Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
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Mai 11
publicado por José Geraldo, às 09:00link do post | comentar
Este texto é parte do romance “A Casa no Fim do Mundo”, de William Hope Hodgson (1907), que estou traduzindo em capítulos semanais. Visite o Índice para lê-los em sequência.

Devia ser mais ou menos três da manhã e então o céu oriental começou a empalidecer com a chegada da aurora. Gradualmente o dia chegou e, graças à sua luz, fiz a uma inspeção dos jardins, com toda atenção, mas em lugar algum consegui ver qualquer sinal dos brutos. Inclinei-me e olhei para baixo até o rodapé da parede para ver se o corpo da Coisa que eu tinha alvejado durante a noite ainda estava lá. Mas tudo sumira. Creio que os outros monstros o levaram durante a noite.

Então saí para o telhado e fui até a falha de onde a cornija havia caído. Lá chegando, olhei por cima. Sim, lá estava a pedra, tal como a vira pela última, mas não havia aparência de coisa alguma sob ela, e nem pude ver as criaturas que tinha matado depois de sua queda. Era evidente que também elas tinham sido levadas. Voltei ao meu escritório e ali me sentei, bem preocupado. Estava bastante cansado. O dia ainda era claro, embora os raios do sol não fossem perceptivelmente quentes. Um relógio bateu as quatro horas.

Acordei assustado e olhei em volta preocupado. O relógio no canto indicava serem três horas. Já era tarde, eu devia ter dormido por quase onze horas.

Movendo-me desajeitadamente eu me sentei mais ereto na cadeira e ouvi. A casa estava perfeitamente silenciosa. Lentamente levantei da cadeira e bocejei. Ainda estava desesperadamente cansado e tive de sentar de novo, pensando o que me teria acordado. Devia ter sido o relógio batendo as horas, eu concluí em um instante e comecei a ficar sonolento, então um ruído súbito me trouxe de volta à vida, mais uma vez. Era som de passos, como se uma pessoa estivesse andando cautelosamente através do corredor, em direção ao meu escritório. Num instante me pus de pé e peguei o meu rifle. Sem fazer barulho esperei. Será que as criaturas tinham conseguido entrar, enquanto eu dormia? Eu ainda fazia a pergunta quando os passos chegaram à porta, pararam por um momento e logo continuaram a descer pelo corredor. Silenciosamente, pé ante pé, fui até a porta e olhei para fora. Então experimentei uma tamanha sensação de alívio que eu parecia um criminoso absolvido — era a minha irmã. Ela estava indo em direção às escadas.

Saí ao corredor e ia chamá-la quando me ocorreu que era bem estranho que tivesse passado pela minha porta daquele jeito furtivo. Eu fiquei confuso e por um breve momento me ocupou a mente a ideia de que não era ela, mas algum novo mistério da casa. Então vi um detalhe de sua velha anágua e logo tal pensamento passou tão rápido como tinha surgido, e eu quase sorri. Não poderia haver engano nenhum quanto àquela antiga peça de roupa. Porém eu ainda estava sem entender o que ela estava fazendo e, lembrando a sua condição no dia anterior, julguei que seria melhor segui-la, sem fazer ruído, e ver o estava indo fazer. Se agisse racionalmente, muito bem. Caso contrário, eu teria que agir para impedi-la. Eu não poderia correr riscos desnecessários, não diante daquele perigo que nos ameaçava.

Cheguei rapidamente ao alto da escada e parei por um momento. Então escutei um som que me fez sair correndo para baixo como um louco: era o barulho de trancas sendo abertas. A minha tola irmã estava abrindo a porta dos fundos.

Quando a sua mão já estava a ponto de abrir a última tranca eu cheguei até ela. Ela não tinha me visto, e a primeira coisa que viu foi já a minha mão segurando o seu braço. Ela olhou para cima, como um animal assustado, e deu um grito alto.

— Calma lá, Mary! — disse-lhe, severamente — o que significa tal absurdo? Será que você não compreende o perigo a ponto de tentar pôr as nossas duas vidas a perder desta maneira!?

Diante disso ela não respondeu nada, apenas tremeu violentamente, engasgando e soluçando, como se estivesse no último extremo do pavor.

Por alguns minutos discuti com ela sobre a necessidade de ter cuidado e pedi que tivesse coragem, pois havia pouca coisa que temer, segundo lhe disse — e eu queria acreditar que falava a verdade — mas ela ainda precisava ser sensata e não tentar deixar a casa por alguns dias.

Por fim parei, em desespero. Não tinha sentido conversar com ela, pois obviamente não estava em si naquele momento. Finalmente lhe disse que devia ir para seu quarto, já que não conseguia comportar-se racionalmente.

Mas ela ainda não me ouvia. Então, sem mais espera, tomei-a nos braços e a levei para lá. No começo ela gritou loucamente, mas já tinha recaído em uma tremura silenciosa antes que eu chegasse às escadas.

Chegando no seu quarto, deitei-a na cama e a deixei lá quieta, sem falar nem soluçar — apenas tremendo com uma agonia de pavor. Peguei um cobertor que estava estendido sobre uma cadeira e estendi sobre ela. Eu não sabia fazer nada mais, então fui para onde o Pimenta deveria estar, em sua grande cesta. Minha irmã tinha tomado conta dele desde que ele se ferira, tratando-o com cuidado, pois a chaga se mostrara mais grave do que eu tinha pensado antes, e notei, satisfeito, que apesar de seu estado mental alterado, ela tinha olhado pelo cão corretamente. Inclinei-me sobre ele e lhe chamei, em resposta ele lambeu minha mão debilmente. Estava muito fraco para conseguir fazer mais do que isso.

Então a caminho da cama, fui até minha irmã e perguntei como se sentia, mas ela só tremeu mais e, ainda que isso me agoniasse, tive de admitir que a minha presença parecia fazê-la sentir-se pior.

Assim a deixei, pondo a tranca na porta e guardando a chave comigo. Parecia ser a única coisa sensata a fazer.

O resto do dia eu passei entre a torre e o escritório. Para comer subi com um pão da despensa. Com ele e um pouco de vinho rosado eu vivi o dia.

E que longo e cansativo ele foi. Se tivesse ao menos saído aos jardins, como gosto tanto, poderia ter ficado bem mais contente, mas ficar acuado nesta casa silenciosa, sem outras companhias a não ser uma mulher fora de si e um cão ferido, era bastante para dar cabo dos nervos mais fortes. E nas moitas densas ao redor da casa escondiam-se, pelo que podia supor, as infernas criaturas suínas, esperando alguma chance. Algum homem enfrentara alguma vez tal provação?

Uma vez durante a tarde e outra vez, bem depois, visitei minha irmã. Da segunda vez a achei cuidando do Pimenta, mas com a minha aproximação ela se arrastou para o canto oposto do cômodo, desapercebida, num gesto que me entristeceu além da conta. Pobre garota! Seu medo me feria intoleravelmente, e eu não devia provocá-la sem necessidade. Ela ficaria bem, eu pensei, dentro de alguns dias. Enquanto isso, era melhor eu não fazer nada, a não ser deixá-la ficar naquele quarto. Uma coisa, porém, me serviu de encorajamento: ela comera um pouco da comida que lhe levara da primeira vez.

Assim passou o dia.

Quando a noite se aproximou, o ar ficou mais frio e comecei a fazer meus preparativos para passar a minha segunda noite na torre — levando para lá mais dois rifles e uma pesada capa de lã. Os rifles eu carreguei e pus juntos no chão, porque queria fazer as coisas ficarem quentes para qualquer criatura que pudesse aparecer durante a noite. Eu tinha muita munição, e pensei em dar aos brutos uma lição tamanha que lhes mostraria a futilidade de tentar forçar entrada.

Depois disso eu fiz outra inspeção da casa, dedicando atenção especial às escoras que apoiavam a porta do escritório. Então, sentindo que tinha feito tudo o que podia para me tranquilizar quanto à nossa segurança, eu voltei à torre, a caminho fazendo uma visita final à minha irmã e ao Pimenta. Ele estava dormindo, mas acordou quando eu entrei e sacudiu a sua cauda em reconhecimento. Pareceu-me que estava um pouco melhor. A minha irmã estava deitada, embora não fosse possível saber se estava dormindo ou não, e assim os deixei.

Chegando à torre pus-me tão cômodo quanto as circunstâncias permitiam e me sentei para vigiar por toda a noite. Gradualmente a escuridão desceu e logo os detalhes do jardim se mesclaram em sombras. Pelas primeiras horas fiquei sentado e alerta, ouvindo todo som que pudesse me ajudar a determinar se havia algo se mexendo lá embaixo. Estava muito escuro para os meus olhos servirem para alguma coisa.

Lentamente as horas passaram, sem nada incomum acontecer. E então a lua apareceu, mostrando que os jardins estavam aparentemente vazios e silenciosos. E assim foi por toda a noite, sem perturbações e nem ruídos.

Já quase pela manhã eu comecei a ficar rígido e enregelado por causa da minha longa vigília, e também ficando muito tenso com a contínua quietude da parte das criaturas. Eu receava isso e preferiria que elas tivessem atacado a casa abertamente. Só assim, pelo menos, poderia ter noção do perigo que corria e poderia enfrentá-lo. Mas esperar daquela maneira, durante a noite inteira, imaginando todo tipo de diabruras, era capaz de desarranjar a sanidade. Uma vez ou duas até me ocorreu a ideia de que poderiam ter ido embora, mas em meu coração eu achava impossível acreditar nisso.


29
Mai 11
publicado por José Geraldo, às 10:45link do post | comentar

Eu tenho um armário cheio de vidas que eu não vivi. Cada uma delas daria um romance. Lembro da noite em que poderia ter ido à praça com os amigos, mas fui ver o futebol. Lembro de quando ganharia uma camisa do Botafogo de um primo meu para deixar de torcer para o Atlético. Lembro do relacionamento que nunca começou. Cada um desses inúmeros acontecimentos daria início a um futuro que eu não vivi. Vários deles poderiam ser melhores, nenhum deles foi possível, qualquer um deles poderia ter me levado a um lugar diferente deste a que cheguei, melhor ou pior.

Eu tenho um porão repleto de erros que cometi. Cada um deles justificaria que eu fugisse. Lembro de palavras que disse na hora errada e que me fizeram ouvir coisas que me esquentaram as orelhas. Lembro de enganos que mataram esperanças. Lembro de acidentes que quase me mataram porque simplesmente entrei na curva errada. Lembro de ter feito tanta coisa de que me arrependo que há dias que eu abro a porta de casa me perguntando se quero mesmo sair à rua e correr o risco de topar lá fora com uma das pessoas que testemunharam minhas vergonhas.

Eu tenho um álbum cheio de fotografias faltando. De cada uma delas resta uma sombra no encardido da página envelhecida. Fotografias que me roubaram, outras que eu presenteei, muitas que eu perdi. Cada uma delas é a lembrança de alguém que não existe mais, que saiu de perto de mim, que eu expulsei, que eu nunca mais vi. Cada ano que passa, dos anos passados restam menos imagens. Esse meu álbum vazio tem uma melancolia indescrita, demarcada, fria. Todas essas pessoas que às vezes passam em bolsos alheios, que vivem em lugares aonde não vou nunca mais.

Quando me dou conta de tudo isso, percebo o quanto sou aleatório, precário. Ainda que eu tenha seguido sempre uma estrada estreita, de barrancos altos, encontrei nela muitos cruzamentos, e nenhum retorno. Eu não sei rir muito bem, talvez tenha sabido um dia. Hoje em dia tudo me parece tão forçado, tão difícil. Rio antes de terminar a piada, de pressa. Rio rápido demais, não acompanho o fio da graça. Não tenho mais parâmetros disso. Meu riso se perdeu com algumas das fotografias que não tenho mais, foi oprimido por algum dos erros que me envergonharam, algo assim.

Atingi um grau de solidão. Vou sempre isolado dentro de um vazio, como um amendoim em sua casca. Hoje me sinto o capitão de um barco solitário, que persegue o fim de um rio calmo. A fatalidade da foz já me enerva, porque o rio está largo e fundo, fácil de afogar-me. Ninguém nadará até aqui, não há ancoradouro e não adianta remar na correnteza. As pessoas na margem ouvem o meu riso na neblina que me cerca e acham que eu sou um fantasma.

Eu tenho um armário cheio de vidas que não vivi, tenho um álbum cheio de fotografias faltando e tenho um porão repleto dos erros que cometi. Poderia ter sido diferente de quem sou, melhor ou pior. Lembro todas essas pessoas que partiram, muitas para lugares aonde não vou mais. Há dias em que me pergunto se quero mesmo sair de casa. Quando me dou conta de tudo isso, percebo o quanto sou aleatório, ainda que tenha seguido sempre uma estrada estreita e de barrancos altos. A fatalidade da foz já me enerva, porque o rio está largo e fundo.


28
Mai 11
publicado por José Geraldo, às 16:26link do post | comentar | ver comentários (1)

Entre as muitas verdades aprendidas melancolicamente ao longo da vida, eis uma que me encanta e ao mesmo tempo magoa: eu não sou o escritor que poderia ter sido se eu tivesse podido ser um escritor. Difícil entender? Vamos por partes.

Sou escritor amador, o que significa, basicamente, que dedico a maior parte de meu tempo a outra coisa, que faço, esta sim, como profissional. Na prática: o escritor que eu sou vive das sobras do profissional que eu sou. Não se trata de uma convivência fácil, pois o escritor é irascível e instável, enquanto o profissional precisa de calma, previsibilidade e persistência. Sem falar que ambos transitam em mundos diferentes: o escritor deseja o calor da inspiração e das experiências, quer amor, quer aventura, quer tudo. Enquanto isso o profissional vive entre números e cifras frias, colecionando documentos, autenticando segundas vias, registrando créditos e débitos, fechando contratos. São universos diferentes, antípodas, e ambos se contaminam, fazendo com que o profissional seja um pouco escritor e o escritor seja um pouco profissional. Algo do método e da frieza do bancário transpira no escritor quando ele se sente para escrever (sic) e algo do escritor transpira no bancário quando contempla um parágrafo genérico no modelo de contrato.

Há inúmeras coisas que eu escrevi na vida sob o signo da profissão, histórias e experiências que eu nunca teria tido se não tivesse sido o profissional que eu sou. Só não sei se eu teria sido um profissional outro se não tivesse sido o escritor. Porque não consigo me imaginar sendo outra pessoa, eu comecei nessa minha vida muito cedo, e agora já é tarde para mudar.

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24
Mai 11
publicado por José Geraldo, às 09:00link do post | comentar
Este texto é parte do romance “A Casa no Fim do Mundo”, de William Hope Hodgson (1907), que estou traduzindo em capítulos semanais. Visite o Índice para lê-los em sequência.

Fiquei algum tempo analisando como faria para reforçar a porta do escritório. Por fim desci à cozinha e com algum trabalho subi com algumas toras de madeira, bem pesadas. Eu as ancorei contra a porta, inclinadas, pregando em cima e embaixo. Por meia hora eu trabalhei duro até ficar mais tranquilo.

Então, sentindo-me mais calmo, vesti meu casaco, que tinha ficado de lado, e passei a resolver um ou dois assuntos antes de voltar à torre. Estava ocupado em alguma coisa quando ouvi apalparem a porta, depois a tranca foi experimentada. Mantendo-me em silêncio eu esperei. Logo ouvi diversas criaturas do lado de fora. Grunhiam entre si, suavemente. Então, por um minuto houve silêncio. De repente soou um grunhido baixo e rápido e a porta rangeu debaixo de uma pressão tremenda. Ela teria se partido se não fossem os apoios que eu lhe colocara. A força cessou, tão rápido como começara, e voltaram a conversar.

Então uma Coisa deu um guincho, suavemente, e ouvi o som de outras aproximarem-se. Houve uma breve confabulação e então, o silêncio. Notei então que elas tinham chamado muito mais para ajudar. Vendo que aquele era o momento supremo, fiquei preparado, com meu rifle apontado. Se a porta cedesse, poderia pelo menos matar quantas fosse possível.

Outra vez ouvi o sinal baixo, e outra vez a porta rangeu sob força enorme. Por um minuto, talvez, a pressão foi aplicada e esperei, nervosamente, que a porta viesse abaixo com um estrondo. Mas não, as escoras resistiram e a tentativa se mostrou abortiva. Então seguiu-se mais daquela conversa horrível e grunhida, e enquanto se desenvolvia, pensei ter discernido ruído de recém-chegadas.

Depois de uma longa discussão, durante a qual aquela porta foi várias vezes forçada, elas ficaram quietas de novo e eu sabia que estavam por fazer uma terceira tentativa de arrombar. Eu estava quase em desespero. As escoras tinham sido severamente testadas nos dois ataques de antes e eu me sentia muito receoso de que a terceira vez podia ser demais para elas.

Naquele instante, como uma inspiração, uma ideia passou pelo meu cérebro perturbado. Imediatamente, já que não havia tempo para hesitar, eu saí correndo do quarto e subi escadas e mais escadas. Daquela vez não fui para uma das torres, mas para o telhado. Uma vez lá, eu corri até o parapeito que o cerca e olhei para baixo. Ao fazê-lo, ouvi o sinal curto, grunhido, e mesmo lá de cima eu ouvi a porta ranger com o assalto.

Não havia um momento a perder e eu me debrucei, mirei rápido e disparei. O estampido passou cortando e quase junto subiu o estalo da bala atingindo seu alvo. Veio de baixo um lamento estridente e a dor parou seu ranger. Então, quando eu aliviei meu peso do parapeito, uma enorme peça da cornija de pedra escorregou debaixo de mim e caiu com estrondo entre a turba desorganizada embaixo. Uma série de horríveis berros vibrou através do ar noturno e eu então ouvi o som de patas em fuga. Cautelosamente olhei por cima do parapeito. À luz da lua deu para ver a grande pedra da cornija caída bem diante do degrau da porta. Pensei ter visto também algo sob ela — várias coisas brancas, só que não tenho muita certeza.

Então alguns minutos se passaram.

Enquanto olhava, percebi algo que retornava de dentro das sombras da casa. Era uma das Coisas. Ela veio até a pedra, silenciosamente e se ajoelhou. Eu não pude ver o que ela fazia. Em um instante ela ficou de pé e tinha algo em suas garras, que levou à boca e mordeu…

No princípio eu não entendi. Então, lentamente eu compreendi. A Coisa estava se abaixando de novo. Era horrível. Comecei a carregar o meu rifle. Quando eu olhei outra vez, o monstro estava empurrando a pedra, movendo-a para um lado. Apoiei o rifle na cornija e puxei o gatilho. O bruto caiu, de focinho para baixo, e esticou ligeiramente.

Simultaneamente, quase, com o estampido, ouvi outro som, de vidro quebrando. Esperando apenas para recarregar minha arma, saí do telhado e desci os primeiros dois lances de degraus.

Lá parei para ouvir. E ao fazê-lo, veio outro tinido de vidro caído. Pareceu vir do andar de baixo. Excitadamente eu corri pelas escadas abaixo e guiado pelos ruídos dos caixilhos, cheguei à porta de um dos quartos de dormir desocupados, nos fundos da casa. Empurrei-a para trás. O quarto estava só levemente iluminado pelo luar: a maior parte da luz era bloqueada por um monte de figuras que se moviam fora da janela. Nem bem eu cheguei e uma esgueirou-se quarto adentro. Nivelando a arma atirei à queima roupa, preenchendo o quarto com um estrondo ensurdecedor. Quando a fumaça clareou, percebi que o quarto estava vazio e janela, livre. Estava bem mais claro e o ar da noite soprava frio através dos painéis quebrados. Abaixo podia ouvir dentro da noite um ganido suave e o murmúrio de vozes suínas.

Pondo-me de lado da janela, recarreguei e fiquei ali esperando. Então ouvi barulho de briga. De onde eu estava, nas sombras, eu podia ver sem ser visto.

Os ruídos se aproximaram e logo vi algo aparecer em cima do parapeito e agarrar a armação quebrada da janela. Aquilo se agarrou a um pedaço de madeira e pude ver que era uma mão e um braço. Um instante depois e o rosto de uma das Criaturas suínas apareceu à vista. Então, antes que eu pudesse usar o meu rifle, ou fazer qualquer coisa, ouviu-se um estalo alto e a armação da janela cedeu sob o peso da Coisa. No momento seguinte um baque surdo e um grito alto me contaram que ela tinha caído pelo chão. Na esperança selvagem de que tivesse morrido eu cheguei à janela. A lua tinha se escondido atrás de nuvens, de forma que não deu para divisar nada, porém, o incessante zumbido de falatório, bem abaixo de onde estava, indicava que havia vários outros dos brutos por perto.

Enquanto estava ali olhando para baixo, intriguei-me que as criaturas tivessem conseguido subir tão alto, porque as paredes são comparativamente lisas e a distância até o chão seri de uns vinte e cinco metros.

De repente, então, enquanto espiava, notei algo indistinto que cortava a lisa sombra cinzenta do lado da casa, como uma linha escura, que passava a janela à esquerda, a uma distância de meio metro. Então me lembrei da calha que eu mesmo tinha mandado pôr lá anos antes, para escorrer a água da chuva. Tinha esquecido aquilo. Pude então entender como as criaturas tinham podido alcançar a janela. Nem bem a solução tinha chegado até mim, ouvi um ruído baixo de deslizamento ou arranhamento e soube que outro dos brutos estava subindo. Eu esperei algum tempo e então me debrucei da janela e testei o cano. Para a minha alegria ele estava bastante solto e eu consegui, usando meu rifle como alavanca, arrancá-lo da parede. Trabalhei rápido. Então, segurando-o com ambas as mãos, livrei-me do problema de uma vez por todas, atirando-o lá para baixo, com a Coisa ainda agarrada nele.

Por uns minutos a mais fiquei ali esperando e ouvindo, mas depois da primeira gritaria geral não ouvi mais nada. Eu sabia que não havia mais motivo para temer um ataque daquela direção. Eu tinha removido a única maneira de alcançarem a janela e como nenhuma outra possuía canos próximos para tentar as habilidades de escaladores de alguns dos monstros, eu comecei a ficar mais confiante de que poderia escapar de suas garras.

Deixando o quarto, eu segui até o escritório. Eu estava ansioso para saber como a porta resistira o teste do último ataque. Entrando lá, logo acendi duas velas e me voltei para a porta. Uma das grandes escoras tinha sido deslocada e, daquele lado, a porta tinha sido forçada para dentro por uns quinze centímetros.

Tinha sido providencial eu conseguir espantar os brutos bem no momento em que conseguira! E aquela peça da cornija! Mal podia, vagamente, imaginar como a deslocara. Eu não a tinha notado solta quando dera o tiro e então, quando me levantei ela escorregou debaixo de mim… Eu sentia que devia o fracasso da força de ataque mais à sua queda do que ao meu rifle. Então me veio o pensamento de que deveria aproveitar aquela chance e reforçar a porta de novo. Era evidente que as criaturas não tinham retornado desde a queda da cornija, mas quem diria quanto tempo elas ficariam afastada?

Então me dediquei a reparar a porta, trabalhando dura e bem ansiosamente. Primeiro fui ao porão e procurando por lá dei com alguns pedaços de tábuas de carvalho. Com eles retornei ao escritório, removi as escoras e apoiei as tábuas de pé, contra a porta. Então preguei as cabeças das escoras nelas, e enfiando firme contra o chão, preguei-as também ali.

Assim, fiz a porta mais forte do que nunca, solidificada pelo apoio das tábuas e poderia, tinha certeza, suportar pressão mais pesada que a de antes sem ceder.

Depois disso eu acendi a lâmpada que tinha trazido da cozinha e fui dar uma olhada nas janelas baixas. Tendo visto uma amostra da força que as criaturas possuíam, sentia-me consideravelmente mais ansioso quanto às janelas do andar térreo — apesar do fato de elas serem tão firmemente gradeadas.

Primeiro fui à despensa, ainda com a lembrança viva de minha recente aventura lá. O lugar estava gelado, e o vento, soprando com força através do vidro quebrado, produzia uma nota lúgubre. A não ser pela aparência geral de abandono, o lugar estava como o deixara mais cedo. Indo à janela eu examinei a grade e pude notar, como dizia, a sua confortável grossura. Mesmo assim, ao olhar com mais cuidado e, tive a impressão de que a barra do meio estava ligeiramente torta, mas era um pouco só e ela poderia ter estado daquele jeito há anos. Eu nunca tinha prestado atenção nelas antes.

Eu passei a minha mão pela janela quebrada e forcei a barra. Estava firme como uma rocha. Talvez as criaturas tivessem tentado arrancá-la, e vendo que era mais forte do que tinham imaginado, pararam com o esforço. Depois disso eu rondei cada uma das janelas, examinando-as com cuidadosa atenção, mas em lugar algum deu para notar qualquer tipo de alteração. Dando por terminada minha inspeção, voltei ao escritório para tomar um pouco de conhaque e depois subi à torre para vigiar.


23
Mai 11
publicado por José Geraldo, às 22:01link do post | comentar

Neste exato momento, em alguma caverna do Oeste dos Estados Unidos, um idoso senhor está fazendo “facepalm” dentro de casa. O nome do homem em questão é Harold Camping, ele tem 89 anos e tem sido há décadas o presidente e o guru de um movimento cristão fundamentalista chamado “Family Radio”. Se você ainda não sabe do que estou falando, saida da sala de descontaminação, tire seu traje de viagem espacial, tome outra dose de café quente com queijo minas para botar as ideias em ordem e senta aí para conversar, que muita coisa aconteceu desde que você foi abduzido pelos alienígenas de Andrômeda.

Harold Camping se tornou, no sábado, dia 21 de maio, o responsável pela profecia mais extraordinariamente furada de todos os tempos. Evidentemente, como você deve saber, a menos que seja uma pessoa ingênua e supersticiosa do tipo que crê que a Xuxa viu mesmo duendes, que todas as profecias são furadas e só acertam na base da pura coincidência, quando não são feitas empregando o que os romanos chamavam de vaticinium ex post facto, ou seja, previsão depois do fato acontecido. Mas esta profecia do Pastor Camping teve algo especial: ela reuniu uma quantidade extraordinária de ingredientes de desastre e por isso ela não falhou como o fósforo que queima o seu dedo, mas como o botijão de gás que explode no porão e derruba o seu prédio.

Foi uma vergonha universal, pública, inquestionável. Foi como entrar peidando dentro de casa e descobrir que no escuro havia uma festa de aniversário surpresa organizada pela sua amada e pela turma inteira da faculdade. Ao contrário de todas as profecias falhadas ao longo de toda a história da humanidade, esta teve testemunhas demais para que o responsável possa fazer cara de paisagem e fingir que não é com ele, teve provas materiais demais para que ele possa esperar tudo passar, teve detalhes demais para que ele possa inventar alegações para esconder o próprio fracasso.

Camping previu a data com o que chamou de previsão matemática. E forneceu as bases dos cálculos. Autores como Bob Thiel explicaram muito bem porque o Pastor Camping estava terrivelmente enganado, partindo da própria Bíblia. Ainda que eu concorde que Camping estava errado, não é preciso nem abrir a Bíblia para saber disso, afinal eu estou aqui ainda, ou não estou?

O problema da profecia do dia 21 de maio não foi apenas ela estar magnificamente errada, mas sim o fato de ela ter sido tremendamente divulgada. Nos Estados Unidos e em outros lugares foram gastos milhões e milhões de dólares fazendo cartazes e publicando anúncios sobre o dia do Juízo. Isto significa que dezenas, ou centenas, de milhões de pessoas ficaram sabendo da profecia e do dia e hora exatos. Estes milhões estão agora morrendo de vontade de rir, alguns talvez não estejam rindo por pena dos que acreditaram e largaram tudo (inclusive "carreira, dinheiro e canudo"). Até o Richard Dawkins, que não é nenhum exemplo de amor cristão, visto que é ateu, procurou exortar seu rebanho de gatos* a ter um pouco de respeito pelas pessoas inocentes que foram enganadas pela profecia.

Pensando bem, não faz nenhum sentido divulgar uma profecia de fim de mundo, pelo menos não uma que vai acontecer tão cedo. Se o mundo realmente acabar, não haverá ninguém a quem você possa se gabar de ter feito a previsão corretamente. E se o mundo não acabar, evidentemente, você terá centenas de milhões de pessoas rindo na sua cara. Precisamente isso é o que está acontecendo agora, e é a razão pela qual o Pastor Camping não vai nem à janela ver se o sol nasceu. Tem medo de que o sol tenha se tornado como aquele desenho sorridente dos desenhos infantis e esteja, também ele, o astro-rei, rindo da falha clamorosa do profeta.

* Richard Dawkins famosamente disse que tentar liderar ateus é como tentar pastorear gatos, ou algo assim, aludindo ao fato de que os felis cattus caracterizam-se justamente por não serem gregários.

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21
Mai 11
publicado por José Geraldo, às 12:00link do post | comentar

Entre todas as coisas erradas que o MEC faz, ele comete alguns acertos quase involuntários — e é justamente contra eses que vozes se levantam.

Os zurros dos fãs de gramatiquice sempre tentam impedir que o método científico seja finalmente empregado no ensino de língua portuguesa no Brasil. Nesse terreno ainda estamos presos em práticas pré-científicas. Pasquale Cipro Neto está para o português como Ptolomeu para a astronomia.

Assim como a fotografia de uma paisagem não é a paisagem, a gramática não é a língua. Mas os gramatiqueiros chegam ao ponto de afirmarem que o povo não sabe falar, porque pensam que a língua se resume ao que está no livro, e o resto não é língua.

Ninguém se importa que nossa escola dê diplomas a analfabetos funcionais. Não há gritaria na imprensa quanto a isso. Mas basta surgir a possibilidade de estarem implementando métodos mais científicos de ensino (ó ameça!) e até Alexandre Garcia é posto como “cheerleader” dos gramatiqueiros.


20
Mai 11
publicado por José Geraldo, às 21:54link do post | comentar

Manézim era a maior preocupação dos pais. Já tinha quatro ano o moleque e não falava nada ainda, só ficava quieto no seu canto com os brinquedos. Mas ele tinha um jeito assim estranho de olhar. Mirava nas pessoas os seus oinhos e abria um pouco a boca, como se tivesse bebendo o que falavam. Mas naquele tempo a gente pobre da roça não tinha muito recurso de médico, então o tempo ia passando e Manézim não falava e a família só se preocupava.

Era um dia qualquer, nem feriado nem domingo. Tava todo mundo almoçando em volta da mesa, com se fazia antigamente, antes da televisão. Manézim comia distraído, olhando pros destroços da galinha frita na travessa, talvez pensando que um dia antes a coitada ciscava distraída no quintal. O irmão mais velho, guloso como ele só, já tinha terminado seu prato e pedia mais:

— Mãe, me dá mais dois ovo cozido.

Manézim então, pro espanto da família, interrompeu seu silêncio que vinha desde o nascimento para falar uma palavra solitária:

— “Ovos”.

O pai engasgou com a asa da galinha e a mãe deixou cair o garfo que espetava um ovo. Todo mundo levantou e foi pegar no menino, dizendo:

— Meu filho, ocê falou.

— Olha, Rosa, que o moleque não é retardado não.

— Esse bostinha começa a falar já me corrigindo!

Foi tanto falatório que Manézim foi se encolhendo na cadeira, com os olhinhos arregalados. Até que a mãe, percebendo que ele já tava demorando a falar outra palavra, tratou de provocar:

— Vai, meu filho, fala para mim!

Manézim olhou em volta a família toda reunida espiando o que ele fazia. Pensou e falou:

— Não falo mais.

E mais não falou. Por fim, cansado daquilo tudo, o pai resolveu tomar providências. Vendeu um novilho e foi à cidade levando o garoto para uma consulta com um pediatra. O doutor examinou o garoto durante um bom tempo, mas por fim declarou-se impotente para resolver o problema:

— Acredito que os senhores não tenham muito com que se preocupar. A capacidade cognitiva de seu filho não me parece afetada, ele apenas é lacônico.

— Isso tem cura, doutor.

O médico sorriu, e tentou tranquilizar o preocupado pai.

— Acredito que deve melhorar com o tempo, sem precisar de remédio. Mas ele parece não gostar muito mesmo de falar, embora entenda tudo que dizemos. De toda forma, volte daqui a alguns meses para acompanharmos como vai o menino.

Naquela tarde um arrasado pai chegou em casa, muito preocupado, e trancou-se no quarto com a esposa.

— E então, Manél, o que tem o moleque?

— Parece, Rosa, que nós temos um filho lacônico.

Rosa ficou mortificada. Vários fios de cabelo brancos devem ter nascido em sua cabeça naquela tarde.

— Ó meu Deus! O que vai ser de nosso meninim?

— Temos que ser fortes, Rosa. Pelo menos o doutor falou que melhora com o tempo.


17
Mai 11
publicado por José Geraldo, às 09:00link do post | comentar
Este texto é parte do romance “A Casa no Fim do Mundo”, de William Hope Hodgson (1907), que estou traduzindo em capítulos semanais. Visite o Índice para lê-los em sequência.

Era noite, uma semana depois. Minha irmã estava sentada no jardim tricotando. Eu estava perambulando a ler. Minha arma estava encostada na parede de casa porque desde o advento das coisas estranhas nos jardins eu pensava prudente tomar precauções. Apesar disso, ao longo da semana inteira, não tinha acontecido nada que me alarmasse, nenhum som ou aparição, de forma que já conseguia calmamente ver o incidente em retrospecto, embora ainda com uma sensação bem marcada de curiosidade e receio. E eu estava, como acabo de dizer, andando de um lado para o outro, algo absorto no meu livro. Subitamente ouvi um estrondo na direção do Abismo e, num movimento rápido, virei-me e vi uma tremenda coluna de poeira que se erguia pelo ar da noite.

Minha irmã bem se pôs de pé, com uma aguda exclamação de surpresa e medo.

Dizendo-lhe para ficar onde estava, eu peguei a minha arma e corri para o Abismo. Ao me aproximar ouvi um barulho surdo que crescia rapidamente para um troar, junto com mais estrondos profundos e de dentro do Abismo subiu novo volume de poeira.

O barulho cessou, embora a poeira ainda se erguesse, tumultuadamente. Cheguei na borda e olhei lá para baixo, mas não pude ver nada a não ser a ebulição de nuvens de poeira agitadas por aqui e ali. O ar estava tão cheio de partículas pequenas que elas me cegavam e sufocavam até que finalmente eu tive que sair de perto daquela sufocação, para poder respirar.

Gradualmente as matérias em suspensão se acamaram, deixando também uma panóplia ao redor da boca do Abismo.

Eu só conseguia imaginar o que poderia ter acontecido.

Tinha sido um tipo de desmoronamento, não havia a menor sombra de dúvida, mas a sua causa estava além do meu conhecimento, e mesmo assim, naquele momento, eu bem podia imaginar, porque já tinha me surgido o pensamento das pedras caindo e da Coisa no fundo do Abismo, mas durante os minutos iniciais da confusão eu custei a chegar à conclusão óbvia, para a qual a catástrofe apontava.

Lentamente, a poeira cedeu até que pude aproximar-me da borda e olhar o que havia embaixo.

Por um momento olhei sem resultado através das exalações. A princípio era impossível discernir qualquer coisa. Então, enquanto olhava, eu vi algo lá, pela minha esquerda, que se mexia. Olhei atentamente para aquilo e então notei outro, depois outro — três formas vagas que pareciam subindo do fundo do Abismo. Eu só os podia ver indistintamente. E enquanto olhava surpreso, ouvi um agitar de pedras, em algum lugar à minha direita. Eu olhei de lado mas não vi nada. Inclinei-me para a frente e olhei à frente e para dentro do Abismo, logo abaixo de onde eu estava, não vendo nada além de uma horrenda e branca cara de porco, que chegara a pouco menos de dois metros de meus pés. Mais para baixo eu via várias outras. Quando a Coisa me viu, deu logo um guincho grosseiro, que foi respondido por toda as partes do Abismo. Com isso um jorro de horror e medo me agarrou e, inclinando-me à frente, eu descarreguei a minha arma bem na sua fuça. No mesmo instante a criatura desapareceu, com uma algazarra de terra solta e pedras.

Houve um silêncio momentâneo ao qual, provavelmente, devo minha vida, pois me permitiu ouvir o rápido trote de muitas patas e ao virar-me dei com uma tropa das criaturas vindo em minha direção, bem a galope. Instantaneamente eu apontei a arma e atirei na da frente, que caiu de focinho no chão com um ganido horrível. Então eu comecei a correr. Pela metade do caminho do Abismo até a casa vi minha irmã, correndo até mim. Não podia ver o seu rosto distintamente porque a tarde havia caído, porém a sua voz estava cheia de medo enquanto ela me gritava porque eu estava atirando.

— Corre! — foi o que lhe gritei de volta — Corre pela sua vida!

Sem mais perguntar ela girou nos calcanhares e correu de volta, segurando suas saia com as mãos. Enquanto a seguia eu olhei para trás. Os brutos corriam sobre as patas de trás, mas às vezes caindo de quatro.

Acho que deve ter sido o medo em minha voz que fez Mary correr tanto, porque tenho quase certeza que não tinha, ainda, visto nenhuma daquelas coisas infernais que nos perseguiam. E assim corremos para casa, a minha irmã na frente.

A cada instante, o som cada vez mais próximo do trotar ia me contando que os brutos estavam ganhando terreno rapidamente. Felizmente eu era acostumado, de certa forma, a uma vida ativa. Mas, mesmo assim, todo o esforço da corrida estava começando a exigir severamente de mim.

À frente eu podia ver a porta dos fundos — felizmente aberta. Eu estava então uma meia dúzia de metros atrás de Mary, e minha respiração ia engasgada na garganta. Então senti algo tocar o meu ombro. Girei a cabeça rápido e vi uma daquelas faces pálidas e monstruosas perto da minha. Uma das criaturas tinha corrido mais que as outras e estava quase me ultrapassando. Enquanto ainda me virava ela tentou agarrar-me. Com um esforço súbito eu saltei de lado e tendo a minha arma segura pelo cano, golpeei a coronha no crânio daquela criatura maligna. A Coisa caiu, com um gemido quase humano.

Mesmo este pequeno atraso tinha sido bastante para trazer o resto dos brutos mais perto de mim, portanto, sem perder mais um instante, tornei a correr para a porta. Alcançando-a, entrei e rapidamente a bati com força e logo aferrolhei, justo quando a primeira das criaturas a atingia com choque súbito.

A minha irmã estava sentada em uma cadeira, a tomar fôlego, parecendo a ponto de desmaiar, mas não tinha tempo a perder com ela. Tinha que certificar-me de que todas as portas estavam trancadas.

Por pura sorte todas estavam. A que ia de meu escritório para o jardim foi a última a que eu fui. Eu mal tinha tido tempo de notar que ela estava segura quando pensei ouvir um barulho do lado de fora. Eu fiquei em silêncio total e ouvi. Sim! Eu pude então ouvir distintamente o som de sussurros, e de alguma coisa a resvalar pelos painéis, com ruído de raspagem, de arranhão. Evidentemente, alguns dos brutos estavam testando as portas com suas manzorras, para tentar descobrir se havia um jeito de entrar.

Que as criaturas tinham encontrado a porta tão rápido era prova de sua capacidade de raciocínio, o que me assegurava que eu não podia, de forma alguma, encará-las como meros animais. Eu pressentira algo assim antes, quando aquela primeira Coisa espiara pela minha janela. Então lhes aplicara o termo “sobre-humanas”, quando percebi, quase que instintivamente, que aquele tipo de criatura era diferente dos animais irracionais. Algo além do humano, mas não de um modo apropriado, em vez disso algo de maligno e hostil para o bem-estar da humanidade. Em uma palavra, algo inteligente e ainda inumano. A simples lembrança daquelas criaturas me enchia de repulsa.

Então pensei em minha irmã, fui ao armário e peguei o frasco de conhaque e um cálice de vinho. Levando-os comigo, fui até à cozinha, carregando também uma vela acesa. Não estava mais sentada na cadeira: tinha caído ao chão e estava estendida de rosto para baixo.

Muito cuidadosamente eu a virei e a ergui um pouco. Então lhe dei um pouco do conhaque entre os lábios. Depois de um instante ela tremeu um pouco. Logo depois ela tossiu algumas vezes e abriu os olhos. Com a expressão sonolenta e confusa ela me olhou. Então seus olhos se fecharam lentamente e eu lhe dei mais um pouco do conhaque. Por mais um minuto ou menos ela ainda ficou silenciosa, a respirar rápido. Então, de uma vez só, seus olhos se abriram outra vez e pareceu-me, quando os vi, que ambas as pupilas estavam dilatadas, como se o medo tivesse vindo junto com o retorno da consciência. Então, em um movimento tão inesperado que me fez recuar, sentou-se no chão. Vendo que ela parecia ainda instável, pus a minha mão para apoiá-la. Então ela deu um grande grito e, arrastando-se de quatro, saiu correndo do cômodo.

Por um momento eu fiquei lá ajoelhado e segurando o meu frasco de conhaque, completamente confuso e atônito.

Ela estaria com medo de mim? Mas não! O que poderia ser? Só pude pensar que seus nervos tinham sido muito esforçados, e que ela estava ainda temporariamente fora de si. No andar de cima ouvi uma porta bater e soube que tinha buscado refúgio em seu quarto. Pus o frasco na mesa. Minha atenção foi distraída por um ruído, na direção da porta dos fundos. Fui até ela e ouvi. Parecia estar forçada, como se uma das criaturas lutasse contra ela silenciosamente, mas ela era de construção muito firme e era muito forte para ser facilmente arrombada.

Lá fora no jardim subia um som contínuo. Ele poderia ter sido tomado, por um ouvinte casual, por grunhidos e guinchos de uma vara de porcos. Mas a mim, que ali estava, me pareceu que havia sentido e significado naqueles ruídos suínos. Gradualmente, eu tive a impressão de notar uma semelhança com fala humana — viscosa e grudenta, como se cada articulação viesse com grande dificuldade. Porém, apesar disso, estava certo de que aquilo não era um mero amontoado de ruídos, mas sim uma rápida troca de ideias.

A essa altura tinha ficado bem escuro pelos corredores, e deles vinha toda a variedade de gritos e gemidos de que uma velha casa está cheia após cair a noite. Isto é, sem dúvida, porque as coisas ficam quietas, e você tem mais tempo para ouvir. Há também a teoria de que a variação súbita de temperatura depois do pôr-do-sol afeta a estrutura da casa de certa forma, fazendo-a contrair e se assentar para a noite. Seja lá o que for, naquela noite em particular, queria muito ter estado livre de tantos ruídos extravagantes. Parecia-me que cada estalo ou chiado poderia ser uma das Coisas vindo pelos corredores escuros, mesmo eu sabendo em meu coração que não poderia ser, porque eu mesmo tinha verificado que todas as portas estavam seguras.

Gradualmente, porém, aqueles sons foram crescendo nos meus nervos de uma tal maneira que, ainda que apenas para punir-me pela covardia, senti que deveria fazer a ronda do porão, mais uma vez, e encarar o que houvesse lá. Então eu subiria para o meu escritório, pois sabia que dormir estava fora de cogitação, com a casa cercada de criaturas, meio animais e meio uma outra coisa, totalmente abomináveis.

Tomando uma lâmpada de mesa de seu suporte, segui de porão em porão e de quarto a quarto, pelas despensas e frestas e buracos e corredores, e pelos cento e um pequenos becos e cantos queformam o porão da velha casa. Então, quando soube que tinha visto em todo canto e cada vão bastante grande para ocultar qualquer coisa de qualquer tamanho, eu segui para a escada.

Detive o meu pé no primeiro degrau. Pareceu-me ouvir um movimento, aparentemente na despensa, que fica à esquerda da escadaria. Tinha sido um dos primeiros lugares em que eu procurara, mas mesmo assim eu sabia que meus ouvidos não me enganavam. Meus nervos estavam rígidos, e sem quase nenhuma hesitação fui até à porta erguendo a lâmpada acima da minha cabeça. Em um relance eu vi que o lugar estava vazio, a não ser pelas suas pesadas lajes de pedra, deitadas em pilares de tijolos, e estava pronto para sair, convencido de que eu tinha me enganado quando, ao me virar, minha luz brilhou de volta a partir de uns pequenos pontos fora da janela acima. Por um breve instante eu fiquei lá olhando. Então se moveram lentamente, girando e cintilando, alternadamente, em verde e em vermelho, pelo menos foi o que me pareceu. Soube então que eram dois olhos.

Lentamente, tracei o contorno da sombra de uma das Coisas. Ela parecia agarrada às grades de uma das janelas e a posição sugeria que tentava escalar. Eu cheguei mais perto da janela e alcei mais a luz. Não havia porque temer a criatura: as grades eram fortes e era pouco o perigo de que ela fosse capaz de arrebentá-las. Mas mesmo assim, de repente, sabendo que o bruto nunca me alcançaria, tive outra vez a horrível sensação de medo que me assaltara naquela noite, uma semana antes. Era o mesmo sentimento de desamparo, medo excruciante. Eu percebi, vagamente, que os olhinhos da criatura fitavam bem dentro dos meus com atenção firme e decidida. Tentei não desviar o meu olhar, mas eu não consegui.

Parecia então que eu via a janela através de uma neblina. E imaginei que uns outros olhos vinham e espiavam, e logo outros, até que toda uma galáxia de órbitas malignas e curiosas pareciam reter-me em servidão. Minha cabeça logo pareceu nadar e agitar-se violentamente. Então senti aguda dor física em minha mão esquerda. A dor tornou-se cada vez mais severa e roubou, literalmente roubou, a minha atenção. Com um esforço tremendo olhei para baixo, e nisso o encanto que me retinha se quebrou. Eu percebi, então, que eu tinha, em minha agitação, inconscientemente pegado no vidro quente da lâmpada e queimado a minha mão bastante. Olhei de novo a janela. A aparição nebulosa tinha sumido e então eu via que ali estavam dezenas de faces bestiais. Num acesso súbito de ira, ergui a lâmpada e a atirei em cheio à janela. Pegou na vidraça, quebrando um painel, passou por entre as grades e caiu no jardim, espalhando óleo quente no caminho. Ouvi uns gritos altos de dor e quando minha visão se acostumou com o escuro, descobri que as criaturas tinham deixado a janela.

Refeito, tateei até a porta, e achando-a eu me pus a caminho do primeiro piso, tropeçando em cada degrau. Estava tonto como se tivesse levado uma pancada na cabeça. A minha mão também ferroava demais, e eu estava cheio de raiva cega e nervosa contra aquelas Coisas.

Logo que cheguei ao meu escritório acendi as velas. Enquanto queimavam, sua luz se refletia na prateleira de armas de fogo, estendida parede afora. Diante desta visão, lembrei-me que eu tinha um poder que, como tinha visto mais cedo, parecia ser fatal naqueles monstros da mesma maneira que nos animais vulgares, com que me determinei a tomar a ofensiva.

Mas primeiro, minha mão. Enfaixei-a porque a dor já estava ficando intolerável. Depois disso pareceu melhorar e eu atravessei o quarto, até a prateleira dos rifles. Ali escolhi um pesado, uma velha e experiente arma, e depois de buscar a munição, subi até uma das pequenas torres que coroam a casa.

Dali notei que não poderia ver nada. Os jardins ofereciam um difuso borrão de sombras — um pouco mais escura, talvez, onde havia árvores. Isto era tudo, eu sabia que era inútil atirar para baixo naquela escuridão. A única coisa a fazer era esperar a lua surgir e então poderia fazer alguma execução.

Enquanto isso, fiquei imóvel e mantive meus ouvidos atentos. Os jardins estavam comparativamente silenciosos, e só um ou outro grunhido ou guincho me alcançava. Não agradei daquele silêncio: ele me fazia pensar em que diabruras as criaturas estariam maquinando. Duas vezes eu saí da torre e dei outra caminhada pela casa, mas tudo estava silencioso. Uma vez eu ouvi um ruído, vindo lá da direção do Abismo, como se ainda mais terra tivesse caído. Depois disso, e por uns quinze ou mais minutos, houve uma comoção entre os habitantes de meus jardins. Isto passou, e depois ficou tudo quieto outra vez.

Cerca de uma hora depois a luz da lua apareceu sobre o horizonte distante. De onde estava, podia enxergar acima das árvores, mas só depois que a lua estava bem acima delas que eu pude discernir quaisquer detalhes nos jardins abaixo de mim. Mesmo então não consegui ver nenhum dos brutos, até que, ao me curvar para a frente, vi vários deles encostados na parede da casa. O que eles estavam fazendo, não consegui entender. Era, porém, uma chance boa demais para ignorar e, fazendo mira, atirei naquele que estava logo abaixo. Houve um grito estridente e quando a fumaça se dissipou eu vi que ele tinha caído de costas e estrebuchava debilmente. Então ficou tudo quieto. Os outros tinham desaparecido.

Logo depois disso ouvi um alto guincho na direção do Abismo. Ele foi respondido, uma centena de vezes, por tudo quanto era lado do jardim. Isto deu uma noção do número das criaturas, e comecei a pensar que o caso estava se tornando muito mais sério do que eu tinha imaginado.

Sentado lá, vigiando em silêncio, o pensamento me veio — o que seria tudo aquilo? O que eram aquelas Coisas? O que significaria aquilo tudo? Então meus pensamentos voaram de volta à visão (mesmo agora, duvido que fosse uma visão) da Planície do Silêncio. Qual o significado daquilo? Perguntava-me — e quanto à Coisa na arena? Oh! Por fim, pensei na casa que vira naquele lugar tão distante. Minha casa era tão semelhante àquela em cada detalhe da estrutura externa que só poderia ser feita com base nela ou o contrário. Eu não pensara nisso…

Então veio outro guincho comprido, lá do Abismo, que foi seguido, segundos depois, por um par de outros bem mais curtos. Logo o jardim se encheu de gritos em resposta. Pus-me de pé rapidamente e olhei sobre o parapeito. Sob o luar, parecia que os arbustos estavam vivos. Agitavam-se para lá e para cá, como se sacudidos em um vento forte e irregular, enquanto contínuo farfalhar de patas em faga me subia. Mais de uma vez vi a lua brilhando sobre figuras brancas correndo entre os arbustos e duas vezes eu atirei. Da segunda vez, o meu tiro foi respondido por um curto guincho de dor.

Um minuto depois os jardins estavam silenciosos. Do Abismo vinha uma profunda e rouca babel de língua de porco. Certas vezes gritos raivosos feriam o ar, e sempre respondidos por uma multidão de grunhidos. Ocorreu-me que eles estariam ali debatendo em algum tipo de conselho, talvez para discutir o problema de entrar na casa. Também pensei que eles pareciam muito furiosos, provavelmente por causa dos meus tiros bem-sucedidos.

Pensei então que seria um bom momento para fazer um levantamento geral de nossas defesas. O que tratei de fazer logo, visitando todo o porão de novo e examinando cada porta. Por sorte elas eram todas tal como a dos fundos — feitas de carvalho e armadas com ferro. Então subi para o meu escritório. Eu estava mais preocupado com aquela porta. Ela é palpavelmente de feitio mais moderno do que as demais e, embora ainda seja uma peça formidavelmente firme, tem pouca da poderosa resistência delas.

Devo aqui me explicar que existe um pequeno jardim elevado deste lado da casa, sobre o qual se abre esta porta, sendo que as janelas do escritório são gradeadas. Todas as demais entradas, com exceção do grande portão que nunca é aberto, ficam no andar de baixo.


12
Mai 11
publicado por José Geraldo, às 12:56link do post | comentar | ver comentários (1)

Entre as muitas coisas polêmicas que me encasquetam a cabeça a respeito de temas literários reside uma em particular que me tem inquietado muito: o significado de Paulo Coelho para a literatura de um modo geral e para o mercado editorial de forma mais específica. Acredito que o mago tenha se tornado uma personalidade que ninguém pode ignorar, sob pena de ser ignorante. Podemos amá-lo ou odiá-lo, mas não podemos mais fingir que ele não existe. Infelizmente, muita gente finge. E muita coisa não se compreende a respeito do enigma que ele representa.

Em primeiro lugar, devo dizer que minha opinião sobre a qualidade literária do que ele escreve é conhecida. Eu simplesmente não vejo nenhum valor em nada do que ele até hoje escreveu e penso que enquanto escritor ele é um excelente mago. E acrescento que sou inteiramente cético quanto a magias. Preciso começar dizendo isso para que os desavisados incapazes de boa interpretação de texto não venham a pensar que eu estou aqui defendendo esse embromador.

De certa forma, porém, odiar Paulo Coelho é tão inútil quanto amá-lo: uma e outra atitude não muda nenhum fato a respeito do autor e seus livros e ambas são irrelevantes para o público cativo do tipo de literatura a que o mago se dedica. Desta forma, a relevância a que me refiro não está no autor e nem em sua obra, mas no curioso fenômeno editorial em que ele se transformou. Estudar a biografia de Paulo Coelho e observar como ele veio a se tornar o que ele hoje é. Quando pensamos em todos os paradigmas quebrados por Paulo Coelho, fica evidente que ele representa algo diferente no universo literário (não nos cabe julgar se bom ou ruim) e que a sua posição no mercado editorial é digna de nota.

Os comentaristas brasileiros tendem a ser unanimemente críticos quanto à obra do mago, reservando-lhe os mais ferozes adjetivos. Eu mesmo me insiro nesses, tendo-lhe acusado até mesmo de ter um domínio insuficiente da língua portuguesa e de desconhecer técnicas narrativas básicas. Poucos são os comentaristas eruditos que se acercam dele sem pesadas pedras nas mãos (eu mesmo levei todas as que pude carregar e ainda tinha uma sacola cheia à tiracolo). Um dos que olharam para Paulo Coelho de forma mais leve e neutra foi o escritor iraniano Arash Hejazi, cujo texto The Alchemy of the Alchemist tece alguns comentários dignos de nota.

Hejazi começa lembrando quem era Paulo Coelho em 1988, antes do sucesso dO Alquimista: um autor então desconhecido, vivendo no Brasil, um país que não tinha uma tradição relevante de traduções de sua literatura para outras línguas.. Poucos de nós nos lembramos disso quando colhemos calhaus por aí para atirar nos outros. Paulo Coelho se tornou um best-seller internacional vencendo uma série de barreiras que ninguém antes dele tinha vencido. Será que não nos interessa saber como ele fez?

Paulo Coelho tornou-se desde então um dos autores vivos mais traduzidos do mundo e embora seus livros nem sempre estejam entre os mais vendidos em todos os países, em todos eles vendem suficientemente bem para serem um investimento rentável para seus editores e se em números absolutos. Isto se torna ainda mais significativo se considerarmos que na grande maioria dos países do mundo as obras traduzidas vendem menos do que as obras produzidas localmente (o Brasil é uma curiosa exceção a tal regra, com os best-sellers internacionais roubando mercado dos autores nacionais). Além do mais, alguns dos países nos quais Paulo Coelho se tornou um fenômeno de vendas (como França, Estados Unidos, Alemanha, Turquia, Irã, Itália, Grã Bretanha e Espanha) possuem literaturas fortes e variadas e o mercado editorial de pelo menos dois desses países (Grã Bretanha e Estados Unidos) é bastante fechado a autores estrangeiros, a não ser que algum fator externo (como um Prêmio Nobel ou a invasão de seu país pelos Estados Unidos) atraia interesse.

Não podemos esquecer que Paulo Coelho nasceu em algo que poderia ser considerado um “berço de ouro”, uma família de classe média alta no Rio de Janeiro. Graças às posses de sua família e aos contatos que ele mesmo construiu no mundo artístico, o autor começou muito cedo a travar contatos com gente como Raul Seixas e Christina Oiticica (mais tarde sua mulher), ganhando visibilidade no cenário cultural brasileiro. Certamente o nome que ele construiu na qualidade de parceiro de Raul lhe foi de grande ajuda resolveu migrar para a literatura.

Estas amizades tiveram também um papel preponderante no início da divulgação internacional dO Alquimista: foram conhecidos de Paulo Coelho que se dispuseram a trabalhar quase gratuitamente para traduzir, agenciar ou até publicar no exterior aquele que viria a ser o primeiro sucesso do mago. Houve até o caso de uma fã, filha de um editor, que rompeu com o negócio do pai e fundou a sua própria editora para publicar o livro depois que seu pai se recusara a fazê-lo por julgar o livro muito ruim. De uma forma que até parece sobrenatural, todos esses acontecimentos se encadeiam e levam ao sucesso de uma forma totalmente inesperada, e até contrária ao modo como normalmente funciona o mercado editorial.

Hejazi ressalta que o sucesso de Paulo Coelho foi frontalmente em contradição com os princípios tácitos que regem o mercado: um autor obscuro, de um país periférico no contexto internacional, escrevendo em uma língua que sequer está entre as dez mais traduzidas, um livro que não recorre ao exotismo local estilo macumba para turista, um livro que não teve nunca sequer uma página favorável de crítica em qualquer veículo de imprensa, um livro que não foi transformado em filme de sucesso e que nunca teve qualquer grande campanha de publicidade. Além disso Paulo Coelho nunca contratou agentes a peso de ouro e não escolheu um título de impacto, desenvolvido de acordo com regras semióticas precisas. Sem qualquer dessas características que o mercado editorial aconselha como “essenciais” aos livros de sucesso, ainda assim o mago conseguiu “chegar lá”, vendendo mais que os livros de muita gente que fez tudo “certo”.

Evidentemente, esse sucesso remando contra a maré não pode ser ruim para os interesses dos demais autores. Quando o mercado editorial desenvolve uma “fórmula” (tal como a descrita por Hejazi) e passa a martelar dentro desta “fôrma” as obras que pretende publicar, isto significa que numerosas obras, inclusive algumas de boa qualidade, serão rejeitadas e destinadas ao esquecimento não por seu valor, mas por simplesmente não se adequarem aos preconceitos dos editores. Não custa lembrar que outro grande fenômeno, J.K. Rowling, ouviu sete vezes o não de editores a quem enviou seu livro. Rowling chegou a ouvir que escrever não era para ela.

Mas existe algo especial a respeito do sucesso dO Alquimista: todos os envolvidos em sua tradução e publicação foram pessoas que gostaram tanto do livro que resolveram empenhar-se pessoalmente em publicá-lo, expondo-se em nome disso. O livro foi lido e foi gostado e a partir de então foi transformado em um projeto pessoal por tradutores e editores. Isto, claro, depois que o próprio Paulo Coelho investira seu próprio patrimônio em sua edição e dedicara-se a vendê-lo, praticamente como um mascate, nos eventos culturais de que participava.

O que há por dentro já não importa tanto. Como dizia McLuhan, em uma frase que se tornou praticamente um meme: O meio é a mensagem. Paulo Coelho não é um autor relevante pelo que escreve, mas pelo fato de ter conseguido ser um sucesso mesmo contrariando a todas as regras “infalíveis” do mercado editorial. Nesse sentido, o mago nos inspira a acreditar no próprio trabalho, em vez de acreditarmos na opinião muitas vezes preconceituosa de algum editor.


10
Mai 11
publicado por José Geraldo, às 09:00link do post | comentar
Este texto é parte do romance “A Casa no Fim do Mundo”, de William Hope Hodgson (1907), que estou traduzindo em capítulos semanais. Visite o Índice para lê-los em sequência.

Esta casa é, como disse antes, cercada por uma enorme propriedade, com jardins selvagens e abandonados. Afastado, nos fundos, distando uns trezentos metros, está uma ravina profunda e escura, que é chamada de “Abismo” pelos camponeses. Ao fundo corre uma preguiçosa torrente tão coberta de árvores que mal se vê de cima.

De passagem, devo explicar que esse rio tem uma origem subterrânea, emergindo subitamente do lado leste da ravina e desaparecendo, tão abruptamente quanto surgiu, sob os rochedos que formam sua extremidade oeste.

Foi alguns meses depois de minha visão (se é que foi uma visão) da grande Planície que minha atenção foi particularmente atraída para o Abismo.

Aconteceu um dia de eu estar caminhando por seu lado sul quando, de repente, vários pedaços de rocha e turfa foram deslocados do barranco da escarpa logo abaixo de mim e caíram com um estrondo rouco através das árvores. Eu os ouvi chapinhar no rio e depois, o silêncio. Eu não teria dado a este incidente mais que uma atenção passageira se o Pimenta não tivesse começado a latir selvagemente, não parando ao meu comando, o que é muito estranho de sua parte.

Sentindo que poderia haver algo ou alguma coisa no Abismo, eu voltei para casa, rapidamente, para buscar um porrete. Quando voltei o Pimenta tinha cessado seus latidos e estava rosnando e farejando, inquieto, de um lado para outro.

Assobiei-lhe que me seguisse e comecei a descer com cuidado. A profundidade até o fundo do Abismo deve ser de cerca de cento e setenta metros, tendo sido preciso gastar um bom tempo e um bom cuidado antes de chegarmos lá em segurança.

Uma vez no fundo, Pimenta e eu começamos a explorar as margens do rio. Era muito escuro ali devido às árvores que trançavam sobre a corrente e eu me movia receoso, mantendo meu olhar atento e o porrete preparado.

Pimenta estava silencioso e ficava sempre perto de mim. Assim nós procuramos por um lado rio acima, sem ouvir nem ver coisa alguma. Então nós o cruzamos com um simples salto e começamos a bater o caminho de volta entre a vegetação.

Tínhamos percorrido mais ou menos a metade da distância quando ouvi de novo o som de pedras caindo no outro lado, o lado de onde tínhamos acabado de vir. Uma pedra grande veio trovejando através das copas, atingindo a margem oposta e quicando dentro do rio, atirando um grande jato de água sobre nós. Com isso o Pimenta deu um grande rosnado, depois parou e eriçou suas orelhas. Eu ouvi também.

Um segundo depois um guincho alto, meio humano e meio suíno soou por entre as árvores, aparentemente pela metade do rochedo sul. Ele foi respondido por uma nota similar vinda do fundo do Abismo. Com isso o Pimenta deu um latido curto e, saltando por cima do rio, desapareceu entre os arbustos.

Logo em seguida eu ouvi seus latidos aumentarem em intensidade e em frequência, e entremeados pelo que parecia ser o ruído de uma confusa discussão. Isso parou e no silêncio a seguir ouviu-se um grito semi-humano de agonia. Quase imediatamente, Pimenta deu um longo ganido de dor e então os arbustos se agitaram violentamente e ele veio correndo com o rabo entre as pernas e olhando para trás enquanto corria. Ao me alcançar eu vi que ele estava sangrando do que parecia ser o ferimento de uma grande garra que havia quase exposto suas costelas.

Vendo o Pimenta mutilado daquele jeito um sentimento furioso de ira me tomou e, agitando o meu bastão, eu saltei e entrei nos arbustos de onde ele emergira. Ao forçar meu caminho, pensei ter ouvido um som de respiração. No instante a seguir eu surgi numa pequena clareira, a tempo de ver uma coisa, de cor lividamente branca, desaparecer entre os arbustos do lado oposto. Com um grito eu a segui, mas embora eu procurasse e batesse nos arbustos com meu porrete eu nem a vi e nem ouvi mais coisa alguma. Então voltei para o Pimenta. Depois de lavar seu ferimento no rio, eu lhe fiz uma bandagem com o lenço e recuei com ele para o alto da ravina e para a luz do dia.

Chegando em casa, minha irmã quis saber o que havia acontecido com o Pimenta e eu lhe disse que ele tinha lutado com um gato selvagem, que me tinham dito haver por ali. Achei que era melhor não dizer o que realmente acontecera; embora, na verdade, nem eu mesmo tivesse certeza, a não ser que a coisa que eu vira entre os arbustos não era gato selvagem nenhum. Era grande demais e tinha, tanto quanto pude perceber, uma pele como de porco, mas de uma cor branca, morta e doentia. E ainda por cima ele andava ereto, ou quase, sobre as patas traseiras, com um movimento que parecia o de um ser humano. Tudo isso eu notara em um curto vislumbre e, verdade seja dita, eu tinha sentido uma boa dose de desconforto, além da curiosidade enquanto analisava o caso na minha mente.

Foi de manhã cedo que aconteceu o incidente acima. Então, por volta da hora do jantar, enquanto eu estava lendo, foi me que aconteceu de olhar subitamente à janela e vi alguma coisa espiando através da vidraça, somente os olhos e as orelhas aparecendo. “Um porco, por Júpiter!”, eu exclamei e me levantei. Ao fazê-lo eu pude ver a coisa mais completamente, mas não era nenhum porco — Deus sabe o que era. Parecia-me vagamente com a Coisa horrível que me havia assustado na grande arena. Tinha uma face grotescamente humana, bem como a mandíbula, mas sem uma bochecha propriamente dita. O nariz se prolongava como um focinho, e tinha aqueles olhinhos e as orelhas extravagantes que lhe davam uma aparência extraordinariamente suína. Tinha pouca testa e toda a face era de uma cor doentiamente branca.

Por quase um minuto eu fiquei olhando a coisa com um sentimento crescente de desgosto e algum medo. A boca ficava tremendo, estupidamente, e certa vez emitiu um grunhido meio suíno. Eu acho que foram os olhos que me atraíram mais: eles pareciam brilhar, às vezes, com uma inteligência horrivelmente humana, e ficavam desviando de meu olhar, contemplando os detalhes do cômodo, como se meus olhos lhe incomodassem. A coisa parecia estar se apoiando sobre o peitoril da janela com duas mãos que pareciam garras. Estas garras, diferentemente da face, eram de uma coloração marrom cerâmica e tinham uma semelhança indistinta com mãos humanas, por terem quatro dedos e um polegar, ainda que os dedos fossem unidos por uma membrana até a primeira junta, da mesma forma que os dos patos. Também tinha unhas, mas tão compridas e poderosas que pareciam as garras de uma água e não outra coisa. Como disse antes, senti certo medo, embora quase de forma impessoal. Acho que posso explicar melhor o meu sentimento dizendo que era uma sensação de aversão, tal como a que se deve esperar quando se entra em contato com algo supremamente maligno, algo profano, pertencente a um reino ainda não sonhado entre os estados da existência.

Não sei dizer se notei todos esses detalhes do bruto naquele instante. Eu acho que eles foram me retornando depois, como se tivessem sido impressos em minha mente. Eu imaginei mais do que vi quando contemplei a coisa, e os detalhes materiais apareceram depois.

Foi talvez por um minuto que eu encarei a criatura. Então os meus nervos se acalmaram um pouco e eu sacudi dos ombros o vago alarme que ela me causava e dei um passo em direção à janela. Logo que o fiz, a coisa recuou e desapareceu. Eu corri à porta e olhei em torno apressadamente, mas somente os arbustos emaranhados e as moitas encontraram meu olhar.

Corri de volta para casa e, tomando minha arma, saí para procurar pelos jardins. Ao fazê-lo, perguntava-me se a coisa que tinha acabado de ver não seria a mesma que eu tinha entrevisto pela manhã. E fiquei inclinado a pensar que sim.

Teria trazido Pimenta comigo, mas julguei que era melhor lhe dar uma chance de curar-se da ferida. Além disso, se a criatura que eu tinha visto era, como imaginava, o seu antagonista da manhã, não era provável que ele fosse útil. Comecei minha busca sistematicamente. Estava determinado, se possível a achar e dar fim àquela coisa suína. Aquele era, afinal, um Horror material.

A princípio eu procurava com cuidado, com a lembrança do ferimento de Pimenta ainda em mente, mas quando as horas foram passando e não surgia nenhum sinal de coisa viva nos grandes e solitários jardins eu fiquei menos apreensivo. Senti quase como se fosse ficar feliz de ver a coisa. Qualquer coisa parecia melhor do que aquele silêncio, com a sensação onipresente de que a criatura poderia estar espreitando atrás de qualquer arbusto por que eu passasse. Mais tarde eu me descuidei do perigo, a ponto de pular dentro dos arbustos ou de enfiar o cano da arma nas moitas ao avançar.

Às vezes eu gritava, mas somente os ecos respondiam-me. Eu pensava em assim talvez assustar a criatura e fazê-la mostrar-se, mas só consegui fazer minha irmã, Mary, sair também, para ver o que era. Eu lhe disse que havia visto o gato selvagem que ferira o Pimenta e que estava tentando caçá-lo nos arbustos. Ela só ficou meio satisfeita e voltou para dentro de casa com uma expressão de dúvida no rosto. Fiquei imaginando se ela não teria visto ou adivinhado alguma coisa. Pelo resto do entardecer eu persegui a coisa ansiosamente. Eu achava que não poderia dormir com aquela coisa bestial assombrando os matagais e, mesmo assim, até anoitecer, eu não tinha visto nada. Então ao voltar para casa eu ouvi um ruído curto e inteligível nos arbustos à minha direita. Instantaneamente eu me virei e, apontando rápido eu atirei na direção do som. Imediatamente eu ouvi alguma coisa correndo atabalhoadamente entre os arbustos. Movia-se rápido e em um minuto já tinha desaparecido do alcance de minha audição. Depois de dar uns passos atrás do som eu interrompi a perseguição, compreendendo o quanto seria fútil, diante da escuridão que rapidamente chegava, e então, sentindo-me curiosamente deprimido, entrei em casa.

Aquela noite, depois que minha irmã foi dormir, eu percorri todas as janelas e portas do andar térreo e verifiquei se estavam trancadas. Esta precaução era desnecessária em relação às janelas, pois todas as dos andares inferiores eram firmemente gradeadas, mas em relação às portas, que eram cinco, foi uma lembrança sábia, pois nenhuma delas estava trancada.

Tendo me assegurado disso, eu subi até meu escritório e, no entanto, de alguma forma, naquele momento, o lugar abalou-me, ele parecia tão grande e cheio de eco. Por algum tempo eu tentei ler, mas por fim descobri que era impossível e desci com o livro para a cozinha, onde uma grande lareira estava queimando, e me sentei ali.

Ouso dizer que tinha lido por um par de horas quando, de repente, ouvi um som que me fez deixar o livro e ouvir atentamente. Era como o ruído de alguma coisa se esfregando e tateando a porta dos fundos. Uma vez a porta rangeu alto, como se alguma força estivesse sendo aplicada sobre ela. Durante esses poucos e curtos momentos eu experimentei um indescritível sentimento de terror. tal como não imaginava ser possível. Minhas mãos tremeram, um suor frio me cobriu e eu sacudia violentamente.

Gradualmente me acalmei. Os furtivos movimentos exteriores tinham parado.

Então por uma hora eu fiquei sentado e vigilante. E de uma vez o medo me agarrou de novo. Eu senti como se imagino que um animal se sente ao ser contemplado por uma serpente. Mas não podia ouvir nada. Mesmo assim, não havia dúvida de que uma influência inexplicada estava trabalhando.

Gradualmente, imperceptivelmente quase, algo desviou a atenção de meus ouvidos — um som que se parecia com um murmúrio baixo. Rapidamente ele se desenvolveu em um confuso, mas horrendo, coro de berros bestiais. E parecia erguer-se das entranhas da terra.

Eu ouvi um impacto seco e senti, de uma maneira cega e meio estúpida, que tinha deixado cair o livro. Depois disso eu só fiquei sentado, e assim a luz do dia me achou, quando ela avançou descoradamente pelas janelas gradeadas e altas da grande cozinha.

Com a luz do amanhecer o sentimento de estupor e medo me deixou e eu retornei a um maior controle dos meus sentimentos. Então eu peguei o livro e avancei até a porta para ouvir. Nenhum som quebrava o silêncio frio. Por alguns minutos eu fiquei ali e então, muito gradual e cautelosamente, eu puxei a tranca e abri a porta e olhei lá fora. Minha precaução era desnecessária. Nada havia para se ver, exceto uma vista cinzenta de assustadores e emaranhados arbustos e árvores que se estendiam até a distante plantação.

Com um calafrio eu fechei a porta e segui, silenciosamente, para a cama.


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