Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
30
Ago 11
publicado por José Geraldo, às 23:45link do post | comentar | ver comentários (1)

Sou um escritor amador. Isto significa que me acomete uma série de dificuldades no exercício do que, para mim, está limitado a mero hobby. E mesmo assim ainda tenho de ouvir certas opiniões espantosas. O escritor — inclusive o amador — tornou-se subitamente um ser incensado com grandes responsabilidades: é ele quem deve dar continuar a tradição da “língua pátria”, construir a “identidade nacional”, oferecer “bons exemplos para os estudantes” etc. É muita atribuição para alguém que só tem algum respeito quando ganha muito dinheiro. Porque em relação a escritores, o povo respeita os que ganham dinheiro. E respeita o dinheiro, não os livros escritos e vendidos, que viraram esse dinheiro. Dinheiro. E antes que eu me esqueça: dinheiro.

A primeira grande barreira diante do escritor amador é o tempo. Ser amador significa ter de dedicar as melhores horas do dia a uma atividade produtiva. A esta atividade devem ser dedicadas as melhores energias também, visto que é nela que o escritor amador ganha o seu sustento e o respeito da sociedade. Terminado o dia — com os braços cansados, os olhos doídos, os dedos duros e as costas ardendo — o escritor amador terá de olhar para suas paredes e encontrar nelas indícios de inspiração para produzir uma página que seja. Se não o faz por um tempo muito longo, os seus amigos blogueiros dirão que está “perdendo a mão” e suspeitam que em breve abandonará o ofício.

A segunda grande barreira é o tempo. Ser amador significa ocupar a maioria das horas do dia em uma atividade “séria”. Não basta que sejam as melhores horas, estamos obrigados a ocupar também a maioria delas. Oito ou nove horas por dia, no mínimo e com alguma sorte, estaremos ocupados com o vil metal e as prosaicas preocupações com o mingau nosso de cada dia, que Deus não nos dá, mas vende. Terminado o dia — já cansado e já vendo todas as portas descendo e todas pessoas entrando em seus ônibus — o escritor amador terá de fazer “atividades de divulgação”, tais como ir a escolas mostrar seus livros, ir a livrarias mascatear seu produto, ir a feiras, exposições, fantasias, mercados diversos. Deve também atualizar seu blogue, contactar seus contatos no Facebook e quejandos. Com alguma sorte ainda se lembrará da ideia que teve às nove da manhã e mal teve tempo de prender num pedaço de papel solto.

A terceira grande barreira é o tempo. O escritor, amador ou não, compete com uma série de outras coisas pela atenção de seu leitor. Algumas coisas são óbvias, como o nada. Não ler nada é sempre mais atraente, para muita gente, do que ler qualquer coisa. Ler cansa, ler é um saudável “exercício”. Mas se existe um público que supera esta barreira, o amador terá que vencer, antes de atingir a este grupo, uma série menos óbvia de coisas que competem pelo tempo do leitor possível: outros escritores, amadores e profissionais, inclusive os mortos de vários séculos, que continuam vendendo, e vendendo barato, graças a não cobrarem mais direitos autorais e serem exigidos em vestibulares e concursos, o que motiva grandes edições baratas, e geralmente porcas.

E o escritor amador, que já poderia se sentir um quase hércules por vencer estres três trabalhos que valem por doze, descobre, então, estupefato, que há quem ponha a culpa pela falta de leitura desse povo justamente nos escritores que são “elitistas”, que não “vão até onde o povo está” ou que não “divulgam ativamente o seu trabalho”.

Com todo respeito, gostaria de dizer algo a quem me diz isso: tudo é fácil para quem não tem de fazer. Eis o segredo do pensamento positivo ditado pelos gurus da auto-ajuda: falar é fácil. Tem quem ache gelo mole porque morde água.

Em um mundo ideal, costureiras costuram, construtores constroem, consertadores consertam. Mecânicos (pelo menos os idôneos) não saem pela rua “caçando oportunidades” para mostrar seu talento. Costureiras não saem de agulha e dedal à mão esperando vestidos rasgarem na rua. Construtores não passam perguntando se você não está precisando aumentar um puxadinho na casa. Escritores também não deveriam sair de livro na mão perguntando se alguém não quer ler suas histórias. Quem faz isso é pastor na praça, não autor. Não autor que se respeite. Não autor que se dê ao respeito.

Escritores deveriam, principalmente, escrever. Já existe muita coisa impedindo que o pobre do escritor amador escreva. Se ele sair pela rua rodando poesia pelas esquinas em busca de clientes isso lhe roubará tempo em que poderia estar produzindo, aprimorando, tornando-se melhor escritor.

Não recrimino quem mascateia o que escreve. Cada um sabe quanto pesa a sua cruz. Muitas vezes somos forçados a fazer coisas que não queremos ou que não deveríamos fazer, apenas pela necessidade do dinheiro. Quantas vezes um autor que anda pela rua montando banca para vender livro não pensou: “eu poderia estar em casa terminando aquele conto ou revisando aquela novela”. Mascatear pode ser bom para desovar uma caixa de livros, mas é tempo gasto em coisas secundárias.

Afinal, quem tem a responsabilidade de despertar o gosto pela leitura é a escola, quem tem que construir a identidade nacional é a sociedade e quem deve continuar a tradição da língua pátria é o povo. O escritor até pode querer fazer um pouco disso, como o passarinho da fábula, levando gotas d'água para apagar o incêndio da floresta. Mas não lhe exijam isso, amigos. Não ponham nas costas destas pessoas que vocês, de fato, não respeitam, a responsabilidade de tanta coisa. Em um mundo ideal haveria demanda por poesia. E os poetas não precisariam convencer as pessoas da necessidade de ler, mas da preferência de lê-los.


publicado por José Geraldo, às 09:00link do post | comentar
Este texto é parte do romance “A Casa no Fim do Mundo”, de William Hope Hodgson (1907), que estou traduzindo em capítulos semanais. Visite o Índice para lê-los em sequência.

Quanto tempo as nossas almas permaneceram nos braços da alegria eu não saberia dizer, mas subitamente eu fui despertado de minha felicidade por uma diminuição da pálida e suave claridade que iluminava o Mar do Sono. Olhei para o imenso globo branco, com a premonição de que problemas se aproximavam. Um de seus lados estava curvando para dentro, como se uma sombra negra e convexa estivesse passando sobre ele. Minha memória retornou. Fora assim que a escuridão chegara, antes da última vez em que nos separáramos. Olhei para meu amor, buscando entender. Com uma repentina percepção da desgraça iminente, notei o quanto ela se tornara lânguida e irreal, mesmo em tão breve momento. Sua voz parecia chegar-me de longe. O toque de suas mãos não era mais do que a suave pressão de uma brisa de verão, e se tornava cada vez menos perceptível.

Quase a metade do imenso globo já estava encoberta. Um desespero se apoderou de mim. Ela estaria por deixar-me? Ela teria de partir, tal como tivera de partir antes? Perguntei-lhe, ansiosa, receosamente, e ela se deitou mais em meu abraço, dizendo naquela estranha e distante voz que era imperativo que me deixasse, antes que o Sol da Escuridão — como ela o chamava — apagasse toda a luz. Diante de tal confirmação de meus temores, fui dominado pelo desespero e só consegui olhar, emudecido, através das calmas planícies do mar silencioso.

Quão rapidamente a escuridão se espalhou sobre a face do Globo Branco! Mesmo assim, na verdade, o tempo deve ter sido muito longo, além da compreensão humana.

Por fim, apenas um crescente de fogo pálido iluminava o Mar do Sono, então sombrio. Durante todo esse tempo ela me abraçara, mas com uma carícia tão suave que eu mal tinha consciência disso. Esperamos lá, juntos, ela e eu, sem nada dizer, tanta a tristeza. Na luz minguante a sua face parecia mesclar-se à penumbra da nebulosidade tardia que nos circundava.

Então, quando uma estreita linha curva de luz mortiça era tudo que ainda iluminava o mar, ela me soltou — empurrando-me para longe de si, ternamente. Sua voz soou em meus ouvidos: “Não posso permanecer mais, querido.” E terminou em um soluço.

Ela pareceu flutuar para longe de mim, e ficou invisível. Sua voz chegava até mim, de dentro das sombras, debilmente, parecendo vir de uma distância muito grande:

“Só um pouco mais…” E desapareceu, remotamente. Num piscar de olhos o Mar do Sono escureceu em uma noite. Longe, à minha esquerda, pareci ver, por um breve instante, um brilho pálido. Ele sumiu, e no mesmo instante dei-me conta de que não estava mais sobre o mar imóvel, mas outra vez suspenso no espaço infinito, com o Sol Verde — então eclipsado por uma esfera vasta e escura — aparecendo diante de mim.

Totalmente confuso, contemplei quase sem enxergar o anel de chamas verdes que saltava das bordas escuras. Mesmo no caos de meus pensamentos eu me maravilhava, estupefato, com as suas formas extraordinárias. Um tumulto de questões me assaltou. Pensei mais nela, que havia recentemente visto, do que na visão que tinha diante de mim. Meu luto e pensamentos sobre o futuro me preenchiam. Estaria condenado a viver separado dela para sempre? Mesmo nos antigos dias da Terra ela só fora minha por um tempo muito curto, e então me deixara, e eu temera que fosse para sempre. Desde então eu só a vira aquelas duas vezes, sobre o Mar do Sono.

Uma sensação de mágoa feroz me preencheu, trazendo questionamentos penosos. Por que eu não pudera partir com o meu Amor? Qual a razão de ficarmos separados? Por que eu tivera de esperar sozinho, enquanto ela dormitara através dos anos, no seio imóvel do Mar do Sono? O Mar do Sono! Meus pensamentos passaram, inconsequentemente, de seu caminho de amargura, a novas e desesperadas perguntas. Onde era ele? Onde estava? Eu parecia ter abandonado há pouco o meu Amor em sua superfície quieta, e ele sumira completamente. Não poderia, porém, estar longe! E o Globo Branco que eu vira oculto nas sombras do Sol da Escuridão! Meu olhar repousou sobre o Sol Verde — eclipsado. O que o eclipsara? Haveria uma vasta estrela morta orbitando-o? Seria o Sol Central — como eu me acostumara a chamá-lo — um sistema duplo? O pensamento me ocorrera, quase sem querer, mas por que não deveria ser assim?

Meus pensamentos retornaram ao Globo Branco. Estranho que ele fosse — eu me detive. Uma ideia me ocorrera subitamente. O Globo Branco e o Sol Verde! Seriam os dois o mesmo? Minha imaginação retrocedeu e eu me lembrei do globo luminoso pelo qual eu fora tão irresistivelmente atraído. Era curioso que eu lhe tivesse esquecido, mesmo momentaneamente. Onde estavam os outros? Pensei de novo no globo em que entrara. Pensei um pouco e as coisas ficaram mais claras. Compreendi que, ao entrar naquele glóbulo impalpável, eu tinha penetrado instantaneamente em alguma dimensão diferente e até então invisível. Nela o Sol Verde ainda estava visível, mas como uma estupenda esfera de luz branca pálida — quase como se o seu fantasma se mostrasse lá, não a sua parte material.

Meditei sobre o assunto por um longo tempo. Pensei em como, ao entrar na esfera, eu perdera imediatamente de vista todas as demais. Por um período ainda maior eu continuei a revolver os diferentes detalhes que ainda tinha em mente.

Meus pensamentos eventualmente se voltaram para outras coisas. Detive-me um pouco mais no presente e comecei a olhar em torno de mim, atentamente. Pela primeira vez notei que inumeráveis raios de um tom sutil de violeta cortavam em todas as direções aquela estranha semiescuridão. Eles radiavam da borda incendiária do Sol Verde. Pareciam aumentar a olhos vistos, de forma que logo pareciam incontáveis. A noite foi preenchida deles — que se espalhavam a partir do Sol Verde. Concluí que eu conseguia vê-los porque a glória do Sol estava bloqueada pelo eclipse. Eles se estendiam através do espaço até desaparecerem.

Gradualmente, enquanto eu observava, percebi que minúsculos pontos de luz intensamente brilhante cruzavam os raios. Muitos deles pareciam viajar desde o Sol Verde até a distância. Outros provinham do vácuo, em direção ao Sol; mas cada um deles sempre se mantinha estritamente dentro do raio em que viajava. Sua velocidade era inconcebivelmente grande, e era somente quando se aproximavam do Sol Verde, ou quando o deixavam, é que eu podia vê-los como pontos de luz definidos. Afastados do sol, eles se tornavam finas linhas de fogo vívido dentro do violeta.

A descoberta de tais raios, e das faíscas que neles se moviam, interessou-me sobremaneira. Para onde iam, em tal incontável profusão? Pensei nos mundos do espaço… e tais faíscas! Mensageiros! Possivelmente, a ideia era fantástica, mas eu não tinha noção do quanto o era. Mensageiros! Mensageiros do Sol Central!

A ideia evoluiu por si, lentamente. Seria o Sol Verde o lar de alguma inteligência vastíssima? O pensamento era desafiador. Visões do Inominável surgiram, vagamente. Teria eu, de fato, chegado à habitação do Eterno? Por um momento eu repeli tal pensamento, emudecido. Era estupendo demais. Mesmo assim…

Imensos e vagos pensamentos tinham nascido dentro de mim. Senti-me súbita e terrivelmente nu. E uma terrível proximidade me abalou.

E o Paraíso…! Seria uma ilusão?

Meus pensamentos surgiam e partiam erraticamente. O Mar do Sono… e ela! Paraíso… Voltei de súbito ao presente. De algum lugar no vácuo, por detrás de mim, vinha um imenso corpo escuro, enorme e silencioso. Era uma estrela morta, que se atirava no cemitério das estrelas. Ela passou entre mim e os dois Sóis Centrais, ocultando-os de minha visão e mergulhando-me em uma noite impenetrável.

Uma eternidade depois eu vi outra vez os raios violáceos. Um tempo enorme depois — talvez eras — um brilho circular apareceu no céu, à frente, e eu vi a borda da estrela que se afastava, negramente contra ele. Assim eu soube que ela estava se aproximando dos dois Sóis Centrais. Então eu vi o anel brilhante do Sol Verde mostrar-se claramente contra a noite. A estrela tinha entrado na sombra do Sol Morto. Depois disso eu somente esperei. Os estranhos anos continuaram silenciosamente, e eu continuei vigiando atentamente.

Aquilo que eu tinha esperado aconteceu por fim — subitamente, horrivelmente. Um jorro vasto de ofuscante luz. Uma explosão de chamas brancas escorrendo pelo vácuo escuro. Por um tempo indefinido ela ergueu-se — um gigantesco cogumelo de fogo.1 Parou de crescer. Então, à medida em que o tempo passou, começou a cair de volta, lentamente. Eu vi, então, que se transformou em um enorme ponto luminoso próximo ao entro do disco do Sol Escuro. Poderosas chamas ainda se erguiam dele. Mas, apesar de seu tamanho, o túmulo daquela estrela não tinha mais que o brilho de Júpiter sobre a face do oceano, comparado à inconcebível massa do Sol Morto.

Devo relembrar aqui, mais uma vez, que não há palavras para jamais mostrar à imaginação o enorme tamanho dos dois Sóis Centrais.

1É curioso que Hodgson, escrevendo em 1907, em uma época na qual grandes explosões ainda eram uma rara novidade, que praticamente ninguém tinha visto, tenha tido a capacidade de antever que uma explosão de grandes, cósmicas proporções, teria o formato de um cogumelo — Nota do Tradutor.


28
Ago 11
publicado por José Geraldo, às 19:20link do post | comentar | ver comentários (4)

A falta de profundidade é uma necessidade quando se escreve para pôr no Orkut, onde textos mais complexos geram comentários depreciativos de pessoas que os consideram… complexos demais. Felizmente já há um bom tempo em que eu não levo o Orkut tão a sério e brindo-o apenas com meus rascunhos, para talvez detectar pontos potenciais que possam ser melhorados.

Cheguei a essa conclusão porque entendi que os leitores daqui não apreciarão o que eu escrevo de jeito nenhum. Nem quando eu estiver dentro do tema, nem quando estiver fora, nem quando o texto for complexo, nem quando for simples, nem quando eu tiver levado quatro meses escrevendo, feito revisão e usado leitores-beta, nem quando tiver escrito em sete minutos e postado assim mesmo (como foi o caso desse). Não sei se isso é por eu um dia ter sido moderador da NEB, ou talvez por eu tentar dar ao meu texto uma seriedade e um caráter tradicional, ou por talvez não ser loiro o bastante, ou por não me chamar Johnny…

Um dos problemas aqui do Orkut é a falta de profundidade. As pessoas querem o infinito em trinta segundos. Querem o impoderável em vinte gramas. Querem o indescritível em poucas palavras. Porém há coisas que não cabem aqui, ou cabem mal. Tolice é tentar pegar o martelo e fazer caber. Alguns já nascem no tamanho certo, outros não vão aceitar encolher, outros não conseguirão esticar.

O outro problema é que nem todos que aqui estão se adequam. Eu, por exemplo, não me adequo. Eu sou um dinossauro, sou do tempo da máquina de escrever e do mimeógrafo. Sou do tempo do telex e da loja de fotocópia. Tenho arquivos datilografados ainda. Tenho uma biblioteca em casa. Desconfio do Kindle e de outros quejandos. Eu ainda uso palavras como “quejandos” — e as pessoas me acham pretensioso por escrever assim, sendo que isso é natural para mim.

Enfim, desde o final do ano passado que eu já sabia que esses concursos nunca funcionariam para mim. Amadores julgando sempre tenderão a colocar o nível de excelência próximo do nível que conseguem. Por isso as apreciações feitas pelos grandes nomes da literatura costumam ser surpreendentemente diferente das feitas pelos críticos de jornalão e por isso a opinião da crítica diverge da opinião pública.

Todo concurso é furado, isso todo mundo sabe. Envolve interesses que vão além da mera “qualidade literária” (conceito que por si só já é discutível). Esse ano, por exemplo, teve o “Escândalo do Jabuti”, no qual Chico Buarque ganhou o Grande Prêmio sem ter vencido nenhuma categoria, por exemplo, o que acabou levando a Editora Record a retirar-se de futuras edições do prêmio, em protesto. E nunca custa lembrar que Fernando Pessoa não venceu o único concurso que disputou em vida…

Não que eu me considere um autor desse naipe todo, mas com certeza não alimento de ilusões de que concursos serão o caminho através do qual obterei “reconhecimento” e “carreira artística”. Muito menos um concurso de Orkut, no qual existem pressões muitos novas (para mim) e muito diferentes do tipo de demanda a que a literatura tradicional estaria preparada (e minha literatura é bastante tradicional).

E fica pior quando você considera que o Orkut encolhe a cada dia em termos de qualidade (para quem não lembra, leia “a diferença entre crescer, inflar e inchar”, um artigo provocativo que eu pus no meu blog há quase um ano). As comunidades não andam tão vibrantes quanto já foram, nem mesmo esta. E nos outros sites de relacionamento as coisas não fluem como um dia fluíram por aqui.

Talvez seja o momento de reconhecer que, como diz meu amigo Ronaldo Roque, “ninguém mais lê ninguém, só por obrigação”.


27
Ago 11
publicado por José Geraldo, às 17:40link do post | comentar

Amanheci com náuseas. Não é infrequente que isso aconteça comigo: mesmo depois de ter removida a vesícula eu ainda passo por esses perrengues ocasionais. Especialmente depois de comer chocolate, ou frituras. Mas quem disse que eu vou deixar de comer um belo pastel de queijo só por causa de um fígado? Pois é, rendi-me à gula e amanheci mareado como um marujo de primeira viagem.

Só não vomitei. Talvez tenha sido o meu azar: os males materiais, tanto quanto os espirituais, nos deixam de atormentar quanto “postos para fora”. Uma confissão de culpa, um pedido de perdão, uma diarreia ou um berro pelo Juca. Todas são formas de purificação.

Mas melhorei um pouco depois de tomar um sal de fruta e um comprimido para enjoo e fui trabalhar. Má ideia, má ideia. Passei a manhã com calafrios, uma ligeira dor de cabeça, dificuldade para ficar de pé sem tontear e uma vaga vontade de algo que eu não sabia o que poderia ser. Lá pelas onze e quarenta da manhã eu desisti. Antes de sair para almoçar comuniquei ao gerente que eu positivamente não estava bem e que estava indo ao médico.

Sexta-feira, puxa vida! Coisa mais difícil é achar médico hoje! A não ser pelos que estão nos plantões, os outros certamente já estão viajando ou então com consultórios lotados. Mas tudo bem, para isso existe o pronto socorro e eu não estou exatamente morrendo neste momento. Depois de me certificar que a carteirinha do plano de saúde estava no bolso, encarei a subida.

Disse “subida” porque o hospital é conveniente situado no alto de um morro bem alto. Quem não tem dinheiro para táxi só chega lá se for de ambulância ou a pé, subindo uma escadaria maior que a que Jacó sonhou que levava ao céu. Pelo menos é o que você sente quando está passando mal e tentando galgar aqueles malditos degraus. Eu poderia ter ido de táxi, mas meu orgulho macho me impedia de pagar oito reais para um deslocamento de apenas duzentos e vinte e metros, ainda que fosse praticamente na vertical.

Meu primeiro desafio foi adivinha onde deveria me apresentar para o atendimento. Cada vez que venho aqui me indicam uma porta diferente. São apenas duas entradas, mas eu consigo sempre escolher da primeira vez a porta errada. Não é curioso isso? Parece que, como a maioria dos humanos, eu só faço a coisa certa depois de esgotadas as outras possibilidades. Pensando bem o mundo seria um lugar melhor se não houvesse tantas opções…

Eu já mal conseguia falar quando entreguei meus documentos para a recepcionista. Por sorte ela conseguiu compreender os meus grunhidos. Ou talvez ela apenas tenha tido a inteligência de imaginar que eu estava ali procurando atendimento. Digo “inteligência” porque houve outras vezes e lugares em que eu não tive a sorte de ser compreendido com tanta facilidade.

Esperei cerca de duas revistas semanais inteiras. Duas vezes me apresentei de novo ao balcão, para espanto da recepcionista: “Mas você não foi atendido ainda? Aguarde só mais um momento que eu vou verificar se o Doutor já pode recebê-lo”. Mesmo com vontade de vomitar no saguão eu conseguia achar estranho que ela colocasse os pronomes com tanta competência.

Por fim me vi diante do médico. Imagino que ele deve encarar umas trinta pessoas por semana sentindo o mesmo que eu. Para um médico experiente certos males devem quase deixar uma etiqueta na testa do paciente. Pálido, esverdeado, reclamando dor de cabeça, querendo vomitar mas não conseguindo, zonzo.

— Muito bem, meu filho, você comeu alguma coisa estranha ontem?

— Lembro vagamente de ter comido um pastel de queijo, doutor.

Ele me recriminou com um olhar penetrante:

— Foi só isso?

Diante da argúcia quase sacerdotal daquele homem eu tive de confessar:

— Também uns biscoitos recheados de chocolate. Mea culpa, mea grandissima culpa.

— Você devia saber que não deve abusar. Seu fígado não aguenta tudo isso, meu filho.

Ele rabiscou seus hieróglifos nos formulários e me indicou a uma enfermeira. Ela, porém, se limitou a me instalar em uma cama na enfermaria. Deitei-me ainda calçado de sapatos, com a gravata afrouxada, a carteira no bolso da camisa, o relógio no braço, o celular no bolso esquerdo da calça e o chaveiro no direito.

Longos minutos depois apareceu um enfermeiro para me pôr no soro. Não gostei. De alguma forma sempre acho que as agulhadas dadas pelas enfermeiras doem menos. Ele até que tentou facilitar as coisas, contando umas piadinhas e tentando fingir que me conhecia de algum lugar, mas eu quase lhe mandei para aquele lugar quando ele enfiou a agulha no dorso da mão. Detesto agulhas, detesto injeção, detesto soro, detesto coleta de amostras, detesto tudo isso. E não detesto por frescura, mas por excessivo costume.

Ele queria também que eu mijasse num potinho para fazer o exame de urina. Confesso que nunca na minha vida mijei na frente de um homem. Deve ter tido uma vez ou duas em que fiz isso diante de uma mulher — e nem assim gostei. De qualquer forma eu não tinha nada na bexiga ainda, porque meu estômago andava tão embrulhado que até água me fazia enjoar. Ele então me disse que voltaria quinze minutos depois para colher sangue e eu teria uma segunda chance. Não me empolguei com essa perspectiva.

Não foi ele que voltou, foi um enfermeiro com cara de lutador de jiu-jitsu. O tamanho do braço do cara me fez tremer mais do que o meu fígado empesteado. Só de pensar que seria ele a colher amostra do meu sangue eu tive vontade de levantar da cama, dizer que já estava bom e rolar morro abaixo até em casa.

Meu braço esquerdo estava com o soro, por isso ele resolveu fazer a coleta no direito. Como a cama ficava encostada na parede e a posição ficava meio desajeitada, ele resolveu o problema simplesmente eguendo-a, comigo em cima, e deslocando um metro para o lado, sem sequer fazer careta. Depois disso pegou a seringa e se preparou para coletar o sangue. Eu devia estar passando mal a ponto de estar fora de meu juízo, pois nesse momento ao escrever eu tenho mais medo do que senti na cena ao vivo. Mas ele tinha uma mão surpreendentemente leve, e colheu o sangue sem que eu quase sentisse. Muita mocinha bonita de sorriso meigo me causou mais dor do que aquele homem que erguera uma cama de ferro com meus cem quilos em cima. Mesmo assim, quando ele me perguntou se eu já estava pronto para a amostra de urina eu disse que não. Jurei que não. Por nada nesse mundo admitiria que sim.

O soro estava previsto para vinte minutos. Durou quarenta e cinco. Em parte porque eu mesmo, prevendo que iam demorar a me visitar de novo, fui ajustando as gotas para diminuírem de ritmo. Mas acabei cochilando e quando acordei o meu sangue havia subido até a metade do tubo. Não havia campainha ali, nem qualquer meio para chamar socorro. Fechei rapidamente o torniquete e levantei da cama para buscar alguém. O corredor da enfermaria estava vazio, a não ser por dois pedreiros fazendo uma reforma. Alguns pacientes e seus acompanhantes murmuravam nos outros quartos.

Deitei de novo, por alguns minutos, e então a bexiga começou a me incomodar. Olhei no relógio, já eram quase duas horas da tarde, o soro tinha acabado quase quarenta minutos antes. Peguei o potinho de plástico e me arrastei até o banheiro carregando o poste do soro. Urinei uma amostra e tentei acertar o resto no vaso, mas molhei a mão, o pote, o tubo de soro e o meu sapato. E ainda sobrou um pouco para a cueca. Sempre sobra. Lavei as mãos na pia, tentei limpar a calça e não me incomodei nem com o inalcançável sapato e nem com o tubo do soro.

Então me dirigi ao balcão, onde a enfermeira distraída preenchia uma ficha. Eu tinha chamado tantas vezes e ela não me ouvira. Por sorte meu caso não era grave, ou ela só teria ouvido o choro da família no dia seguinte. Entreguei-lhe o pote todo molhado de urina, com a metade de um sorriso no rosto. Uma doce vingança. Ela me fuzilou com os olhos e eu comecei a ter dificuldades para segurar o resto do riso.

No meio do caminho até o quarto encontrei o primeiro enfermeiro, o que me pusera no soro. Ao ver minha situação ele me pediu calma e disse que iria logo me tirar daquela situação. O “logo” demorou quase um quarto de hora. Mas enfim ele tirou a agulha da minha mão, não sem outro xingamento abafado de minha parte.

O doutor estava ocupado. Me pediram que aguardasse, pois o exame de sangue ficaria logo pronto. Dentro de uma hora mais ou menos eu saberia se não estava com dengue ou alguma “virose” e poderia ir para casa. Ainda estava enjoado, bastante enjoado, e sentia uma forte dor de cabeça. Mas tudo isso acompanhado de uma sonolência intensa, e a cabeça não doía quando eu fechava os olhos. A consequência natural desse conjunto de sintomas foi eu dormir logo, tão logo me vi sem soro no braço para me incomodar. Aninhei-me no leito em posição fetal e dormi de babar na fronha do travesseiro.

Quando acordei a luz mortiça do entardecer entrava obliquamente pela janela. Pardais chilreavam nas árvores próximas à janela. Assustei-me com a hora. Será que me fariam passar a noite? Saí ao corredor em busca de respostas e fiquei ainda mais estupefato de saber que ninguém da turma que me atendera estava ainda por lá. O médico era outro, inclusive um velho conhecido meu, as enfermeiras eram outras. Eles me viram até com certa surpresa, como se eu fosse uma espécie de aparição. Por um momento eu tive a vaga impressão de que eles não sabiam quem eu era e o que eu estava fazendo ali. Se eu não estivesse amarrotado da soneca eles talvez achassem que eu estava chegando. Ou talvez ainda assim achassem, pois bêbados costumam chegar amarrotados.

Depois que me expliquei com o médico, quase pedindo desculpas, ele finalmente achou meu prontuário, mas não conseguiu saber o que fazer comigo. Não sei se foi porque não leu os hieróglifos do outro ou se os registros estavam incompletos. Os exames ainda não estavam prontos àquela hora, ou estavam, não sei. Ele tampouco. Chamou-me ao consultório, mediu-me a pressão e a temperatura e me fez algumas perguntas, sempre insistindo em perguntar se eu estava me sentindo bem, afinal. Respondi que sim em duas das três vezes e ele concluiu, então, que eu devia ir embora.

Saí pela porta da frente do hospital, cambaleando como quem sai de uma festa sozinho. Desci o morro com cuidado para não tropeçar e enfim cheguei em casa. Houve um tempo em que morar perto do hospital já foi considerado um conforto. Tomei um banho rápido, porque ainda me sentia tonto de ficar em pé, e caí na cama para dormir ainda mais. Quem me curou foi o tempo: amanheci melhor no dia seguinte.


26
Ago 11
publicado por José Geraldo, às 20:36link do post | comentar

Eduardo Galeano — jornalista, cartunista e escritor uruguaio — publicou uma série de coisas que sonhava acontecessem no mundo após a virada do século. Considerando a natureza da prosa deste autor, o tipo de coisa que ele sonhava não é inesperado; mas para muitos soará estranho, pois há os que pensam que este autor se limitou às Veias Abertas da América Latina, obra que a esquerda toma como bíblia e a direita renega como se fosse um grimório satânico. Por causa do peso deste livro (que tinha a intenção de realmente pesar) o resto da obra onírica de Galeano às vezes passa despercebida, ao meu ver imerecidamente.

No texto em questão, publicado ainda quando este século era distante, o autor uruguaio tentou nos pintar um mundo onde os sinais estivessem trocados, e de uma forma estranha o texto nos deixa com a sensação de que uma inversão total de valores nos faria mais felizes. Da impossibilidade de tal feito ter lugar, surge-nos a dúvida filosófica: afinal, somos felizes como somos?

O texto original de Galeano pode ser conferido aqui. De minha parte, resolvi fazer um aparte ao que ele escreveu, e adicionar alguns itens, remover outros, reescrever alguns, resultando no seguinte:

No meu mundo ideal os automóveis seriam atropelados pelas pessoas e teriam de refugiar-se, temerosos, nas ruas afogadas por calçadas que cada vez se alargam mais. O ar seria poluído apenas pelo perfume das árvores e pelo cheiro das moças. As pessoas não seriam possuídas por seus bens, nem programadas por seus computadores, nem compradas pelos mercados nem observadas pela televisão. Que, aliás, seria tão importante nas casas quanto o ferro de passar ou a lavadora de roupas. As pessoas não trabalhariam para ganhar o seu sustento, mas para sustentar os seus sonhos. Não se prenderia nunca aos que recusassem servir às Forças Armadas, mas aos que sonhassem servir. Prostitutos seriam apenas os que sentissem prazer na promiscuidade. Seria incompreensível mencionar que certos conceitos seriam incompreensíveis para certos povos. Loucos seriam chamados aqueles que negassem aos outros o direito de viver suas loucuras. Nenhuma pessoa teria crédito por dizer-se representante de Deus, a ponto de dizer aos outros o que fazer e o que não fazer. As pessoas sentiriam saudades apenas de coisas e seres que conheceram, e não de animais e seres extintos pela ganância humana. A polícia serviria para proteger ao povo, e não para proteger o governo do povo. E todos viveríamos cada dia como se fosse simultaneamente o primeiro e último.


25
Ago 11
publicado por José Geraldo, às 21:15link do post | comentar | ver comentários (3)

Antes de começar a efetivamente postar o texto de meu próximo romance aqui, vou fazer alguns comentários sobre a natureza da obra, seus objetivos, suas características e o modo como vou disponibilizá-la. Isto é necessário para que o leitor não caia de paraquedas no texto e fique perdido. Futuramente, ainda, esta página servirá de índice dos capítulos, tal como fiz na tradução da “Casa no Fim do Mundo” (título de que me arrependo: a versão definitiva, que vou fazer em e-book deverá se chamar “A Casa Sobre a Fronteira”).

“Serra da Estrela” é um romance do gênero fantástico que emprega os personagens e a imagística do folclore brasileiro (mais especificamente do estado de Minas Gerais) para tentar construir um efeito de “terror sobrenatural“ semelhante ao obtido por autores como H. P. Lovecraft, Stephen King e outros clássicos do terror americano. Contrariamente a outros projetos meus, “Serra da Estrela” foi concebido desde o começo como uma obra de intenções “comerciais”, no sentido de que ele procura atingir um público grande e jovem.1

A história está integralmente ambientada em um pequeno trecho do estado, entre as regiões da Zona da Mata Mineira e do Campo das Vertentes: dali se originam os personagens, ali se passa toda a ação “real” e ali se encontra o ponto de partida para a ação “surreal” — que de certa forma também se localiza ali. Quem quiser ter uma ideia geral do conceito, pode usar a mini-novela em três partes A Cabana ao Pé da Montanha como uma introdução. “Serra da Estrela” procura desenvolver o mesmo universo sobrenatural, com algumas adições e improvisos, e possivelmente recorrerá a um ou dois dos personagens que ali aparecem (mais provavelmente a mulher de negro) e certamente empregará um ou dois locais onde a ação deste conto se passa.2 Um outro conto que pode ser útil como introdução ao mesmo conceito é Inocência Assassina, de onde retirei a protagonista.3

Entre os personagens haverá pelo menos quatro de natureza sobrenatural: a mula-sem-cabeça, o lobisomem, a iara e um que eu mesmo inventei a partir do imaginário popular europeu, mas cuja existência eu não pude atestar no folclore mineiro. Dos quatro, a mula-sem-cabeça será o mais destacado, talvez até ganhando o status de “protagonista” da história, mas o lobisomem também terá seu valor. Para preparar-me para escrever sobre os dois eu fiz uma razoável pesquisa e cheguei a escrever dois breves ensaios sobre eles (as ligações que incluí).

Eu já tenho desenvolvida até agora a personalidade e os conflitos de pelo menos oito personagens (incluindo três capítulos inteiros inéditos), mas justamente me falta acabar de alinhavar as suas histórias. Digo isto porque, contrariamente aos meus dois primeiros romances, este será bem complexo. “Praia do Sossego” e “Amores Mortos” se caracterizavam por ter um personagem central, que mantinha sempre o foco da história. Um narrador em terceira pessoa não onisciente os acompanhava e os demais personagens só tinham vida à medida em que interagiam com o protagonista. Em “Serra da Estrela” não será assim. Acompanharei quatro as “vidas”4 de quatro mulheres diferentes até que se entrelacem (as vidas, não as mulheres, embora isso não esteja inteiramente descartado…) e durante a maior parte do tempo as quatro linhas serão independentes. Poderão eventualmente tocar-se (as vidas, não as mulheres, repito, mas isso não está fora de questão…), mas seguiram cursos independentes, possivelmente sem chegar a um final comum, pois o assunto central do romance não é um personagem e sua vida, mas um lugar e as coisas que nele acontecem.

Capítulo 1: Língua GeralCapítulo 2: Estrada Estreita, Trilho AntigoCapítulo 3: A Porteira do Mundo

Outro aspecto diferente em relação a este projeto é ele ser uma obra ainda grandemente aberta: ainda com menos de 20% do texto necessário para concluir o projeto (que deverá fechar com pelo menos 350/400 páginas). Isto significa que eu ainda acolherei sugestões e comentários que me pareçam interessantes, preferencialmente feitos por pessoas que vivam no interior de Minas Gerais5 ou que sejam especialistas em folclore.

1 A intenção comercial, no caso, se explica pelo desejo de sensibilizar a juventude de hoje para a viabilidade do imaginário nacional como fonte para a cultura pop, combatendo a americanização dos leitores que se formam hoje em dia lendo best seller.

2 No entanto, que fique bem claro que a ação de “A Cabana…” não tem nada a ver com a ação de “Serra da Estrela”. No máximo pode-se dize que a ação desta noveleta se passa posteriormente em relação aos fatos narrados no romance.

3 Ainda não sei como vou encaixar a ação deste conto no contexto do romance, mas eventualmente ele se tornará parte de “Serra da Estrela”, tal como “Memórias de um Cafajeste” se tornou parte de “Amores Mortos”, meu romance inédito.

4 Fica difícil usar literalmente o termo “vida” para os quatro casos, como o leitor eventualmente perceberá.

5 Estou muito interessado em histórias de fantasmas e criaturas legendárias do estado de Minas Gerais. Disposto até ao ponto de ir entrevistar pessoas que se dispunham a me contar suas histórias para eu escrevê-las.


24
Ago 11
publicado por José Geraldo, às 20:39link do post | comentar

Caro leitor, tenho de confessar, tem dias que me dá uma vontade estranha de esquecer o inglês! Lembro-me das palavras da velha Dolly Pentreath — que eu nunca conheci e cuja voz jamais ouvi — em seu leito de morte, gemendo para as paredes Me ne vidn kewsel Sowsnek! Me ne vidn kewsel Sowsnek! Como ela eu também gemo para as minhas paredes, com séculos de antecipação, que não quero ser obrigado a falar o inglês! Temo que meu brado seja em vão, mas eu vou ainda assim dar os meus resmungos, na esperança de alguns que me ouçam transformem este incômodo em um murmúrio audível.

As pessoas dão um valor excessivo ao inglês. Tem gente demais exibindo “tinturas” de inglês, tal feiticeiros murmurando abracadabras em línguas mortas. As pessoas esperam dar “cor cosmopolita” aos seus blogues, com a ajuda de alguns bye-bye e de alguns títulos traduzidos com o dicionário. Muitas dessas pessoas nem sabem que dentro de algumas décadas poderão estar sendo obrigadas a estudar chinês, árabe ou, se as coisas derem certo para nós, português!

Eu não gosto das pessoas que vão na onda. Surfe nunca foi meu protótipo de esporte favorito. Se é verdade que os que ficam no caminho da história são pisoteados por ela, nada é tão belo quanto um “tank man” em sua Praça da Paz Celestial. A tragédia cômica dos quixotes possui maior grandeza do que o sucesso obsceno dos vendidos. São os vilões que se vendem, e heróis sempre morrem no fim. Mesmo assim você não lê o ciclo arturiano torcendo por Mordred e nem assiste uma encenação de Hamlet torcendo pelo rei Cláudio.

Por isso, caríssimo leitor, que me sinto incomodado com a invasão inglesa que vai por este país. Incomoda-me que eu tenha tido que escrever este texto com a ajuda de pelo menos um anglicismo porque ninguém sabe dizer “tank man” em português, não de uma forma evocativa. Penso que no futuro haverá cada vez mais termos que não poderão ser perfeitamente expressos em nossa língua, tal como, num distante passado, nossos caipiras achavam que certos conceitos não poderiam ser expressos em tupi. Amigos, temo que o português brasileiro seja o tupi do futuro.


23
Ago 11
publicado por José Geraldo, às 09:00link do post | comentar
Este texto é parte do romance “A Casa no Fim do Mundo”, de William Hope Hodgson (1907), que estou traduzindo em capítulos semanais. Visite o Índice para lê-los em sequência.

Por um momento minha mente foi preenchida por muitos pensamentos, de forma que eu fui incapaz de fazer qualquer coisa a não ser contemplar às cegas o que havia diante de mim. Eu parecia submerso em um mar de dúvidas e espanto e lembranças tristes.

Foi só mais tarde que deixei a minha estupefação. Olhei em torno, ainda confuso. Então tive uma visão tão extraordinária que, por um instante, mal pude crer que não estava mais perdido nas visões tumultuadas de meus pensamentos. Do verde reinante havia surgido um rio ilimitado de globos que cintilavam suavemente — cada um deles envolto em um velo maravilhoso de nuvens puras. Eles se estendiam, tanto acima quanto abaixo de mim, até uma distância desconhecida, e não apenas ocultavam o brilho do Sol Verde como forneciam, em seu lugar, uma luminosidade terna que se difundia em torno de mim, tal como nunca vira, antes ou vi depois.

Logo em seguida notei que havia em torno de tais esferas uma espécie de transparência, quase como se elas fossem formadas de cristais, dentro dos quais brilhava uma radiação sutil e contida. Elas se moviam através de mim continuamente, flutuando adiante a uma velocidade não muito grande, como se tivessem toda a eternidade diante de si. Por um longo tempo eu contemplei e não pude perceber um fim para elas. Às vezes eu parecia distinguir faces em meio à nebulosidade, mas estranhamente indistintas, como se fossem parcialmente reais e parcialmente formadas da névoa através da qual se mostravam.

Por um longo tempo eu esperei passivamente, com uma sensação de contentamento crescente. Eu não tinha mais aquela impressão de inexprimível solidão, em vez disso eu me sentia como se estivesse menos só do que estivera por vários kalpas1 de anos. Este sensação de contentamento aumentou tanto que eu teria ficado satisfeito de flutuar em companhia daqueles glóbulos celestiais para sempre.

Eras se passaram, e eu passei a ver as faces sombrias com frequência crescente, e também com mais definição. Se isso se devia a minha alma ter ficado mais em sintonia com seu ambiente, isso eu não posso dizer — mas provavelmente foi por isso. Mas, sendo assim ou não, naquele momento eu só tive a certeza do fato de que eu estava me tornando constantemente mais consciente de um novo mistério ao meu redor, que me sugeria que, na verdade, eu havia penetrado as fronteiras de alguma região inimaginável, algum lugar ou forma sutil e intangível de existência.

A enorme torrente de esferas luminosas continuava passando por mim a uma frequência invariável, incontáveis milhões, e ainda continuava, sem mostrar sinais de estar por terminar, ou mesmo diminuir.

Então, quando estava sendo silenciosamente levado pelo éter inefável, senti uma atração súbita e irresistível na direção de um dos globos que passavam. Num instante eu me vi ao lado dele. Então eu deslizei para dentro, sem experimentar a menor resistência, ou qualquer discrição. Por um breve momento eu não pude ver nada, e esperei curiosamente.

De repente eu tomei consciência de um som que rompia a imobilidade inconcebível. Era como o murmúrio de um grande mar calmo, um mar que respirava em seu sono. Gradualmente a névoa que obscurecia a minha visão começou a se dissipar e eu finalmente repousei a minha vista sobre a silenciosa superfície do Mar do Sono.

Por um instante eu contemplei e mal pude crer que estava vendo corretamente. Olhei em torno. Lá estava o grande globo de fogo pálido, nadando, como o vira antes, a uma curta distância acima do horizonte embaçado. À minha esquerda, longe dentro do mar, eu descobri então uma linha débil, como uma cerração fina, que eu acreditei ser a margem, onde eu e meu Amor nos havíamos encontrado durante um daqueles maravilhosos períodos de vagar da alma que me haviam sido concedidos nos velhos dias da terra.

Uma outra memória, uma bem perturbadora, me veio também: da Coisa Disforme que havia assombrado as margens do Mar do Sono.2 O guardião daquele lugar silencioso e sem ecos. Estes e outros detalhes eu lembrei, e soube sem dúvida que estava olhando para o mesmo mar. Com a certeza, fui preenchido por uma sensação de total surpresa, alegria e tensa expectativa, imaginando que talvez estivesse por ver o meu Amor outra vez. Atentamente olhei em volta, mas não pude ver sinal dela. Por isso eu me senti momentaneamente sem esperanças. Ferventemente orei e procurei ansiosamente por ela… Como o mar estava inerte!

Abaixo, bem abaixo de mim, eu podia ver as inúmeras trilhas de fogo variável que haviam me chamado a atenção da outra vez. Vagamente eu me perguntei o que as causaria, e também me lembrei que tinha pensado em perguntar delas à minha Querida, bem como muitos outros assuntos… e tinha sido forçado a deixá-la antes de lhe dizer a metade do que gostaria de ter-lhe dito.

Meus pensamentos me retornaram de um salto. Eu percebi que algo me havia tocado. Virei-me rapidamente. Ó Deus, Tu foste realmente misericordioso! Era Ela! Ela me olhou nos olhos, com um olhar desejoso, e olhei para ela com toda a minha alma. Eu gostaria de tê-la abraçado, mas a pureza gloriosa de sua face me manteve afastado. Então, de dentro da névoa ventosa, ela estendeu seus queridos braços. Seu sussurro chegou até mim, suave como o ruído de uma nuvem que passa. “Querido!” foi o que ela disse. Isto foi tudo, mas eu a ovuira, e por um momento eu a tive em meus braços — como havia rezado para ter — para sempre.

Ela logo falou de muitas coisas, e eu a ouvi. Eu teria voluntariamente feito isso através de todas as eras que ainda passariam. Às vezes eu sussurrava-lhe uma resposta, e as minhas palavras traziam-lhe à face do espírito outra vez um tom indescritivelmente delicado, o florescer do amor. Depois eu falei mais à vontade, e ela ouviu cada palavra e respondeu, deliciosamente, de forma que eu me sentia realmente no Paraíso.

Ela e eu, e nada mais a não ser o vácuo silencioso do espaço para nos ver, e somente as quietas águas do Mar do Sono para ouvir-nos.

Muito antes a multidão flutuante de esferas envoltas em nuvens tinha desaparecido no nada. Assim, nos contemplava apenas a face das profundezas sonolentas, e estávamos sós. A sós, Deus!, e eu bem gostaria de ter estado assim sozinho no além, e nunca me sentiria solitário! Eu a tinha, e mais do que isso, ela tinha-me. É, o meu eu envelhecido pelas eras. E com tal pensamento, e alguns outros, eu espero existir através dos poucos anos que ainda podem estar entre nós.3

1 No Hinduísmo e no Budismo, o termo kalpa é usado para denominar uma era. No Hinduísmo, “kalpa” é o “dia de Brahma” e dura 4,32 bilhões de anos. No Budismo são definidos quatro tipos de “kalpas”, com duração variável, e a extensão total do mais longo deles vai além da duração concebível do próprio universo, atingindo 1,28 trilhões de anos. Considerando que o “kalpa” menor duraria cerca de cem anos apenas, fica difícil imaginar que espaço de tempo estava sendo referido pelo narrador neste ponto. Aparentemente estes termos eram razoavelmente conhecidos pelo público leitor de Hodgson; ou ele esperava que fossem, pois empregou a palavra sem deixar nenhuma nota de rodapé explicando seu significado — Nota do Tradutor.

2 Hodgson optou por truncar a narração do Capítulo XIV, de forma que boa parte dos acontecimentos a que o narrador se refere como tendo acontecido no Mar do Sono são ainda desconhecidos para o leitor — Nota do Tradutor.

3 Este capítulo encerra a chave de uma parte muito significativa do universo ficcional de William Hope Hodgson. Como vemos, ele propunha uma ficção que incorporava a ciência (ainda que a ciência que ele usou esteja hoje obsoleta) e certos conceitos religiosos. Aqui temos uma proposição de que a alma do ser humano é realmente uma entidade separada do corpo físico, imortal e que preserva a inteligência e a memória do indivíduo. Junte-se a isso a frequencia com que o personagem ora, e as repetidas evocações do nome de Deus, e percebemos que o autor era profundamente religioso, e possivelmente via em sua obra uma tentativa legítima de reimaginar a mitologia escatológica das religiões num contexto científico. O sucesso de tal empreitada, cabe ao leitor e à crítica definir — Nota do Tradutor.


22
Ago 11
publicado por José Geraldo, às 14:04link do post | comentar | ver comentários (1)

Hoje é Dia do Folclore. Não temos muito o que comemorar, infelizmente, se considerarmos que os nossos jovens estão cada vez mais alienados em relação às nossas tradições. Resolvi, porém, começar a fazer a minha pequena parte quanto a isso. Começando esta semana e durante os próximos meses, encerrando no Dia do Folclore do ano que vem, publicarei em capítulos semanais o meu romance « Serra da Estrela », que tem por assunto os personagens fantásticos de nosso folclore. Até o momento atual, com 30% do texto já feito, tenho uma mula sem cabeça (protagonista), um lobisomem (personagem importante), uma iara (personagem coadjuvante) e uma Mulher de Branco.

As postagens serão sempre nas quintas-feiras, que é dia de mula sem cabeça, é é claro.


21
Ago 11
publicado por José Geraldo, às 09:15link do post | comentar | ver comentários (1)

Há algum tempo, decidi separar deste blog algumas postagens que eu havia feito e que tinham temas mais polêmicos, como política, ceticismo, filosofia, etc. Meu objetivo era evitar que assuntos desagradáveis afastassem potenciais leitores. Um amigo virtual me havia dito:

Por mais organizado que o seu blog possa ser, e ele o é, sempre parece um pouco frustrante visitá-lo porque ele tem assuntos demais. Você publica contos, fala sobre literatura, argumenta sobre política, etc. Não se pode fazer tudo ao mesmo tempo. Os leitores gostam de blogs que são previsíveis. Ninguém quer entrar num blog de contos e achar lá poesias ou entrar num blog literário e ali encontrar uma arenga política ou ainda entrar num blog político e achar ali um texto de ficção piegas.

Na época eu achei este argumento muito forte, e executei a remoção das postagens sensíveis. Porém, passado algum tempo, eu fico com a impressão de que cometi um erro. Para começar, é muito tênue a linha entre um texto literário e um texto meramente polêmico, não literário. Algumas postagens do outro blog estariam melhor neste do que algumas postagens que acabaram chegando aqui. E ninguém parece estar deixando de acessar o “Letras Elétricas” por causa destas polêmicas. Pelo contrário: a média de visitas por dia tem crescido constantemente e agora está batendo nos 20 leitores diários. Considero um número significativo para um blog que ontem fez um ano e que ainda por cima é de literatura. Mais de cem comentários (quase 150 se forem adicionados os comentários do outro blog).

Ainda mais, ter mais de um blog é um transtorno maior do que eu supunha. Especialmente se o outro blog está em outra plataforma (no caso, Wordpress). Eu simplesmente não gostei do Wordpress de jeito nenhum e acabei nem atualizando o blog lá com a mesma frequência por causada dificuldade de interagir.

Um fator adicional é que eu cada vez menos me dedico a escrever sobre temas não literários (e os poucos textos que escrevo acabam sendo próximos da literatura). Desta forma, ter um blog exclusivo sobre política acaba me parecendo até pretensioso.

Face a tudo isso, estou me preparando para mesclar de novo as postagens e unificar tudo que escrevo em um lugar só. Ainda vou, é claro, ouvir algumas opiniões, mas já até importei as postagens do “Arapucas Libertárias” para um blog secreto, onde as estou silenciosamente editando para que fiquem no mesmo padrão tipográfico do “Letras Elétricas”. Gostaria que alguns de meus leitores opinassem sobre o caso, tanto contra quanto a favor. Não que eu vá seguir o conselho que mais me agrade, mas é sempre bom avaliar as reações. Quem quiser conhecer o blog mais “político”, ele está aqui.

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