Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
08
Mai 11
publicado por José Geraldo, às 21:06link do post | comentar

Após uma gestação demorada e cheia de indas e vindas, finalmente está saindo, pela Editora Multifoco, o meu romance de estreia, Praia do Sossego. Escrito penosamente ao longo de onze anos (entre 1999 e 2010), este livro é importantíssimo para mim, quase um filho, pois ele contém trechos escritos em cada um desses onze anos (ainda que a revisão final seja entre 2009 e 2010). Trata-se de um verdadeiro testemunho de minha carreira literária, uma obra que contem todas as características básicas de minha ficção e de minha poesia de juventude, mesclando romantismo quase piegas com cenas picantes de sexo, citações existencialistas, ingenuidade juvenil, aventuras pelas estradas do Brasil e um cuidado quase gótico com o vocabulário.

Escrevê-lo foi praticamente uma Ilíada, uma aventura sem rumo e sem limites, que me custou muitas negativas mal educadas e muito desprezo por parte de pessoas que se acham escritores só porque pagam para publicar seus romances melosos e participam de movimentos inexpressivos. Por causa desse livro eu fui chamado de idiota, fui ridicularizado por trolls no Orkut e fui tachado de louco por membros da família que não conseguem acreditar que os escritores são capazes de escrever obras de ficção.

E eis que aí vem ele! A editora já me mandou o sinal verde, os livros estão na gráfica e começaram a ser-me entregues, sempre em lotes de trinta de cada vez, a partir do final do mês. Lançá-lo representa um momento de profunda realização, ainda que hoje eu tenha consciência de que teria escrito de forma diferente quase dois terços de suas páginas. Aliás, exatamente por isso. Se não o lançasse, eu o mutilaria de novo e perder-se-ia esse testemunho importante de minha juventude e de seus sonhos literários.

Começa agora a parte complicada: pôr para girar as engrenagens de minhas amizades, meus contatos com antigos professores, com as pessoas que acreditam em meu talento. Vou precisar gastar dinheiro e provavelmente não o recuperarei vendendo os exemplares. Mas ponho no mundo este livro, que me custou sangue e pele.

Mas de que se trata, exatamente, esse livro que tanto custou a sair?

Praia do Sossego é uma novela (gênero literário no Brasil muito confundido com o romance) sobre um jovem que atravessa uma depressão, causada principalmente pela morte precoce de sua amada. Não, eu não estou estragando a surpresa, isto está no Prólogo! A narrativa segue duas linhas convergentes, que se unem mais ou menos na metade do livro. A primeira linha segue o presente, no qual o protagonista, Ricardo, faz uma viagem a um lugar obscuro do qual apenas ouvira falar (a tal Praia do Sossego) para “respirar liberdade” e tentar distrair-se dos lugares que lhe lembravam a falecida Helena. Ao mesmo tempo, ele recapitula em flashbacks (intercalados como sonhos seus) todos os episódios de sua vida entre o momento em que conheceu Helena, no último ano do segundo grau, até o dia em que ela morreu, vítima de uma leucemia (a história se passa em algum momento do início dos anos 1990 e transplantes de medula ainda eram coisa de ficção científica). A linha presente é dinâmica e fortemente narrativa, acompanhando sua passagem por diversas cidades e encontrando vários personagens diferentes, com os quais ele, sempre tímido, quase nunca interage. Os flashbacks são fortemente metafóricos e poéticos, quase oníricos. No momento em que as duas linhas do argumento finalmente se encontram, a história se desata em outra direção, com outro estilo, rumo a um desfecho diferente do que Ricardo desejava.

Nesta obra tento manter a maior economia possível de personagens. Além de Ricardo, em torno do qual gira toda a história, só temos mais oito personagens vivos e o fantasma de Helena nos sonhos dele. Para um livro de cerca de 200 páginas isso parece pouco, mas é mais do que suficiente, se você considerar que a história que se conta não acontece “lá fora” em um mundo cheio de pessoas, mas “cá dentro” dos personagens, onde só coexistem as lembranças que eles escolhem conservar. A economia de personagens é fruto de um foco: originalmente havia mais, porém eu os fui “matando” ou simplesmente abandonando à medida em que fui revisando o livro. A morte de alguns personagens foi dolorosa: pela necessidade de eliminar um casal de personagens que parecia sobrar na maioria das cenas da Praia eu tive que limar uma magnífica cena romântica sob o luar que me custara um mês escrevendo. A cena se foi, relegada a um conto ainda inédito.

E assim eu cheguei ao conjunto que hoje perfaz este livro que me chegará as mãos nos próximos dias. Poucos personagens, vários cenários e uma ação mais concentrada em reações e reflexões do que em feitos e aventuras. Com esse conjunto lhes conto uma história que é essencialmente romântica, embora dotada de um certo “corte” enviesado que não é exatamente o das histórias românticas estilo Sabrina e Júlia. Essa é a história que eu vou convidar-lhes a conhecer quando lançar, em algum momento do mês de junho, o meu romance de estreia.

Um pós-escrito: cumprindo uma antiga aposta/promessa feita há muitos anos ao meu amigo Emerson “Toquinho” Teixeira Cardoso, poeta cataguasense e gente boa toda vida, não estou me desgastando para fazer um opúsculo, mas um livro que para em pé na estante… São mais de duzentas páginas, bicho!


07
Mai 11
publicado por José Geraldo, às 17:00link do post | comentar

“O passado nos condena, Ismaël.” Ainda posso ouvir rasgando minha alma essas palavras proferidas pelo velho, com seu porte de capitão Ahab, como se estivesse à armurada de um velho navio contemplando o mar absoluto, à espera de alguma incompreensível fera. Chamo-me realmente Ismaël, mas ele não se chamava Ahab, e não estávamos embarcados em navio algum, mas perdidos nas montanhas poeirentas do Teto do Mundo, fugitivos da impiedosa inquisição de um inimigo invisível e distante, quase incompreensível.

Eu nasci longe desta terra triste em que estou morrendo. Voei sobre o mar e cruzei desertos e florestas para chegar até aqui e poder ouvir as palavras do velho profeta. Sou parte de um grupo de escolhidos, eu levo a morte estampada na testa, em verde, estou pronto para ela, como um kamikaze nos mares do Oriente. Apenas não sigo imperador algum deste mundo. Não tenho a permissão de chamar o velho, nosso líder, pelo seu nome verdadeiro. Eu o chamo apenas de “chefe” e entre nós, os puros, criou-se o hábito de chamar-lhe “Ahab”, em homenagem a outro homem, este fictício, que também enfrentava o desconhecido de peito aberto, como o velho o fez, mais de uma vez.

Nossa luta deixou marcas na alma e no corpo. Perdemos tantos amigos que nem contamos mais. Preferimos ser amigos apenas de Deus, porque ele não será nunca morto pelo inimigo. Quem tem amigos demais não quer morrer, o herói precisa da mais absoluta solidão. E estamos sozinhos nestas montanhas desoladas, e nem sei exatamente porque chegamos a tal situação. Vivo isolado aqui há tantos anos que perdi a noção da realidade. Desde que sigo “Ahab” eu não leio mais jornais e nem tenho acesso ao rádio. Somos ascetas, buscamos a pureza, esperamos que a morte nos encontre prontos. Heróis não têm tempo a perder com as pequenezas do mundo. Suponho que Ahab saiba mais sobre o inimigo do que nós, mas nos poupa disso. Talvez tivéssemos menos esperança se soubéssemos exatamente contra qual Moby Dick estamos tocaiando as montanhas, como se fossem as ondas do mar. Tal como a lendária baleia, o inimigo está além. Não vamos até ele, é ele que nos vem.

Ahab não tem esperanças, tem um destino. Tal como todos nós, ele também sabe que vai morrer cedo. Preparou-se para isso. Teme isso. Seu corpo é frágil e precocemente encurvado pelo peso de uma idade que ele não tem. Mas a sua alma é como um sabre de aço, afiada e luzidia, inatacável pela poeira ou pela umidade, e brilha sob o sol quando ele nos fala. De sua boca saem palavras calmas, confortantes. Quando ele fala nós esquecemos que estamos precariamente sobre a terra, tal como o Pequod singrava precariamente as ondas bravas do grande mar. Ahab nos inspira a dar de nosso sangue para forjar o grande arpão com que trespassará o coração do inimigo quando ele saltar sobre nós. Morreremos com a queda de seu cadáver, e isto será glorioso.

Seguimos Ahab pelos desertos, como marujos de uma expedição sem rumo pelos sete mares. Estivemos em tantas cidades que nem pude guardar seus nomes. Cada nova cidade era um amigo a menos. Ahab, meu herói e minha inspiração, é um profeta cujas palavras não têm mais trazido novos conversos. Noss grupo diminui e nossos inimigos se tornam numerosos. Vivemos ultimamente de favor, quase como prisioneiros, em uma casa que nenhum de nós escolheria. “Nosso passado nos condena, Ismaël” — as palavras do velho ecoam na minha cabeça com sílabas de metralhadora.

Era de madrugada quando acordei sobressaltado. Havia um silêncio pesado e amordaçante no mundo. As montanhas dormiam sufocadas como se uma manzorra enorme estivesse apertada sobre a boca da cidade. O ar arranhava nas narinas e eu tinha uma vontade de chorar ou de sair correndo. Nada disso era incomum, eu vinha sentindo todas essas coisas com relativa frequencia. Alguns chamariam isso de covardia, outros de arrependimento, outros ainda diriam que eu estava voltando à racionalidade. Penar nessas montanhas, sem um sentido definido, mesmo na presença constante de um profeta, é algo que abala a fé do mais firme dos crentes.

Eu não sabia ainda exatamente o que estava me incomodando naquele silêncio, que parecia diferente, como se vibrasse algo monstruoso, em uma faixa inaudível pelo homem, mas sensível pela alma que há dentro do homem. Saí ao terraço para tomar ar, mas era inútil até isso: o ar estava quente, as montanhas sopravam opressão e as luzes das casas pareciam delimitar as cercas de uma prisão. Respirei com força, violentando os meus pulmões com aquele ar cortante e grosso, depois entrei, resignado, e fui procurar um lugar quieto onde dormir.

No térreo encontrei Fátima, ainda de pé, preparando bilhas de água fresca para levar aos nossos quartos, para a purificação matinal. Estava vestida de negro e tinha os olhos tristes como de costume, como os de alguém arrancada de toda perspectiva de felicidade e atirada naquele beco sem saída entre as montanhas. “Nosso passado nos condena, Ismaël”. Tive pena de Fátima. Gostaria de ter sido seu marido, se ainda houvesse tempo no mundo para constituir famílias e criar filhos. Acredito que ela também teria gostado, muito embora para isso devêssemos ter fugido, de Deus e de nossas fidelidades. Viver como renegados, em uma pátria alheia, um pensamento mais agradável do que morrer nas montanhas da Casa da Paz. Viver…

Saudei Fátima respeitosamente e saí ao quintal. Apesar do calor que fazia e da quietude opressiva eu me sentia bem. Saudei o garoto de olhos verdes que estava na guarda. Não sabia o nome daquele curioso espécime. Ninguém sabia. Ele nunca o dizia a ninguém. Soubemos apenas que viera do leste, como tantos, e que não tinha esperança alguma neste mundo. Somente os que haviam perdido a esperança a vinham sorver da boca de Ahab, que lhes dava algum motivo para viver ainda, à espera do instante de glória.

— Quer que eu fique em seu turno, garoto? Não estou conseguindo dormir mesmo.

— Não carece, não, Ismaël. Nenhum de nós vai precisar amanhecer descansado mesmo… Então que pelo menos eu cumpra meu turno fielmente, como deve ser. Por que você não sai para um passeio, para relaxar um pouco?

Dei de ombros, conformado, e me preparei para sair. Aconteceu algo, porém, que me fez estacar ao portão, congelado de medo: uma sombra pareceu cruzar a fímbria de céu despejado que aparecia entre as montanhas ao sul. “A morte por lá voa como um dragão assombrando os céus, Ismaël.” Não foram palavras de Ahab, mas de meu falecido pai, no dia em que lhe contei de minha vontade de seguir o caminho dos heróis. Eu não me importei naquele dia porque tinha pressa de morrer, para esquecer toda culpa, todo arrependimento e toda frustração. Mas aquela forma fantasmagórica entre, como o rabo de dragão derrubando as estrelas do céu, me fez tremer e chorar. Era ela que vinha, e eu não estava preparado. Eu tinha me acovardado.

— O que foi isso, Ismaël? — perguntou o garoto de olhos verdes.

— Eu não sei, garoto, só tive um poderoso pressentimento de algo muito ruim.

O garoto me encarou, com medo no olhar, e disse:

— Vamos fugir, Ismaël.

Eu não fugi com ele. Entrei correndo pelo portão, enquanto ele abria o portão que dava para os arrozais. O som surdo do voo do dragão se aproximava, desorientando-me. Encontrei Fátima descendo dos quartos, depois de entregar as bilhas de todos os homens. Agarrei-a como pude, pressionando minha mão sobre sua boca com toda a força que conseguia ter, enquanto ela esperneava, desesperada por gritar, como se eu a estivesse prestes a estuprar. Subi com ela ao meu quarto, no segundo andar, e me tranquei, ainda segurando a boca trancada, porque meu coração pulava loucamente querendo cair dela.

Aliviei lentamente a pressão dos dedos sobre os lábios de Fátima. Ela não gritou quando os removi. Não gritou porque também ela conseguia distinguir o ruído sobre nós, algo indistinto e maligno. Os cães dos vizinhos começaram a ladrar furiosamente. Sussurrei-lhe baixinho aos ouvidos:

— Não sei o que está acontecendo, meu amor, mas eu vou tentar lhe proteger de alguma forma.

Ela assentiu com a cabeça. Apenas murmurando um rogo entre os dentes doloridos, para que Deus teria piedade dela e que eu poupasse sua pureza. Os instantes foram passando, o ruído foi persistindo e eu continuei sem atacá-la. Ela foi aos poucos entendendo que não se tratava de uma ameaça de violação.

Lá fora se ouviram ruídos de disparos repetidos. Alguma arma automática moderna. Tiros isolados de fuzil e um longo grito agoniado, que terminava morrendo num engasgo:

— Deus é grande, Ismaël. E eu me chamo Khali&hellip

Passos soaram apressados pelas escadas. Mais tiros. Portas arrombadas como se fossem de papelão. Os cachorros lá fora latindo. Mais tiros. Poucos gritos. Os heróis não morrem berrando como cabritos.

Os invasores gritavam apressada e nervosamente. Eram estrangeiros e impacientes. Nem sempre esperavam a resposta para atirar. Uma mulher soluçou e foi calada por um tiro no meio de um grito que não consegui distinguir.

Então eu percebi o quanto eu estava exposto ali naquele quarto. Embora a porta dele ficasse meio oculta debaixo do lance da escada, dificilmente escaparia da vista dos invasores se eles simplesmente não fossem estúpidos e desastrados. Ninguém sobrevive contando que o inimigo será estúpido e desastrado. Olhei para o rosto de Fátima. Ela estava pálida e seus lábios, machucados pelo peso de minha mão, tremiam num choro silencioso. A pobrezinha queria chorar, mas não tinha coragem nem para isso.

Era preciso sair do quarto e encontrar um lugar seguro. A primeira coisa em que pensei foi em saltar para o chão. A janela do segundo andar não era tão alta que nos quebrasse as pernas. Só havia um problema: ela ficava fora do quarto. Por isso era preciso pensar rápido. O lado bom era que ela ficava sempre aberta para ventilar a casa, e havia de palha de arroz e grama seca ao longo de todo muro. Com alguma sorte escaparíamos com alguns arranhões apenas, se Deus nos permitisse cruzar três metros de corredor e saltar por ela sem que os invasores vissem.

Abri a porta de uma vez: não adianta ter medo numa hora de desespero. Se houvesse algum maldito cão infiel do lado de fora ele atiraria na porta assim que eu girasse a maçaneta. Só não devia fazer barulho, e isso não fiz porque a porta era nova e não rangia. Lá estava a janela: um metro e vinte por um e dez. Suficiente espaço para pularmos sem segurança, mas com facilidade, mesmo Fátima estando um pouco acima do peso.

Não dava tempo para pensar em mais nada. Não havia plano alternativo. Não era possível nem mesmo explicar à coitada o que eu estava pensando em fazer. Só podia contar que ela fosse esperta o bastante para entender. Saí correndo pela porta, arrastando-a atabalhoadamente pelo braço, enquanto ouvia os passos dos inimigos que trotavam pela escada acima, vindo para o segundo andar. Saltei no vazio, esperando morrer ou miseravelmente quebrar as pernas ou ainda ser esmagado pelo peso de Fátima caindo sobre mim. Nada disso, felizmente. Caímos os dois sobre a palha e rapidamente eu me envolvi nela, aproveitando que a cor de minha roupa era clara. Não tendo a mesma sorte, Fátima mostrou agilidade para correr até as sombras das árvores e se ocultar atrás do tronco de uma delas.

Eu não tinha nem acabado de cair quando tiros se ouviram no segundo andar. Algumas balas saíram pela janela, faiscando como dardos de Satanás. Cães ladravam novamente em volta, mas nenhum naquela estrada, nenhum que viesse me farejar. Um a um os homens que defendiam o chefe foram caindo. Mas lutaram bravamente. Foram muitos tiros, de dentro e de fora. Uma das aeronaves inimigas girou em parafuso, com o motor atingido e o tanque de combustível vazando, e caiu no quintal. Poderia ter sido meu tiro a derrubá-la: ninguém era tão bom quanto eu em artilharia quando fora veterano na guerra. Mas eu estava acovardado, cansado de morte, cansado de tudo, mas não de viver. Então os tiros pararam. Os bravos estavam todos mortos, apenas o covarde respirava, escondido no meio de palha, capim seco e esterco de vaca.

Os estrangeiros tagarelavam. Eu não conseguia entender o que diziam, mas era evidente a sua excitação. Eu não imaginava o que poderia ter acontecido, não até ouvir a própria voz de Ahab, cansada e conformada de uma maneira que eu nunca sonhara que ele seria capaz de dizer, quase num gemido subserviente:

<— Então está bem, vocês me pegaram, finalmente. Aqui está o seu troféu, malditos.

A ira densamente espremida naquelas palavras me cortou o coração. Não era somente eu, o covarde, que sobrevivia. Ahab estava destinado à humilhação. Não morreria na tentativa quixotesca de exterminar o monstro que assombrava os mares. Teria simplesmente seu Pequod arrestado em um porto qualquer. Terminaria seus dias pensando na liberdade de Moby Dick, mas ele preso e impotente, um homem precocemente vergado, sofrendo de rins, de varizes e de cáries. Não há heroísmo algum em morrer de velhice num mundo em guerra. Mesmo uma velhice de prisioneiro.

Desceram com ele pelas escadas. As botas dos inimigos soavam como tambores. Ahab gritou-lhes algo em sua língua. Eles não responderam. Gritaram-lhe de volta, e riram. De repente ouvi uma longa rajada de tiros, e não ouvi mais a voz de Ahab, a não ser em meus sonhos.

O dia amanheceu bonito nas montanhas perfumadas de papoula e bétel. Fátima e eu caminhávamos com cuidado, sempre no rumo norte, rumo ao teto do mundo. Ela não falava nada. Ela sabia que eu era um covarde, mas não me acusava porque não queria estar morta. Estava grata por sua vida, grata demais para me achar um covarde.

— Na Índia, querida, na Índia seremos felizes. Diremos que somos sikhs e nos deixarão ficar. Diremos que estamos fugindo da perseguição dos fanáticos.

Não me lembro quantas vezes repeti isso, na esperança de que falando muitas vezes a mesma esperança eu conseguisse condensá-la, como se fosse possível extrair esperança do ar e engarrafá-la. Mas eu sabia que as coisas seriam muito diferentes. Sabia que provavelmente os guardas indianos nos matariam se tentássemos chegar à fronteira, sabia que se um dia puséssmos os pés do outro lado Fátima me abandonaria. Mas eu queria viver, com mil diabos! Por que saltara por aquela janela? Para entregar-me ao punhal vingativo de um guarda sikh que olhava por sobre a fronteira com sangue nos dentes de tanto morder por dentro da bochecha na ansiedade de purgar a terra de nossa raça? Para ser deixado velho e mendigo nas ruas de Amritsar, comendo a refeição da caridade que os meus inimigos do passado distribuíam aos pobres? Não, não era para nada disso. Por isso, secretamente, em vez de me dirigir à esperança que jazia ao leste, meus passos sutilmente me levavam, como seu fosse atraído por uma lâmpada, rumo à maldição e a vingança, rumo às terras controladas pelo ódio. Eu era um guerreiro ainda. Ainda havia tempo para purgar minha covardia. E Fátima seria minha, mesmo que à força.


03
Mai 11
publicado por José Geraldo, às 09:00link do post | comentar
Este texto é parte do romance “A Casa no Fim do Mundo”, de William Hope Hodgson (1907), que estou traduzindo em capítulos semanais. Visite o Índice para lê-los em sequência.

Assim estava eu, e apenas a memória de ter vivido além da escuridão, certa vez, servia para sustentar os meus pensamentos. Um tempo grande se passou — eras. E então uma estrela solitária rompeu seu lugar no escuro. Era o primeiro de um dos aglomerados marginais deste nosso universo. Naquele momento ele ainda estava longe, e ao meu redor brilhava o esplendor de incontáveis astros. Depois do que pareceram ser anos eu vi o sol, uma gota flamejante. Ao redor dele eu divisei vários remotos pontos de luz, os planetas do Sistema Solar. E eu vi a Terra outra vez, azul e inacreditavelmente pequena. Ela foi crescendo e se tornando definida.

Um longo espaço de tempo veio e passou, e então por fim eu entrei na sombra de nosso mundo, mergulhando de cabeça para baixo na querida e nublada Terra noturna. Acima de mim estavam as velhas constelações, e havia uma lua crescente. Então, ao me aproximar da superfície da Terra, uma opacidade me atingiu e eu pareci afundar em um nevoeiro negro.

Por um momento eu não soube de nada. Eu estava inconsciente. Gradualmente eu comecei a ter noção de um suave e distante lamento. Ele se tornou mais audível. Um sentimento desesperado de agonia me atingiu. Eu lutei loucamente para respirar e tentei gritar. Um momento depois eu tinha a respiração mais fácil e tinha a consciência de que havia alguma coisa lambendo a minha mão. Alguma coisa úmida varria a minha face. Eu ouvi um manquitolar e então outra vez o lamento. Ele parecia chegar aos meus ouvidos, então, com uma sensação de familiaridade, e eu abri os meus olhos. Tudo estava escuro, mas o sentimento de opressão tinha me deixado. Eu estava sentado e alguma coisa estava chorando lamentosamente e me lambendo. Eu me senti estranhamente confuso e instintivamente tentei afastar a coisa que me lambia. Minha cabeça estava curiosamente vazia e por um momento eu pareci incapaz de agir ou pensar. Então as coisas voltara à minha mente e eu chamei “Pimenta” bem baixinho. Fui respondido por um latido alegre e uma renovada onda de carinhos.

Em um instante me senti mais forte e levei as mãos aos fósforos. Tateei sobre a mesa por um momento, cegamente, então os meus dedos os acharam e eu risquei um e olhei confusamente em volta. Ao meu redor eu vi as coisas antigas e familiares. E ali fiquei sentado, cheio de maravilhas entorpecedoras, até que a chama do fósforo queimou meus dedos e eu o deixei cair, com uma expressão apressada de dor e ira escapando de meus lábios, assustando-me com o som de minha própria voz.

Depois de um momento eu risquei outro fósforo e me arrastei pelo cômodo para acender as velas. Ao fazê-lo eu notei que elas não tinham queimado até o fim, mas tinham sido apagadas. Quando as chamas subiram eu me virei e olhei ao redor do escritório, mas não havia nada incomum para ver, o que, subitamente, me causou um jorro de irritação. O que tinha acontecido? Eu segurei a minha cabeça com as mãos e tentei lembrar. Ah! A grande e silenciosa Planície, o sol de fogo vermelho em formato de anel. Onde estavam eles? Onde os havia visto? Há quanto tempo? Eu me sentia atordoado e confuso. Uma vez ou duas eu percorri o cômodo, instavelmente. Minha memória parecia desbotada e as coisas que eu tinha visto retornavam-me a custo. Eu me lembro de ter xingado muito e freneticamente em meu espanto. De repente eu tonteei e perdi o equilíbrio, tendo de me agarrar à mesa para não cair. Durante alguns minutos eu fiquei ali me segurando, fraco, e então consegui mancar até uma cadeira. Depois de algum tempo eu me senti um pouco melhor e consegui alcançar o armário onde eu costumava deixar conhaque e biscoitos. Servi-me de um pouco do estimulante e bebi tudo. Então, trazendo uma mancheia de biscoitos, voltei à minha poltrona e comecei a devorá-los esfomeadamente. Fiquei vagamente surpreso pela minha fome. Parecia que eu não tinha comido nada por um tempo incontável.

Enquanto comia, meu olhar percorreu o cômodo, preocupado com os menores detalhes, e ainda procurando, mesmo inconscientemente, algo tangível a que apegar-se, entre os mistérios invisíveis que me haviam envolvido. “Certamente”, pensei, “deve haver alguma coisa”. E então, na mesma hora, meus olhos repousaram sobre o mostrador do relógio no canto oposto. Naquele momento eu parei de comer e fiquei apenas olhando. Porque embora as suas batidas indicassem com quase toda certeza que ele ainda estava funcionando, os ponteiros marcavam um pouco antes de meia-noite, que era onde estavam, como eu me lembrava com certeza, bem antes de quando eu começara a ver as coisas estranhas acontecendo e que acabei de descrever. Por talvez um instante eu fiquei assustado e confuso. Se a hora tivesse sido a mesma de quando eu vira o relógio da vez anterior, eu teria concluído que os ponteiros tinham agarrado enquanto o mecanismo interno ainda funcionava, mas isso não explicava como os ponteiros teriam voltado para trás. Então, enquanto eu ainda analisava o assunto em meu cérebro cansado, passou-me o pensamento de que poderia ser quase a manhã do dia vinte e dois e que eu deveria ter estado inconsciente do mundo visível durante a maior parte das vinte e quatro horas anteriores. Esta ideia ocupou a minha atenção por um minuto inteiro, então eu comecei a comer de novo. Ainda tinha muita fome.

Durante o desjejum, pela manhã, perguntei à minha irmã pela data e descobri que meu raciocínio estava correto. Eu tinha, mesmo, ficado ausente — pelo menos em espírito — por quase um dia e uma noite.

Minha irmã não me fez perguntas, porque não era raro que eu ficasse em meu escritório durante todo o dia, ou mesmo dois dias de uma vez, sempre que me distraía com algum livro particularmente grosso e interessante ou com algum trabalho.

E assim os dias passam e eu ainda me sinto cheio de espanto de saber o sentido de tudo que vi naquela memorável noite. Mas eu acho que minha curiosidade dificilmente será satisfeita.


01
Mai 11
publicado por José Geraldo, às 00:55link do post | comentar | ver comentários (1)

Entre os vários gêneros literários que me atraem existem três que são particularmente de minha preferência: ficção científica, ficção histórica e realismo fantástico. São, porém, três gêneros que eu pouco ouso praticar, devido às inúmeras dificuldades envolvidas em cada um deles.

Na ficção científica existe o problema da imaginação: é necessário ser um bom futurólogo, para que sua obra de hoje não se torne um futuro do pretérito dentro de poucos anos, ou logo após a publicação. E futurologia se faz com informação, não com bola de cristal. A maioria dos autores brasileiros de “ficção científica” se evade da responsabilidade de conciliar criatividade e ciência tomando o atalho dos gêneros híbridos, como a ficção “steampunk”, que intencionalmente localiza em um “futuro do pretérito” a sua ação, preferindo imaginar como o passado poderia ter sido do que especular sobre como o futuro poderá vir a ser. Uma ficção científica que funciona como fábula ou conto de fadas, ambientado a ação há muito tempo atrás, em uma galáxia muito, muito distante também funciona como boa saída para a necessidade de coesão e coerência.

Não há nada de errado em escrever ficção desta forma, embora eu, do alto de minha arbitrária opinião, considere que esses gêneros não são ficção científica “de verdade”. Inclusive foram muitas as obras geniais escritas de forma tangente à ficção científica. O que está errado é, ao meu ver, que haja no Brasil tão poucos autores tentando fazer ficção científica no duro.

Não se pode exigir de um país que ele tenha muitos Asimovs ou Clarkes, especialmente um país que tem esse sistema educacional digno de Praga do Egito, mas seria magnífico ver mais gente tentando, em vez de cair no terreno fácil da fanfic de Guerra nas Estrelas.

O realismo fantástico, por sua vez, é um tema extremamente incompreendido pelos Brasileiros, que o consideram algo fabulístico ou até alienado, quando ele possui uma carga de tragédia e de denúncia muito forte. Além do mais, por ser um gênero “supostamente” oriundo da América hispânica, enfrenta certa rejeição entre nós, que ainda os vemos como “outros”. Digo “supostamente” porque não se pode chamar de outra coisa que não “realismo fantástico” as obras de autores como Franz Kafka, Mikhail Bulgakov e Karel Capek — e eles escreveram na primeira metade do século XX, época na qual García Márquez, o definidor do tema, ainda nem era adulto.

Por fim, a ficção histórica merece um tratamento especialíssimo, pois, ao contrário de todos os demais assuntos literários, é um dos poucos definidos pelo seu rigor: eu não posso simplesmente ambientar uma obra no Egito sem respeitar o que se sabe daquele país, ou estaria fazendo uma fantasia exótica que nunca passará de pseudo-histórica. Para merecer o rótulo de “histórica” a ficção precisa ser coerente com o conhecimento existente, precisa fazer o leitor gritar “ahá” quando ele estiver lendo um compêndio histórico e lembrar do livro.

Boa ficção histórica é mais rara que água no deserto: a maioria dos autores apenas rotula que sua obra se passa na Espanha Renascentista, nos Estados Unidos do século XIX ou no Japão Medieval e recorre a algumas tinturas ralas retiradas de enciclopédias (as “cartilhas de alfabetização” em conhecimentos gerais). Na prática, produzem histórias ambientadas em uma espécie de “Terra de Marlboro”, que só existe nas idealizações de quem a concebe. O resultado são duelos de espada segundo rituais que só existiriam na França pós-revolucionária, caubóis bebendo uísque e atirando com Colts e gueixas que vivem só para apaixonar-se pelo primeiro samurai. A ação de tais histórias se baseia quase unicamente naquilo que está no imaginário coletivo, e não no realmente acontecido. De forma que o leitor de tais obras, se um dia estudar a história de tais lugares, se sentirá decepcionado por descobrir que não havia duelos ritualizados na Espanha do Século de Ouro, que a arma mais usada no faroeste era a espingarda e que as gueixas não eram mais particularmente “sofridas” e nem “apaixonadas” que a média das mulheres japonesas.

Não estou dizendo estas coisas para denegrir estes gêneros. Somente uma falha na interpretação do texto levará alguém a pensar isso. Muito, muito pelo contrário. São três gêneros que respeito muitíssimo exatamente porque vejo neles um grau de dificuldade que considero quase invencível. Tenho a certeza quase absoluta de que jamais conseguirei produzir, em qualquer destes três gêneros, uma obra de padrão internacional. Mas morrerei tentando, claro. Eu miro na Lua, porque é melhor falhar em algo grande do que em algo pequeno— Para você ter uma ideia, eu tenho exatamente uma obra parada em cada um desses gêneros, e não vejo como desatar.

A obra de ficção científica é um romance chamado “Epifania”, que possui entre seus temas inteligência artificial, colonização planetária, equação do apocalipse, psicologia de massas etc. Escrevi um primeiro capítulo e postei aqui, mas estou há meses tentando desenvolver a narrativa e não consigo, porque antevejo o tamanho da pesquisa que terei que fazer sobre todos esses temas. Parte da pesquisa eu até já fiz, consultando um astrônomo e um químico a respeito de localização estelas e natureza da composição do planeta, mas são tantas coisas a considerar ! Meia-vida de radiação, probabilidades de colapso das civilizações (Equação de Drake), conflitos e traumas psicológicos causados pelo confinamento, efeitos da baixa gravidade sobre o corpo humano etc. Me dá até arrependimento de ter começado.

Dentro do terreno do realismo fantástico eu escrevi um conto chamado “Fausto de Souza” e outro chamado “O Flautista” que, obviamente, não está pronto, mas cujas arestas eu não consigo terminar de aparar. O primeiro desviou da intenção e praticamente virou um texto humorístico. O segundo me parece irremediavelmente empoçado.

Na ficção histórica, porém, o caso ainda é mais grave. Eu tenho um conto longo, com mais de 30 mil caracteres, todo pronto, mas não ouso publicar porque, na afã da inspiração, eu o escrevi diretamente a partir de minha memória dos tempos de faculdade (sou licenciado em História). Depois que terminei, descobri vários buracos no assunto que precisam ser sanados para que ele tenha credibilidade. Eu pretendo ambientar o conto na Zona da Mata Mineira no século XIX. Não me interessa qualquer outra solução, pois tudo se torna sem sentido se isso for mudado. Inclusive as conexões que este conto tem e terá com outros contos meus. Mas eu fico retido porque não consigo saber exatamente que tipo de força policial haveria no estado de Minas Gerais no século XIX, e se tal força atuaria da forma como a descrevi. Suponho que não, mas isso simplesmente invalidaria todo o romance. Veja que maçada!

Esses três gêneros têm em comum, portanto, a exigência: são para quem não tem medo de estudar e aprecia uma narrativa rigorosa. Estas obras são “biscoito fino” que só agrada a um fino paladar. Não pensemos que venderão centenas de milhares de exemplares num passe de mágica.

Mesmo assim, não existe, para mim, maior prova de valor literário do que fazer o que se faz nesses três gêneros: combinar a liberdade do criador, a célebre “licença poética”, com a fidelidade à realidade, produzindo obras que ficam entre a ficção e a historiografia. Admiro imensamente quem é bem sucedido nesta tarefa, e almejo muito conseguir atingir a maturidade nesses assuntos.


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