Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
07
Abr 11
publicado por José Geraldo, às 23:06link do post | comentar | ver comentários (1)

Quando ocorre uma tragédia de grandes dimensões humanas, algo infelizmente frequente, há muitos que se apressam em dizer que “este mundo está é perdido” e que nós vivemos o suposto “final dos tempos”. Quem estuda a História da humanidade a fundo sabe muito bem que jamais deixou de haver este conceito tão popular, de que o mundo “está acabando”, mas apesar de tudo o mundo segue aí, firme e forte em sua marcha rumo ao caos. Podem me acusar de insensível, mas a verdade é que quando fazemos uma análise detida da realidade, o que vemos é que o caos não é um acidente, o caos é uma característica. O mundo vai continuar, monstruoso e caótico como sempre foi.

Em um de seus discursos contra o conspirador Catilina o romano Cícero, contemporâneo ou quase do lendário Jesus Cristo, lamentou a decadência dos costumes de sua época: “Que tempos, que costumes!” — ou, como se dizia em latim: “o tempora, o mores”. Invectivas semelhantes podem ser encotradas por toda parte nas literaturas antigas: Egito, Índia, Mesopotâmia, Grécia. Não foram os gregos que imaginaram que viviam uma insossa “Idade do Ferro”, estágio final de degradação da humanidade, que já havia passado por uma Idade do Ouro, uma Idade da Prata e uma Idade do Bronze?

Mas apesar de toda a lamentação dos que contemplam as mudanças, “o novo sempre vem”, como profetizou Belchior, antes de desaparecer.

Talvez a coisa mais difícil a enfrentar nesse mundo não seja a existência propriamente dita de injustiças e violências, mas o fato de que o mundo continua depois. Como sentenciou Millôr Fernandes, em sua peça “A História é uma História”: “O crime foi espantoso, mas o morto nem liga.”

Apesar de tudo que vivemos, apesar de tudo que nos fizerm (de bom ou de mau), se amanhã estivermos mortos ou esquecidos a marcha amoral do mundo vai continuar. Com ou sem as ararinhas azuis extintas, o mundo vai continuar. A roda inexorável da História vai seguir adiante e o “fim dos tempos” é apenas um desejo que o injustiçado tem de que o seu sofrimento seja o derradeiro sofrimento, de que sua morte seja mais significativa do que todas as demais que aconteceram antes. É apenas uma forma de se sentir especial: achamos que o mundo está acabando porque achamos que sofremos mais do que sofreram nossos pais, pois antigamente “era melhor”.

Quando nascer o amanhã, haverá outras mortes, outros crimes, mais caos. O mundo continuará com as garras vermelhas de sangue, de culpados e inocentes, indistintamente. A poesia não morreu em Auschwitz, ao contrário do que disse um poeta soviético cujo nome não vou pesquisar agora na Wikipedia. Aliás, hipócrita este poeta que não via o caos doméstico, mas tinha a permissão de dramatizar as valas e os fornos alemães.

Somos assim ainda. Somos ainda cegos demais para entender que somos insignificantes, que nossa morte, nosso sofrimento, nada disso representa uma ameaça à continuidade do mundo. Muito pelo contrário: é nosso sonho louco de que possuímos alguma capacidade de afetar a continuidade do mundo que está colocando em risco a nossa própria continuidade enquanto espécie.

Não é o fim dos tempos, é apenas “o de sempre”. Violência é o mel do homem. Com ela estupramos a natureza e criamos para nós um espaço muito maior do que as nossas savanas originais. Nesse momento em que o caos nos aflige de tantos lados simultâneos, com seu ruído e sua cara feia, somos apenas codornas apertadas numa gaiola. O caos é apenas uma estratégia evolutiva: nós nos destruímos para abrir espaço porque estamos sufocados demais pela presença do outro.


publicado por José Geraldo, às 12:40link do post | comentar

Nenhuma música até hoje escrita faz jus à riqueza do silêncio. As notas musicais podem ser capazes de evocar os mais estranhos sentimentos, mas não conseguem oferecer ao ouvido e à alma a sensação de delicioso esvaziamento que só se obtem na profundidade do silêncio.

Afirmo isso a partir da experiência de ser um raro privilegiado: não conheço muitas pessoas que possam, como eu, orgulhar-se da experiência do silêncio real. Não, não me diga que você já o conseguiu. Pelo menos não antes de refletir se aquilo a que está chamando de “silêncio” o era de fato. Amigo, eu lamento lhe dizer, mas vivemos em um mundo no qual o silêncio é quase inconcebível, praticamente desconhecido, algo à borda da ilegalidade.

Aonde quer que o ser humano vá, encontra o barulho ou o leva consigo. Quando foi a última vez que conseguiu calar-se e fechar os olhos sem que a paz de sua alma fosse interrompida por alguma música, pelo ruído de alguma ferramenta, pelo som de algum aparelho eletrônico, pela voz de pessoas tensas? Quando foi, tente dizer-me? Eu, que ouso me afirmar como um conhecedor do silêncio, tenho de confessar que mal me lembro da última vez que o conheci. Na verdade, meu amigo, há dias em que suponho, lamentavelmente, que este silêncio que eu tanto venero na verdade somente existe como uma lembrança tão distante que pode ser de um sonho em vez de um fato. Mas na maioria dos dias eu tenho a certeza de que, sim, eu sei o que é o silêncio.

O silêncio é quando você consegue ouvir o ruído do sangue passando pelas veias de sua cabeça, quando o canto do mais frágil pássaro parece alto o bastante para chamar-lhe a atenção. Silêncio é quando não há o ruflar de passos, nem o ronco de motores, nem o burburinho de humanos e nem a arenga de animais. O silêncio “soa” em seus ouvidos como um silvo suave que assanha os seus sentidos. Quando você o ouve, tem a impressão de que existe algo além das montanhas, uma realidade qualquer dentro das pedras, atrás das árvores, passando por entre as nuvens. Esta é pressão da natureza contra os seus ouvidos, esta a força dos dedos do silêncio ao redor de sua cabeça.

Nenhuma música até hoje escrita faz juz à riqueza disso, à beleza que existe nisso — e ninguém o compreende. Somente os que enxergam a beleza da tela virgem, que apreciam a textura delicada do papel ainda limpo, que contemplam a pele imaculada da manhã tão logo nasce o sol. A velhice é como a obra dos pincéis, a vida é um ruído na ininterrupta textura original das eras silenciosas. Velhice e vida são conspirações contra a beleza intocada da natureza.

Não. Não existe esse silêncio de que tenho saudades. Aonde quer que o homem vá, encontra o barulho ou o leva consigo. Nossa civilização se esmera nisso: em construir aparelhos produtores de ruído. Para expulsar de toda parte esta simplicidade original que denuncia o agito fútil da civilização cheia de si, avessa à beleza.


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