Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
30
Jun 11
publicado por José Geraldo, às 11:00link do post | comentar | ver comentários (1)

As melhores piadas costumam ser aquelas que envolvem a inversão total de algo que normalmente nos é familiar. A tirinha que examinamos hoje é um exemplo perfeito de como a inversão do lugar-comum, mesmo sem grande sofisticação filosófica, produz uma tirinha genial e acessível:

As tirinhas da série “Encontro Anual dos Donos do Mundo” geralmente abordam o tema do egoísmo capitalista. Acredito que Dahmer seja um simpatizante do marxismo, embora talvez não a ponto de idolatrar ditadores vermelhos. Nesta tirinha, em especial, vemos um capitalista lidando com o dilema da herança. Se do mundo nada se leva, então como um materialista empedernido poderia lidar com a necessidade de deixar para trás o que amealhou em vida?

Ferreirinha indaga a Vázquez, o milionário, se ele pretende doar parte de sua fortuna para a caridade. Muitos milionários fazem isto, ou algo parecido, numa tentativa de limpar postumamente o seu nome. Alfred Nobel inventou a dinamite, mas criou o famoso prêmio, que o tornou mais conhecido do que a sua contribuição à arte de explodir coisas. Vázquez, porém, não tem esse idealismo em relação à sua reputação póstuma. Em vez disso, deseja que seu dinheiro seja cremado junto consigo, ato de supremo egoísmo que evoca a famosa frase de Luís XV (aprés moi, le déluge).

Até aí o quadrinho não tem nada de genial. O que faz toda a diferença é o quadrinho final, no qual a nossa realidade (na qual o diálogo dos milionários se deu) é apresentada como ficção para os demônios do inferno. A reação de dois diabos ao que Vázquez acabou de dizer é parecida com a reação que nós, humanos, costumávamos ter, antigamente, quando assistíamos filmes cheios de violênica, isso, claro, antes de nos acostumarmos a desfrutar da violência como uma forma de diversão. Um dos diabos, supostamente mais velho, repreende o outro por assistir “programas de humanos”, pois isso o impediria de dormir depois. Tal como as crianças de antigamente passavam noites em claro com medo do Drácula ou Maníaco da Serra Elétrica.

A mensagem. Qual será a mensagem sugerida pelo autor da tirinha? Salvo engano meu, é a de que nós humanos possuímos monstruosidades maiores do que as que nós imaginamos. Talvez o que para nós é aceitável, e até ortodoxo segundo as regras da economia, seja como um filme de terror para pessoas vivendo em outra época ou outra dimensão.

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29
Jun 11
publicado por José Geraldo, às 17:00link do post | comentar | ver comentários (2)

Algumas pessoas que andaram lendo meu já antigo post sobre construção de página usando a medida áurea (que sempre está entre os favoritos do blob, mesmo não sendo uma obra literária) me perguntaram qual a finalidade de tal trabalho. Como toda pergunta inocente, merece uma boa resposta.

Eu já tinha sinalizado no artigo que em nosso país as pessoas estão mais acostumadas a tentar economizar papel do que a pensar na página de texto como algo que será lido. Mas tem algo ainda pior, as famigeradas “normas da ABNT” descendem das arcaicas “laudas” em papel ofício, do tempo em que os documentos penosamente datilografados eram encadernados em arame ou perfurados para arquivamento em pasta-fichário. Por isso temos essa obsessão com margens esquerdas mais largas (para deixar lugar para a perfuração!) e estranhamos uma página tipograficamente construída.

Mas este post não é sobre o que se faz, mas sobre como se fazia, e como se deveria voltar a fazer.

Um livro organizado segundo os cânones da construção de página tem margens mais largas nas bordas externa (em vez da interna) e inferior (em vez da superior). Isto é exatamente o contrário da prática usual no Brasil. Isto é assim porque livros são feitos para serem lidos.

Quando você pega um livro para ler, por onde o segura? Certamente não é pela borda interna da folha (isso é ridículo), mas pela externa. A margem externa é mais larga porque é geralmente sobre ela que repousará o seu polegar enquanto você lê. É em nome do conforto de poder pegar o livro na mão para ler que as páginas de formato tradicional possuem essas medidas. Imagino que você muitas vezes, ao ler, já se praguejou pela dificuldade de fazê-lo sem ter uma mesa para apoio. Livros são feitos para leitura em qualquer lugar, não precisa esperar onde tenha uma mesa. Livros baseados nos cânones de construção de página (medidas áureas) são feitos para leitura confortável mesmo ao ar livre ou fora da biblioteca. São livros feitos para quem gosta de ler. São livros para leitura sem ritual.

A margem inferior é um pouco mais difícil de explicar, mas faz tanto sentido quanto a externa. Os livros são geralmente postos de pé na estante. Se a estante não for suficientemente seca, é possível que a umidade corroa a parte inferior da página. A razão da margeminferior mais larga é preservar a integridade da mancha de texto caso a estante seja afetada por mofo ou umidade. Antigamente havia ainda duas razões adicionais para a margem inferior: o hábito de tomar notas no rodapé e a presença de ilustrações. Em obras de texto denso, não ilustradas, era comum que os leitores tomassem suas notas no rodapé (parte inferior da página). Esta tradição está meio perdida, visto que hoje associamos “notas de rodapé” com trechos de texto presentes dentro da própria mancha de texto da página, e não como comentários feitos pelo dono do livro. Nos antigos volumes era comum que as ilustrações ficassem fora da mancha de texto porque elas precisavam ser feitas em um processo separado. Em geral se imprimia a figura primeiro (geralmente usando xilogravura) e somente depois a página era impressa por cima em tipografia. As iluminuras medievais também tinham ilustrações à margem, especialmente os textos religiosos, como uma forma de desestimular a anotação pelo leitor (entre outras razões mil).

Espero que esta informação lhe faça refletir sobre a possibilidade de utilizar medidas “áureas” em seus próximos livros ou manuscritos. Certamente gastará mais papel, mas produzirá livros muito bonitos.

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28
Jun 11
publicado por José Geraldo, às 09:00link do post | comentar
Este texto é parte do romance “A Casa no Fim do Mundo”, de William Hope Hodgson (1907), que estou traduzindo em capítulos semanais. Visite o Índice para lê-los em sequência.

Outra semana veio e passou, durante a qual eu gastei uma boa parte do tempo perto da boca do Abismo. Eu chegara dias antes à conclusão de que a abertura abobadada que ficava no ângulo da grande rachadura devia ser o lugar por onde todas as coisas suínas tinham saído, provenientes de alguma parte infame nas entranhas do mundo. O quanto isso estava próximo da verdade, isso ainda estava por descobrir.

Acho que dá para entender bem facilmente que eu andava tremendamente curioso, embora de uma maneira assustada, para saber em que lugares infernais aquele túnel daria, embora até então não tivera a ideia de fazer uma investigação mais séria. Estava ainda muito cheio de horror pelas criaturas para pensar em me aventurar, pela minha própria vontade, aonde quer que se achasse a menor chance de entrar em contato com elas.

Gradualmente, porém, com o fluir do tempo, esses receios foram ficando cada vez menos fortes, de maneira que, alguns dias depois, ocorreu-me um pensamento de que seria possível esgueirar-me até embaixo explorar o túnel. Eu não me sentia mais excessivamente averso a fazer isso, ao menos não tanto quanto teria estado nos dias anteriores antes. Ainda assim, não creio que já tivesse vontade de tentar uma aventura tão maluca. Tudo que conseguia pensar era que teria sido quase morte certa penetrar por aquele túnel tétrico. Mesmo assim, tão grande é a impertinência da curiosidade humana que, por fim, o maior de meus desejos era de descobrir o que haveria além da entrada sombria.

Aos poucos, à medida em que corriam os dias, o meu medo das Coisas suínas se tornou uma emoção do passado — algo como uma memória fantástica, ou pouco mais do que isso.

Então chegou o dia em que, lançando fora minhas fantasias e receios, procurei em casa uma corda e, amarrando-a a uma árvore bem firme, no alto do barranco, a uma distância curta da beira do Abismo, deixei a ponta cair pela encosta até balançar em frente à abertura do túnel tenebroso.

Então, cautelosamente, com muitas desconfiança de que era uma loucura o que estava tentando fazer, desci lentamente, usando a corda como apoio até chegar ao buraco. Ali, segurando ainda a corda, desci e olhei para dentro. Tudo estava na mais perfeita escuridão e nenhum som chegava até mim. Logo, porém, me pareceu escutar algo. Segurei a respiração para ouvir, mas estava tudo tão quieto como uma tumba, então respirei livremente outra vez. No mesmo instante ouvi o barulho de novo. Era como um ruído de respiração pesada, inspirando e exalando profundamente. Por um curto segundo fiquei ali, petrificado, incapaz de me mover. Mas então os sons pararam e não consegui ouvir nada.

Enquanto estava lá de pé nervoso, meu pé deslocou um pedregulho, que caiu para dentro da escuridão com um tinido oco. Então, mais uma, o barulho cresceu e veio se repetindo umas vinte ou mais vezes, uma se sucedendo à outra, em ecos cada vez mais débeis, que pareciam se afastando de mim, até desaparecer na distância. Então, à medida em que caiu outra vez o silêncio, ouvi aquela respiração dissimulada. A cada vez que respirava, podia ouvir a respiração a me responder. Os sons pareciam aproximar-se e então ouvi outros, pareciam longe e mais fracos. Porque não peguei a corda e pulei fora daquele perigo, isso não posso dizer. Era como se estivesse paralisado. Eu comecei a suar profusamente e tentei molhar meus lábios com a língua. Minha garganta tinha ficado seca de repente e então tossi e engasguei. Isso me voltou em uma dezena de sons guturais horrendos e zombeteiros. Olhei para dentro da escuridão em desespero, porém nada ainda aparecia nela. Eu tive uma estranha sensação de sufocamento, e então tossi secamente. Outra vez o eco apareceu, subindo e depois caindo e morrendo lentamente em um silêncio abafado.

Então, subitamente, um pensamento me ocorreu e eu segurei a respiração. As outras respirações pararam. Respirei de novo e outra vez recomeçaram. Mas já não tinha medo. Eu acabara de descobrir que os estranhos sons não eram produzidos por nenhuma criatura suína oculta, mas somente o eco das minhas próprias respirações.

Ainda assim, tinha levado susto tão grande que tratei de subir de volta pelo barranco, e de puxar a corda depois. Estava abalado e nervoso demais para pensar em entrar naquele buraco escuro, então voltei para a casa. Eu me senti mais seguro de mim na manhã seguinte, mas nem então pude reunir coragem para explorar o lugar.

Durante todo esse tempo a água no Abismo continuara subindo devagar, e já estava pouco abaixo da abertura. No ritmo com que subia, estaria ao nível da chão em menos de uma semana, então compreendi que se não fizesse logo minha investigação do lugar eu provavelmente nunca mais poderia fazê-lo, visto que a água subiria e subiria, até a própria abertura ficar submersa.

Deve ter sido tal pensamento que provocou-me à ação; mas qualquer que tenha sido, dois dias depois eu estava de pé acima do barranco, equipado para a tarefa.

Daquela vez eu estava resolvido a vencer minha covardia, e chegar ao fundo da coisa. Com essa intenção, levara, além da corda, um maço de velas, pensando em usá-las como tocha, e também a minha espingarda de dois canos. Em meu cinto, ia uma pistola de cavalaria carregada de chumbo grosso.

Como da outra vez, amarrei a corda à árvore. Então, levando a arma presa aos ombros com um pedaço de corda firme, desci pelo barranco do Abismo. Diante deste movimento, o Pimenta, que tinha estado vigiando as minhas ações atentamente, pôs-se de pé e correu para mim, dando um latido meio ganido que me pareceu de advertência. Mas como estava decidido no meu objetivo, mandei-lhe ir deitar. Queria tê-lo levado comigo, mas isto era impraticável, dadas as circunstâncias. Quando meu rosto ficou pelo nível da borda do Abismo ele veio para lamber meu queixo e mordeu a manga de meu casaco, deixando claro não querer que eu entrasse. No entanto, minha decisão estava tomada e não tinha nenhuma vontade de recuar. Então, gritei duramente que Pimenta me soltasse e depois continuei a descida, deixando o pobre coitado para trás, chorando e uivando como um filhote abandonado.

Cuidadosamente me aproximei, pisando nas irregularidades da encosta. Eu sabia que um escorregão significaria me molhar.

Alcançando a entrada, larguei da corda e desamarrei a arma dos ombros. Então, dei uma última olhada para o céu, que estava ficando rapidamente nublado e dei um par de passos adiante, só para me proteger do vento e poder acender uma das velas. Com ela erguida acima da cabeça e segurando firme minha espingarda, comecei a avançar devagar, olhando para todos os lados.

No primeiro minuto, só podia ouvir os melancólicos uivos de Pimenta, que chegavam até mim. Gradualmente, à medida em que penetrei nas trevas, foram ficando mais distantes, até que logo não pude mais escutar. O caminho descia um pouco, curvando para a esquerda. Assim continuou durante um tempo, e então me descobri virando à direita, na direção da casa.

Com muito cuidado continuei, parando frequentemente para ouvir. Devia ter avançado um pouco menos de cem metros quando, de repente, meu ouvido pareceu captar um som baixo, em algum lugar no túnel, vindo atrás de mim. Com o coração ribombando forte, tentei ouvir. O ruído ficava mais claro e parecia vindo em minha direção, rapidamente. Logo consegui ouvi-lo claro e próximo. Era a batida de uns pés correndo. Nos momentos de pavor iniciais, fiquei plantado e indeciso, não sabendo se devia avançar ou recuar. Então me ocorreu a súbita compreensão do melhor a fazer, e me joguei de costas contra a parede direita, maldizendo a curiosidade tola, que me levara a tal extremo.

Não tive de esperar mais que poucos segundos até um par de olhos brilhar nas trevas, com a luz de minha vela. Ergui minha arma usando a mão direita e apontei depressa. Mas tão logo o fiz isso, algo saltou de dentro da escuridão, com um latido atabalhoado de alegria, como um trovão. Era o Pimenta. Como fizera para descer pelo barranco eu nem podia imaginar. Enquanto esfregava as mãos, nervoso, em sua pelagem, notei que estava molhado e concluí que ele devia ter tentado me seguir e caído dentro da água, de onde não lhe devia ter sido muito difícil nadar e chegar até à entrada.

Tendo aguardado por volta de um minuto até me recuperar, continuei meu caminho, com Pimenta atrás, em silêncio. Estava, na verdade, satisfeito por ter ter meu velho amigo a me seguir. Ele era uma boa companhia e tendo-o aos calcanhares sentia menos receio. Afinal, eu sabia que seus ouvidos apurados rapidamente detectariam a presença de qualquer criatura detestável, se houvesse alguma dentro das trevas que nos cercavam.

Por alguns minutos seguimos, devagar, sempre adiante, o caminho ainda levando direto até a casa. Logo concluí que chegaríamos logo abaixo dela, caso o túnel continuasse bastante. Segui cuidadosamente por mais uns quarenta metros ou mais. Então parei e ergui a vela bem alto, e tenho motivo para ser grato de ter feito isso; pois a menos de três passos o chão desaparecia, deixando apenas um negrume vazio ali estendido, o que me deu um susto muito grande.

Com muita cautela, avancei um pouco e olhei para baixo, mas não consegui enxergar nada. Então me dirigi para o lado esquerdo do corredor, para ver se ali achava a continuação do caminho. De fato, bem junto à parede, estava um trilho estreito, com menos de metro de largura, seguindo para a frente. Cuidadosamente pisei nele, mas não avançara muito e já me arrependi de ter me aventurado daquela forma. Porque após uns poucos passos, o trilho que já era estreito demais se transformava em pouco mais que uma saliência, que se espremia entre rochas sólidas e inamovíveis que formavam uma parede imensa que chegava a um teto invisível e um poço gigantesco. Não consegui evitar de pensar no quanto estaria perdido se fosse atacado lá, sem ter para onde fugir, e com tão pouco espaço que o coice de minha arma me lançaria numa queda de cabeça para baixo até as profundezas.

Para o meu grande alívio, pouco depois o trilho se alargou de novo até a largura original. Gradualmente, à medida em que segui à frente, notei que o caminho curvava sempre à direita, até que depois de minutos descobri que eu não estava avançando, mas somente circulando o grande abismo. Tinha, logicamente, chegado ao fim do grande túnel.

Cinco minutos depois, estava de volta ao ponto de onde saíra, depois de uma volta completa do que concluí ser um poço bem amplo, cuja enorme abertura deveria ter pouco menos de cem metros de diâmetro.

Por um curto tempo fiquei lá, perdido em pensamentos perplexos. “O que significa isso tudo?” — era o grito que começava a reverberar no meu cérebro.

Uma súbita ideia me ocorreu e eu procurei em volta um pedaço de rocha. Achei um mais ou menos do tamanho de um pãozinho. Prendendo a vela em uma greta do chão, afastei-me uns passos da borda para tomar impulso e lancei a pedra no abismo — minha ideia era jogá-la bem longe para evitar as paredes do poço. Então me inclinei à frente e fiquei escutando, porém, mesmo mantendo-me em silêncio completo por mais de um minuto, não ouvi som algum de dentro da escuridão.

Fiquei sabendo então que a profundidade do buraco devia ser imensa, pois a pedra, se batesse em alguma coisa, era bastante grande para ter causado ecos que murmurariam naquele estranho lugar por um período indefinido de tempo. Afinal aquela caverna tinha sempre devolvido os sons de minhas passadas, multiplicadas. O lugar era apavorante, e eu poderia ter voltado sobre meus passos de bom grado, deixando sem resolver os mistérios das suas solidões — mas isso significava admitir derrota.

Então me ocorreu uma ideia de tentar enxergar dentro do abismo. Pensei que se colocasse as minhas velas ao redor do buraco, poderia ter pelo menos uma vaga imagem do lugar.

Descobri, ao contar, que tinha trazido quinze velas, em um maço. Minha primeira intenção fora, como já disse, de fazer uma espécie de tocha com um feixe delas. Então as pus todas ao redor em volta do Abismo, a intervalos de dezoito metros.

Depois de completar o círculo eu fiquei de pé no corredor e tentei ter uma ideia de como era o lugar. Mas descobri logo que elas eram totalmente insuficientes para o meu propósito. Elas faziam pouco mais que alargar o tamanho da escuridão visível. Para uma coisa serviram, no entanto: confirmar a minha opinião a respeito do tamanho da abertura do poço. E se não me mostraram nada do que eu queria ver, o contraste que produziram na pesada escuridão foi agradável. Eram como quinze estrelinhas brilhando através da noite das profundezas.

Estava então de pé e imóvel a contemplar tudo isso quando Pimenta deu um ganido súbito, que foi logo aumentado pelo eco e repetido em variações fantasmagóricas, afastando-se lentamente. Com um movimento rápido eu ergui a última vela que ficara comigo e olhei para ele, no chão. No mesmo momento pareceu-me escutar um ruído como um chocalhar diabólico, que vinha das profundezas até então silenciosas do abismo. Assustei-me, e então me lembrei que devia ser o eco do ganido de Pimenta.

Pimenta saíra de perto de mim, subindo alguns passos pelo corredor. Ele farejava pelo chão rochoso e acho que o ouvi lamber. Fui até ele, levando a vela baixa. Ao me mover eu ouvi a minha bota chapinhar, e a luz foi refletida em algo que brilhava e passava por meus pés, indo rápido em direção ao Abismo. Abaixei-me para ver, e soltei uma exclamação de surpresa. Vindo pelo caminho, de algum lugar acima, uma corrente de água seguia depressa até a grande abertura e crescia cada segundo.

Outra vez o Pimenta deu aquele uivo profundo e correu até mim, mordeu a minha capa e tentou me arrastar pelo caminho, na direção da entrada. Com um gesto nervoso livrei-me dele, e passei logo para a parede da esquerda. Se alguma coisa estava chegando, preferia ter uma parede atrás de mim.

Então, ao olhar ansiosamente pelo caminho acima, minha vela deu um relance do túnel. E no mesmo momento, tive consciência de um rugido tumultuoso, que ia crescendo e preenchendo a caverna com um barulho ensurdecedor. De dentro do Abismo subia um rouco e profundo eco, como o soluço de um gigante. Então pulei para o lado, para o trilho estreito que circulava o buraco, e ao olhar de volta vi uma grade parede de espuma passar por mim e pular tumultuosamente dentro do abismo que aguardava. Uma nuvem de gotículas me bateu, apagando a vela e me molhando até os ossos. Ainda tinha minha arma, porém. As três velas mais próximas também se apagaram, as mais afastadas, porém, só davam um brilho curto. Depois do primeiro jato, o fluxo de água acalmou e se tornou uma correnteza firme, com pouco mais de trinta centímetros de profundidade, embora eu não soubesse disso até ter buscado uma das velas acesas e feito um reconhecimento. Pimenta, felizmente, tinha me seguido no salto para o trilho e estava bem calmo, perto de mim.

Um curto exame mostrou que a água provinha da entrada, e que corria a uma velocidade tremenda. Na verdade ia ficando mais profunda diante dos meus olhos. Só uma coisa podia ter acontecido. Evidentemente, a água na ravina chegara à borda da entrada do túnel, de alguma forma. Se fosse esse o caso, ela só continuaria a aumentar de volume, até ser impossível para mim sair daquele lugar. Essa era uma ideia apavorante. Era evidente que precisava chegar à saída o mais rápido que pudesse.

Segurando a espingarda pela coronha, testei a profundidade da água. Estava um pouco abaixo do joelho, o barulho que fazia ao mergulhar dentro do Abismo ensurdecia. Então, chamando o Pimenta, pisei na inundação, usando minha arma como apoio. Imediatamente a água subiu borbulhando até os meus joelhos, chegando quase até o meio da coxa, tanta a velocidade com que descia. Por um breve momento quase perdi o pé, mas só de pensar o que havia por trás de mim eu senti um feroz estímulo para resistir e, passo a passo, comecei a seguir em frente.

A princípio não consegui saber nada do Pimenta — eu só conseguia me preocupar com minhas pernas — e fiquei felicíssimo quando ele apareceu ao meu lado. Ele veio vadeando vigorosamente, com uma relativa facilidade. Ele é um cão de grande porte, com pernas longas e finas, eu acho que a água o arrastava menos do que a mim. De todo modo, saía-se bem melhor que eu, ganhando distância e servia-me de guia, ajudando a quebrar a força da água, de propósito ou não. Fui seguindo, passo a passo, pelejando e engasgando, até percorrer, em segurança, algo como uns cem metros. Então, fosse por descuido ou por pisar em um trecho liso do chão de pedra, não sei, eu de repente escorreguei e caí de bruços. Instantaneamente a água saltou sobre mim, em uma catarata pesada que me empurrava para baixo, em direção ao poço sem fundo, numa velocidade assustadora. Pelejei com todas a minha força, freneticamente, mas era impossível ter pé. Eu estava desamparado, engasgando e afogando. Então, de repente, algo me segurou pela manga casaco e me fez parar. Era o Pimenta. Sentindo minha falta, ele devia ter corrido de volta pelo turbilhão escuro, para encontrar-me, e então me agarrou e me reteve até que pude me pôr de pé outra vez.

Tenho a vaga lembrança de ter visto momentaneamente o brilho de diversas luzes, embora não tenha certeza. Se as minhas impressões estavam corretas, devo ter sido arrastado até quase a beirada daquele tenebroso abismo antes que o Pimenta conseguisse me fazer parar. E as luzes, claro, eram das distantes chamas das velas que tinha deixado a queimar. Mas, como já disse, não posso dizer com certeza. Meus olhos estavam cheios de água e eu tinha sido bastante sacudido na correnteza.

E lá estava eu, sem mais a ajuda da arma, sem luz e bastante confuso, com a água ficando mais funda e dependendo unicamente do velho amigo Pimenta para ajudar-me a sair daquele lugar infernal.

Enfrentei a força da corrente. Naturalmente, essa era a única maneira de suster minha posição naquele momento, porque mesmo o velho Pimenta não poderia ter me segurado muito diante da força terrível, não sem minha cooperação, mesmo cega.

Por um minuto, talvez, eu tateei, e então gradualmente recomecei a subida tortuosa pelo túnel. Então começou uma medonha luta contra a morte, na qual eu só tinha a esperança de sair vitorioso. Devagar, furiosamente, quase em desespero, eu pelejava, e o fiel Pimenta me guiava, me arrastava, me erguia e me levava até que, por fim, vi à minha frente o brilho bendito da luz do dia. Era a entrada. Somente alguns metros depois atingi-a, com a água rugindo e borbulhando faminta já em torno dos meus rins.

Então eu compreendi a causa da catástrofe. Estava chovendo pesadamente, literalmente aos borbotões. A superfície do lago nivelara com o fundo do túnel — ou melhor, mais que nivelara, tinha passado disso. A chuva que caía evidentemente enchera o lago, causando a sua prematura subida, porque no ritmo em que a ravina estava enchendo ela ainda levaria um dia ou dois para chegar a entrar no túnel.

Por sorte, a corda pela qual eu tinha descido estava com a ponta para dentro do túnel, agitando-se nas águas que invadiam-no. Agarrando-a pela ponta, fiz um nó em torno do corpo do Pimenta e então, reunindo o resto de minha força, comecei a subir de volta pelo barranco. Consegui atingir a borda do Abismo no último estágio de exaustão. Mas eu ainda tinha de fazer um esforço final e puxar o Pimenta para cima em segurança.

Lenta e penosamente, puxei a corda. Uma ou duas vezes me pareceu que eu teria que desistir, porque Pimenta é um cão pesado e eu estava completamente exaurido. Porém, desistir significaria a morte certa para o meu velho amigo, e este pensamento me obrigava a esforçar-me mais. Eu tenho apenas uma vaga lembrança do fim. Lembro-me de puxar, por um tempo que parecia não acabar nunca. Tenho também uma vaga recordação de ver o focinho do Pimenta aparecer sobre a borda do Abismo, depois do que pareceu um tempo infinito. Então tudo ficou escuro de um momento para o outro.


26
Jun 11
publicado por José Geraldo, às 11:05link do post | comentar | ver comentários (3)

Eu sempre achei que trabalhos de fôlego mais longo são difíceis de terminar. Levei nove anos para escrever meu primeiro romance, “Praia do Sossego”, que agora está finalmente sendo publicado. Levo já mais de três anos trabalhando no meu segundo romance, “O Reino Esquecido”, que está a três quartos de ser terminado (mas exatamente o quarto que falta é o mais difícil). Levo já mais de dois anos trabalhando no meu terceiro romance, “Serra da Estrela”, que ainda está longe da metade. Curiosamente já terminei o meu quarto romance, “Amores Mortos”, isso porque o construí a partir de histórias anteriormente escritas de forma independente, mas utilizando um mesmo personagem principal.

Em conjunto esses romances terão aproximadamente mil páginas páginas (225 delas de “Praia do Sossego“ e 240 de “Amores Mortos”, “Serra da Estrela” já tem 140 e “O Reino Esquecido” deverá passar de 250 ainda este ano; porém somente o primeiro deles está medido em termos de “livro” mesmo, os outros ainda estão em laudas, e devem ficar maiores, visto que “Praia do Sossego“ teve 196 laudas).

Citei esses números para lhes dar uma ideia do tamanho do desafio que está sendo traduzir “A Casa no Fim do Mundo”. O romance de William Hope Hodgson não é nada pequeno. A sua versão original em inglês, publicada em formato americano, tem 160 páginas. Traduções do inglês para o português costumam ficar entre dez e quinze por cento mais longas (devido à estrutura sintática de nossa língua). Estimo que o tamanho em laudas da tradução deva ultrapassar duzentas, e a publicação em formato brasileiro deverá ficar ainda mais grossa que “Praia do Sossego”. A vantagem é que não precisarei imaginar a história, me bastará encontrar as melhores palavras para traduzi-la.

Comecei esse trabalho em março, durante minha licença médica para operar um cálculo renal “encroado”. Ainda durante a licença, fui até o capítulo doze. De lá para cá (segunda metade do mês de abril, mais maio e junho) consegui avançar até o capítulo dezoito (que estou começando a traduzir exatamente hoje). Publicando à razão de um capítulo por semana e traduzindo um capítulo a cada quinze dias, em nove semanas (aproximadamente dois meses) estarei publicando o capítulo vinte e traduzindo o vinte e um. Em onze semanas o ritmo de publicação me alcançará, exatamente no capítulo vinte e dois.

Isso quer dizer que eu preciso melhorar o ritmo, e logo, ou então perderei o ritmo regular de publicar um novo capítulo toda terça feira. E o romance tem vinte e oito capítulos!

O problema é que traduzir já está me ocupando quase todo o tempo que deveria estar dedicando a escrever. Não é nenhuma novidade para vocês que me leem que eu sou um autor amador, que só posso escrever nas horas vagas. Desde que publiquei o primeiro capítulo, em 16 de abril já se passaram setenta dias, e a minha produção de textos novos foi a seguinte: seis crônicas, três textos de crítica, três contos, dois poemas, uma tradução. Comparando com qualquer outro período desde o início desse blog, estou em um ritmo de criatividade muito menor. Excetuando textos antigos republicados (que foram o grosso da produção nos primeiros seis meses), este blog vinha mantendo um ritmo muito melhor. Vamos comparar com os primeiros setenta dias do ano, entre 1 de janeiro e 11 de março: oito crônicas, um texto de crítica, nove contos, um poema, uma tradução.

Pode parecer uma redução pequena, apenas cinco textos, mas há que considerar que o tamanho médio dos textos produzidos nos primeiros setenta dias do ano era muito mais longo. Pelo menos três contos alcançam fácil as vinte páginas. Um deles até estava dividido em três partes, cada uma delas com pelo menos nove páginas.

Fiz este cálculo para lhes dar uma ideia do quanto é trabalhoso traduzir. Um trabalho que muitas pessoas não reconhecem. Um trabalho que é até meio braçal, de tão penoso, mas que exige uma sensibilidade semelhante à da criatividade, na escolha de palavras e na construção das frases. Sem falar que ainda terei de revisar tudo, quando tiver terminado, a fim de poder publicar.

Pense nisso da próxima vez em que pegar um livro traduzido: verifique o nome de quem traduziu, conheça o nome do sujeito. Se gostar, procure por outros livros traduzidos também por ele. Vamos valorizar o trabalho dos tradutores. Eu mesmo só tive essas ideias depois que me dispus a traduzir um romance e pude ver o quanto dá trabalho. Meu respeito a todos os tradutores profissionais deste país, graças a quem podem ler obras oriundas de outras literaturas.


22
Jun 11
publicado por José Geraldo, às 16:00link do post | comentar | ver comentários (1)

Recuando mais no tempo, nos porões do site do André Dahmer, eis esta preciosidade, digna de comentários indizíveis. Quantos de nós não nos sentimos assim, às vezes?

O clima de cordialidade não disfarça um fato: os personagens desta tirinha não são felizes. Tanto “Romano” como seu colega são esvaziados (“descarnados”, na verdade) pela dedicação extrema a realizações que não são de seus projetos pessoais. É fácil imaginar porque eles se sentem assim: a falta de sentido é um mal que acomete a muitas pessoas no mundo de hoje, pessoas que não encontram uma razão para olhar-se no espelho e ver-se como indivíduos perfeitos e livres, dotados de uma missão. Eis o problema dos pobres esqueletos desta tirinha: eles vivem para o trabalho, somente para o trabalho.

No ônibus, o personagem da primeira tirinha encontra um homem que exibe orgulhosamente o próprio filho, dizendo “já trabalha comigo”. A criança, desde cedo, se acostuma a uma vida sem sentido, uma vida apenas de trabalho. All work and no play makes Jack a dull boy. Esta situação, porém, não causa aversão, mas orgulho. Tanto assim que, no quadrinho final, o homem exausto que deixou a repartição na sexta-feira “morto de trabalhar”, um pouco antes de desfalecer em seu caixão, à luz da lua, recomenda ao filho que ele “arrume um estágio logo”. O estágio, rito de passagem, é uma espécie de circuncisão mental a que todos são obrigados. Trabalhando desde cedo o garoto não terá tempo para desenvolver fantasias, tornar-se-á “seco”, “descarnado”, “morto de trabalhar”.

Este não é um quadrinho que exige muita reflexão, não há aqui muita filosofia. Apenas muita amargura e realismo, ainda que apresentado sob a capa do fantástico, esta licença poética que nos permite penetrar mais profundamente na realidade.


21
Jun 11
publicado por José Geraldo, às 09:00link do post | comentar
Este texto é parte do romance “A Casa no Fim do Mundo”, de William Hope Hodgson (1907), que estou traduzindo em capítulos semanais. Visite o Índice para lê-los em sequência.

Como o tempo passava devagar, e nunca se via nada a indicar que um bruto ainda infestava meu jardim!

Foi no nono dia que, por fim, decidi correr o risco, se havia algum risco, e sair em excursão. Com isto em mente eu carreguei uma das espingardas, cuidadosamente escolhendo uma que a curta distância fosse mais mortal que um rifle, e então, depois de uma vistoria final do terreno, a partir da torre, chamei o Pimenta para me seguir e tomei o caminho do porão.

Diante da porta devo confessar que hesitei por um momento. O pensamento do que poderia estar me aguardando entre as moitas escuras não eram de forma nenhuma próprio a me encorajar a decisão. Mas pouco mais de um segundo depois eu já havia puxado as trancas, e estava de pé no trilho que fica do lado de fora da porta.

Pimenta me seguiu, mas parou à porta para farejar, desconfiado, e passou o focinho para cima e para baixo pelas dobradiças, como se achasse um rastro. Então, de repente, se virou e começou a correr para lá e para cá em semicírculos ao redor da porta, finalmente voltando ao limiar. Ali ele começou de novo a farejar.

Até então eu tinha ficado olhando para o cão, mas todo o tempo eu tinha conservado metade de minha atenção na macega do jardim que se estendia ao meu redor. Então fui até ele e me inclinei para examinar a superfície da porta, que estava farejando. Ali vi que a madeira estava coberta por uma rede intricada de arranhões, que cruzavam e recruzavam uns sobre os outros, uma confusão inextricável. Além disso, notei que os portais, por sua vez, haviam sido mastigados em alguns pontos. Além desses, não consegui achar mais nenhum sinal e então, pondo-me de pé, comecei a fazer a ronda da parede de fora.

Tão logo comecei a andar Pimenta saiu de perto da porta e correu à minha frente, ainda fuçando e farejando ao correr. Às vezes ele parava para investigar. Aqui era um buraco de bala no trilho, ali uma touceira manchada de pó. Mais adiante poderia ser um torrão arrancado, ou uma trilha entre as ervas que parecia mexida. Mas, a não ser por estas ninharias, não achou nada. Observei-o criticamente enquanto ele andava e não pude notar nenhuma intranquilidade em seus modos, nada que indicasse que ele sentia a presença próxima de qualquer das criaturas. Só com isso já tive a certeza de que o meu jardim estava vazio, pelo menos livre da presença daquelas Coisas odientas. Pimenta não era fácil de enganar, e era tranquilizador saber que ele saberia e que me daria o alarme a tempo, se houvesse algum perigo.

Chegando ao lugar onde tinha atirado na primeira criatura, detive-me em um exame atento, mas não vi nada. Dali fui para onde caíra a grande pedra da cornija. Ela estava lá inclinada, parecia ainda do jeito em que fora deixada pelo bruto que a tentara mover. Pouco mais de meio metro para a direita dela havia a marca de onde caíra, uma larga ruptura na calçada. Do outro lado ela ainda estava meio dentro da depressão que formara. Chegando mais perto eu contemplei a pedra com mais cuidado. Que grande peça de escultura ela era! E uma das criaturas a tinha movido, com as próprias mãos, na tentativa de chegar à que estava por baixo.

Contornei a pedra até o outro lado. Ali percebi ser possível ver por debaixo dela, até um metro ou menos. Mesmo assim, não deu para ver sinal algum das criaturas atingidas por ela e fiquei muito surpreso. Eu tinha suposto, como disse antes, que os restos delas tinham sido removidos, mas não concebia como isso pudera ser feito com tanto capricho a ponto de não ficar sinal algum debaixo da pedra, a indicar o que acontecera. Eu vira vários brutos atingidos por ela com tanta força que bem poderiam ter sido enfiados no chão, e então não havia vestígio deles à vista; nem mesmo uma manchinha de sangue.

Fiquei ainda mais confuso do que antes ao pensar sobre isso, mas não consegui imaginar nenhuma explicação plausível. Então, enfim, deixei de lado esta preocupação, afinal de contas, era só mais uma coisa entre tantas que ficava sem explicação.

Desviei a minha atenção dali para a porta do escritório. Eu via bem melhor, do lado de fora, os efeitos da tremenda carga a que fora submetida, e me maravilhei que ela tivesse conseguido, mesmo com o apoio de escoras, resistir aos ataques tão bem. Não havia marcas de golpes — na verdade, nenhum golpe fora dado — mas a porta fora, literalmente, arrancada dos seus gonzos pela aplicação de força silenciosa e enorme contra si. Uma coisa que observei me afetou profundamente: que a ponta de uma das escoras estava atravessada em um dos painéis. Isto era bastante para mostrar como fora grande o esforço feito pelas criaturas para romper a porta, e quanto haviam chegado perto de conseguir.

Saindo dali, segui minha ronda da casa, sem achar mais nada de interessante, a não ser, nos fundos, onde encontrei o pedaço de encanamento que eu havia arrancado da parede estendido na grama, abaixo da janela quebrada.

Então voltei para casa e reforcei a porta dos fundos, depois subi para a torre. Ali eu passei a tarde, lendo e ocasionalmente olhando nos jardins. Estava determinado a ir até o Abismo de manhã, se a noite passasse em silêncio. Talvez fosse possível descobrir, então, alguma coisa do que acontecera. O dia terminou, a noite veio e foi embora mais ou menos da mesma forma que as noites recentes.

Quando levantei a manhã tinha rompido bonita e clara e reafirmei minha intenção de levar os planos à ação. Comia o café e pensava no assunto, cuidadosamente, então fui para o escritório verificar minha espingarda. Além dela, busquei e carreguei comigo no meu bolso uma pistola pequena, mas de calibre grosso. Eu tinha perfeita noção de que, se havia um perigo, ele vinha da direção do Abismo e eu precisava estar preparado.

Deixando o escritório, fui até a porta dos fundos, seguido por Pimenta. Uma vez do lado de fora, fiz a ronda dos jardins em volta bem rapidamente, e então dirigi-me ao Abismo. A caminho eu mantive minha atenção bem difusa e segurava a espingarda à mão. Pimenta ia correndo à frente sem nenhuma hesitação aparente, não que eu notasse. Isso me fez pensar que não deveria haver nenhum perigo considerável e eu comecei a ir mais rápido atrás dele. Ele tinha chegado à borda do Abismo e já farejava em volta da beirada.

Um minuto depois eu estava ao lado dele, olhando para baixo dentro do Abismo. Por um momento eu mal pude crer que fosse o mesmo lugar, de tanto que havia mudado. A ravina escura e arborizada de quinze dias antes, com um curso d'água oculto na folhagem, correndo preguiçosamente ao fundo, não existia mais. Em lugar dela meus olhos me mostravam um buraco rude, parcialmente preenchido por um lado escuro e de água turva. Todo um lado da ravina estava despido de vegetação e exibia a rocha nua.

Um pouco mais para minha esquerda, todo o lado do Abismo parecia desmoronado, abrindo uma rachadura profunda em formato de cunha na face do rochedo. Esta greta seguia da parte de cima da ravina até quase chegar à água e penetrava na margem do Abismo por uns doze metros, abrindo-se por uns cinco metros de largura, estreitando-se enquanto descia, até desaparecer a uns dois metros abaixo da margem. Mas o que me chamou a atenção, mais que a estupenda ruptura que surgira, era o grande buraco, a bem pouca distância da rachadura, e bem no ângulo da cunha. Ele era bem claramente definido, e com formato não muito diferente do de uma porta abobadada, embora, por estar na penumbra, eu não o consegui ver distintamente.

O lado oposto do Abismo conservava ainda a sua verdura; mas tão rasgada em certos pontos e tão coberta de poeira e detritos que era até difícil determinar que se tratava disso.

A minha primeira impressão, de que fora um desmoronamento, logo vi que não era suficiente, sozinha, para explicar todas as mudanças que via. E a água? Olhei para o lado de repente, porque notara barulho de água corrente vindo de meu lado direito. Não dava para ver nada, mas como minha atenção tinha sido desviada até lá, consegui perceber, facilmente, que vinha do lado leste do Abismo, em algum lugar.

Lentamente caminhei naquela direção, com o som ficando mais claro à medida em que avançava, até que, pouco depois, senti-me logo acima dele. Mas ainda não soube qual a causa até ajoelhar-me e colocar a cabeça para dentro do barranco. Então o barulho chegou até mim claramente e eu vi, abaixo de mim, uma torrente de água limpa que nascia de uma pequena fissura daquele lado do Abismo, que descia pela face das rochas até o lago no fundo. Um pouco mais longe no mesmo barranco eu vi outra, e depois dessa mais duas. Estas todas poderiam explicar toda a água no Abismo e, se a queda de pedras e de terra tinha bloqueado a saída da corrente no fundo, restava pouca dúvida de que ela também contribuía em grande volume.

Porém eu ainda me admirava pelo estado de total reviravolta do lugar, os filetes de água e aquela rachadura enorme, mais acima na ravina! Parecia-me que para tanta mudança teria sido preciso mais que um desmoronamento comum. Eu poderia imaginar que um terremoto ou uma explosão grande poderiam criar condições tais como as que eu via, só que nada disso tinha acontecido. Então me levantei rápido, lembrando o estrondo e a nuvem de poeira que o seguira logo depois, subindo pelo ar. Mas balancei a cabeça, incapaz de acreditar. Não! Aquilo que ouvira então devia ter sido só o barulho de pedras e terra caindo, claro, porque poeira sobe fácil, naturalmente. Ainda assim, apesar de meu raciocínio, tinha a sensação inquietante de que esta teoria não bastava para satisfazer meu senso de probabilidade, mas haveria uma outra que pudesse sugerir que fosse pelo menos parcialmente plausível? Pimenta tinha ficado sentado pela grama enquanto eu conduzia o meu exame. Quando dei a volta pelo lado norte da ravina ele se levantou e me acompanhou.

Devagar, mantendo a atenção divida em todas as direções, circundei o Abismo, mas achei pouca coisa que não tivesse visto. Desde o oeste eu pude ver as quatro pequenas cascatas, que fluíam ininterruptamente. Elas estavam a distância considerável da superfície do lago, algo em torno de quinze metros, segundo calculei.

Ainda me demorei um pouco por ali, mantendo meus olhos e ouvidos atentos, mas não vi nem ouvi mais nada suspeito. Todo o lugar estava maravilhosamente silencioso e a não ser pelo murmúrio contínuo da água, não havia nenhuma espécie de som que rompesse a quietude.

Durante todo esse tempo Pimenta não exibira sinal nenhum de irritação, o que me parecia indicar que, naquele momento pelo menos, não havia nenhuma criatura suína pelas redondezas. Pelo que deu para ver, sua atenção parecia concentrada principalmente em arranhar e farejar por entre a grama, na beirada do Abismo. Às vezes ele saía correndo em direção à casa, como se fosse seguir pegadas invisíveis, mas sempre voltava depois de uns minutos. Eu não tinha dúvida de que estava mesmo achando os rastros das coisas suínas e o próprio fato de que todas que seguia pareciam trazê-lo de volta até o Abismo provava que os brutos haviam voltado para o lugar de onde tinham vindo.

Ao meio dia eu voltei para casa, para comer. Durante a tarde dei uma busca parcial dos jardins, acompanhado pelo Pimenta, mas não encontrei mais nada que indicasse presença das criaturas.

Uma vez, enquanto passávamos por entre as macegas, Pimenta correu para uns arbustos, latindo alto. Com isso eu saltei para trás, amedrontado, e apontei a arma engatilhada, só para depois rir nervoso quando ele apareceu de volta perseguindo um pobre gato. Ao entardecer, desisti da busca e voltei para casa. Então, de repente, quando nós estávamos passando por uma grande moita de arbustos à nossa direita, Pimenta desapareceu e pude ouvi-lo farejar e ganir entre eles, de maneira suspeita. Afastei os galhos usando o cano da espingarda e olhei para dentro. Não havia nada para se ver, a não ser que muitos dos galhos estavam curvados ou quebrados, como se algum animal tivesse feito um ninho ali, não muito antes. Devia ter sido um dos lugares ocupados, na noite do ataque, por uma das criaturas suínas.

Voltei à minha busca pelos jardins no dia seguinte, mas não obtive resultado. Ao cair da noite já tinha percorrido todos eles, e verificara que não poderia mais haver nenhuma das Coisas escondida no lugar. De fato, como costumo pensar, eu estava certo em minha suposição inicial, de que foram todas embora logo após o ataque.


19
Jun 11
publicado por José Geraldo, às 19:59link do post | comentar

Estávamos conversando despreocupadamente entre uma cerveja e outra quando o meu amigo me olhou, pensativamente, e disse, com a gravidade de quem profere um aforisma de Nietzsche: 

— Acredito que você precisa começar a pensar em escrever a sua autobiografia.

A frase, assim dita, me pegou de surpresa. Nunca pensara em tal possibilidade, muito embora, na imaginação das pessoas da família e da maioria dos amigos, todas as histórias que escrevo são autobiográficas — o que prova que sou mesmo louco.

— Não posso, Flávio. A minha vida é desinteressante, não aconteceu tanta coisa assim, que mereça ser contada num livro.

— Acho que você está enganado. Para começo de conversa, nenhuma vida é totalmente desinteressante: tudo que você precisa é “dar um trato” nas partes mais confusas, cortar as partes chatas, estender os episódios picantes.

— Mas se eu fizer isso, vou estar falsificando a minha própria biografia.

— O que, convenhamos, é tão errado quanto roubar num jogo de paciência. Um crime sem vítimas, amigo falsário.

— Tenho as minhas dúvidas se é mesmo assim. Existe muita gente viva que me conhece, que pode me desmascarar. Sem falar que muita gente pode ficar ofendida por faltar na minha biografia.

— Ambos os problemas são bem fáceis de resolver. Você resolve os dois simplesmente apresentando a obra como se fosse um romance, de forma que somente quem leia tenha ideia de que se trata de um texto autobiográfico. Considerando o nível geral de leitura das pessoas desta cidade e redondezas, garanto que vai demorar duas décadas para que as pessoas percebam que estão faltando no seu texto porque, provavelmente, as pessoas que vão ler o livro dificilmente serão as mesmas que nele aparecem, ou deveriam aparecer. Mas, fora de toda dúvida, a melhor maneira de resolver este problema é deixar para publicar a sua autobiografia quando normalmente as autobiografias são publicadas, depois que você já estiver de caixão encomendado.

— Vou então escrevê-la agora para quê, meu amigo?

— Para quê, ora bolas! Pense, camarada, pense! O tempo haverá de passar, e você vai ao longo da vida esquecendo os detalhes de tudo que viveu. Na pior das hipóteses, você precisa começar a escrever para guardar registro, cara. O pior dos escritores, na pior das hipóteses, tem a obrigação de, pelo menos, ser um cronista de seu tempo. Se você não registrar o mundo em que viveu, você não terá cumprido sua principal missão.

Não acredito que tenha alguma “missão” específica nesse mundo (ou não acreditava), mas aquelas palavras me atingiram em um ponto sensível. Muito depois de terminar a conversa, pagar a conta e voltar para casa eu vim pensando. O pior dos escritores, na pior das hipóteses, tem a obrigação de, pelo menos, ser um cronista de seu tempo. É, parece que chegou a hora de começar a escrever o primeiro volume da minha autobiografia. Pode ser menos interessante do que eu pensava, mas sempre posso “siliconar” acrescentando um dragão ou dois, ou uma sociedade secreta, ou uma aparição de fantasma.


17
Jun 11
publicado por José Geraldo, às 12:12link do post | comentar

Continuando nossa série de análises sobre as sensacionais tirinhas do André Dahmer, hoje analisaremos uma que será realmente polêmica, e atrairá a ira de centenas de pessoas contra mim e fará com que muitos de meus amigos fiquem horrorizados, me excomunguem, me xinguem ou digam que estou louco, coisas assim:

Aqui não há necessidade de muita sutileza para entender a filosofia que está sendo apresentada. Antes que comecem a chover pedras e protestos, vamos explicar uma coisa bem claramente: não me parece que André Dahmer, nesta tirinha, esteja duvidando ou afirmando qualquer coisa a respeito de Deus em si. O tema é muito outro: ele está ironizando certas pessoas que falam em nome dEle.

O diálogo que vemos no primeiro quadrinho reúne um homem de físico avantajado e outro que aparenta ser, além de menos fisicamente dotado, também idoso. O homem de físico avantajado, segundo podemos deduzir de sua fala, tem o hábito de extorquir dinheiro das pessoas usando violência e/ou ameaça de violência. Ele está preocupado com a descoberta de que suas atitudes agora são criminosas. O velho então lhe lembra que é possível legalizar suas “atividades”, adaptando-as aos novos tempos. Vemos claramente nesses dois quadrinhos iniciais que os dois personagens são símbolos, e não indivíduos. O primeiro simboliza a máfia, o criminoso, essas coias. O segundo simboliza o jurisconsulto, o estadista, o espertalhão. Do diálogo entre os dois brota o “novo homem” do terceiro quadrinho: um personagem que ainda tem debaixo da roupa os músculos do tempo em que batia nos outros para roubar dinheiro (restos de um poder temporal?), mas que em vez disso extorque dinheiro usando meios mais sutis.

Para mim esta tirinha é um ataque às instituições religiosas em geral, vistas como um meio de vida para seus membros, que se aproveitam do temor sobrenatural do povo para obter dinheiro. Sob o disfarce de uma preocupação com o bem estar alheio, o ex mafioso lembra aos fiéis que "Deus precisa de dinheiro".

Não acho que os quadrinhos sejam uma referência exclusiva à Igreja Católica. A simbologia católica aí empregada serve apenas para identificar adequadamente que o personagem se tornou um líder religioso. Outras instituições religiosas não têm uma simbologia tão transparente que permita identificar de forma inequívoca a função do líder. Tendo dito isso, acho que não sei dizer mais nada sobre o quadrinho, apenas que o acho genial.


14
Jun 11
publicado por José Geraldo, às 09:00link do post | comentar
Este texto é parte do romance “A Casa no Fim do Mundo”, de William Hope Hodgson (1907), que estou traduzindo em capítulos semanais. Visite o Índice para lê-los em sequência.

O sol estava morno e brilhava fortemente no céu, formando um contraste maravilhoso com os porões tão escuros e lúgubres, e foi me sentindo bastante leve que fui para a torre, para vigiar os jardins. Lá encontrei tudo bem calmo e depois de uns minutos desci ao quarto da Mary.

Depois de bater e ter uma resposta, abri a porta. Minha irmã estava sentada, quieta, na cama, como se esperasse por alguma coisa. Ela parecia bastante refeita, e não tentou se afastar quando me aproximei; apesar disso, observei que ela perscrutou minha face com ansiedade, como se ainda tivesse dúvida, como se estivesse apenas meio segura de que não era preciso ter medo de mim.

Minhas perguntas sobre como se sentia ela respondeu, com bastante sanidade, que estava com fome e queria ir preparar um desjejum, com o que não me importei. Por um minuto meditei se já seria seguro deixá-la sair. Por fim, disse-lhe que ela poderia ir, com a condição de me prometer que não tentaria deixar a casa e nem mexeria em nenhuma das portas para fora. Quando mencionei as portas uma expressão súbita de medo cruzou o seu rosto, mas ela se conteve sem dizer nada, a não ser a promessa pedida, e saiu do quarto, silenciosamente.

Atravessando o quarto, me aproximei do Pimenta, que tinha acordado com minha entrada, mas, além de um fraco latido de prazer e uma pouca agitação da cauda, tinha ficado quieto. Quando lhe fiz carinho, ele tentou ficar de pé, e conseguiu um pouco, para logo cair de lado outra vez, com um ganido de dor.

Falei com ele e lhe mandei ficar deitado. Estava muito satisfeito com a sua recuperação, e também com a bondade natural do coração de minha irmã, que dele cuidara tão bem, apesar da condição de sua mente. Depois de um momento, deixei-o e desci a escada e fui para meu escritório.

Pouco depois Mary apareceu carregando uma bandeja com o desjejum fumegante. Quando ela entrava no cômodo a vi encarando firmemente as escoras que apoiavam a porta, de lábios apertados, acho que empalideceu um pouco, levemente, mas foi tudo. Depois de ter depositado a bandeja perto do meu cotovelo, ela estava saindo, quieta, quando a chamei de volta. Ela veio, pelo que me pareceu, um tanto timidamente, como se estivesse assustada, e notei que ela agarrava o avental nervosamente.

— Vem cá, Mary — disse-lhe — alegre-se! As coisas já parecem melhor. Não vi nenhuma das criaturas desde ontem de manhã cedo.

Ela me olhou, de uma maneira curiosamente confusa, meio não entendendo. Então a inteligência chegou a seus olhos, e o medo — mas ela não disse nada além de um murmúrio de aquiescência. Depois disso eu fiquei quieto. Era evidente que qualquer referência às coisas suínas seria mais do que os seus nervos abalados poderiam suportar.

Terminado o desjejum, subi à torre. Ali, durante uma boa parte do dia eu mantive estrita vigilância dos jardins. Uma vez ou duas fui até o porão para ver como minha irmã estava e todas as vezes a encontrei calma e curiosamente submissa. Na última vez ela chegou a tomar iniciativa de falar comigo a respeito de alguns assuntos domésticos que precisavam ser resolvidos. Embora isso tivesse se dado com timidez quase extraordinária, eu achei que era uma coisa boa, por ser uma das primeiras palavras voluntariamente ditas por ela, desde o momento crítico em que a surpreendera destravando a porta dos fundos para sair ao encontro dos brutos. Não sei se ela tinha consciência de sua tentativa, ou do tamanho do perigo que tinha passado, mas evitava perguntar isso, julgando que seria melhor deixar tudo ser esquecido.

Naquela noite dormi em uma cama pela primeira vez em dois dias. De manhã, acordei cedo e dei uma volta pela casa toda. Estava tudo do jeito que deveria estar, e eu fui até à torre para dar nova olhada nos jardins. Lá também encontrei perfeita quietude.

Durante o desjejum, quando me encontrei com a Mary, fiquei muito feliz de ver que já tinha se recuperado bem do choque e conseguiu até me saudar de uma forma perfeitamente natural. Conversou calma e sensatamente, só tomando cuidado de não mencionar nada que acontecera nos dias anteriores. E nisso eu a ajudei, até mesmo tentando não levar a conversa em tal direção.

Mais cedo eu tinha ido ver o Pimenta. Ele sarava rápido, e parecia certo que estaria de pé dentro de no máximo dia ou dois, sem dúvida. Antes de sair da mesa do desjejum, fiz menção a esse progresso. Na curta conversa que se seguiu fiquei surpreso por saber, a partir do que me disse, que ela ainda pensava que o ferimento dele era de um gato selvagem, invenção minha. Fiquei quase envergonhado de ter mentido para ela, ainda que a mentira tivesse sido dita para evitar que se assustasse. Por outro lado, imaginei que ela deveria ter descoberto a verdade, quando aqueles brutos atacaram a casa.

Durante o dia fiquei em alerta; todo o tempo possível na torre, tal como no dia anterior; porém, não vi nenhum sinal das Criaturas suínas, nem ouvi qualquer som. Várias vezes me veio o pensamento de que as Coisas bem poderiam finalmente ter nos deixado — até então tinha me recusado a aceitar tal ideia seriamente — porém eu comecei a sentir que poderia haver motivo para a esperança. Logo seriam três dias desde que vira uma das Coisas, ainda que eu pretendesse continuar com a máxima cautela. Por tudo que podia supor, tal silêncio prolongado poderia ser só uma artimanha para me fazer deixar a casa — certamente em direção às suas garras. Pensar em tal possibilidade já era, para mim, razão suficiente para me manter cauteloso.

E assim foram o quarto, o quinto e o sexto dia passando, em silêncio, mas sem que eu fizesse qualquer tentativa de sair de casa. No sexto dia eu tive o prazer de ver o Pimenta, de novo, capaz de ficar de pé e, embora ainda fraco, ele foi a minha companhia durante todo aquele dia.


09
Jun 11
publicado por José Geraldo, às 21:54link do post | comentar

Dando continuidade a nossa análise existencialista e filosófica das tirinhas do André Dahmer, eis outra que merece praticamente um ensaio...

Vemos aqui uma inversão irônica do antiquíssimo clichê da prostituta que se ilude em encontrar um homem que a tire da vida (tão bem explorado por nomes do quilate de Nélson Rodrigues, Manuel Bandeira, Eça de Queirós e Odair José). É verdade que, em alguns casos, como o do poema do Bandeira e do romance do Eça, o homem realmente cumpre a promessa. Mas em essência, a história de amor da prostituta sempre foi a de uma ilusão quase infantil com príncipe encantado. Isto, claro, porque na vida, como na arte, raras sãos as Surfistinhas que têm a chance de se tornarem próceres da cultura nacional e candidatas a cadeira na Academia Brasileira de Letras (de depender de sua campanha boca-a-boca de convencimento dos acadêmicos, será por unanimidade).

A prostituta literária é uma jovem ingênua que, poluída pela "vida", sonha com algum cliente que por ela se apaixone e a leve consigo para uma vida pelo menos relativamente respeitável. Nenhuma delas carregava gilete no bolso e nem cheirava cocaína. Eram tempos chiques, em que era finíssimo comer haxixe e morrer de tuberculose.

Mas nesse quadrinho sensacional, sintético, multireferenciado e todos os etcéteras que vocês queiram acrescentar, André Dahmer pega esse clichê e o transforma em pano de fundo para uma piada arrasa-quarteirão, da qual, evidentemente, só poderão rir desbragadamente os que forem dotados de uma cultura literária suficiente para saberem quem foi a Dama das Camélias ou, pelo menos, a Zezinha do Butiá. Bruna Surfistinha não serve de referência.

Normalmente vista como corrupta, decadente e doente, aqui é a puta que promete a redenção ao político. Essa é a sensacionalidade da piada. Em um nível mais básico, sugere-se que chegar ao nível de uma prostituta seria um progresso moral para o político (ainda que, em alguns casos, tal seja uma meta inatingível). Em um nível mais sofisticado, pode-se pensar que o político é iludido com a promessa de redenção, tal como as putas de alma limpa, posto que a prostituta não quer realmente salvá-lo, mas apenas continuar recebendo seu dinheiro (tal como os clientes não querem levar a puta para casa, mas apenas ter com ela encontros ocasionais). Além disso, a salvação fica impossibilitada pelo fato de que o político, tal como a puta nos tempos pré-camisinha, fica contaminado pela corrupção e doença derivada de seu contato com a sujidade, a prevaricação, o dolo e outras coisas. Males contra os quais não existe antibiótico.


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