Nas últimas semanas o Brasil foi assolado pela polêmica de um livro didático que supostamente toleraria o “erro de português” e, por consequência, provocaria o caos de nosso sistema educacional, corromperia nossa juventude, nos transformaria a todos em homens das cavernas dizendo uga-buga. Agora que esse assunto começa a cair no esquecimento merecido que o caso merece, ressuscitam a discórdia citando um suposto livro de matemática que ensinaria que 10-4=7 (olha que absurdo!).
Não li nenhum dos dois livros, embora tenha ousado atacar os argumentos dos que se insurgiram contra o primeiro, mas agora que o caso se repete eu começo a discernir um padrão. E se meu entendimento não estiver horrivelmente equivocado, o tema não vai sair da berlinda nunca — e já explico porque.
O problema não está isolado nesses livros didáticos (que podem ser bons ou podem não ser). Erros em livros didáticos não mereceriam tanta atenção se não houvesse uma abordagem característica do tema “livro didático”. Uma abordagem a que eu ouso qualificar de “fetichista”.
Segundo o Dicionário de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas1, fetiche é um “objeto de culto que é considerado intrinsecamente potente e/ou válido devido às suas associações simbólicas e/ou rituais, sem levar em conta a sua utilidade prática” (grifo meu).
Observe que o fetiche é, por definição, um repositório de reverência, ainda que não funcione. Tem-se reverência pelo fetiche de uma forma tal que são inventadas explicações ad hoc para justificar a continuidade de seu uso, mesmo que ele seja inócuo. As pessoas continuam usando pés de coelho como amuleto, ainda que não melhorem de vida. Elas inventam episódios de “sorte” ilusória para justificar seu arraigamento ao objeto.2
Por que estou dizendo que há um comportamento fetichista de algumas pessoas em relação ao livro didático? Porque em nossa cultura tradicionalista e autoritária (mais autoritária até do que tradicionalista) o livro é visto como um repositório de saber “certificado”, “autorizado”, “seguro”3. Alguém, em algum lugar, sob direção de pessoas devidamente habilitadas e diplomadas, com permissão do governo e imprimatur da Igreja, escreveu esse livro maravilhoso que contém todos os “pontos” que o aluno precisa aprender para crescer um cidadão de bem. O livro didático é uma bíblia do ensino. Tanto é assim que quando alguém quer passar num concurso uma das primeiras coisas que faz é comprar a “apostila oficial” ou pelo menos uma apostila que contenha o logotipo daquele concurso específico, bem na capa. Somente os compradores da apostila terão acesso ao conhecimento arcano que abre as portas do concurso. Bem poucos são os que leem o edital e ousam buscar aqueles conhecimentos listados em outros livros diversos ou apostilas soltas. Há até quem ache que uma apostila de conhecimentos bancários feita para o concurso do Banco do Brasil não serve para estudar para o concurso da Caixa Econômica Federal…
Dentro de sala de aula o livro-fetiche é uma forma de impor a “verdade” sobre o aluno inculto. Quando o aluno questiona alguma coisa, o professor triunfantemente aponta impresso lá em letras fáceis de ler e diz “tá aqui, ó!”. Com um bom livro didático na mão você nem precisa de professor, como sugerem os inúmeros cursos disto e daquilo “sem mestre” que já andaram pela moda, ou como evocam os cursos à distância (modinha tecnológica de agora), nos quais o professor é substituído por uma espécie de coordenador da turma, que apenas opera (literalmente) a infraestrutura que traz aos alunos o conteúdo produzido alhures pelas autoridades competentes. O livro didático emascula a autonomia do professor, mas há muito professor que gosta disso, porque junto dessa castração intelectual vem o alívio de muita responsabilidade: “eu não ganho o bastante para pensar tudo isso” (já deve haver alguém pensando).
Mas o problema do livro didático com erros é real. É preciso que seja analisado. Antigamente, em vez desse festival de novidades que aparece a cada ano, com centenas de novos títulos que nada acrescentam de novo, havia alguns poucos manuais, que costumavam ser usados durante décadas e cujo processo de edição era muito mais demorado do que o de hoje. Parece lógico que tais livros fossem mais isentos de falhas grotescas como 10-4=7.
Parece-me natural que haja mais erros nos livros de hoje. Primeiro porque há uma indústria do livro didático que cospe mais títulos do que o necessário: e não há tempo para revisar e aperfeiçoar os livros antigos. Segundo porque os livros são produzidos a toque de caixa, sem tempo para revisões cuidadosas. Existe, portanto, um problema grave na indústria do livro didático. Um problema que causa erros frequentes. Seria importante rever isso. Mas, será que tais problemas justificam tanta histeria?
Não justificaria se não houvesse o tal fetichismo. Esses erros minam a credibilidade do livro didático e, por tabela, de outros livros que também ditam regras e crenças e conhecimentos. Embora o ditado de que “papel aceita qualquer coisa” seja do tempo de minha saudosa “vó”, ainda há pessoas que enxergam o livro como uma espécie de ser místico (há muitos deles nessa comunidade de escritores, pessoas que se acham especiais porque estão escrevendo, até a ponto de mudar seu nick para “Fulano de Tal, Escritor” ou “Sicrano Poeta”).
Se o livro não fosse visto assim, as pessoas poderiam esperar que o professor simplesmente dissesse aos alunos que “há um erro de impressão na página X e o resultado correto é Y”. O medo é que os alunos comecem a se perguntar o que mais não poderia estar errado em outras páginas do mesmo livro ou de outros. Não que já não façam isso, mas há gente que vive em um mundo ideal, no qual os livros “educam” os jovens.
Fazia sentido isso, no tempo da ditadura. O livro era previamente censurado. Criar constrangimentos para que o professor mudasse ou acrescentasse “um jota ou um til” ao que estava “no livro” era muito útil aos interesses do poder. Hoje essa situação mudou um pouco, mas deveria ter mudado mais. Já não temos currículos engessados e “coordenadores pedagógicos” para manter os professores estreita e estritamente na linha. Aliás, nem temos mais uma ditadura prendendo dissidentes e nem uma Igreja que dê medo. Mas ainda há os que sentem saudades do poder do livro.
Esse estado de coisas durou muito tempo, e ainda dura. Há iniciativas tentando mudar isso, mas não é da noite para o dia que se muda uma cultura. Temos uma cultura autoritária, uma cultura de lavagem cerebral, uma cultura de reverência ao livro. Quando digo “reverência” não quero dizer que todos gostem dele, tal como nem todo mundo gosta de um gato preto... Reverência quer dizer reconhecer o poder místico que dele “emana”. Mesmo os que odeiam o livro não deixam de ter certo fascínio por ele enquanto objeto (daí haver estantes nas casas dos que ficam ricos, ainda que a leitura não faça parte do hábito: ter livros é distintivo de cultura, de status, de poder) ou pelas pessoas que dele se acercam (daí a lenda do “poeta” e tudo que se fala sobre os “literatos”).
Temos que ter o cuidado de não recairmos nessa crença irracional no “poder do livro” (que, aliás, ecoa em boa parte da literatura de fantasia moderna, inçada de grimórios, livros malditos, diários de falecidos etc.) quando debatermos sobre erros em livros didáticos. Livros didáticos são apenas livros. Alguns são bons, outros são ruins. Devemos, é claro, preferir os bons, mas devemos ter a capacidade de discernir o que há de bom nos ruins e o que há de ruim nos bons.
Nenhum livro é um pacote fechado. Sim, eu disse nenhum. É uma merda que um livro de matemática contenha 10-3=7, principalmente porque tal coisa tosca é fruto de um erro de digitação combinado com a falta de atenção de quem revisou e de quem avaliou para comprar e distribuir. Mas não é nenhuma grande tragédia. Professores de matemática são, supostamente, capazes de reconhecer esta bobagem, e até de a utilizarem de forma lúdica em sala de aula: “Olha, gente, essa página do livro tem uma pegadinha. Vamos ver quem é bom de subtração e vai reconhecer onde está a pegadinha?” Um bom professor é capaz de superar pequenos erros e dar uma grande aula. Mas um professor incompetente se desesperará ante a ideia de que não tem consigo um livro “seguro”.
Não li nenhum dos dois livros, embora tenha ousado atacar os argumentos dos que se insurgiram contra o primeiro, mas agora que o caso se repete eu começo a discernir um padrão. E se meu entendimento não estiver horrivelmente equivocado, o tema não vai sair da berlinda nunca — e já explico porque.
O problema não está isolado nesses livros didáticos (que podem ser bons ou podem não ser). Erros em livros didáticos não mereceriam tanta atenção se não houvesse uma abordagem característica do tema “livro didático”. Uma abordagem a que eu ouso qualificar de “fetichista”.
Segundo o Dicionário de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas1, fetiche é um “objeto de culto que é considerado intrinsecamente potente e/ou válido devido às suas associações simbólicas e/ou rituais, sem levar em conta a sua utilidade prática” (grifo meu).
Observe que o fetiche é, por definição, um repositório de reverência, ainda que não funcione. Tem-se reverência pelo fetiche de uma forma tal que são inventadas explicações ad hoc para justificar a continuidade de seu uso, mesmo que ele seja inócuo. As pessoas continuam usando pés de coelho como amuleto, ainda que não melhorem de vida. Elas inventam episódios de “sorte” ilusória para justificar seu arraigamento ao objeto.2
Por que estou dizendo que há um comportamento fetichista de algumas pessoas em relação ao livro didático? Porque em nossa cultura tradicionalista e autoritária (mais autoritária até do que tradicionalista) o livro é visto como um repositório de saber “certificado”, “autorizado”, “seguro”3. Alguém, em algum lugar, sob direção de pessoas devidamente habilitadas e diplomadas, com permissão do governo e imprimatur da Igreja, escreveu esse livro maravilhoso que contém todos os “pontos” que o aluno precisa aprender para crescer um cidadão de bem. O livro didático é uma bíblia do ensino. Tanto é assim que quando alguém quer passar num concurso uma das primeiras coisas que faz é comprar a “apostila oficial” ou pelo menos uma apostila que contenha o logotipo daquele concurso específico, bem na capa. Somente os compradores da apostila terão acesso ao conhecimento arcano que abre as portas do concurso. Bem poucos são os que leem o edital e ousam buscar aqueles conhecimentos listados em outros livros diversos ou apostilas soltas. Há até quem ache que uma apostila de conhecimentos bancários feita para o concurso do Banco do Brasil não serve para estudar para o concurso da Caixa Econômica Federal…
Dentro de sala de aula o livro-fetiche é uma forma de impor a “verdade” sobre o aluno inculto. Quando o aluno questiona alguma coisa, o professor triunfantemente aponta impresso lá em letras fáceis de ler e diz “tá aqui, ó!”. Com um bom livro didático na mão você nem precisa de professor, como sugerem os inúmeros cursos disto e daquilo “sem mestre” que já andaram pela moda, ou como evocam os cursos à distância (modinha tecnológica de agora), nos quais o professor é substituído por uma espécie de coordenador da turma, que apenas opera (literalmente) a infraestrutura que traz aos alunos o conteúdo produzido alhures pelas autoridades competentes. O livro didático emascula a autonomia do professor, mas há muito professor que gosta disso, porque junto dessa castração intelectual vem o alívio de muita responsabilidade: “eu não ganho o bastante para pensar tudo isso” (já deve haver alguém pensando).
Mas o problema do livro didático com erros é real. É preciso que seja analisado. Antigamente, em vez desse festival de novidades que aparece a cada ano, com centenas de novos títulos que nada acrescentam de novo, havia alguns poucos manuais, que costumavam ser usados durante décadas e cujo processo de edição era muito mais demorado do que o de hoje. Parece lógico que tais livros fossem mais isentos de falhas grotescas como 10-4=7.
Parece-me natural que haja mais erros nos livros de hoje. Primeiro porque há uma indústria do livro didático que cospe mais títulos do que o necessário: e não há tempo para revisar e aperfeiçoar os livros antigos. Segundo porque os livros são produzidos a toque de caixa, sem tempo para revisões cuidadosas. Existe, portanto, um problema grave na indústria do livro didático. Um problema que causa erros frequentes. Seria importante rever isso. Mas, será que tais problemas justificam tanta histeria?
Não justificaria se não houvesse o tal fetichismo. Esses erros minam a credibilidade do livro didático e, por tabela, de outros livros que também ditam regras e crenças e conhecimentos. Embora o ditado de que “papel aceita qualquer coisa” seja do tempo de minha saudosa “vó”, ainda há pessoas que enxergam o livro como uma espécie de ser místico (há muitos deles nessa comunidade de escritores, pessoas que se acham especiais porque estão escrevendo, até a ponto de mudar seu nick para “Fulano de Tal, Escritor” ou “Sicrano Poeta”).
Se o livro não fosse visto assim, as pessoas poderiam esperar que o professor simplesmente dissesse aos alunos que “há um erro de impressão na página X e o resultado correto é Y”. O medo é que os alunos comecem a se perguntar o que mais não poderia estar errado em outras páginas do mesmo livro ou de outros. Não que já não façam isso, mas há gente que vive em um mundo ideal, no qual os livros “educam” os jovens.
Fazia sentido isso, no tempo da ditadura. O livro era previamente censurado. Criar constrangimentos para que o professor mudasse ou acrescentasse “um jota ou um til” ao que estava “no livro” era muito útil aos interesses do poder. Hoje essa situação mudou um pouco, mas deveria ter mudado mais. Já não temos currículos engessados e “coordenadores pedagógicos” para manter os professores estreita e estritamente na linha. Aliás, nem temos mais uma ditadura prendendo dissidentes e nem uma Igreja que dê medo. Mas ainda há os que sentem saudades do poder do livro.
Esse estado de coisas durou muito tempo, e ainda dura. Há iniciativas tentando mudar isso, mas não é da noite para o dia que se muda uma cultura. Temos uma cultura autoritária, uma cultura de lavagem cerebral, uma cultura de reverência ao livro. Quando digo “reverência” não quero dizer que todos gostem dele, tal como nem todo mundo gosta de um gato preto... Reverência quer dizer reconhecer o poder místico que dele “emana”. Mesmo os que odeiam o livro não deixam de ter certo fascínio por ele enquanto objeto (daí haver estantes nas casas dos que ficam ricos, ainda que a leitura não faça parte do hábito: ter livros é distintivo de cultura, de status, de poder) ou pelas pessoas que dele se acercam (daí a lenda do “poeta” e tudo que se fala sobre os “literatos”).
Temos que ter o cuidado de não recairmos nessa crença irracional no “poder do livro” (que, aliás, ecoa em boa parte da literatura de fantasia moderna, inçada de grimórios, livros malditos, diários de falecidos etc.) quando debatermos sobre erros em livros didáticos. Livros didáticos são apenas livros. Alguns são bons, outros são ruins. Devemos, é claro, preferir os bons, mas devemos ter a capacidade de discernir o que há de bom nos ruins e o que há de ruim nos bons.
Nenhum livro é um pacote fechado. Sim, eu disse nenhum. É uma merda que um livro de matemática contenha 10-3=7, principalmente porque tal coisa tosca é fruto de um erro de digitação combinado com a falta de atenção de quem revisou e de quem avaliou para comprar e distribuir. Mas não é nenhuma grande tragédia. Professores de matemática são, supostamente, capazes de reconhecer esta bobagem, e até de a utilizarem de forma lúdica em sala de aula: “Olha, gente, essa página do livro tem uma pegadinha. Vamos ver quem é bom de subtração e vai reconhecer onde está a pegadinha?” Um bom professor é capaz de superar pequenos erros e dar uma grande aula. Mas um professor incompetente se desesperará ante a ideia de que não tem consigo um livro “seguro”.
1 Eu ia usar a Wikipédia como referência, porque lá tem uma definição mais sucinta e elegante do termo, mas não quero deixar brecha para que me desqualifiquem como mero "ledor de Wikipédia", então vou me embasar em referências apropriadas, mesmo que isso não seja compreendido ou aceito como um valor por alguns dos que lerão este tópico.
2 Na verdade esse não é o melhor exemplo de um comportamento tipicamente fetichista, mas se eu empregasse um exemplo mais adequado eu fatalmente desviaria o tema do debate sabe lá para que direção, visto que é considerado ofensivo, ainda, empregar na análise de nossa cultura “civilizada” categorias originalmente desenvolvidas para estudar os “selvagens”.
3 Não é à toa que as pessoas compram livros intitulados “Bíblia” disso ou daquilo para estudarem temas cabalísticos, como linguagens de programação ou códigos de leis. As pessoas se sentem confortáveis com a sensação de que o livro contém as respostas, o livro as liberta da obrigação de descobrirem as soluções por si mesmas.
2 Na verdade esse não é o melhor exemplo de um comportamento tipicamente fetichista, mas se eu empregasse um exemplo mais adequado eu fatalmente desviaria o tema do debate sabe lá para que direção, visto que é considerado ofensivo, ainda, empregar na análise de nossa cultura “civilizada” categorias originalmente desenvolvidas para estudar os “selvagens”.
3 Não é à toa que as pessoas compram livros intitulados “Bíblia” disso ou daquilo para estudarem temas cabalísticos, como linguagens de programação ou códigos de leis. As pessoas se sentem confortáveis com a sensação de que o livro contém as respostas, o livro as liberta da obrigação de descobrirem as soluções por si mesmas.