“O passado nos condena, Ismaël.” Ainda posso ouvir rasgando minha alma essas palavras proferidas pelo velho, com seu porte de capitão Ahab, como se estivesse à armurada de um velho navio contemplando o mar absoluto, à espera de alguma incompreensível fera. Chamo-me realmente Ismaël, mas ele não se chamava Ahab, e não estávamos embarcados em navio algum, mas perdidos nas montanhas poeirentas do Teto do Mundo, fugitivos da impiedosa inquisição de um inimigo invisível e distante, quase incompreensível.
Eu nasci longe desta terra triste em que estou morrendo. Voei sobre o mar e cruzei desertos e florestas para chegar até aqui e poder ouvir as palavras do velho profeta. Sou parte de um grupo de escolhidos, eu levo a morte estampada na testa, em verde, estou pronto para ela, como um kamikaze nos mares do Oriente. Apenas não sigo imperador algum deste mundo. Não tenho a permissão de chamar o velho, nosso líder, pelo seu nome verdadeiro. Eu o chamo apenas de “chefe” e entre nós, os puros, criou-se o hábito de chamar-lhe “Ahab”, em homenagem a outro homem, este fictício, que também enfrentava o desconhecido de peito aberto, como o velho o fez, mais de uma vez.
Nossa luta deixou marcas na alma e no corpo. Perdemos tantos amigos que nem contamos mais. Preferimos ser amigos apenas de Deus, porque ele não será nunca morto pelo inimigo. Quem tem amigos demais não quer morrer, o herói precisa da mais absoluta solidão. E estamos sozinhos nestas montanhas desoladas, e nem sei exatamente porque chegamos a tal situação. Vivo isolado aqui há tantos anos que perdi a noção da realidade. Desde que sigo “Ahab” eu não leio mais jornais e nem tenho acesso ao rádio. Somos ascetas, buscamos a pureza, esperamos que a morte nos encontre prontos. Heróis não têm tempo a perder com as pequenezas do mundo. Suponho que Ahab saiba mais sobre o inimigo do que nós, mas nos poupa disso. Talvez tivéssemos menos esperança se soubéssemos exatamente contra qual Moby Dick estamos tocaiando as montanhas, como se fossem as ondas do mar. Tal como a lendária baleia, o inimigo está além. Não vamos até ele, é ele que nos vem.
Ahab não tem esperanças, tem um destino. Tal como todos nós, ele também sabe que vai morrer cedo. Preparou-se para isso. Teme isso. Seu corpo é frágil e precocemente encurvado pelo peso de uma idade que ele não tem. Mas a sua alma é como um sabre de aço, afiada e luzidia, inatacável pela poeira ou pela umidade, e brilha sob o sol quando ele nos fala. De sua boca saem palavras calmas, confortantes. Quando ele fala nós esquecemos que estamos precariamente sobre a terra, tal como o Pequod singrava precariamente as ondas bravas do grande mar. Ahab nos inspira a dar de nosso sangue para forjar o grande arpão com que trespassará o coração do inimigo quando ele saltar sobre nós. Morreremos com a queda de seu cadáver, e isto será glorioso.
Seguimos Ahab pelos desertos, como marujos de uma expedição sem rumo pelos sete mares. Estivemos em tantas cidades que nem pude guardar seus nomes. Cada nova cidade era um amigo a menos. Ahab, meu herói e minha inspiração, é um profeta cujas palavras não têm mais trazido novos conversos. Noss grupo diminui e nossos inimigos se tornam numerosos. Vivemos ultimamente de favor, quase como prisioneiros, em uma casa que nenhum de nós escolheria. “Nosso passado nos condena, Ismaël” — as palavras do velho ecoam na minha cabeça com sílabas de metralhadora.
Era de madrugada quando acordei sobressaltado. Havia um silêncio pesado e amordaçante no mundo. As montanhas dormiam sufocadas como se uma manzorra enorme estivesse apertada sobre a boca da cidade. O ar arranhava nas narinas e eu tinha uma vontade de chorar ou de sair correndo. Nada disso era incomum, eu vinha sentindo todas essas coisas com relativa frequencia. Alguns chamariam isso de covardia, outros de arrependimento, outros ainda diriam que eu estava voltando à racionalidade. Penar nessas montanhas, sem um sentido definido, mesmo na presença constante de um profeta, é algo que abala a fé do mais firme dos crentes.
Eu não sabia ainda exatamente o que estava me incomodando naquele silêncio, que parecia diferente, como se vibrasse algo monstruoso, em uma faixa inaudível pelo homem, mas sensível pela alma que há dentro do homem. Saí ao terraço para tomar ar, mas era inútil até isso: o ar estava quente, as montanhas sopravam opressão e as luzes das casas pareciam delimitar as cercas de uma prisão. Respirei com força, violentando os meus pulmões com aquele ar cortante e grosso, depois entrei, resignado, e fui procurar um lugar quieto onde dormir.
No térreo encontrei Fátima, ainda de pé, preparando bilhas de água fresca para levar aos nossos quartos, para a purificação matinal. Estava vestida de negro e tinha os olhos tristes como de costume, como os de alguém arrancada de toda perspectiva de felicidade e atirada naquele beco sem saída entre as montanhas. “Nosso passado nos condena, Ismaël”. Tive pena de Fátima. Gostaria de ter sido seu marido, se ainda houvesse tempo no mundo para constituir famílias e criar filhos. Acredito que ela também teria gostado, muito embora para isso devêssemos ter fugido, de Deus e de nossas fidelidades. Viver como renegados, em uma pátria alheia, um pensamento mais agradável do que morrer nas montanhas da Casa da Paz. Viver…
Saudei Fátima respeitosamente e saí ao quintal. Apesar do calor que fazia e da quietude opressiva eu me sentia bem. Saudei o garoto de olhos verdes que estava na guarda. Não sabia o nome daquele curioso espécime. Ninguém sabia. Ele nunca o dizia a ninguém. Soubemos apenas que viera do leste, como tantos, e que não tinha esperança alguma neste mundo. Somente os que haviam perdido a esperança a vinham sorver da boca de Ahab, que lhes dava algum motivo para viver ainda, à espera do instante de glória.
— Quer que eu fique em seu turno, garoto? Não estou conseguindo dormir mesmo.
— Não carece, não, Ismaël. Nenhum de nós vai precisar amanhecer descansado mesmo… Então que pelo menos eu cumpra meu turno fielmente, como deve ser. Por que você não sai para um passeio, para relaxar um pouco?
Dei de ombros, conformado, e me preparei para sair. Aconteceu algo, porém, que me fez estacar ao portão, congelado de medo: uma sombra pareceu cruzar a fímbria de céu despejado que aparecia entre as montanhas ao sul. “A morte por lá voa como um dragão assombrando os céus, Ismaël.” Não foram palavras de Ahab, mas de meu falecido pai, no dia em que lhe contei de minha vontade de seguir o caminho dos heróis. Eu não me importei naquele dia porque tinha pressa de morrer, para esquecer toda culpa, todo arrependimento e toda frustração. Mas aquela forma fantasmagórica entre, como o rabo de dragão derrubando as estrelas do céu, me fez tremer e chorar. Era ela que vinha, e eu não estava preparado. Eu tinha me acovardado.
— O que foi isso, Ismaël? — perguntou o garoto de olhos verdes.
— Eu não sei, garoto, só tive um poderoso pressentimento de algo muito ruim.
O garoto me encarou, com medo no olhar, e disse:
— Vamos fugir, Ismaël.
Eu não fugi com ele. Entrei correndo pelo portão, enquanto ele abria o portão que dava para os arrozais. O som surdo do voo do dragão se aproximava, desorientando-me. Encontrei Fátima descendo dos quartos, depois de entregar as bilhas de todos os homens. Agarrei-a como pude, pressionando minha mão sobre sua boca com toda a força que conseguia ter, enquanto ela esperneava, desesperada por gritar, como se eu a estivesse prestes a estuprar. Subi com ela ao meu quarto, no segundo andar, e me tranquei, ainda segurando a boca trancada, porque meu coração pulava loucamente querendo cair dela.
Aliviei lentamente a pressão dos dedos sobre os lábios de Fátima. Ela não gritou quando os removi. Não gritou porque também ela conseguia distinguir o ruído sobre nós, algo indistinto e maligno. Os cães dos vizinhos começaram a ladrar furiosamente. Sussurrei-lhe baixinho aos ouvidos:
— Não sei o que está acontecendo, meu amor, mas eu vou tentar lhe proteger de alguma forma.
Ela assentiu com a cabeça. Apenas murmurando um rogo entre os dentes doloridos, para que Deus teria piedade dela e que eu poupasse sua pureza. Os instantes foram passando, o ruído foi persistindo e eu continuei sem atacá-la. Ela foi aos poucos entendendo que não se tratava de uma ameaça de violação.
Lá fora se ouviram ruídos de disparos repetidos. Alguma arma automática moderna. Tiros isolados de fuzil e um longo grito agoniado, que terminava morrendo num engasgo:
— Deus é grande, Ismaël. E eu me chamo Khali&hellip
Passos soaram apressados pelas escadas. Mais tiros. Portas arrombadas como se fossem de papelão. Os cachorros lá fora latindo. Mais tiros. Poucos gritos. Os heróis não morrem berrando como cabritos.
Os invasores gritavam apressada e nervosamente. Eram estrangeiros e impacientes. Nem sempre esperavam a resposta para atirar. Uma mulher soluçou e foi calada por um tiro no meio de um grito que não consegui distinguir.
Então eu percebi o quanto eu estava exposto ali naquele quarto. Embora a porta dele ficasse meio oculta debaixo do lance da escada, dificilmente escaparia da vista dos invasores se eles simplesmente não fossem estúpidos e desastrados. Ninguém sobrevive contando que o inimigo será estúpido e desastrado. Olhei para o rosto de Fátima. Ela estava pálida e seus lábios, machucados pelo peso de minha mão, tremiam num choro silencioso. A pobrezinha queria chorar, mas não tinha coragem nem para isso.
Era preciso sair do quarto e encontrar um lugar seguro. A primeira coisa em que pensei foi em saltar para o chão. A janela do segundo andar não era tão alta que nos quebrasse as pernas. Só havia um problema: ela ficava fora do quarto. Por isso era preciso pensar rápido. O lado bom era que ela ficava sempre aberta para ventilar a casa, e havia de palha de arroz e grama seca ao longo de todo muro. Com alguma sorte escaparíamos com alguns arranhões apenas, se Deus nos permitisse cruzar três metros de corredor e saltar por ela sem que os invasores vissem.
Abri a porta de uma vez: não adianta ter medo numa hora de desespero. Se houvesse algum maldito cão infiel do lado de fora ele atiraria na porta assim que eu girasse a maçaneta. Só não devia fazer barulho, e isso não fiz porque a porta era nova e não rangia. Lá estava a janela: um metro e vinte por um e dez. Suficiente espaço para pularmos sem segurança, mas com facilidade, mesmo Fátima estando um pouco acima do peso.
Não dava tempo para pensar em mais nada. Não havia plano alternativo. Não era possível nem mesmo explicar à coitada o que eu estava pensando em fazer. Só podia contar que ela fosse esperta o bastante para entender. Saí correndo pela porta, arrastando-a atabalhoadamente pelo braço, enquanto ouvia os passos dos inimigos que trotavam pela escada acima, vindo para o segundo andar. Saltei no vazio, esperando morrer ou miseravelmente quebrar as pernas ou ainda ser esmagado pelo peso de Fátima caindo sobre mim. Nada disso, felizmente. Caímos os dois sobre a palha e rapidamente eu me envolvi nela, aproveitando que a cor de minha roupa era clara. Não tendo a mesma sorte, Fátima mostrou agilidade para correr até as sombras das árvores e se ocultar atrás do tronco de uma delas.
Eu não tinha nem acabado de cair quando tiros se ouviram no segundo andar. Algumas balas saíram pela janela, faiscando como dardos de Satanás. Cães ladravam novamente em volta, mas nenhum naquela estrada, nenhum que viesse me farejar. Um a um os homens que defendiam o chefe foram caindo. Mas lutaram bravamente. Foram muitos tiros, de dentro e de fora. Uma das aeronaves inimigas girou em parafuso, com o motor atingido e o tanque de combustível vazando, e caiu no quintal. Poderia ter sido meu tiro a derrubá-la: ninguém era tão bom quanto eu em artilharia quando fora veterano na guerra. Mas eu estava acovardado, cansado de morte, cansado de tudo, mas não de viver. Então os tiros pararam. Os bravos estavam todos mortos, apenas o covarde respirava, escondido no meio de palha, capim seco e esterco de vaca.
Os estrangeiros tagarelavam. Eu não conseguia entender o que diziam, mas era evidente a sua excitação. Eu não imaginava o que poderia ter acontecido, não até ouvir a própria voz de Ahab, cansada e conformada de uma maneira que eu nunca sonhara que ele seria capaz de dizer, quase num gemido subserviente:
<— Então está bem, vocês me pegaram, finalmente. Aqui está o seu troféu, malditos.
A ira densamente espremida naquelas palavras me cortou o coração. Não era somente eu, o covarde, que sobrevivia. Ahab estava destinado à humilhação. Não morreria na tentativa quixotesca de exterminar o monstro que assombrava os mares. Teria simplesmente seu Pequod arrestado em um porto qualquer. Terminaria seus dias pensando na liberdade de Moby Dick, mas ele preso e impotente, um homem precocemente vergado, sofrendo de rins, de varizes e de cáries. Não há heroísmo algum em morrer de velhice num mundo em guerra. Mesmo uma velhice de prisioneiro.
Desceram com ele pelas escadas. As botas dos inimigos soavam como tambores. Ahab gritou-lhes algo em sua língua. Eles não responderam. Gritaram-lhe de volta, e riram. De repente ouvi uma longa rajada de tiros, e não ouvi mais a voz de Ahab, a não ser em meus sonhos.
O dia amanheceu bonito nas montanhas perfumadas de papoula e bétel. Fátima e eu caminhávamos com cuidado, sempre no rumo norte, rumo ao teto do mundo. Ela não falava nada. Ela sabia que eu era um covarde, mas não me acusava porque não queria estar morta. Estava grata por sua vida, grata demais para me achar um covarde.
— Na Índia, querida, na Índia seremos felizes. Diremos que somos sikhs e nos deixarão ficar. Diremos que estamos fugindo da perseguição dos fanáticos.
Não me lembro quantas vezes repeti isso, na esperança de que falando muitas vezes a mesma esperança eu conseguisse condensá-la, como se fosse possível extrair esperança do ar e engarrafá-la. Mas eu sabia que as coisas seriam muito diferentes. Sabia que provavelmente os guardas indianos nos matariam se tentássemos chegar à fronteira, sabia que se um dia puséssmos os pés do outro lado Fátima me abandonaria. Mas eu queria viver, com mil diabos! Por que saltara por aquela janela? Para entregar-me ao punhal vingativo de um guarda sikh que olhava por sobre a fronteira com sangue nos dentes de tanto morder por dentro da bochecha na ansiedade de purgar a terra de nossa raça? Para ser deixado velho e mendigo nas ruas de Amritsar, comendo a refeição da caridade que os meus inimigos do passado distribuíam aos pobres? Não, não era para nada disso. Por isso, secretamente, em vez de me dirigir à esperança que jazia ao leste, meus passos sutilmente me levavam, como seu fosse atraído por uma lâmpada, rumo à maldição e a vingança, rumo às terras controladas pelo ódio. Eu era um guerreiro ainda. Ainda havia tempo para purgar minha covardia. E Fátima seria minha, mesmo que à força.