Este texto é parte do romance “A Casa no Fim do Mundo”, de William Hope Hodgson (1907), que estou traduzindo em capítulos semanais.
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Então presenciei a mais estranha de todas as coisas estranhas que me aconteceram nesta casa de mistérios. Ocorreu bem recentemente, já neste mês, e tenho pouca dúvida de que presenciei de fato como terminarão todas as coisas. À minha história, porém.
Não sei bem o porquê disso, mas até o momento eu não tinha sido capaz de escrever sobre essas coisas da forma como ocorreram. É como se tivesse que esperar um tempo, recuperando meu equilíbrio devido e digerindo — de um certo jeito — as coisas que vi e ouvi. Não há dúvida que isto foi como tinha de ser; porque, tendo esperado, enxergo os fatos mais verdadeiramente, e escrevo sobre eles sob um estado de espírito mais calmo e prudente. Tudo muito a propósito.
Estamos agora no final de novembro. A minha história se refere ao que aconteceu na primeira semana do mês.
Era de noite, cerca de nove horas. Pimenta e eu estávamos fazendo companhia um ao outro no escritório — aquele grande e antigo quarto, onde leio e trabalho. Curiosamente eu estava lendo a Bíblia. Eu comecei nos últimos dias a desenvolver gradualmente um interesse por tal grande e antigo livro. Subitamente um claro tremor agitou a casa, e ouviu-se um zumbido ou rangido na distância, de uma forma muito tênue, mas que logo aumentou até transformar-se em um berro, abafado e longínquo. Lembrou, de uma forma estranha e gigantesca, o barulho de um relógio quando a corda termina e você o deixa parar. O som parecia vir de alturas remotíssimas — em algum lugar na imensidão da noite. Não houve repetições do choque. Eu olhei para Pimenta, ele estava dormindo, pacífico.
Gradualmente o rangido diminui e quedou um longo silêncio.
Então, de uma só vez, um brilho se acendeu na janela do canto, que se projeta para fora das paredes de tal forma que se pode, a partir dela, olhar a leste e a oeste simultaneamente. Fiquei intrigado e, após momentos de hesitação, cruzei o cômodo e abri as bandeiras da janela de uma vez. Logo que o fiz, pude ver o sol nascendo de trás do horizonte com movimento firme e perceptível. Podia vê-lo subindo no céu. No que não pareceu mais que um minuto ele havia chegado aos topos das árvores, através das quais o vira antes. Para cima, para cima… logo era dia pleno. Atrás de mim eu percebia um zumbido agudo, como o de um mosquito. Olhei em torno e soube que ele provinha de um relógio. Enquanto o olhava de relance ele marcou metade de uma hora. O ponteiro dos minutos estava percorrendo o mostrador mais rápido que um ponteiro de segundos e o ponteiro das horas ia rapidamente de um número a outro. Eu tinha uma sensação de espanto mudo. Depois de alguns instantes as duas velas se apagaram, quase juntas. Logo me virei de novo para a janela, porque percebera que as sombras dos marcos corriam pelo chão em minha direção, como se tivessem passado uma grande lâmpada através da janela.
Notei então que o sol tinha subido até as alturas e ainda se deslocava visivelmente. Passou acima da casa com um extraordinário movimento de veleiro. Foi quando a janela ficou na sombra que vi uma outra coisa extraordinária. As nuvens de tempo bom não estavam indo calmamente pelo céu: elas andavam desabaladas como se o vento soprasse a cento e sessenta quilômetros por hora. Ao passarem mudavam de forma mil vezes por minuto, como se estivessem cheias de uma vida desconhecida, e então sumiam. Então vinham outras e também escorriam da mesma forma.
No oeste vi o sol caindo com um movimento suave e incrivelmente veloz. Do leste, as sombras de todas as coisas visíveis se estendiam na direção da escuridão que chegava. E o movimento das sombras me era visível, um arrastar silencioso e oscilante como o das sombras das árvores agitadas pelo vento. Era uma visão bem estranha.
Rapidamente o escritório começou a escurecer. O sol escorregou para debaixo do horizonte e pareceu, daquele jeito, que desaparecia de minha vista quase de supetão. Através da penumbra do entardecer tão rápido, eu vi o crescente prateado da luz saindo do céu meridional, em direção ao oeste. O entardecer pareceu se fundir quase instantaneamente com a noite. Sobre mim as muitas constelações passaram circulando sem ruído, e seu movimento era estranho, desconhecido, em direção ao oeste também. A lua caiu através dos últimos graus rumo ao abismo da noite, e logo ficou só a luz das estrelas …
Nesse momento o zumbido no canto tinha cessado, com o que eu soube que o relógio tinha ficado sem corda. Poucos minutos se passaram e eu vi o céu oriental clarear. Uma manhã cinzenta e séria se espalhou través da escuridão e escondeu a marcha das estrelas. Acima se movia, em um rolar pesado e inexorável, um céu vasto de nuvens escuras; um teto de nuvens que teria parecido imóvel se contemplado no passo de um dia terrestre normal. O sol estava escondido de mim, mas de momento em momento o mundo clareava e escurecia, o céu brilhava e se apagava, em ondas de luz e sombra muito sutis…
A luz se movia sempre para o ocidente, e a noite caiu sobre a terra. Uma chuva devastadora pareceu vir com ela, trazida por um vento de rugir extraordinário, tal como se o uivo de uma noite inteira de tormenta fosse compactado no espaço de não mais que um minuto.
Este ruído passou, quase imediatamente, e as nuvens se partiram, de forma que, mais uma vez, eu pude ver o céu. As estrelas estavam voando para o oeste a uma velocidade espantosa. Notei então, pela primeira vez, que embora o barulho da ventania tivesse acabado, ainda havia um som “borrado”, constantemente em meus ouvidos. Quando o notei, tive consciência de que ele havia estado sempre comigo. Era o ruído do mundo.1
E então, nem bem eu havia chegado a compreender isto, surgiu a luz oriental. Não mais que algumas batidas do coração e o sol já se erguia, ligeiro. Através das árvores eu o vi, e logo ele estava acima delas. Para cima, para cima, ele voava e todo o mundo estava logo iluminado. Ele passou, subindo firme e rapidamente até a sua posição mais alta, e de lá caiu, rumo ao ocidente. Eu vi o dia se desenrolar visivelmente acima de minha cabeça. Umas poucas nuvens leves fugiam para o norte e se dissolviam. O sol se pôs com um mergulho súbito e claro, e lá ficou, diante dos meus olhos, por apenas alguns segundos, a luminescência decadente do anoitecer.
Para o sul e para o oeste, a lua estava afundando rapidamente. A noite caíra. No que não pareceu mais que um minuto a lua despencou pelos últimos graus do céu escuro. Outro minuto depois e o céu oriental brilhou com a aurora próxima. O sol saltou sobre mim com uma brutalidade medonha e voou ainda mais rapidamente em direção ao zênite. Então, de repente, uma coisa nova apareceu-me. Uma nuvem negra de tempestade veio correndo do sul e pareceu cobrir toda a extensão do céu em um mero instante. Enquanto vinha, percebi que o lado que avançava vinha tremulando, como uma mortalha monstruosa no firmamento, contorcendo-se e ondulando com uma sugestividade horrível. Em um instante o ar estava todo cheio de chuva, e uma centena de relâmpagos pareceram repicar no céu, como se um aguaceiro grandioso caísse. No mesmo segundo o ruído do mundo foi afogado pelo rugido do vento, e então meus ouvidos doeram com o impacto atordoante do trovão.
Em meio à tempestade a noite caiu, e então a borrasca passou em menos de um minuto e ficou no ar apenas o constante murmúrio do ruído do mundo em meus ouvidos. Acima, as estrelas estavam deslizando velozmente em direção ao ocidente e algo, talvez a velocidade peculiar que haviam atingido, me fez perceber pela primeira vez de forma nítida que era o mundo que girava. Eu pareci enxergar subitamente que o mundo era uma massa vasta que rodopiava visivelmente entre os astros.
A madrugada e o sol pareceram vir juntos, de tanto que a velocidade da rotação do mundo tinha aumentado. O sol galgou o céu em uma única e longa curva, passando pelo ponto mais alto e escorregando para baixo rumo ao céu ocidental, e então desapareceu. Eu mal consegui perceber o anoitecer, de tão breve que foi. Então eu vi as constelações voando e a lua que fugia para o oeste. No espaço de alguns segundos ela passou deslizando velozmente através do azul escuro do céu e sumiu. E quase em seguida nasceu a manhã.
Então pareceu acontecer uma aceleração ainda mais estranha. O sol deu um salto claro e direto através do céu e sumiu debaixo do horizonte ocidental, e então a noite veio e se foi com igual rapidez.
Quando o dia seguinte se abriu e fechou sobre o mundo, percebi uma queda de neve, brevemente sobre a terra. A noite veio e logo depois outro dia. Durante a breve passagem do sol, vi que a neve tinha derretido e então era noite outra vez.
Assim estavam as coisas, e mesmo depois de todas as coisas incríveis que presenciara, experimentei tudo isso com o mais profundo espanto. Ver o sol nascer e se pôr em um espaço de tempo que podia ser medido em segundos, assistir (pouco depois) a lua saltar pelo céu noturno — um globo pálido e cada vez maior — e flutuar, com uma rapidez incomum, através da vasta abóbada azul, para ver em seguida nascer o sol, pulando do horizonte oriental como se a perseguisse, e logo a noite outra vez, com a efêmera e fantasmagórica passagem das constelações dos astros, era tudo muito difícil de ver e crer. Mas assim acontecia; o dia escorregando de aurora a ocaso e a noite passando logo para o dia, sempre rápido e cada vez mais rápido.
As três passagens anteriores do sol tinham me mostrado a terra coberta de neve, o que me parecera, por alguns segundos, incrivelmente estranho à luz constantemente oscilante da lua que nascia e se punha. Então, por um pequeno instante, o céu ficou oculto por um mar de nuvens cinza-claras, que clareavam e escureciam alternadamente com a passagem do dia e da noite.
As nuvens ondularam e depois derreteram, e outra vez esteve diante de mim a visão do sol saltitante e das noites que vinham e iam como sombras.
Cada vez mais rápido girava o mundo. E cada dia e noite se completava, então, no espaço de alguns segundos apenas, e a velocidade crescia ainda.
Foi pouco depois disso que eu notei que o sol tinha começado a ter indícios de uma cauda de fogo. Isto era, evidentemente, devido à velocidade com que ele parecia atravessar o firmamento. E à medida em que os dias se aceleravam, cada um mais rápido que o anterior, o sol começou a assumir a aparência de um imenso cometa flamejante2 que faiscava pelo céu a intervalos periódicos, sempre mais curtos. À noite a lua apresentava com ainda maior fidelidade, um aspecto de cometa: uma forma luminosa pálida e singularmente clara que viajava rápido, arrastando fitas de fogo frio. As estrelas então se mostravam meramente como finos fios de fogo contra o escuro.
Uma vez eu me distraí da janela e procurei por Pimenta. Durante o relâmpago de um dia eu o vi dormir silenciosamente e então me voltei de novo para a minha vigília.
O sol era então vomitado do horizonte oriental como um estupendo foguete, parecendo ocupar com sua presença não mais que um segundo no tempo entre o Leste e o Oeste. Eu não conseguia mais perceber a passagem das nuvens pelo céu, que parecia ter escurecido um pouco. As breves noites pareciam ter perdido a sua escuridão própria, de forma que os filamentos de fogo das estrelas dardejantes apareciam apenas debilmente. Com o aumento da velocidade o sol pareceu bambolear muito lentamente no céu, do Sul para o Norte e então, novamente, do Norte para o Sul.
Então, em meio a tal estranha confusão mental as horas se passaram. Por todo esse tempo Pimenta tinha dormido. Então, sentindo-me só e melancólico eu o chamei, suavemente, mas ele não atendeu. Outra vez lhe chamei, erguendo um pouco a minha voz, mas ele não se mexeu. Então eu fui até onde ele estava e o toquei com meu pé, para acordá-lo. Com isso, apesar de ter sido um toque muito suave, ele partiu-se em pedaços. Foi o que aconteceu: ele literal e realmente desmoronou em uma pilha putrescente de ossos e pó.
Por talvez pouco mais que um minuto eu contemplei o monturo disforme do que fora um dia o Pimenta. Eu fiquei ali, sentindo-me confuso. O que teria acontecido? Eu me perguntava sem conseguir entender o significado sombrio daquele pequeno amontoado de cinzas. Então, ao mexer no monturo com o meu pé, ocorreu-me que aquilo só poderia ter acontecido após um grande período de tempo. Anos e anos.
Do lado de fora, a luz esvoaçante e oblíqua cobria o mundo. Dentro estava eu, tentando entender o sentido de tudo aquilo — o que significava a pequena pilha de poeira e ossos secos no tapete. Mas eu não conseguia pensar coerentemente.
Olhei em torno do cômodo e notei, então, pela primeira vez, o quanto ele parecia velho e poeirento. Sujeira e pó em toda parte, acumulada em pequenos montes nos cantos, e espalhada sobre os móveis. O próprio tapete, por sua vez, estava invisível sob uma camada do mesmo onipresente material. Quando eu caminhava, pequenas nuvens dele se erguiam com os meus passos e irritavam minhas narinas com um odor seco e amargo que me fazia pigarrear roucamente.
Então, em um momento em que eu contemplava novamente os restos de Pimenta, ergui-me e dei voz à minha confusão; perguntando em voz alta se os anos estavam mesmo passando, se aquilo que eu tinha pensado ser uma espécie de visão, seria, de fato, a realidade. Fiz uma pausa. Um novo pensamento me atingiu. Rapidamente, mas com passos que pela primeira vez eu notei cambalearem, atravessei o cômodo até o grande espelho da parede e olhei nele. Ele estava demasidamente encardido para produzir reflexo, então, com as mãos trêmulas, comeceia esfregar para remover a sujeira. Então eu pude ver-me. O pensamento que me ocorrera se confirmou. Em vez de um homem alto e vigoroso, que mal aparentava cinquenta anos, eu via um velho decrépito e curvado, cujos ombros eram caídos e cuja face levava as rugas de um século. O cabelo — que poucas horas antes tinha sido quase negro como carvão — estava luminosamente alvo. Somente os olhos ainda eram brilhantes. Gradualmente reconheci naquele ancião uma pálida semelhança com quem eu fora em outros tempos.
Desviei os olhos e manquei até a janela. Eu descobrira que estava velho, e este conhecimento parecia se confirmar em meu andar trêmulo. Por um pouco de tempo eu contemplei pensativo a vista borrada da paisagem que se alterava a cada instante. Mesmo naquele curto instante pareceu passar um ano. Então, em um gesto petulante, deixei a janela. Ao fazê-lo, notei que a minha mão tremia com a paralisia da senilidade, e um soluço curto forçou-se através dos meus lábios.
Caminhei tremendo da janela até a mesa, com minha atenção alternando entre uma e outra, indecisamente. Como o lugar estava arruinado! Por toda parte repousava uma espessa camada de poeira; espessa, sonolenta e escura. O corta-fogo era uma peça enferrujada e quase disforme. As correntes que erguiam os contrapesos de bronze do relógio tinham sido carcomidas pelo azinhavre e estes jaziam no chão, reduzidos a dois cones de verde-azulado.
Olhando em torno eu tive a impressão de que podia ver a própria mobília apodrecer e desfazer-se diante dos meus olhos. Nem isso foi uma fantasia minha, porque subitamente a estante junto à parede lateral desabou com o estalo e o rangido de madeira podre, atirando seu conteúdo ao chão e enchendo o cômodo com mais uma nuvem de átomos de poeira.
Como me sentia cansado! Ao caminhar eu parecia ouvir as minhas juntas secas rangendo e estalando com cada passo. Pensei em minha irmã. Estaria ela morta, tal como o Pimenta? Tudo tinha acontecido tão rápido e tão de repente. Aquilo tinha que ser, de fato, o começo do fim de todas as coisas! Ocorreu-me a ideia de sair à sua procura; mas eu estava cansado demais. Além do mais, ela tinha se comportado de uma forma muito estranha em relação aos acontecimentos recentes. Recentes! Eu repeti estas palavras e dei uma débil risada, sem nenhuma alegria, ao compreender finalmente que falava de um tempo passado meio século antes. Meio século! Bem poderia ter sido o dobro disso!
Eu me movi lentamente até a janela e contemplei o mundo lá fora, mais uma vez. A melhor descrição que posso fazer da passagem dos dias e noites, esta época, a um tipo de gigantesco e poderoso piscar de luz. Momento a momento a aceleração do tempo continuava, de forma que nas noites de então eu via a lua apenas como uma ondulante trilha de fogo pálido, que variava entre uma mera linha de luz e um rastro nebuloso e então diminuía outra vez, desaparecendo periodicamente.
O piscar dos dias e noites acelerou-se. Os dias tinham se tornado perceptivelmente mais escuros e uma estranha característica de entardecer permanecia na atmosfera. As noites eram tão mais claras que mal se podia ver as estrelas, exceto aqui e ali uma linha ocasional de luz, tão fina quanto um fio de cabelo, que parecia balançar um pouco, junto com a lua.
Rapidamente, e cada vez mais rápido, o piscar dos dias e noites acelerava-se, até que de repente eu percebi que desaparecera e restara, em vez dele, uma luz comparativamente estável, que era deitada sobre o mundo por um eterno rio de fogo que se contorcia entre o sul e o norte, em estupendas oscilações.
O céu se tornara então muito mais escuro, e havia no seu azul uma escuridão pesada, como se um vasto negrume espiasse a Terra através dele. Porém, ainda havia também nele uma estranha e horrível clareza, um vazio. Periodicamente eu tinha a impressão de um rastro fantasmagórico de fogo que balançava débil e obscuramente em direção à corrente do sol, desaparecendo e ressurgindo. Era a corrente quase invisível da lua.
Olhando para a paisagem, eu percebi novamente um embotamento do “agito” proporcionado pela luz da correnteza solar, que poderosamente balançava no céu, ou resultava das mudanças incrivelmente rápidas da superfície da terra. E em certos momentos me parecia que a neve cobria brevemente o mundo, desaparecendo da mesma forma abrupta, como se um gigante invisível “agitasse” um lençol branco sobre a terra.
O tempo corria, e a minha exaustão crescia insuportavelmente. Eu saí da janela e caminhei novamente pelo cômodo, com a poeira pesada amortecendo o som de minhas pisadas. Cada passo que eu dava parecia um esforço maior que o anterior. Uma dor intolerável me atingia em cada junta e membro enquanto eu me arrastava, com uma incerteza dolorosa.
Junto à parede oposta eu fiz uma pausa cansada e me perguntei, hesitante, o que fora fazer ali. Olhei para a esquerda e vi a minha velha poltrona. O pensamento de sentar nela me trouxe uma leve sensação de conforto à minha miséria confusa. Mas era tanto o meu cansaço, de velhice e exaustão, que eu mal conseguia forçar a minha mente a fazer coisa alguma senão ficar de pé e desejar ter andado aqueles poucos metros. Eu oscilava de pé. Até o chão parecia um lugar para descansar, se ao menos a camada de poeira não fosse tão espessa e tão sonolenta e tão negra. Reuni minhas forças, com grande emprego de minha vontade, e fui até a poltrona. Alcancei-a com um grunhido de gratidão. E me sentei.
Tudo em torno de mim pareceu estar se turvando. Era tudo tão estranho e inesperado. Na noite anterior eu fora um homem relativamente forte, embora de meia idade, e naquele momento, poucas horas depois… Olhei para o montinho de poeira que uma vez fora o Pimenta. Horas! E eu dei uma risada fraca e amarga, uma risada estridente e estalada que chocou os meus sentidos diminuídos.
Por um momento eu devo ter cochilado. Então abri os meus olhos com um susto. Em algum lugar pelo cômodo se produzira o ruído de algo caindo. Olhei e vi, vagamente, uma nuvem de pó flutuando sobre uma pilha de destroços. Próximo à porta, algo mais tombou, com barulho. Era um dos armários, mas eu estava cansado e não prestei atenção. Fechei os meus olhos e me sentei num estado de sonolência, ou semi-inconsciência. Uma vez ou duas ou vi sons que pareciam chegar até mim percorrendo neblinas densas. Então devo ter dormido.
1 O autor provavelmente se refere, de uma forma indireta, à crença tradicional, não totalmente esquecida no início do século xx segundo a qual os movimentos dos planetas produziam ruídos constantes e característicos que, combinados, resultavam naquilo que então se chamava “música das esferas”.
2 O Recluso usa esta expressão de uma forma meramente ilustrativa, evidentemente recorrendo à concepção popular do que seria um cometa — Nota do Editor.