a quem nem sabe quem é? Disse-lhe isso: “Não a conheço”. Ela não gastou nenhum segundo antes de tentar de outra forma:

— Então me odeias?

Suas palavras saíam como se fossem antigas, com poeira de idades imemoriais, incineradas pela inclemência dos séculos. Achei graça nesse anacronismo e também joguei da mesma forma:

— Como odiaria a quem não pude ainda conhecer?

Ela deixou descer outra gota solitária de seus olhos e afirmou, como quem arranca o próprio fígado:

— Se me conheces, me odeias.

Esta afirmação de futuro usando o presente me parece fatalista além da conta. Mas eu era tolo e suficientemente ousado para uma noite só. Disse-lhe que ninguém odiaria uma mulher tão bela, não sem um motivo muito justo, não sem um ódio anterior da parte dela.

Essas palavras saíram de minha boca tão inesperadas que meus dentes se assustaram com elas e morderam minha língua. Ela então se levantou do banco da praça e disse, de uma forma infantilmente curiosa que não me odiava. Seu corpo exalava um perfume de gaveta, ou de casa abandonada, misturado talvez a ervas mortas. Mas quando ela se aproximou de mim esse cheiro de séculos e tumbas não me pareceu ruim. Era em vez disso um perfume de rosas secas, de sabonetes em gavetas.

Mas ela se movia como um fantasma, sua roupa imensamente negra revoava como as asas de uma alma penada. Havia algo muito estranho naqueles lábios roxos, uma doçura cadavérica e pecaminosa naquela palidez helênica. Ela me tocou o rosto com a mão direita, dizendo:

— Como é possível odiar a inocência? Eu não entendo! Eu apenas existo!

No fundo de minha mente alguma coisa começava a agitar-se, sinalizando às minhas pernas que corressem, enquanto outra parte de mim dizia que já era tarde para isso. Mas eu retribuí o toque, levando meus dedos à sua face. Era lisa como uma lápide de mármore, era fria como a água de um lago à noite, e era dura também, mas sua lisura era boa de tocar, meus dedos gostaram de correr por aquela pele que parecia não ter pelo nenhum. Naquele momento, vencendo meus instintos, eu a achei terrivelmente bela e quis amá-la.

— Por que está sozinha esta noite, nesta praça vazia e perigosa?

— Sozinha eu sempre estou, e certamente esta praça não me oferece nenhum perigo.

Algumas pessoas passaram pelo outro lado da praça, bêbadas, ruidosas, cantando obscenamente, uma felicidade ofensiva. Como era possível estarem felizes. Havia guerra, havia peste. Odiei aquelas pessoas. Como se tivesse lido os meus lábios imóveis, a mulher de negro me aconselhou:

— Ah, não os odeies. Eles apenas sentem a tensão dos últimos dias. Eles dançam e cantam porque em sua ignorância eles sabem que se aproxima o dia em que já não poderão. Felizes aqueles que dançam e cantam, porque os dias de cantar e dançar são muito poucos.

— Então venha beber comigo, cantar e dançar. Como todo mundo, você merece essa pouca felicidade que há.

— Então beija-me agora, se tens esta coragem.

Toquei seus lábios duros com os meus, beijamo-nos brevemente. Ela então aceitou que eu lhe tomasse a mão e a levasse da praça. Mas ao sairmos da sombra onde ela estivera, notei que trazia consigo um saco escuro e uma longa foice de lâmina curva. Naquele momento eu teria entrado em pânico, mas eu a beijara e ela era uma mulher tão linda. Então a beijei suavemente uma segunda vez, tentando envolver seu corpo magro em meus braços. Quando nossos lábios se afastaram ela quase sorriu, tentando talvez ser má, encarou-me de novo e disse:

— Eu sou a tua morte. Odeia-me agora!?

Contemplei-a novamente, ainda lutando com o medo inútil que ruflava no interior de minhas crenças e descrenças. Mas concluí que mesmo assim eu não conseguia.

— Não posso odiá-la. Como posso odiar a morte que nasci sabendo que um dia encontraria. Só não sabia que haveria de ser numa praça tão feia, na forma de uma alma tão linda. Mas não a odeio, nunca a odiei, na verdade fiz versos para ti por muitos anos.

— E não sentes medo?

— Tenho medo e desespero, mas não posso odiar a uma lei da natureza. Sobretudo não tenho ódio, tenho é pena de ti, que odeias a vida.

Ela me tomou a mão, como se uma geleira me tocasse, e disse numa voz dançante e cristalina:

— Na verdade, eis a monstruosidade de tudo, não sou eu quem odeia a vida, eu de fato a amo, talvez bem mais que vós que viveis. Eu amo a vida, esta coisa precária e bela que se destrói e se perpetua. Eu existo para destruir, destruo para existir, mas minha destruição abre caminhos, areja a existência para os que ainda vão nascer. Mas mesmo assim, mesmo sabendo que faço algo que é bom, ainda levo na alma uma culpa que não sei bem do que. E um cansaço nas mãos que já carregaram demais esta foice infernal que me deram.

— Tenho pena, então, por isso.

— Acima de tudo, estou cansada de destruir àquilo e a quem gostaria de amar.

— Mas é possível amar sem destruir? Se não ao objeto, ao amor em si?

— Não sei todas as coisas, sou apenas um anjo caído que tem uma missão.

— Tu tens a eternidade, então por que não podes ter algumas décadas?

Ela me olhou com esperança, um sentimento que talvez não tenha sido nunca pensado para os corações dos anjos. Uma esperança tão súbita que quase evaporou o resto da lágrima que ainda pendia.

— Eu pressinto verdade no que a tua boca diz. Teus olhos confessam, não posso negar.

— Então não posso dar-lhe boa noite e ir para casa, como antes. Vem comigo.

— Eu vou contigo. E vou ficar contigo até que me odeies, até que te destruas, até que a Ira dEle nos obrigue.

Seguimos para minha casa como se fôssemos qualquer casal de namorados. A morte me acompanhava, mas eu não tinha medo. Dormi um sono pesado, sofri com pesadelos e com sede. Quando amanheceu, havia um sol estranhamente silencioso atravessando a janela, uma quietude de se ouvir pássaros; mas não havia pássaros.

Preparei meu café da manhã ainda chocado pelas imagens bárbaras de um mundo que se acabava em trevas. Terminei minhas fatias com manteiga e meu café com leite vendo o relógio gotejar minutos como uma hemorragia. Então saí de casa para o trabalho.

Os meus passos ressoavam na escada como os de uma múmia num museu. Havia teias de aranha nas paredes que poderiam ser de semanas ou de meses. Havia um silêncio no ar que evocava os porões de uma pirâmide.

A rua estava deserta, cheia de árvores enferrujadas e redemoinhos de poeira que assobiavam como em antigos filmes americanos. As lojas estavam lacradas, silenciosas, como se seus donos tivessem morrido na cama, de madrugada, e nunca viessem mais para abrir suas portas corrediças. Nenhum cão percorria aquela avenida desolada, nenhum ruído ou música que evocasse vida.

Temi estar louco. Continuei pelo caminho até o meu serviço, sorvendo um ar estranhamente ácido. As vidraças de alguns estabelecimentos estavam deformadas, com marcas estranhas que pareciam mãos, mas não podiam ser. Na praça onde deixara a mulher de negro imperava a mesma mágica de amortecimento que embalara o mundo naquele sono estúpido.

Uma frase dita por detrás de minha orelha me arrepiou cada cabelo de meu corpo: “Tu me amas?” Repeti as perguntas comuns que todos os perdidos fazem nessas horas, era como se eu tivesse incorporado um roteiro de cinema de horror e todos os seus clichês. Quando voltei o rosto, ela estava lá e me olhava com aquela expressão gélida no rosto, brilhando sob o sol como uma blasfêmia.

— V-você. Eu pensei que tinha sido só um sonho.

— E me amas?

— Talvez, mas ainda tenho muito medo.

— Amor e medo se misturam bem, eu sei de prazeres que ninguém jamais lembrou nem aprendeu.

— Não gosto desses verbos, tenho muito que esquecer e muito medo de nunca aprender.

Ela se aproximou de mim, sem que seus pés sequer soassem no chão, apesar de todo o silêncio da rua inteira.

— Tu me amarias aqui, se eu tivesse a coragem de me despir?

Olhei em torno, novamente assustado. Não havia alma viva nem voz que aventasse testemunhas.

— Isso seria algo de meter mais medo ainda.

Então ela o fez, e nos amamos em pecado, ali mesmo.


29
Mar 11
publicado por José Geraldo, às 22:04link do post | comentar

Há um verso de profundo desencanto no [hoje maldito] hino dos “Anos Rebeldes” brasileiros. Ao criticar de forma velada o movimento hippie (e outros movimentos de paz e amor), Geraldo Vandré constatou: “pelas ruas marchando indecisos cordões que ainda fazem da flor seu mais forte refrão, e acreditam nas flores vencendo o canhão.”

Há uma poesia profunda no gesto de entregar flores aos agentes mandados pelo governo para matar você. Rende lindas imagens para os canais de notícias, rende heróis que serão lembrados por décadas ou séculos, mas raramente rende progressos reais — a menos que as flores sejam entregues dentro de um contexto favorável a flores. Há momentos históricos favoráveis ao canhão, e eles são a maioria. Na verdade é apenas por exceção que a flor adquire algum poder.

No seu romance “infantil“ intitulado “O Menino e o Presidente”, o escritor Wilson Rio Apa imaginou um perfume, inventado por acaso por um grupo de crianças, a partir de um laboratório de química deixado por seu falecido avô. Esse perfume tornava as pessoas “legais”, tornava-as empáticas, bem intencionadas, bondosas. Ao perceberem o efeito, as crianças resolvem dar o perfume, embebido em um buquê de rosas, ao Presidente da República. Deve ter custado muita coragem ao autor para escrever isso nos anos 70, plena época de ditadura e torturas. Ainda mais que no livro as crianças, identificadas como perigosos subversivos, são presas, separadas dos pais e mandadas para lugares diferentes do mundo (com a leve sugestão de que elas seriam, na verdade, mortas ou abandonadas para morrer). Linda história infantil, linda lição de moral. Cresci com o trauma de ter lido esse livro. Mas acredito que traumas assim fazem falta, ajudam as crianças e entenderem uma certa noção de valores, que é preciso ser “legal” nesse mundo.

Mas a história do livro, tal como na música, reflete a perplexidade daqueles que esperam vencer com botões de rosa o poder do canhão. Daqueles que acreditam que poder emana do povo e que os soldados são patriotas e não matarão aqueles a quem juram defender. Há momentos em que isso parece dar certo, há momentos em que decididamente isto dá errado. Para cada Gandhi comemorado em selos e idolatrado internacionalmente, há centenas de caras como o anônimo chinesinho de calça preta e camisa branca que enfrentou os canhões na Praça da Paz Celestial, em vão.

O poder do canhão é o de destruir sonhos, é o de implodir ideias. É graças ao canhão que as elites impõem sua vontade. Ninguém imagine que seria vontade do povo fazer certas coisas polêmicas, se o povo hoje internalizou “querer” certas coisas, foi a custa de muito canhão no passado. Como no filme famoso de Stanley Kubrick, chega um momento em que paramos de nos preocupar e começamos a gostar da bomba. É melhor amar à bomba do que ser morto por ela. Ditadores tem seguidores porque os mortos já não seguem ninguém.

Então um belo dia um lindo conto de fadas começa no Oriente: o povo nas ruas, com faixas e cartazes e gritos de guerra. O exército não atira, o governo acaba renunciando. Cria-se um exemplo, logo surge outro. Mas o canhão está lá, dormente. Cedo ou tarde alguém descobre que, afinal, os espinhos das rosas não são temíveis. Então vêm os tanques. Pode ser inútil desespero, como queria Gandhi, mas a violência pelo menos tem o poder de estragar a utopia. O canhão pode, a longo prazo, ser silenciado, mas ele tem pelo menos o poder de destruir o mundo novo que se sonhava e obrigar os sonhadores sobreviventes a uma realidade diferente da que esperavam: uma na qual muitos amigos morreram, muito prejuízo aconteceu e a expectativa de prosperidade evapora deixando atrás de si ruínas, dívidas e solidões.

Em homenagem às vítimas de todas as revoluções, principalmente daquelas que deram errado. Em especial aos mártires da Líbia, primeira classe de rebeldes a enfrentar de mãos nuas a Força Aérea de seu próprio país. Bons tempos aqueles em que se achava absurdo o opressor chamar a cavalaria contra os estudantes.


28
Mar 11
publicado por José Geraldo, às 16:12link do post | comentar

Eram tempos bicudos na vida, eu tive de vender meu carro. Já não era grande coisa: um fusca 1976 amarelo-ovo que eu detestava. Mesmo assim, vendê-lo doeu na alma. Doeu porque era um gesto simbólico da profunda decadência em que estava. Tinha sido quase rico, tinha comprado carro do ano, mas andaria a pé. Como dizia uma música do Leoni: “Já tive carro e grana e um monte de convites para qualquer lugar”. Tal como o infeliz personagem da canção, eu passaria a só andar a pé, a diferença era que andar passava a ser um sacrifício.

Foram três anos sem carro, muita sola de sapato gasta e muitas horas de solidão e estudo. Projetos que não vingavam, sonhos que morriam. Por fim consegui outro emprego e algum tempo depois pude comprar outra vez um automóvel. Nada de extraordinário, um Ford DelRey 89 a álcool que me daria um prejuízo de mais de R$3.500,00 no total, entre consertos, alto consumo de combustível, pneus novos, lanternagem e uma “manta” de R$ 1.200,00 quando tive de vendê-lo, quase dois anos depois. Desse carro guardo lembranças agridoces. Bons e maus momentos, frustrações e risadas. Uma dessas histórias teve a ver com os adesivos que o antigo dono tinha fixado no vidro traseiro e na lataria da tampa do porta-malas. 

Provavelmente o DelRey tinha sido de alguém muito religioso, talvez até um pastor. Ele tinha nada menos que três adesivos proeminentes (um deles era até fluorescente) com mensagens tipicamente evangélicas. O primeiro, do lado superior do vidro, em letras grandes e berrantes, dizia “O Senhor é meu pastor, nada me faltará”. Faltava, porém, visibilidade, porque este adesivo tapava boa parte da visão do motorista. Isto talvez explicasse as várias marcas de batida que o DelRey tinha na traseira: dar marcha a ré olhando para um salmo não é tão seguro quanto fazê-lo olhando para o que há por detrás do carro. Desse adesivo eu mesmo me livrei logo, usando álcool isopropílico e uma espuma de cozinha. O segundo adesivo, localizado ao lado do logotipo da Ford, dizia que o veículo era “Propriedade do Senhor Jesus”. Não sei se fora o Senhor Jesus que o vendera para a loja de carros usados, mas tratei de me livrar também daquele adesivo quando o lanterneiro remendou as batidas da traseira. O terceiro adesivo, o mais colorido de todos, corria sobre a parte inferior do vidro, ajudando a estreitar ainda mais a visão para a marcha à ré, e dizia “Pode seguir-me, pois Jesus me guia”. Este adesivo era o mais problemático, pois tinha sido aplicado sobre um outro, mais antigo e já corroído pelo tempo. Eu tentara retirá-lo, mas logo de início percebera que seria um trabalho complicado e eu não tinha álcool suficiente para terminar. Então deixei o adesivo e acabei rodando com ele durante algumas semanas.

Tive então uma reunião de trabalho em Juiz de Fora, cidade aonde já tinha ido dúzias de vezes e que eu dizia conhecer “como a palma de minha mão”. Pela primeira vez em muito tempo eu tive a oportunidade de ir em meu próprio carro, e não poderia viajar de outra maneira. Até ficava mais caro ir em meu carro, mas era um prazer que eu quase esquecera. Entrei na cidade cuidadosamente, depois de quase cinco anos, temendo até ter esquecido onde ficava a Rua Halfeld. Passei pela entrada de Caeté, atravessei o trevo e tomei o “caminho do morro”, chegando à Avenida Brasil, no Poço Rico. Ao chegar ali eu tive uma “sensação estranha” de que havia “algo errado” com o carro que vinha atrás de mim: um Gol branco modelo quadrado, talvez ano 89 ou 91.

Tentei lembrar dos filmes de espionagem que assistia quando menino (sempre fora fã de James Bond e mesmo aos trinta e tantos anos eu ainda lembrava sequencias inteiras quase de cor) e comecei a pensar o que 007 faria se desconfiasse que alguém o estava seguindo. Obviamente o passo inicial era certificar-me de que estava mesmo sendo seguido. Para isso não havia maneira melhor que sair ligeiramente da rota esperada: o perseguidor teria de seguir, denunciando suas intenções, ou eu escaparia. Tomei a entrada da direita em vez de seguir pela avenida, à margem do Paraibuna. O Gol branco entrou comigo. Tomei uma rua à direita, depois outra à esquerda, depois de novo à esquerda. Eu tinha plena confiança de onde estava, não havia nenhum receio. O Gol branco me seguia fosse qual fosse o caminho.

Receoso, tomei uma rua que subia em direção a um morro. Caramba! Nem sei que rua era aquela. Subi acelerando, mas o velho motor CHT do DelRey começou a engasgar e a tossir, até finalmente travar num soluço lânguido e fazer o bicho parar no meio da ladeira. Estranho, porque nem na subida íngreme da chegada da cidade o carro sofrera tanto.

Um pavor sobrenatural tomou conta de mim. Meu coração parecia uma artilharia antiaérea. Minhas mãos estavam tão firmes no volante que meus músculos do braço doíam de retesados. Foi preciso praticamente uma torção de chave inglesa para eu girar o pescoço e olhar para trás.

Um homem usando óculos escuros, vestido de um terno branco riscado de cinza desceu. Ele tinha algo preto na mão. Meu Deus! Um revólver! O que será que eu fiz para mandarem um assassino profissional atrás de mim? Larguei o volante, abri a porta do carro com muito cuidado e fui descendo praticamente com as mãos ao alto, na esperança vã de que fosse somente um assalto.

Mas no que fazia isso notei que o volume escuro na mão do homem fora ilusão de minha mente. Os óculos escuros eram apenas por causa de lentes fotocromáticas: ele era tão míope quanto eu. Abaixei as mãos antes mesmo de ter chegado a levantá-las e tentei desfazer a expressão rígida do rosto.

O homem falou, com uma voz calma e pastoral, estilo e vocabulário típico de religiosos evangélicos:

— O irmão está com problemas?

Admiti que sim, com um simples aceno de cabeça.

— Eu o estava seguindo… — a honestidade do homem era comovente, talvez ele nem fosse me assaltar.

— S… seguindo?

— Notei que o irmão vem de Leopoldina, eu estou vivendo lá desde há uns cinco meses.

— Mas, por que estava me seguindo?

— O senhor dirigia como quem conhecia a cidade: eu estava perdido.

A súbita queda do nível de tensão teve um efeito tão relaxante sobre o meu estado de espírito que eu desgracei a rir sem parar, dobrando os joelhos e gargalhando até babar.

— O que foi, irmão?

Eu não conseguia parar de rir mais. O pobre pastor me seguia sem nenhuma outra intenção que achar o caminho para o hipermercado, e eu surtara achando que estava num filme do 007. Tive pena do pobre homem, que só queria fazer as compras de mês. Caramba! Ele estava com a família dentro do carro: mulher na frente e três crianças no banco de trás. Decidira seguir-me, talvez, porque o adesivo dizia que Jesus me guiava.

— Meu amigo — respondi-lhe — lamento dizer, mas se o senhor me seguiu até aqui porque estava perdido, então nós temos um problema. Não encare isso como uma blasfêmia, mas agora eu estou perdido e sem a mínima idéia de onde estou. Eu me perdi quando decidi não acompanhar a Avenida Brasil, justamente porque estava tentando saber se você estava me seguindo…

O pastor pareceu desolado:

— Realmente, irmão, todos nos perdemos quando saímos do caminho traçado por Jesus.

Ele disse isso com a metade de um sorriso no rosto. Parecia ser um bom homem.

— Mas no fim de contas, irmão, parece que Jesus realmente nos guiará.

Ele fez um gesto com o queixo, que me fez olhar para trás: um policial militar descia do alto do morro, uniformizado, a caminho do trabalho. Tomei a iniciativa de chamar-lhe e pedir ajuda. Ofereci-lhe carona até o centro em troca de orientações. Ele aceitou, claro. Uma passagem de ônibus pode ser pouca coisa para economizar, mas quem desperdiça centavos não economiza milhões. Enquanto ele entrava no meu carro, casualmente notei uma coincidência curiosa: na etiqueta pregada no bolso direito da farda estava escrito “Cb. Jesus O+”.


26
Mar 11
publicado por José Geraldo, às 00:02link do post | comentar
O silêncio que fica no ouvido quando evapora o acorde final,a morna penumbra que corre nos olhos logo que a luz se apagou,a doce ausência que ocupa o corpo quando se extingue uma dor…nada disso faz sentido em si, mas tudo issoassobia no fundo da alma a confissão de uma imagem:pode ser que a tristeza não seja,pode ser que o espaço deixado ainda cheire ao que havia.O silêncio doído insiste insípido acinte,os olhos aos poucos se rendem, a cortina vermelha se despee enxergamos o negro líquido — e dentro dele outras cores, noturnas.Toda vez que uma presença termina, fica vazio um espaçoque aos poucos se enche de todas as outras coisas.Quando você morreu para mim eu não pensava em nadae teria morrido sem saber de muitas coisas.Mas hoje, mesmo que ainda haja um fantasma, uma dor, uma folhaque voa no ar no dia certo…Ah, mesmo com tudo isso tem tantas coisas crescendo,tem uma vida acontecendo, uma morte se prepara na distânciae tudo que eu não vivi parece agora pequenoilhado entre as lembranças reais, as invenções e os sonhos.O silêncio que fica no ouvido quando um ruído evaporaé como uma surdina na música do mundo, que tocava sem eu ouvir.A penumbra nos olhos é só falta de costume: enfartado de luz,o olho não sabe enxergar beleza sem milhares de cores.Alguém fugiu com todas elas, fiquei achando que estava cego,mas tenho visto tantas nuanças ao luarque aprendi cores que ninguém via.
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23
Mar 11
publicado por José Geraldo, às 23:11link do post | comentar | ver comentários (4)

Maria Bethânia atraiu uma grande reação quando “se soube” que ela teria apresentado ao Ministério da Cultura um projeto para desenvolver um blog de poesia e obtido uma licença para captar R$ 1.300.000,00 (coloquei assim, com todos os zeros, para que vocês possam tentar visualizar melhor a cifra). Seguiu-se grande indignação pilotada pela mídia amestrada (aquela que abana o rabo quando lhe mostram o osso de uma polêmica) e surgiram desmentidos e explicações. Parece, isto é, “parece” que tal cifra não se refere à “recursos federais” mas a uma “autorização para captação de recursos” junto a patrocinadores, usando a Lei de Incentivo à Cultura. Assim, tenho feito esta breve apresentação do caso, acompanhada das devidas considerações necessárias para que eu não recaia em qualquer afirmação que sim ou que não (palavras estas, ambas, inexistentes no vocabulário do legítimo mineiro político).

Mas o caso deste post não é comentário sobre a moralidade envolta no caso, ou possível falta disto. Não me julgo árbitro capaz da moral alheia, tanto que, aliás, nem acho que “moral” exista a não ser nos catecismos — e estes, vós todos sabeis, não fazem parte de minha biblioteca. O caso deste post é mais intangível porque, de fato, em toda essa história, o proverbial e metafórico buraco é muito mais embaixo.

No centro desta questão há um fato: não se dá valor nenhum à poesia nesse país. Tivesse Maria Bethânia se proposto a fazer um blog sobre política ou sobre viagens de férias e certamente muita gente teria protestado menos, ou até aplaudido. O que eu detectei em muitos dos mais venenosos comentários foi o escândalo pelo fato de alguém, em algum lugar em Brasília, ter considerado que poesia valha um milhão de reais.

De fato é surpreendente que em Brasília, cidade erguida em material anti-alérgico sobre uma superfície devidamente esterilizada, existam pessoas com tal consideração pela poesia. Cá de longe a maioria das pessoas não supõe que exista sensibilidade em Brasília, apenas políticos e filhos da classe média que queimam índios para passar o tempo. A notícia, portanto, traz embutido um alento: talvez Brasília não seja um caso perdido, pois a cidade onde há pessoas que acham que a poesia vale um milhão de reais é um lugar que certamente merece considerações.

Mas o espanto teria sido o mesmo se não tivesse vindo de Brasília. Porque o problema do povo não é com a capital, mas com a poesia. Onde já se viu alguém achar que poesia vale tanto. “Com tanta gente passando fome”, certamente em algum lugar algum boçal está pensando. Boçais são pessoas que mesmo sendo crentes de carteirinha ignoram que o próprio Jesus teria dito que “nem só de pão vive o homem”. Vive o homem também de poesia.

Mas as pessoas, algumas devidamente providas de suposta cultura que lhes capacitaria a não pensar de forma tão automática e de forma tão alinhada com os preconceitos automáticos do vulgo, se surpreenderam com isso: “Ora, bolas, um milhão de reais para declamar poesia? Que absurdo!”

Essa gente, decerto, não acha errado que um jogador de futebol iletrado e não necessariamente talentoso ganhe mais que o Presidente da República ou que um ogro sem dicção e sem cultura musical enriqueça berrando palavrões a que certo tipo de “gente” chama de “música”. O problema não está em receber um milhão de reais, é receber tal soma em troca de poesia. Se fosse em troca de cocaína haveria quem abrisse a boca admirado. Se fosse em troca de fazer um filme pornô, haveria quem achasse “sensato”. Mas ganhar dinheiro com poesia? Onde já se viu isso? Poeta não tem que morrer louco e faminto?

Na mente de muitas pessoas não há lugar para a poesia — e consequentemente não lhe dão valor. Se Betânia estivesse pedindo seu milhão de reais para fazer um desses “projetos sociais” com crianças carentes não haveria uma só voz de crítica. É com demagogia assim que as pessoas sem talento infundem complexo de culpa nos menos espertos: “como você ousa criticar o Vadico do Cavaco assim, ele tem um projeto social com crianças cancerosas e você não faz nada pelos outros.” Foda-se quem pensa assim, as pessoas devem ganhar dinheiro fazendo o que se propõem a fazer. Maria Bethânia faz música, faz poesia, faz cultura. Ela não precisa beijar criança ranhenta para mendigar patrocínio. Pessoas como ela são (ou deveriam ser) um patrimônio da cultura nacional. Maria Bethânia sequer precisaria pedir esse dinheiro: em um país sério isso lhe seria espontaneamente ofertado.

É incrível como as pessoas chegam a pensar que fazer e distribuir poesia nesse mundo tão carente dela seja “absurdo”. Talvez se houvesse nesse país um pouco mais de poesia haveria um pouco menos de fome. Quando matam a poesia, vai junto a consciência de um povo, e daí se pode impunemente resvalar na superficialidade e no egoísmo. Daí se pode chegar ao ponto de vivermos de aparências e de fingimentos. Quanta gente famosa por aí não finge que canta, que atua, que escreve… A cultura passa a ser mercadoria, passa a ser uma maneira de canalizar dinheiro, uma indústria. Mas a poesia, nas mãos de uma pessoa cuja vida construiu a dignidade que deveria ser suficiente para estar acima destas línguas sujas que a vituperam, não vale um milhão de reais.


22
Mar 11
publicado por José Geraldo, às 23:08link do post | comentar

Para mais aforismas, cliquem na categoria “aforismas”…

  • Não há maneira controlada de fazer uma grande mudança. Saia batendo a porta, queime a ponte depois de cruzar o rio e só depois pense no caminho. De muito juízo o inferno da inércia está bem alimentado.
  • O dinheiro compra tudo, mas quem faz a lista é você.
  • A lógica do mercado de trabalho moderno se baseia no simples princípio milenar a que um romano clássico chamaria Lex silvestris. Em essência funciona assim: existe algo a ser feito e pessoas que devem fazê-lo. Alguns que terão contratempos e outros que não os terão. Os primeiros concluirão o trabalho e os segundos e para os segundos não há esperança: o mundo é de quem realiza e não de quem teve os motivos mais justos do mundo para ficar a 1% de realizar.
  • Existem homens neste país ganhando salários superiores a dez vezes o do Presidente da República apenas porque sabem chutar uma bola. Se alguém neste país estivesse ganhando um milhão de reais para fazer poesia seria um consenso na sociedade o absurdo de tal situação.
  • Não confio em pessoas que acham que eu devia gastar mais dinheiro. Se a tecnologia torna possível gastar apenas determinado valor, então qualquer preço superior a ele se torna uma exploração e quem o paga é um idiota ou um oprimido.
  • Deve ser algo terrível o poder absoluto. Apesar de todas as tentações e da possibilidade de satisfazê-las, sempre existe a possibilidade de que você o obtenha como Kadhafi e se torne no fim alguém como Kadhafi. Eu não desejo isso para mim nem para ninguém.
id="BLOGGER_PHOTO_ID_5587106204629907458" />id="BLOGGER_PHOTO_ID_5587105735120479186" />
Muammar Kaddhafi, de jovem coronel bonitão a velho decrépito com cara de múmia e alma de bicho-papão. O poder absoluto não apenas corrompe absolutamente como transforma um cara aparentemente normal em um bundão brocha que anda cercado por quarenta mulheres guarda-costas e manda matar todo mundo que não o ame. Teria sido melhor continuar coronel, Sr. Kaddhafi.

20
Mar 11
publicado por José Geraldo, às 15:53link do post | comentar | ver comentários (1)

id="BLOGGER_PHOTO_ID_5586243765800461890" />Recebi do amigo Raylson Bruno o selo de qualidade do Caderneta Azul. Gostaria de me desculpar com o Raylson e com o pessoal do selo por ter demorado tanto a responder. Acontece que a mensagem tinha caído na caixa de spam e eu estava distraído com as pequenas mudanças deste meu blog e não percebi. Bem, segundo entendi, o caso deste selo é parecido com o do outro selo que eu ganhe: trata-se de postar o selo, responder às perguntas e repassá-lo para outros blogs que eu considere que mereçam e ainda não têm. Começamos pelas perguntas:

Nome
José Geraldo Gouvêa
Uma música:
No momento eu estou gostando muito de Death of Mother Nature, do Kansas
Humor:
De modo geral, afável; mas com tendência a tornar-se rabugento na presença de dor, ruído ou música ruim (que é uma combinação dos dois).
Uma cor
Roxo
Estação:
Outono
Como prefiro viajar:
De carro
Um lugar:
Minha casa
Um filme
Blade Runner
Um livro
A Relíquia (Eça de Queirós), mas que fique claro que acho impossível citar um livro apenas: deve haver pelo menos mais vinte que eu precisaria citar
Um prazer:
A vida é bela
Um seriado
Não assisto mais seriados americanos e nunca gostei dos brasileiros
Time do coração
Clube Atlético Mineiro
Frase mais usada
“Se vendessem silêncio a quilo eu gastava tudo que tenho para fazer um bom estoque”
Porque tem um blog
Porque é uma maneira simples e gratuita de divulgar meu trabalho
Sobre o que escreve
Sobre as coisas que vejo e que sonho, tudo sob uma ótica pessoal e regionalista (até minha ficção científica procura uma linguagem “mineira”, embora nem sempre ache)
Escreva a primeira coisa que vier a cabeça
Nunca escrevo nem digo as coisas imediatas que me vêm à cabeça. Por isso eu cochicho tanto sozinho: preciso degustar e avaliar as palavras antes de libertá-las para o mundo. Não, eu não sou louco.
O que achou do selo
Gostei da iniciativa, apreciei o design.

Tendo respondido às perguntas, segue a lista dos blogs. Embora da outra vez alguns blogs para os quais eu dei o selo “Stylish Blogger” não o tenham aceitado, isto não impedirá que eventualmente algum deles apareça na lista abaixo. Isto se dá por duas razões: a) eu não fui checar quem aceitou e nem fiquei ofendido com recusas e b) merecimento é merecimento.

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publicado por José Geraldo, às 00:12link do post | comentar | ver comentários (1)

Não sei se vocês que me acompanham já conseguiram notar, mas são muitas as páginas deste blog que apresentam modificações. Dei-me ao trabalho, nos últimos dias, de editar cada postagem passada para limpar o código HTML. Com isso o blog deve estar carregando mais rápido (vai ficar ainda mais rápido depois que eu melhorar o arquivo de modelo) e parecendo mais bonito. Só falta agora completar as postagens do mês de agosto de 2010 e deletar alguns posts irrelevantes. Vou também rever a categorização e já estou procurando algum código que me ajude a transferir a nuvem de tags para uma página à parte, linkada abaixo do título. Como parte do processo, todas as imagens estão recebendo texto alternativo, para que os visitantes cegos possam saber de que se tratam. Não custa nada preocupar-me com a acessibilidade.

Amanhã ou depois eu vou acrescentar mais um texto novo e devo terminar até quarta feira ou antes a limpeza do código das postagens. Espero com isso tornar o blog mais acessível, mais bonito e mais rápido ao carregar.

Agradeço, enquanto isso, a todos que me prestigiam com pelo menos vinte visitas diárias (média de 25) desde agosto de 2010. Continuem lendo, comentando e reservando uma grana para comprar o livro…

assuntos:

18
Mar 11
publicado por José Geraldo, às 21:26link do post | comentar

Estou me revelando um verdadeiro vidente. Preciso urgentemente de um programa de televisão onde botar tarô e ganhar dinheiro dos trou…, digo, dos aficcionados por ocultismo fazendo minhas predições. Hoje é dezoito de março e eu já emplaquei vários notáveis acertos em minhas previsões de Ano Novo, embora tenha tido um lamentável problema de canalização das energias astrais que fez com que eu interpretasse ao contrário duas previsões.

Vamos a uma análise parcial!

Acertos

Silvio Berlusconi fará declarações polêmicas, que irritarão os líderes de outros países.
Essa era “batata” desde o começo. As recentes declarações do primeiro ministro italiano, segundo a qual teria transado com 33 prostitutas em um único mês causaram celeuma na Europa. Dizem que a moda do cinto de castidade será relançada na próxima Semana da Moda de Milão.
Os baianos afirmarão ter inventado um “novo ritmo” que, no entanto, será igual ao pagode e só terá um passinho diferente na dança.
É o rebolation, tion, tion!
Haverá golpes de estado na África.
Taí para quem duvidava de minha mediunidade. Não houve um só, houve TRÊS! Tunísia, Egito e Costa do Marfim. E o da Líbia segue a caminho. Com alguma sorte haverá um também em outro lugar.
O resultado do Carnaval carioca será muito polêmico.
Um incêndio no barracão da ex-campeã, que se suspeita tenha sido criminoso, e uma campeã vaiada no desfile das campeãs. Bota polêmica nisso e podem me convidar para aparecer na televisão que eu prevejo mais que a Mãe Diná!
“Lula, O Filho do Brasil” não vencerá o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro.
Considerando a atual onda de chamego entre Brasil e EUA (a Secretária de Estado americana chegou a dizer numa entrevista coletiva que o nosso Chanceler é “um homem lindo”) eu fiquei até com medo de que fosse falhar, mas os astros não me abandonaram. Eles tinham razão.

Imprecisões

O Flamengo anunciará planos de contratar pelo menos uma grande estrela do futebol internacional, mas não vai contratar ninguém.
Os astros só me mostraram a história até o momento em que o Grêmio preparava a festa para Ronaldinho. Depois desse momento a bola de cristal saiu do ar e eu precipitadamente achei que não precisava voltar a sintonizar de novo. Inexperiência de vidente de primeira viagem.
O papa dará uma declaração sobre planejamento familiar.
Que o papa daria uma declaração envolvendo as famílias e que isso seria polêmico os astros me contaram, só que eu interpretei errado: não era sobre planejamento familiar, mas sobre doações de órgãos. O chanceler do Vaticano declarou que o papa Benedito XVI não poderá doar os seus órgãos se morrer (não que alguém esteja interessado em seu decrépito coração) porque (ehem!) “caso ele seja declarado santo postumamente os tecidos doados se tornarão relíquias vivas nos corpos dos receptores”.

Pequenas Observações Desinteressantes

Caso não tenha notado os links no post, seguem as explicações.

1. Muito embora a gramática oficial insista que “hoje são” dezoito de março, eu insisto que “hoje é“ pelo simples fato de que eu considero implícito no contexto que hoje é [o dia] dezoito de março.

2. Como se sabe, o nome latino do papa é “Benedictus”, em italiano “Benedetto” e em inglês é “Benedict”. Ainda que em português o nome “Benedictus” tenha resultado em dois nomes diversos (“Benedito”, pela via erudita, e “Bento”, pela via popular) é meio estranha a escolha deste nome, porque demais papas que o escolheram eram chamados de Beneditos, e não de Bentos. Suspeito que houve uma certa dose de preconceito, envolvendo São Benedito. Mesmo porque, se a preferência fosse pelo nome popular, o papa São Sisto deveria ser chamado de São Xisto.


16
Mar 11
publicado por José Geraldo, às 22:20link do post | comentar | ver comentários (2)

Quanto você pagou pelo seu dia de hoje? Nada? Tem certeza? Provavelmente você está enganado, tanto quanto eu estive durante décadas perdidas de minha vida. Cada dia que você vive está pago, e muito bem pago, com uma moeda cujo valor subjetivo é maior que o do dólar e o do iene: a liberdade.

É com liberdade que você paga por lhe terem deixado vivo mais um dia. Com ela você comprou, indiretamente, o pão e o café que o prepararam para outra jornada. Esta, por sua vez, nada mais é do que a privação diária porque passa o homem, obrigado a coisas que não entende e que não lhe fazem sentido. Em vez de estar criando seus filhos, realizando seus sonhos, fazendo amor ou deitado à toa. Durante mais da metade das horas de cada dia, exatamente as horas melhores, aquelas em que você está mais alerta e se sente melhor. Justamente nelas não há mais liberdade, a não ser relativamente.

Em troca de você abandonar a sua liberdade, vão lhe pagando por ela valores variáveis. Nunca lhe pagam o que você quer: é sempre menos ou mais. Quanto mais lhe pagam, em relação ao que você espera, mais lhe tiram. Pagar sempre um valor diferente é uma forma de impedir que você perceba o valor exato desta condição. Se lhe pagam pouco, é porque você provavalmente lhe dá muito valor e é preciso que você passe a crer que ela vale menos. Se lhe pagam muito, é porque lhe deixam apenas o mínimo necessário para que você ainda respire hoje (mas nunca se sabe o dia de amanhã). Fazem isso aproveitando-se de que você acha que ela vale pouco. Se você avaliar com precisão, verá que, no fundo, a sua liberdade vale tanto quanto a do lixeiro que você despreza. Muda apenas quanto pagam.

Há muitas maneiras de tomar a liberdade de alguém, e a mais cruel de todas é a tomada preventiva da liberdade que ainda não pode ser gozada. Em palavras mais piegas: é tomar do homem a liberdade que ele ainda pode vir a ter no futuro. Isso se faz de várias maneiras. Pode ser, por exemplo, pelo acúmulo de responsabilidades (essas notas promissórias que pagamos com liberdade); ou pode ser de forma agressiva, deteriorando o seu corpo para que você não possa chegar a gozar da liberdade futura. O primeiro método é o preferido da sociedade, pois permite dar uma finalidade à liberdade que você não vai aproveitar. O segundo, que a inutiliza, é apenas uma maneira de assegurar que a liberdade seja restrita. Fazem isso quando não há uma demanda suficiente por liberdade, mas há muita oferta. É mais ou menos como fazem os produtores de leite quando não conseguem vender: jogam fora, mesmo com tanta gente passando fome. A economia exige isso: não haveria meios de levar esse leite a quem precisa. Quem pagaria o frete?

A vida vai passando e o seu estoque de liberdade vai minguando. E quanto menos liberdade você tem, menos lhe pagam por ela. Esse é o paradoxo econômico desta moeda, razão pela qual os economistas riem dela. A liberdade é uma commodity que só tem valor quando é farta. Aqueles que tem muita conseguem vender a um preço alto. Aqueles que pouca têm, esta escassa ainda têm de entregar a preço vil, isso quando não lhes é tomada de graça.

Mas um dia percebem que sua liberdade já acabou, nesse dia não existe mais utilidade no homem. Ninguém respeita ao indivíduo que já não é livre, ninguém o ama, ninguém o admira. Todos, no máximo, fingem isso. Neste momento o homem está pronto para aposentar-se. Não sendo já livre, não poderá desfilar pelas ruas com a indecência de seu livre-arbítrio arregaçada no rosto como um sorriso. Toda a admiração da sociedade pelo homem que finalmente se aposenta é idêntica à que ela tem pelo homem que finalmente cumpre uma longa pena. Alguns podem estar festejando lá fora dos portões, mas não creia que será possível reiniciar os esboços abandonados na infância.

Quando você se aposenta lhe dizem que você finalmente terá tempo para seus projetos. Possivelmente terá tempo, mas dificilmente terá ainda projetos. A privação da liberdade é uma condição que induz ao costume: nos tornamos tão afeitos a viver sem aproveitá-la que quando finalmente já não nos obrigam a deixá-la, não sabemos para onder ir.

Nos idos dos anos cinquenta ou sessenta, antes que eu nacesse, havia em minha cidadezinha natal um burrico que puxava a carroça de leite pelas ruas da cidade. Toda manhã o leiteiro o laçava no pasto, botava-lhe arreios e ia à Cooperativa comprar leite em garrafas. Depois saía pela cidade entregando aos fregueses habituais. Quando o burrico ficou velho seu dono, compadecido, como nossa sociedade, deixou o animal em um pasto em um bairro afastado, para que ali descansasse. O pobre bicho não aproveitou sua liberdade tão tardia: toda manhã, em vez de pastar o capim tenro e nadar no riacho, ele cruzava a cidade e parava à porta da Cooperativa, puxando uma imaginária carroça. Depois saía a esmo pela cidade, entregando oníricas garrafas de leite. E assim foi por algum tempo, até morrer, magro de tão pouco pastar. Pois o burrico livre comia menos do que antes, quando seu dono lhe dava capim à boca durante a viagem.

Se este fosse um texto de auto-ajuda eu terminaria dizendo que nossa liberdade é tão pouca e tão pouco nos deixam aproveitá-la, que é preciso, que é imperativo, que é sensato que a empreguemos toda, ao máximo, já, ontem! Ou então que a usemos “com sabedoria” (qualquer coisa feita “com sabedoria”, segundo as pregações dos sábios, precisa ser muito chata—a ponto de quase ser inútil).

Mas este não é um texto de auto-ajuda, eu não estou aqui para ensinar nada a ninguém, eu sou apenas aquele ruído que lhe acorda no meio da noite, parecendo um móvel que caiu ou algo que se quebrou na cozinha. Eu sou esse ruído que lhe faz pensar que há um ladrão em casa, e você treme sem saber se deve ir ver o que é ou se deve fingir dormir e deixar que o ladrão o roube, por medo de um tiro. A verdade é como um tiro, ou como um prato que se quebra na madrugada destruindo o seu sono inocente. Eu escrevi este texto porque eu já não durmo e quero que minha insônia se espalhe: é preciso urgentemente produzirmos liberdade, ou ela deve acabar—e nesse dia nenhum de nós terá valor algum. Pois não valemos nada se não somos livres nem felizes.


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Muito bom o seu texto mostra direção e orientaçaoh...
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Eu tenho acompanhado esses casos, não só contra vo...
Lamento muito que isso tenha ocorrido. Como sabe a...
Este saite está bem melhor.
Já ia esquecendo de comentar: sou novo por aqui e ...
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