Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
28
Abr 11
publicado por José Geraldo, às 21:32link do post | comentar | ver comentários (1)

Se as pessoas gostasem de pagar, não precisaria ser imposto.

Os funcionários do Imposto de Renda escolheram o leão como símbolo não foi à toa: é um bicho que mete medo, mas que vive somente a comer a carne dos outros. Mais do que isso: o leão macho come a carne que lhe entregam as leoas ou que ele rouba de outros animais caçadores. Raramente o leão macho sai à caça. A caça do leão macho é como a inspeção que a Receita Federal faz nos suspeitos de sonegar.

O Imposto de Renda é a única instituição na qual é violado o princípio da presunção de inocência: você deve, até que consiga provar que não. Mais do que isso, viola-se outro princípio sagrado: a Declaração Anual de Ajuste lhe obriga a produzir provas contra si mesmo.

É sintomático que a história esteja cheia de heróis que se insurgiram contra os impostos, como Robin Hood, Gandhi, Lady Godiva, Tiradentes e até São Nicolau (que pagou os impostos de uma família para que não tivesse de vender suas filhas como escravas, e assim virou Papai Noel). Jesus Cristo pagou o imposto de César, mas deixou claro que impostos não eram coisa de Deus: Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus. Nenhum assunto rendeu tanta guerra quanto a vontade de deixar de pagar, ou a ambição de passar a cobrar impostos. Os americanos fizeram a sua independência em cima da revolta contra algo parecido com um icms e a Suécia entrou na Guerra dos Trinta anos esperando conquistar territórios a fim de arrecadar mais impostos.

Nunca houve um país com um sistema de impostos justo, porque não é justo pagar impostos ao governo, tanto quanto não é justo pagar proteção à Máfia. A gente paga, e fazendo boca boa, porque o governo (geralmente) é preferível à Máfia. Em certos casos, porém, faz pouca diferença — e em outros a Máfia parece que faria menos mal ao povo que o governo. O ideal seria não haver nem governo e nem Máfia, mas enquanto esta não acabar, é melhor não acabar com o governo. O governo apenas multa quando eu atraso o pagamento.


26
Abr 11
publicado por José Geraldo, às 09:00link do post | comentar
Este texto é parte do romance “A Casa no Fim do Mundo”, de William Hope Hodgson (1907), que estou traduzindo em capítulos semanais. Visite o Índice para lê-los em sequência.

Enfim, depois de um tempo eu cheguei às montanhas. Então o rumo de minha jornada foi alterado e comecei a me mover ao longo de seus sopés até que, de uma vez, eu percebi que havia chegado diante de uma vasta falha que se abria através das montanhas. Através dela eu fui levado, movendo-me a uma velocidade não muito grande. Dos meus dois lados se erguiam imensas paredes escarpadas de uma substância rosada parecida com pedra. Muito acima eu discernia uma fina faixa vermelho, onde a boca do abismo se abria, entre inacessíveis picos. Dentro ele havia escuridão, profundeza e um silêncio sombrio e gelado. Por um momento eu segui firmemente adiante e então, por fim, eu vi à frente um forte brilho vermelho que significava que eu estava me aproximando do outro lado da ravina.

Um minuto veio e passou, e eu cheguei à saída do abismo, contemplando um enorme anfiteatro de montanhas. Porém, das montanhas e da grandiosidade terrível daquele lugar eu não tomei nota, porque estava confundido com a surpresa de perceber, à distância de vários quilômetros, ocupando o centro da arena, uma estupenda estrutura aparentemente construída de jade verde. Ainda assim, não foi a descoberta pura e simples do edifício que me assustou tanto, mas o fato, que a cada minuto ficava mais aparente, de que em nenhum detalhe particular, não ser pela cor, pelo material e pelo tamanho, aquela estrutura solitária diferia desta mesma casa em que eu vivo. Por um momento eu continuei a contemplar fixamente. Mesmo então eu mal podia acreditar que eu estava enxergando direito. Em minha mente uma pergunta se formou, reiterando-se incessantemente: “O que isto significa? O que isto significa?” e eu não sabia imaginar uma resposta, nem tentando usar toda a minha imaginação. Eu só parecia capaz de maravilhar-me e ter medo. Por um momento a mais eu olhei, notando cada vez um novo ponto de semelhança que me atraía. Por fim, cansado e doloridamente confuso, eu desviei os olhos para contemplar o resto do estanho lugar que havia penetrado.

Até aquele momento, eu tinha estado tão distraído em meu escrutínio da Casa que eu não tinha dado nenhuma atenção aos arredores. Então quando olhei comecei a entender qual era o tipo de lugar a que chegara. A arena, pois assim eu a chamei, parecia um círculo perfeito de cerca de vinte quilômetros, ou pouco menos, a Casa, como mencionei, ficava bem no centro. A superfície do lugar, tal como aquela da Planície, tinha uma aparência peculiar, nebulosa, que não era bem exatamente uma neblina.

Após a rápida pesquisa, meu olhar passou logo acima, ao longo das encostas das montanhas ao redor. Quão silenciosas elas eram. Eu acho que aquela quietude abominável me enervava mais do que qualquer coisa que tivesse visto ou imaginado. Eu olhava para cima, em direção aos cumes imensos, que se erguiam às alturas. Lá no alto, a vermelhidão impalpável dava uma aparência borrada a tudo.

E então, enquanto olhava, curiosamente um novo terror me atingiu. Porque além, entre os picos meio apagados à minha direita, eu notei uma vasta forma negra e gigantesca. Ela crescia diante dos meus olhos. Ela tinha uma enorme cabeça equina, com gigantescas orelhas e parecia olhar atentamente para dentro da arena. Havia algo em sua pose que me dava a impressão de eterna vigilância — de haver cuidado daquele lugar funesto desde eternidades desconhecidas. Lentamente o monstro se tornou mais visível para mim e então minha visão saltou dele para outra coisa mais além e mais alto entre os precipícios. Por um longo minuto eu observei, amedrontado. Eu tinha a estranha impressão de algo não de todo estranho, como se alguma coisa me provocasse no fundo da mente. A coisa era preta e tinha quatro braços grotescos. A fisionomia parecia indistinta ao redor do pescoço, eu notei vários objetos de cores claras. Lentamente os detalhes apareceram para mim e eu percebi, friamente, que eram caveiras. Corpo abaixo havia outro cinto, que se mostrava menos escuro contra o tronco negro. Então, enquanto ainda me perguntava o que a coisa poderia ser, uma lembrança escorregou para minha consciência e eu simplesmente soube que estava olhando para a monstruosa representação de Kali, a deusa hinduísta da morte.

Outras lembranças de meus dias de estudante deslizaram em meus pensamentos. Meu olhar retornou à imensa Coisa com cabeça de animal e simultaneamente reconheci-a como o antigo deus egípcio Set, ou Seth, o Destruidor de Almas. Com o reconhecimento chegou-me um questionamento arrebatador: “Dois dos…” Eu parei, e tentei pensar. Coisas além de minha imaginação miravam minha mente assustada. Eu vi, obscuramente, “os velhos deuses da mitologia” e tentei compreender o que isto implicava. Meu olhar permanecia, hesitante, entre os dois. “Se…” Uma ideia veio subitamente, e eu me virei e olhei rapidamente para cima, buscando entre os lúgubres precipícios, longe à minha esquerda. Algo se ocultava lá, sob um grande pico, uma forma cinzenta. Não entendi como não o vira antes, e então lembrei que ainda não tinha olhado naquela direção. Eu vi mais claramente então. Ele era, como disse, cinzento. Ele tinha uma tremenda cabeça, mas não olhos. Aquela parte de sua face era vazia.

Então eu vi que havia outras daquelas coisas entre as montanhas. Mais além, reclinado sobre um promontório elevado, eu discerni uma massa lívida, irregular e vampiresca. Ela parecia amorfa, a não ser por uma imunda cara animalesca. E depois eu vi outros, e havia centenas deles. Eles pareciam saindo das sombras. Vários eu reconheci quase imediatamente como deuses mitológicos, outros eram estranhos, muito estranhos, além do poder de concepção da mente humana. Em cada lado eu olhava e via mais, continuamente. As montanhas estavam cheias de Coisas estranhas: deuses ferozes, e horrores tão atrozes e bestiais que por impossibilidade e decência me nego a tentar descrevê-los. E eu estava cheio de um horror total, que me subjugava com medo e repugnância, mas mesmo assim, eu pensava em muitas coisas. Haveria algo verdadeiro, afinal de contas, nos antigos ritos pagãos, mais do que a mera deificação de homens, animais e elementos? A possibilidade me atraía: será que havia?

Depois uma outra pergunta se repetia. O que eram eles, aqueles deuses bestiais, e os outros também? A princípio eles me pareceram apenas monstros de escultura colocados indiscriminadamente pelos picos inacessíveis e precipícios das montanhas ao redor. Mas ao examiná-los com mais cuidado e atenção a minha mente começou a chegar a conclusões mais elaboradas. Havia algo a respeito deles, um tipo indescritível de vitalidade silenciosa que sugeria, para a minha consciência em expansão, um estado de vida inerte, uma coias que não era exatamente vida como a conhecemos, mas uma forma inumana de existência, que bem pode ser comparada a um transe imortal, uma condição a qual é possível imaginar que continue eternamente. “Imortal” — a palavra apareceu em meus pensamentos sem eu a evocar, e logo eu estava imaginando se esta não seria a maneira de os deuses serem imortais.

Foi então, em meio aos meus pensamentos e teorias, que algo aconteceu. Até então eu tinha estado coberto pelas sombras da saída da grande falha. Mas sem nenhuma intenção de minha parte eu saí da penumbra e comecei a me mover lentamente através da arena, em direção à Casa. Com isso eu abandonei todo pensamento sobre aquelas prodigiosas Formas acima de mim e só pude olhar, amedrontado, para a tremenda estrutura em cuja direção eu estava sendo levado tão sem cuidado. Mas embora procurasse diligentemente, não conseguia descobrir nada que eu já não tivesse visto, o que me acalmou gradualmente.

Naquele momento eu havia chegado ao ponto médio entre a Casa e a ravina. Tudo ao redor estava coberto pela forte solidão do lugar e o silêncio ininterrupto. Firmemente eu me aproximava do grande edifício. Então, de uma vez, algo me atraiu a visão, algo que veio dos lados de um dos suportes da Casa, e logo apareceu plenamente. Era uma coisa gigantesca, e se movia num passo curioso, andando quase ereto, à maneira humana. Mas estava quase sem roupas, e tinha uma aparência notavelmente luminosa. Foi, porém, a face que me atraiu e me assustou mais. Era a de um suíno.

Silenciosa, propositalmente, observei essa horrível criatura e esqueci meu medo, momentaneamente, prestando atenção em seus movimentos. Ela estava caminhando incomodamente ao redor do edifício, parando ao chegar a cada janela para olhar dentro e testar os caixilhos com os quais — tal como nessa casa — elas estavam protegidas, e sempre que chegava a uma porta, empurrava-a e enfiava o dedo na tranca furtivamente. Evidentemente o ser estava procurando uma entrada na Casa.

Eu tinha chegado então a menos pouco mais de um terço de um quilômetro da grande estrutura e ainda estava sendo empurrado para a frente. Abruptamente a Coisa se virou e olhou horrendamente em minha direção. Ela abriu a sua boca e pela primeira vez a paralisia daquele lugar abominável foi rompida por uma voz profunda e grave que me aumentou o medo e a apreensão. Imediatamente eu tomei consciência de quele ela estava vindo até mim, rápida e rasteiramente. Em um instante já havia andado metade da distância que havia entre nós. E eu ainda estava sendo levado inevitavelemente ao seu encontro. Menos de noventa metros depois e a ferocidade brutal do gigante me emudecia com um sentimento de horror inconsolável. Eu poderia ter gritado, na supremacia de meu medo, e então, no momento de mais extremo desespero, eu percebi que estava olhando a arena de cima, de uma altura que rapidamente crescia. Eu estava subindo, subindo. Em um instante inconcebivelmente curto eu tinha chegado a uma altitude de mais de trinta metros. Abaixo de mim, o lugar onde eu havia estado logo antes, estava ocupado pela grotesca criatura suína. Ela tinha caído de quatro e estava fuçando e escavando, como um verdadeiro porco, no chão da arena. Em um momento ela saltou sobre seus pés, olhando para cima, com uma expressão de desejo em seu rosto, tal como nunca a vi neste mundo. Continuamente eu ficava mais alto. Em poucos minutos, ao que parece, eu tinha me erguido acima das grandes montanhas, flutuando só, longe entre as nuvens vermelhas. A uma tremenda distância abaixo a arena aparecia, indistintamente, com a enorme Casa não parecendo mais que uma pequena nódoa verde. A coisa suína não era mais visível.

Então eu passeava sobre as montanhas, acima da enorme extensão da planície. Ao longe, sobre sua superfície, na direção do sol anelar, aparecia um borrão confuso. Olhei para ele, indiferentemente. Ele me parecia algo cuja primeira impressão eu tivera no anfiteatro entre as montanhas.

Com uma sensação de cansaço eu olhei para cima, para o imenso anel de fogo. Que coisa estranha ele era! Então, ao olhar, de seu escuro centro saiu um jorro súbito de fogo extraordinariamente vívido. Comparado ao tamanho do centro negro, ele não era nada, mas mesmo assim era por si mesmo estupendo. Com interesse desperto, eu observei cuidadosamente, notando sua estranha fervura e brilho. Então, em um momento, a coisa toda ficou ofuscada e irreal, e assim saiu de minha visão. Muito surpreso, eu olhei para baixo, para a Planície de onde ainda estava me elevando. Assim eu tive uma nova surpresa. A Planície, toda ela tinha desaparecido e somente um mar de névoa vermelha estava estendido abaixo de mim. Gradualmente eu o observei ficar mais remoto e definhar em um mistério apagado e avermelhado contra a noite impenetrável. Um momento depois e até isso tinha desaparecido, e eu estava envolto em uma escuridão impalpável e sem luz.


23
Abr 11
publicado por José Geraldo, às 19:16link do post | comentar | ver comentários (1)

Nós, fãs do bom e velho rock'n'roll, sempre soubemos da verdade, mas faltava uma comprovoção científica que nos apoiasse contra a grande mentira contada pelos breganejos, de que o rock é música “deprê”.

Aqui está uma e mais outra referência de estudos científicos que comprovam que, quanto mais estações tocando música sertaneja em determinada região, maior a taxa de suicídio!.

E para os que falam mal do rock, o recado do Nazareno: Calada!


publicado por José Geraldo, às 13:47link do post | comentar | ver comentários (1)

Vocês que acompanham este blog devem ter notado que iniciei um projeto de tradução do romance “The House on the Borderland”, a que intitulei “A Casa no Fim do Mundo” (o título significaria, literalmente, “A Casa Sobre a Fronteira”, mas isto faria pouco sentido para o leitor, razão porque preferi mudar). Como a obra é desconhecida no Brasil (apesar de ter sido escrita no início do século XX e até já estar, inclusive, em domínio público), alguns podem estar perguntando o que motivou a minha decisão de traduzi-la — e qual a relevância literária de um tal trabalho. Este artigo pretende responder, ao menos em parte, este tipo de questionamento.

Antes de mais nada devo dizer que não devemos nos limitar unicamente a fazer aquilo que é grande e que é relevante. Não devemos ler somente o que é clássico, nem devemos ouvir apenas a música que faz mais sucesso atualmente. É na diversidade que se acha o prazer da vida, como diz um sábio ditado: o que seria do azul se todos gostassem do amarelo. Minha decisão de traduzir a obra de William Hope Hodgson; ainda inédita em português, pelo que me consta; motiva-se principalmente pelo desejo de trazer o autor ao conhecimento de um público maior. Seria tolice minha afirmar que Hodgson é um clássico esquecido ou um gênio incompreendido da literatura: não tenho gabarito para tais afirmações. O que afirmo é que se trata de um autor que vale a pena ler, mas que quase ninguém no Brasil já leu, pelo simples fato de não ter acesso à sua obra em nossa língua. Traduzindo-a, permitirei que mais pessoas a conheçam e possam achar motivos próprios para gostar dela.

Um segundo motivo importante é a relevância deste autor para um gênero literário que está em voga atualmente: a literatura “fantástica” (aqui um rótulo abrangente para incluir ficção científica, fantasia, terror, mitologia, ficção histórica e outros temas que se cruzam facilmente na obra de seus maiores expoentes). Hodgson foi um pioneiro do gênero que hoje é chamado de “new weird”, que consiste em justamente empregar com liberdade os temas acima mencionados, e outros inclusive. Há cem anos, este inglês (aparentado com irlandeses) mesclava reencarnação, piratas do Caribe, cosmologia, histórias de marinheiro, romances platônicos, literatura gótica, lendas célticas, arquétipos mitológicos, teorias de psicologia e outras coisas, resultando em um universo caótico e rico.

Hodgson foi autor de uma obra extensa, caracterizada pela virilidade e autoconfiança de seus personagens, que no entanto não são sempre meros homens de ação. De sua obra, dois romances saltam à vista, pela grande qualidade de sua concepção e por estarem intimamente relacionados pelo tema: “A Terra Noturna” (The Night Land) e “A Casa no Fim do Mundo” (The House on the Borderland). Embora, à uma primeira vista, ambos sejam muito diferente (quanto à linguagem e à construção dos personagens, principalmente), os dois se complementares no aspecto da cosmogonia envolvida: uma cosmogonia pessimista que reflete muito o estado de espírito dos homens da Belle Époque.

“A Casa no Fim do Mundo” narra a história de um nobre irlandês, o nome nunca é dito, que se isola em uma antiga e estranha mansão, no extremo oeste do país, o chamado Gaeltacht — a região onde todo mundo falava (pelo menos na época em que a história se passa) apenas a língua irlandesa céltica. A casa, ele comprara por um preço irrisório, devido à fama de mal-assombrada, que lhe havia deixado sem morador por quase um século.

Nesta casa encontramos o narrador, cuja história nos chega através do “manuscrito” achado pelos senhores Tonnison e Berreggnog (uma estranha dupla de ingleses que, sabe-se lá por que motivo, resolveu acampar bem no meio do nada, em uma região da Irlanda cujo povo nem sabia inglês). Ele está diante de um mistério: a aparição de misteriosas criaturas de aparência suína, que passaram a atacá-lo desde que teve um transe que durara um dia inteiro, durante o qual obteve um vislumbre do universo. Acompanhamos este irlandês sem nome, que ali vive sozinho com uma irmã mais velha, chamada somente de “Mary”, enquanto enfrenta os tais caras de porco. Depois o seguimos em suas explorações do terreno, juntamente com ele fazemos interessantes descobertas sobre sua casa até, por fim, mergulharmos com ele em um gigantesco pesadelo cósmico que vai além de tudo quanto podemos imaginar e cujas consequências fogem não apenas às leis básicas da ciência, como vão até contra os princípios mais comuns da lógica narrativa. Tão poderosa e estranha é a narrativa da segunda parte do romance, cujo tom quase psicodélico deixa o leitor quase todo o tempo “sem chão”, que não são poucos os leitores que a rejeitam, não são poucos os que dizem que o romance “teria sido melhor” caso tivesse somente a primeira parte.

Gosto é gosto, uma afirmação tautológica até inútil, mas é verdade que sem a segunda parte “A Casa no Fim do Mundo” mereceria menos atenção, seria apenas uma história de horror bem material, sobre um esquisitão recluso enfrentando porcos espertos (ou algo assim). Certamente menos interessante do que o redemoinho de ideias a que a segunda parte tenta nos levar. Mas é justamente nesse redemoinho que está a parte que mais interessa a respeito de Hodgson: ali está sua singular concepção de um universo fantástico que mescla cosmologia clássica (pré-relativística) com elementos da mitologia grega, teorias de reencarnação, engenharia militar, ideais esportivos (fisiculturismo) e ideologia nacionalista. Uma senhora barafunda, que resulta em um universo fantástico original, muito diferente do padrão tolkieniano de elfos, dragões, feiticeiros e frágeis civilizações perdidas ambientadas numa idade média imaginária. Apenas para atiçar a curiosidade dos leitores, a inspiração de Hodgson não é um passado decadente, mas um futuro inevitável.

Hodgson não é um autor habilidoso com as palavras. Sua narrativa nunca soa redonda, devido à frequência irritante com que repete expressões e palavras, devido à pouca variedade da sintaxe e asperezas diversas. Os seus defeitos ainda foram exacerbados por sua tentativa de ir além dos limites de sua cultura, imitando canhestramente a linguagem de autores barrocos e neoclássicos sem ter vocabulário ou conhecimento filológico para isso. Tais defeitos são bem menos pronunciados em “A Casa no Fim do Mundo”, que está vazada numa linguagem mais chã e quase estudantil, mas prejudicam de modo terrível o seu melhor e mais relevante romance, “Terra Noturna”, a ponto de muitos críticos recomendarem que capítulos inteiros sejam saltados durante a leitura, ou que seja lido em versões resumidas. No entanto, uma tradução cuidadosa, enxugando um pouco dos defeitos da prosa de um autor que pouco interagia com a crítica ou com outros autores, revela a força imaginativa de um homem à frente de seu tempo em uma variedade de aspectos, que, porém, ainda assim, de outras maneiras, era preso a convenções e ideais do passado, como a castidade pré-nupcial, o romance cortês, os valores cavalheirescos e a força de uma religiosidade heterodoxa (Hodgson era espiritualista) que parecia, naquela era de fascínio pela ciência, uma sombra do medievo a repousar sobre seu caráter.

E tal tradução nos permitirá apreciar, em Hodgson, um gênero literário que estava ainda em sua infância, uma época em que ainda não havia se fixado na repetitividade que o caracterizou depois.


Uma lista de conceitos que fazem parte do universo ficcional de William Hope Hodgson

  • Ameaça Alienígena
  • Amor cortês
  • Arcologia
  • Armas misteriosas
  • Deuses Astronautas
  • Energias místicas
  • Fisiculturismo
  • Perigosos Trópicos
  • Poder das Pirâmides
  • Portais Dimensionais
  • Reencarnação
  • Romantismo da Pirataria
  • Terra Oca
  • Valores cavalheirescos
  • Viagem no Tempo
  • Virtude da Virgindade

Se você se interessou, saiba que a tradução terminou e estou preparando já o e-book. Confira os detalhes aqui.


22
Abr 11
publicado por José Geraldo, às 02:24link do post | comentar
  1. A partir de agora os capítulos de “A Casa no Fim do Mundo” sairão às terças-feiras. Já estou com a tradução bem adiantada e já há doze capítulos agendados para publicação, sempre nesses dias. A regularidade é uma virtude.
  2. Da mesma forma, passarei a evitar postagens nas segundas e quartas-feiras, dias que reservarei para outras finalidades. Se aparecer alguma postagem nesses dias, será sempre uma postagem programada, lançada nesta data para não se chocar com outra postagem da mesma semana.
  3. Conforme resposta dada ao amigo que deixou um comentário no Prefácio da “A Casa no Fim do Mundo”, estou aberto à possibilidade de ler e comentar livros de novos autores. Essas críticas não serão lançadas aqui, mas no blog Nossos Autores, que também está aberto para parcerias com blogs e comunidades do Orkut.
  4. De resto, sigo colocando regularmente pequenas obras de ficção e crônicas do mundo real.
assuntos:

21
Abr 11
publicado por José Geraldo, às 00:45link do post | comentar

Há neste blog uma postagem datada de 19/04/2011. Não haveria nada de extraordinário nisso se neste horário eu não estivesse internado no Hospital de Catagauses para realizar em caráter de emergência um procedimento de extração de cálculo renal por ureterotripsia. Portanto, aquela postagem não foi feita por mim naquele momento. A história dela é curiosa.

Hoje, ao chegar do Hospital, sentei diante do computador para me distrair das dores (sinceramente eu não desejo o que me aconteceu nem ao meu inimigo mais ferrenho) eu li esta postagem no Bule Voador, postada sob o título Advocati Fidei (acho que o latim certo seria advocatvs fidei, mas isso não é importante). A coincidência me chamou a atenção porque justamente minha mãe andou me “admoestando” por meu ateísmo, entre outras coisas dizendo que estas coisas ruins me estão acontecendo porque eu não creio no bondoso deus cristão (este ser de infinita bondade que coloca dolorosos cálculos renais nas pessoas que não creem nele, pois “se não for pelo amor, haverá de ser pela dor”). E justamente ao voltar dolorido do Hospital eu dou com a coincidência da postagem da tradução de uma música pró-religião em um site cético-ateu. Se eu fosse supersticioso, veria nessa coincidência um “sinal” e me arrependeria de minha impiedade (portanto, caras do “Bule Voador”, parem com essas postagens aí porque está parecendo que vocês estão anunciando as ofertas da concorrência).

Achei a música bonita (a beleza da arte sempre está acima e além de ideologias, em minha opinião) e me diverti fazendo uma outra versão (a que está no site, embora semanticamente correta, não está suficientemente “poética” ao meu gosto). Como eu já tinha uma postagem feita no dia 20/04/2011, optei por preencher a data do dia anterior com uma postagem que seria adequada ao “estado de espírito” de alguém que estivesse por internar-se para uma complicada operação. Não venham pensar, por causa disso, que eu estou “traindo o movimento ateu” (Dado Dollabela copyrights), apenas que tenho suficiente largueza de “espírito” para apreciar a arte que não joga no meu time, tal como tenho para conviver com pessoas que optam por estilos de vida diferentes dos meus. Não creio, porém, que um site evangélico topasse divulgar versões de qualquer das canções a seguir (mas o desafio fica feito):


“Orgasmatron”, Motörhead (1983)

“Free Will”, Rush (1979)

“Time”, Pink Floyd (1973)

Um pós-escrito interessante. Este texto também não foi escrito em 21/04/2011. Como eu já tinha postado alguma coisa ontem, resolvi usar o recurso de agendamento de postagens para mover este texto para o dia seguinte (“hoje”). Com isso ainda ganho tempo para postar algo mais legal dia 22 (“amanhã”).


20
Abr 11
publicado por José Geraldo, às 13:15link do post | comentar
Este texto é parte do romance “A Casa no Fim do Mundo”, de William Hope Hodgson (1907), que estou traduzindo em capítulos semanais. Visite o Índice para lê-los em sequência.

Sou velho. Vivo nesta casa antiga, cercada por imensos e descuidados jardins. Os camponeses que habitam os campos dizem que eu sou louco. Isto porque não tenho nada a ver com eles. Vivo aqui sozinho com a minha irmã mais velha, que também é a minha governanta. Não temos serviçais — eu os odeio. Tenho um amigo, um cão. Sim, eu prefiro o velho Pimenta do que todo o resto da Criação. Pelo menos ele me entende — e tem suficiente discernimento para me deixar sozinho nos meus momentos tristes.

Decidi começar uma espécie de diário, talvez ele me ajude a lembrar de alguns pensamentos e sentidos que eu não posso expressar para ninguém. Mas, além disso, estou ansioso para deixar algum registro das coisas estranhas que tenho ouvido e visto durante os muitos anos de solidão nessa velha construção tão estranha.

Faz dois séculos que essa casa tem sido famosa, uma má fama, e antes que eu a comprasse, por mais de oitenta anos ninguém tinha vivido aqui. Consequentemente, eu obtive esse velho lugar por um preço ridiculamente baixo.

Não sou supersticioso, mas parei de negar que há coisas acontecendo nesta velha casa — coisas que eu não sei explicar e que, portanto, devo aliviar da mente escrevendo seu relato, o melhor que possa, ainda que, se esse diário meu for um dia lido depois que eu me for, os leitores vão apenas sacudir a cabeça e ficar ainda mais convencidos de que estava louco.

Esta casa, como ela é antiga! Apesar de que a sua antiguidade impressiona menos, talvez, do que a esquisitice de sua estrutura, que é curiosa e fantástica o mais que se possa imaginar. Pequenas torres curvadas e pináculos de contornos que parecem chamas dançantes predominam, enquanto o corpo do edifício propriamente dito é em formato circular.

Eu já ouvi dizerem que há uma antiga lenda, contada pela gente do campo, segundo a qual foi o diabo que construiu esse lugar. No entanto, isso é tudo quanto dizem. Verdade ou não, não sei e não me importa, a não ser porque me ajudou a pechinchar, e aqui estou eu.

Eu devia estar vivendo aqui por uns dez anos quando comecei a ver o suficiente para dar crédito a quaisquer lendas a respeito dessa casa, correntes na vizinhança. É verdade que eu tinha visto antes, pelo menos uma dúzia de vezes, vagamente, coisas que tinham me intrigado e talvez estivesse mais impressionado do que parecia. Então, à medida em que os anos foram passando, trazendo a idade sobre mim, eu comecei a ficar mais consciente de alguma coisa invisível, mas inegavelmente presente nos quartos vazios e nos corredores. Ainda assim, como eu disse antes, passaram-se muitos anos até eu começar a ver quaisquer manifestações do que é chamado de sobrenatural.

Não foi no Halloween. Se eu estivesse contando uma história para divertimento eu certamente a situaria naquela noite entre todas as noites, mas este é um relato verdadeiro de minhas próprias experiências e não sou do tipo que leva a caneta ao papel para divertir os outros. Não. Foi após a meia-noite, na véspera do dia vinte e um de janeiro. Eu estava sentado lendo, como é o meu costume, no meu escritório. Pimenta estava deitado, adormecido, perto da minha poltrona.

Sem aviso, as labaredas das duas velas diminuíram e então brilharam com uma fluorescência verde medonha. Eu logo olhei, e ao fazê-lo vi as luzes mudarem para um tom encarnado forte, de modo que o cômodo brilhou como um entardecer vermelho, estranho e pesado, que deu às sombras atrás das cadeiras e mesas uma profundidade dupla de escuridão, e onde quer que a luz atingisse, era como se um sangue luminoso tivesse sido entornado.

No chão eu ouvi um choramingar baixo e assustado e alguma coisa se enfiou entre os meus pés. Era o Pimenta, escondendo-se de medo debaixo do meu roupão. Pimenta normalmente era bravo como um leão!

Foi esse movimento do cão, eu acho, que me deu o primeiro beliscão de um medo real. Eu tinha ficado consideravelmente assustado quanto as luzes primeiro queimaram em verde e depois em vermelho, mas tinha ficado então pensando que a mudança tinha sido por causa do sopro de algum gás venenoso no quarto. Porém logo vi que não era isso, porque as velas queimavam com uma chama firme e não davam sinal de estarem apagando, como teria acontecido se a causa fosse algum fluido na atmosfera.

Não me mexi. Fiquei distintamente assustado, mas não consegui pensar em nada melhor do que esperar. Por cerca de um minuto eu continuei observando nervosamente o quarto ao redor. Então notei que as luzes tinham começado a diminuir, muito lentamente, até ficarem reduzidas a pequenas partículas de fogo vermelho, como as cintilações de um rubi no escuro. Mas eu ainda continuei observando, enquanto uma certa sonolência e indiferença pareciam me afetar, espantando todo o medo que tinha começado a me subjugar.

No ponto mais distante do canto oposto daquele cômodo antiquado eu tive consciência de um brilho fraco. Mas ele cresceu sem parar, enchendo o quarto com os clarões de uma luz verdejante; então eles também definharam e se tornaram—da mesma forma que as labaredas das velas — de um carmim sombrio que ganhou força e iluminou o cômodo com uma inundação de horrível glória.

A luz vinha da parede externa, e se tornou mais brilhante até os seus raios intoleráveis causaram uma dor aguda em meus olhos, e eu involuntariamente os fechei. Devem ter se passado poucos segundos antes que eu conseguisse abri-los. A primeira coisa que notei foi que a luz tinha diminuído, e bastante, tanto que não mais agredia os meus olhos. Então, quando ela ficou ainda mais mortiça, eu percebi que em vez de estar olhando para a vermelhidão eu mirava através dela, e através da parede.

Gradualmente, ao me acostumar com a ideia, percebi que estava contemplando uma vasta planície, iluminada pela mesma luz melancólica de entardecer que embebia o cômodo. A imensidão daquela planície mal pode ser concebida. Em parte alguma eu pude notar seus confins. Ela parecia alargar-se e abrir-se de forma que o olho não conseguia ver seus limites. Lentamente os detalhes da parte mais próxima começaram a clarear e então, em pouco mais que um momento, a luz morreu e a visão—se aquilo tinha sido uma visão—se desfez e sumiu.

De repente eu tomei consciência de que não estava mais na poltrona. Em vez disso eu parecia estar pairando acima dela, e olhando para baixo e vendo uma coisa difusa, amontoada e quieta. Logo depois um golpe frio me atingiu e eu estava lá fora na noite, flutuando, como uma bolha, pela escuridão acima. À medida em que eu me movia, um frio enregelante parecia me envolver, e eu tremia.

Depois de um tempo eu olhei à esquerda e à direita e vi o intolerável negrume da noite, perfurado por remotas cintilações de fogo. Para frente, para fora eu seguia. Uma vez ao olhar para trás eu vi a Terra, um pequeno crescente de luz azul, recuando à minha esquerda. Mais além o sol, uma mancha de chamas claras, queimava vividamente contra o escuro.

Um período indefinido se passou. Então, pela última vez, eu vi a Terra—um persistente glóbulo de azul radiante, nadando em uma eternidade de éter. E ali eu, um frágil floco de poeira espiritual, hesitava em silêncio através do vácuo, deixando o distante azul, entrando nas larguezas do desconhecido. Um longo intervalo pareceu passar e então eu não podia ver mais nada. Eu tinha passado além das estrelas fixas e mergulhava no imenso negrume que espera além. Todo esse tempo eu tinha sentido pouca coisa, a não ser uma ligeira impressão de leveza e frio desconforto. Mas naquele momento a escuridão atroz pareceu invadir a minha alma e eu me enchi de medo e desespero. O que aconteceria comigo? Aonde estava indo? Tão logo tais pensamentos se formaram, apareceu contra a impalpável escuridade que me envolvia um pálido tom de sangue. Ele parecia extraordinariamente remoto e nebuloso, mas mesmo assim o sentimento de opressão foi aliviado e eu não me desesperei mais.

Lentamente, a distante vermelhidão se tornou mais distinta e maior até que, quando me aproximava, ela se espalhou em um grande e tremendamente sombrio brilho mortiço. Eu ainda seguia adiante e então chegara tão perto que ela parecia se estender abaixo de mim como um imenso oceano de sombras vermelhas. Eu só podia ver pouca coisa, exceto que parecia estender-se interminavelmente em todas as direções.

Pouco depois eu descobri que estava descendo sobre ela e logo afundei em um grande mar de nuvens avermelhadas e tristes. Lentamente eu emergi destas e então, abaixo de mim, eu vi a estupenda planície que tinha visto em meu quarto nesta casa que fica sobre as fronteiras dos Silêncios.

Então eu aterrissei e fiquei de pé, cercado por um imenso e solitário deserto. O lugar estava iluminado por um pôr-do-sol fugidio que me deva a impressão de uma desolação indescritível.

Ao longe à minha direita, lá no céu, queimava um gigantesco anel de fogo vermelho escuro, de cujas bordas se projetavam enormes e contorcidas chamas, pontiagudas e irregulares. O interior deste anel era negro, negro como a treva da noite exterior. Compreendi instantaneamente que era daquele sol extraordinário que o lugar recebia sua luz lúgubre.

Daquela estranha fonte de luz eu dirigi meus olhos às minhas cercanias. Em todo lugar que olhasse eu não via nada a não ser a exaustão uniforme de uma planície interminável. Em lugar algum eu podia discernir qualquer sinal de vida, nem mesmo as ruínas de alguma habitação antiga.

Gradualmente eu descobri que esta sendo levado para a frente, flutuando através do deserto plano. Pelo que me pareceu uma eternidade eu segui adiante. Eu não tinha noção de qualquer impaciência, embora alguma curiosidade e uma grande surpresa me seguissem o tempo todo. Sempre ao meu redor eu via a largura daquela planície enorme e sempre procurava por algo que rompesse a sua monotonia. Mas não havia nenhuma mudança—apenas solidão, silêncio e deserto.

Então, meio inconscientemente, eu notei que havia uma tênue nebulosidade avermelhada sobre a sua superfície. Mas quando eu olhei com mais atenção eu não conseguiu saber se era realmente neblina, porque parecia mesclar-se com a planície, dando-lhe uma irrealidade peculiar e trazendo aos sentidos a ideia de imaterialidade.

Gradualmente eu comecei a ficar cansado da continuidade da coisa. Mas ainda demorou muito tempo para que eu percebesse qualquer sinal do lugar para o qual estava sendo levado.

Por fim eu o vi, bem longe, como uma comprida cadeia de colinas no chão da Planície. Então, quando me aproximei, eu percebi que estava enganado, porque em vez de umas colinas baixas eu pude enxergar uma cadeia de grandes montanhas, cujos distantes cumes subiam até a luz vermelha e até se perderem quase de vista.


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Abr 11
publicado por José Geraldo, às 17:49link do post | comentar
Há cem bilhões de flocos de neve girando na fúria do cosmosCada um deles é uma galáxia, um bilhão de estrelas ou mais,E cada estrela, um milhão de terras, um gigantesco sol ardenteNo alto de algum céu, talvez brilhando sobre alguém.E bem no fundo de um floco de neve, flutuo em silêncio.Eu sou infinitesimal, impossível de ver.Sentado na pequenina cozinha de meu lar pequenino,Contemplo através da janela um universo de flocos de neve.Mas minha alma é muito maior do que este meu minúsculo eu,Estende-se pela nevasca, como uma rede pelo mar adentro.De todos os lugares adoráveis aonde meu corpo não pode ir,Eu toco a beleza e a abraço no seio de minha alma.E é tão breve e rápida esta minúscula vida minha,Como uma única semínima na marcha do tempo.Mas minha alma é a música, e vem desde tempos antigos.Antes de vestir a face humana, antes de levar meu nome.Porque minha alma é muito mais velha que o meu ser fugidioE sabe descrever a aurora do tempo como memórias de infância.Ela é uma fagulha produzida na escuridão tempos atrás,O que meu corpo esqueceu, continuo a lembrar em minha alma.Então vivemos juntos a vida, minha alma gigante e o mínimo eu.Uma aparência de eternidade, outra fumaça soprada na brisa.Uma oceano que permanente, outra uma onda súbita e fugaz.Contando as galáxias flocos de neve, juraria que somos iguais.Oh, minha alma pertence à beleza, me leva a alturas sublimes,Ensina-me histórias sagradas, santifica minha vida minúscula,Faz ponte entre as eras, dissolve as fronteiras dos ossos,Pinta para sempre uma face corajosa nesse momento passageiro.

18
Abr 11
publicado por José Geraldo, às 13:47link do post | comentar
Poetas são artistas. Sensatos, sensíveis.Sensacionalmente incensados, mas simples-      -mentepessoas que vivem, que mentem, que sãoaquilo ensaiam em sonhos, que sonhamaquilo que ensaiam de dia.Alguns temem fantasmas, outros atacam moinhos.Alguns amam à morte, outros se acabam no vinho.Todos que escrevem se acham demais.Loucos demais, gênios demais, sofridos demais.Mas sobretudo, o poeta se acha o único a ter— ou pelo menos o que mais merece —a atenção do leitor.Isolado entre parede ou pensativo no bar,cada poeta escolhe sua própria missão.Para alguns a regra é não encontrar uma regra,outros não vivem sem sua régua, sua rima,seu conjunto cuidadoso de crenças e vocabulário.São muitos os que gostam de versos,       muitos que cantam.Mas são poucos os que amam poetas,       poucos os que ouvem.O que há de raro nesta incongruênciaé que todo poeta começa mais cedoa enxergar o que ninguém enxerga.Captam conspirações, veem vilezas,fantasiam fantasmas, sonham sutilezas.Mas se esquecem, todos eles,de que não existe “O Poeta”, este ser      tão mitológico e notável.Há apenas a poesia, esta musa malbaratadanas mãos de muitos que não trabalham-na.Fazem da poesia uma escrava,ela que me sirva seus densos amorespara que eu os publique aos outros.Quantos têm o carinho de dar-se à poesiae aumentá-la com sua obra?
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publicado por José Geraldo, às 08:54link do post | comentar

Não é a primeira vez que eu vejo esse tipo de opinião circular pelo mundo. Mas desta, como apareceu na Internet, percebi que era preciso comentar.

A história tem tantos lados quanto podemos imaginar. E, na boa, história exige mais compreensão do que estudo: decorar datas é mais fácil que compreender os fatos nelas ocorridos. Como todo mundo se mete a entender de história só porque viu… documentários, leu meia dúzia de livros tendenciosos e viu o horário político, a nossa ciência está jogada na lama.Mas, tudo nesse mundo tem salvação (assim espero)…

Esta é só uma pequena postagem no Facebook, mas ela reflete de várias maneiras a ideia distorcida que os brasileiros têm da História — e das ciências humanas também, de certa forma. O autor disso provavelmente imaginou que estava sendo um paladino da ciência, e é normal que pense assim, pois esse tipo de pensamento recebe aplausos fáceis, até mesmo entre os profissionais de ensino: é praticamente uma tradição de nosso país considerar as ciências humanas menos importantes, concepção cristalizada até nos quadros de horários de nossas escolas, nos quais Português e Matemática têm cinco aulas semanais, enquanto História e Geografia têm somente duas cada. Então o que esse rapaz disse é fruto de um sistema que ensina desde cedo a desconsiderar como “menos importantes” certas áreas do conhecimento humano. E as pessoas propagam isso, sem perceberem que estão papagaiando um discurso ideológico alienante e obscurantista. Vamos demonstrar as falácias deste raciocínio:

A primeira afirmação é que A história tem tantos lados quanto podemos imaginar. Dizendo desta maneira, a História (com agá minúsculo) fica reduzida a um simples “causo” de pescador, ou a uma Lenda da Mulher de Branco, que cada um conta como quer, mudando os detalhes conforme sua preferência. Claro que existe quem pense assim ou até quem faça isso, mas História (agá maiúsculo) não é isso!

Podem me acusar de positivista (o que, para os que, como eu, mamaram nas tetas do Marxismo, uma ofensa), mas acredito que a História é uma tentativa metódica (portanto racional) de buscar o conhecimento de um fato realmente acontecido. O fato é objetivo, positivo. O que pode variar é a interpretação dos dados que conduzem ao fato. Como a História é metódica (portanto racional, e nunca é demais repetir), há um limite para o tipo de interpretação que se pode dar aos dados, o que significa que não há infinitas versões possíveis de um mesmo fato. Pode haver certa controvérsia quanto a interpretação de um documento, porém somente serão historicamente válidas as teorias que seguirem certo método. Vamos dar um exemplo.

Se acharmos um documento datado de abril de 1500 no qual um arquivista português comunique ao rei de Portugal o episódio do “descobrimento” do Brasil, não podemos usar tal documento como “prova” de que, no século XV, os portugueses conseguiam navegar entre a Bahia e Lisboa, em suas caravelas, no prazo de nove dias, no máximo. As únicas hipóteses racionais serão aquelas que considerarem como erro a data do documento novo (ou do antigo, a Carta de Caminha), ou ainda as que considerarem que o Brasil já era conhecido e a viagem de Pedro Álvares Cabral foi só formalidade diplomática. Imaginar as caravelas singrando o Oceano Atlântico à velocidade de um petroleiro moderno não é algo aceitável. Tudo, claro, considerando que o documento encontrado não seja forjado.

Logo em seguida, vem a afirmação de que história exige mais compreensão do que estudo. À primeira vista é uma afirmação quase tautológica, mas não é nada inocente o que ela implica: que História não precisa ser estudada. Esta é uma opinião que encontra eco profundo no nosso sistema educacional, não só entre os alunos mas também — lamentavelmente — entre certos maus professores que veem a escola como uma rinha, na qual devem digladiar-se por espaço no horário e onde as matérias que são “mais importantes” precisam sempre ter a “prioridade”. Você não precisa “estudar história” se tiver algo abstrato como “compreensão” (que é um privilégio talvez inato, visto que não precisa ser adquirido pelo estudo). Os que tiverem “compreensão” não precisam estudar datas e nomes “chatos”. Eu já tinha falado disso anteriormente, num artigo sobre a cultura de aplauso da ignorância que existe no Brasil e nos “atalhos” que desenvolvemos para não termos que aprender. Claro que uma afirmação dessas é chocante, por isso deve ser atenuada com uma frase bacana: decorar datas é mais fácil que compreender os fatos nelas ocorridos. Curioso é que quem diz que é “mais fácil” decorar datas está justamente dando uma justificativa para não ter que fazer isso. E se compreender os fatos é mais difícil, a lógica seria então que a História fosse mais estudada, pois ninguém pode compreender o que não conhece (não existe sabedoria na ignorância). Vê-se, porém, pelo contexto, que não existe a preocupação em estudar mais, mas em “compreender mais”.

A frase a seguir chega mais longe na incongruência: Como todo mundo se mete a entender de história só porque viu documentários, leu meia dúzia de livros tendenciosos e viu o horário político, a nossa ciência está jogada na lama. Eu não consigo alcançar o que o autor desta frase quis dizer, mas fica parecendo (e devemos julgar as pessoas de acordo com o que elas dizem — e não com o que pensaram em dizer) que assistira a documentários, ler “meia dúzia de livros” e assistir o horário político (todas ferramentas que estão ao alcance dos interessados, graças à televisão por assinatura, às bibliotecas e a outras ferramentas de acesso público) não são meios eficientes para alguém chegar a “entender de história”. Há dois problemas com esta afirmação.

O primeiro problema é o elitismo, que já ficava evidente na afirmação anterior, sobre a “compreensão” em vez do “estudo”. Não adianta você recorrer aos meios populares de difusão de conhecimento, pois você não chegará a “entender de história” através deles. Para “entender de história” você precisa de outra coisa (que pode ser uma “sabedoria” inata ou algum conhecimento arcano, a que somente privilegiados podem ter acesso). A História se reveste, então, de uma aura mística, sagrada, alheia-se da “necessidade” do povo. E não custa nunca lembrar que o “povo” precisa aprender muita gramática e muita matemática e muita ciência.

O segundo problema está na parte final. Por que a nossa ciência está “jogada na lama” como consequência de “todo mundo” se meter a “entender de história” vendo documentários e lendo livros tendenciosos? Ora, bolas, porque estas pessoas que se metem a entender de História, evidentemente, não estão estudando matemática, português e “ciência” (às Ciências Humanas é muito comum que seja contestado o status). Veja só que coisa, esta gente que fica tentando “entender de história” é que está jogando a ciência na lama. Não, a culpa não do governo, que mantém um sistema educacional tão inepto que só pode ser de propósito, a culpa não é de nossa sociedade e seus valores, a culpa é, claro, de quem tenta ter acesso a um conhecimento que não é para o bico do povo. A culpa, é claro, é da vítima!

Mas ainda tem caroço nesse angu. Esta gente que “se mete” a “entender de história” costuma ficar de crista alta, reclamando da vida, apontando para certas coisas que não se deveria discutir. Teria sido bem melhor só estudarem português, matemática e “ciência”. Então, quando essa gente surge, discutindo temas difíceis, pondo pimenta no olho de quem não quer enxergar as raízes antigas de nossos problemas de hoje, é preciso desqualificar, é preciso rebaixar, é preciso viralatizar.

E aqui chegamos ao terceiro dos problemas implícitos nessa frase tão curta: a falácia de que, na impossibilidade de se ter o conhecimento perfeito, o conhecimento imperfeito não tem valor. Leia de novo e observe bem: Como todo mundo se mete a entender de história só porque viu documentários, leu meia dúzia de livros tendenciosos e viu o horário político…

Está bem claro aí que o conhecimento que se obtem assistindo documentários, lendo alguns livros e assistindo horário político é um conhecimento inútil por ser parcial. Empregando a reductio ad absurdum, pode-se dizer que é melhor ser analfabeto do que ler mal. Como o autor da frase certamente não cometeria a insanidade de estar de acordo com esta reformulação, imagino que negará ter querido dizer que o conhecimento incompleto obtido através de documentários, livros e “horário político” seria inútil. Mas, como dizia Nietzsche, o importante não é como você pensa, mas como você o diz.

Gostaria de dizer ao autor destas frases que eu não acredito que ele seja pessoa má, que defenda o obscurantismo ou algo assim. Estas coisas que ele disse não são, de fato, pensamentos seus, mas chavões populares em nosso país. Ele apenas papagaiou o que se diz por aí, possivelmente sem nem refletir sobre os nuances do que disse. Uma característica destes chavões é que eles simplificam os problemas e oferecem, então, explicações fáceis para questões difíceis. Existe uma ilusão entre os ignorantes de que existe um atalho para o conhecimento sem passar pelo estudo. O sonho das pessoas que ignoram uma matéria é conseguirem a esperteza de chegarem à outra margem do rio sem passar pela ponte. Assim, toda explicação simples fica rapidamente popular e aqueles que assimilam tais “verdades” se arraigam a elas porque ali acham o que antes lhes fazia falta. Através das explicações simples, o ignorante supera a sensação de insegurança. Ele então passa a encarar esta explicação simples como um verdadeiro artigo de fé.

Não pretendo me aprofundar sobre este mecanismo de crença, porque reconheço minha limitação nesse campo. O que digo é o que ouvi dizerem pessoas que sabiam mais do que eu. Quero apenas concluir dizendo que é preciso denunciar esta ideologia segundo a qual a História é uma espécie de “vale tudo”. Não há esperança para a educação no Brasil, nem mesmo para o ensino das matérias “importantes” enquanto nós encararmos o conhecimento pela ótica desta estratégia de “redução de danos”, que nos impele a evitar ao máximo a necessidade de aprender. É por isso que se “prioriza” matérias que são importantes, é por isso que existem os “macetes” de vestibular e concurso, é por isso que os livros de auto-ajuda fazem sucesso. Estudar e aprender são coisas tão horríveis na mentalidade do brasileiro, que é preciso evitar ao máximo. Vamos aprender o que é “importante” e não é preciso saber a matéria se você tiver os “macetes” da prova de múltipla escolha.

Só que tem uma coisa engraçada: quando você começa a “priorizar” conhecimentos, criando uma hierarquia de importância (na qual muita gente acha que História fica abaixo até do Ensino Religioso), você cria um efeito progressivo de downsizing que termina com o desmonte de todo o sistema. A escola que hoje não acha importante ensinar História, facilmente chegará ao ponto em que “ensinar” em si deixará de ser importante, desde que se consiga “socializar o aluno” e “instrumentalizá-lo” para o convívio enquanto cidadão de uma sociedade democrática.

Para terminar, um caso curioso, que muita gente deve lembrar. Há alguns anos, ainda no tempo em que fazia o “Caco Antibes” no programa humorístico “Sai de Baixo”, Miguel Fallabela protagonizou o anúncio de uma coletânea da Som Livre (hoje exorcizada da Web) que usava o slogan “O Melhor do Melhor, dos Melhores”. Acontece que era uma antologia de música clássica, em um álbum duplo. Se considerarmos que a música “clássica” abarca mais de cinco séculos de tradição e que algumas de suas obras possuem horas de duração, não é difícil imaginar que o resultado foi uma coletânea de vinhetas das grandes obras. Quem a comprasse ouviria apenas trechos soltos, e não as obras propriamente. Da mesma forma como você não fica conhecendo Beethoven só porque botou Für Elise como toque de seu telefone celular. Um sistema educacional que tão arbitrariamente discrimina entre as áreas de conhecimento pode acabar, como a Som Livre, produzindo uma coletânea de vinhetas, de pedaços amputados das obras originais. Vinhetas de conhecimento não ajudam ninguém a se tornar realmente competente e nem sábio. No máximo servem como toque de celular.


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Ótima informação, recentemente usei uma charge e p...
Muito bom o seu texto mostra direção e orientaçaoh...
Fechei para textos de ficção. Não vou mais blogar ...
Eu tenho acompanhado esses casos, não só contra vo...
Lamento muito que isso tenha ocorrido. Como sabe a...
Este saite está bem melhor.
Já ia esquecendo de comentar: sou novo por aqui e ...
Essa modificação do modo de ensino da língua portu...
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