Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
20
Ago 11
publicado por José Geraldo, às 16:35link do post | comentar | ver comentários (1)

O narcisista é alguém que se mira em um espelho turvo e prefere mudar a si mesmo para ajustar o reflexo, em vez de trocar de espelho.

As mulheres não sabem disso: mas os homens que elas querem conquistar são muito menos exigentes do que a opinião de suas amigas.

Piada fresquinha recebida via Google Plus, de um americano preocupado com a economia:

A economia vai tão mal que eu recebi pelo correio um cartão de crédito previamente cancelado. Os empresários estão jogando mini-golfe. As grandes empresas já demitiram mais de 25 deputados. Angelina Jolie adotou uma criança estadunidense. A casa da luz vermelha apagou a lâmpada. Agora uma imagem vale apenas 800 palavras. Mudaram o nome de Wall Street para Wall Mart. Desesperado, comecei a pensar em suicídio, e então liguei para o cvv. O call center ficava no Paquistão e quando eu disse que estava pensando em me matar o sujeito do outro lado ficou excitado e começou a me perguntar se eu sabia dirigir caminhão…

Se uma mulher reclama que o homem nao viu o que ela fez com o cabelo, isso deveria ser um ótimo sinal (para ela) de que nós não estamos assim tão interessados em mulheres perfeitas quanto elas acham que estamos.

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publicado por José Geraldo, às 09:15link do post | comentar

Há exatamente um ano eu divulgava este humilde blogue pelas fendas e crateras da blogosfera feroz e catava meus primeiros centavos de AdSense. Há exatamente um ano eu começava uma impressionante tarefa de transcrever no blogger quase toda a minha produção ficcional curta e boa parte de minha poética (e não poética).

Para comemorar a efeméride (vá lá no dicionário, meu filho!) eu passo a citar os números que acumulei ao longo destes doze meses, que são estes a seguir:

  • 5.931 visitas, por 2.924 visitantes exclusivos
  • 13.613 visualizações de página
  • 12h 36min 09s de tempo total de visita
  • R$ 9,60 do AdSense
  • 87 comentários, de 45 pessoas diferentes
  • 324 postagens (média de 28 postagens por mês ou de oito postagens cada 9 dias)
  • Meus visitantes usaram 12 navegadores diferentes (com o Firefox representando pouco mais da metade)
  • Navegadores rodando em 8 sistemas operacionais diferentes (sendo o Windows responsável por 60% do total)
  • A percentagem de usuários com resolução de tela igual ou inferior a 800x600 caiu abaixo de 1%
  • 94,95% dos meus visitantes residem ou estavam localizados em território brasileiro (nada surpreendente), mas houve visitas provenientes de 29 países diferentes, entre eles Filipinas, Japão, Uzbequistão, Nova Zelândia, Índia e Itália
  • 40% dos visitantes provenientes de Minas Gerais e 22% de São Paulo.
  • A cidade que mais me visita é Belo Horizonte, sozinha contribuindo com 22% das visitas totais.
  • O país estrangeiro que mais me visita é Portugal, com 3% do total de visitas.

Adicionalmente, notei alguns números surpreendentes, como a derrocada do Internet Explorer como navegador preferido (globalmente apenas 18% dos visitantes o usam, lembrando que ele já chegou a ter 95% do mercado) e a presença estranhamente forte do Linux, com saudáveis 34% do mercado. Linux é um ótimo sistema operacional, mas eu me surpreendo ao ver tanta gente usando.


19
Ago 11
publicado por José Geraldo, às 23:45link do post | comentar

Não estou conseguindo dormir. Deve ser sexta ou sétima vez só nesse mês. Minha mãe diz que passo tempo demais correndo solto por aí, vendo coisas que não devia e conversando com espíritos-de-porco. Se eu fosse viver de acordo com a vontade dela, ficaria trancado no porão mais fundo, sem uma vez sequer sair para ver a lua. Porém eu não sou um bicho medroso, gosto do frio da noite, do cheiro do ar limpo, do calor das pessoas.

Quando não consigo dormir, como hoje, começa a me dar uma aflição imensa e fica difícil continuar deitado, olhando para nada. Deixo todo mundo em seus sonhos tranquilos e saio. Quando volto a minha mãe está desesperada como se fosse sempre a primeira vez: “ Você ainda não sabe o que acontece lá fora? É perigoso! ”

Pode ser verdade. Na verdade tenho certeza que é. Mas se ficar trancado também corro um perigo: o perigo de que passe a eternidade e eu não viva nada! Só queria saber de onde me vem toda essa insônia, que está ficando sempre mais frequente, a cada mês. Não há perigo maior que esse.

Hoje é a primeira vez que tenho coragem de lhe falar, moça. Custei muito para isso, porque não a entendo. Você é estrangeira aqui, sua língua soa diferente, distante, mas ainda assim eu a entendo, embora não saiba como repetir. Aliás, nem sei se está me entendo. Parece que sim, porque sente o ritmo da minha indecisão e reage aos pequenos desastres que eu cometo, sempre que tento ser cavalheiresco. Eu tento, moça, mas somos diferentes demais, talvez a minha educação lhe ofenda, talvez a minha agressividade lhe agrade.

Eu acho curioso que você não me conheça. Esse bairro é tão pequeno, os habitantes daqui se conhecem quase todos. O bairro lá de baixo, na cidade nova, está cheio de espírito cosmopolita e moderno, mas este lugar aqui é tranquilo e familiar. Tem dias que até parece que faz mil anos que nenhuma família nova muda, então todos estamos acostumados uns com os outros. Não sei se você sabe, mas algumas pessoas aqui têm medo de você, muito medo. Eles se incomodam quando você vem, mas eu gosto, não me importo.

Não, não ria. Nós somos desconfiados. Não somos amados, isso faz com que nos isolemos. Você não me reconhece, mas você eu já conheço, sua vida já faz parte da minha há meses. Você vem sempre, eu sempre a sigo pelas ruas aí, admirando sua beleza. Só nunca ousava falar.

Posso lhe dizer uma coisa? Acho que é por sua causa que não consigo mais dormir. Como me deitar e esquecer a vida, sabendo que uma moça linda que nem você está perambulando por aí, nesse bairro perigoso, exposta a tudo quanto é coisa ruim que a gente costuma fazer? Não sei se você sabe, mas eu já a livrei de uma ou duas coisas que lhe aconteceriam.

Não, não espero gratidão por isso. Gratidão é um sentimento vil, uma reação de covardes. Prefiro que você me pague de alguma forma e não me deva nada. Não lhe fiz pensando em nenhum grande benefício. Só você não ter fugido de mim hoje já foi um pagamento suficiente, me mostrou que existe alguma maneira de interagirmos, apesar dos dois mundos diferentes em que nós estamos.

Mas no fundo, bem no fundo, o que eu gostaria era que você, que aqui vem tantas vezes sem nunca nos pedir licença, me desse a licença de ir com você, entrar em sua casa, dormir um dia lá.

Oh, não! Não vá ainda embora, moça! A sua companhia dá vida a esse lugar. A sua presença me empresta calor, me faz ver um sentido, afinal, na minha existência vagorosa e vazia. Não, não se vá. E não vá rindo, porque sei que não é de alegria esse riso, mas de escárnio. Minha voz é a de um velho, moça, meu peito está cheio de idade e de trevas, mas não me julgue pela profundidade do escuro de meus olhos, deixe que eu lhe mostre o vigor que resta dentro de mim, porque no mundo em que eu vivo eu ainda sou um jovem, como você!

Não, perdoe-me! Fui afoito demais, minhas mãos às vezes são brutas e bruscas demais para tua carne tão delicada. Não, não se deixe ainda, é do seu calor que eu mais preciso! Oh, desastrado que sou! Não voltarás! Oh, desastrado que sou, talvez não chegues! Tome pelo menos esta ficha, procure um orelhão, chame alguém que lhe socorra, antes que o sangue se desate todo e você morra! Oh, claro! Fichas! Pobre diabo que sou! Apenas fuja, haverá um carro de aluguel ao pé do morro! Vá, não voltes! Oh, desastrado que sou! Não a mereço.

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18
Ago 11
publicado por José Geraldo, às 19:11link do post | comentar | ver comentários (2)
Esta tem sido a semana em que os meus amigos blogueiros andaram escrevendo coisas que eu mesmo queria ter escrito. Isto pode ser um sério indício de que eu devo escrever mais, ou de que estou perdendo a mão. Mas não perco a esportiva e enfio outra louvação a uma postagem alheia, desta vez do José Abrão.

Não conheço José Abrão pessoalmente. Sei que ele se intitula um “estudante de classe média, goiano do pé rachado e fã de rock'n'roll. Aspirante a jornalista e futuro escritor best-seller”. Ele também é o autor de um blog que leva o fofucho título de “Vida besta e ordinária”. Apesar de sua tendência a gastar caracteres demais escrevendo sobre histórias em quadrinhos de super herois, o cara é bom no que faz e ocasionalmente nos brinda com textos de fazer arregalar o olho. Foi o caso esta semana. O texto em questão se chama Achados e Perdidos e foi publicado no dia sete, mas só o li hoje.

Se o Ronaldo Brito Roque já havia atiçado o meu lado de auto-ajuda ao escrever seu irônico texto intitulado O Melhor, o Pior e o Médio; José completou avassaladoramente o serviço com o seu curioso conto sobre o misterioso aparecimento de corações em um sisudo escritório. A história é muito menos sofisticada no terreno da imagística e Zé Abrão é menos hábil com a língua portuguesa do que o “macaco velho” do Ronaldo Roque, mas ele tem mais talento para narrar com agilidade e dá ao seu texto uma certa indignação que é mais parecida com o meu próprio estilo, além de ser também mais convincente de sua própria visão de mundo. Por isso eu digo que, se em ambos os casos eu gostaria de ter escrito estes textos, eu tenho a impressão mais forte de que poderia ter escrito o texto do Zé Abrão. Não devido a qualquer comparação de “qualidade” (conceito que eu considero bastante fluido quando se fala de arte), mas devido à convergência de estilos que há entre a prosa deste mineiro calçado de botinas e bebedor de cachaça e os causos urbanos do goiano de pé rachado e fã de rock'n'roll. Nós que vivemos imersos no interior temos um linguajar que nos aproxima através dos planaltos e morros, e de certa forma Goiânia está mais perto de mim do que o Rio de Janeiro.

As pessoas que apreciarem o conto eletrizante sobre os corações psicodélicos do Zé Abrão, talvez encontrem pontos de contato em uma série de contos niilistas que eu escrevi entre 2009 e 2010 e que contém, entre outros, A Pilastra (uma história sobre uma artista frustrada que enfrenta a falta de poesia em sua vida), O Salário da Perseverança (que também é, a exemplo de Achados e Perdidos, um texto sobre a desumanização das pessoas através do trabalho), O Pecado da Tristeza (que é sobre depressão e a exigência de ser feliz em um mundo despreparado para lidar com a melancolia) e Uma Foto Infeliz (também sobre a desumanização das pessoas através do trabalho, só que desta vez visto sob o ângulo do conflito entre a vida pessoal e a profissional). Especialmente o segundo e o último são quase irmãos do conto do Zé Abrão.

Por outro lado, os que apreciarem o biscoito fino da prosa delicada do Ronaldo Roque, especialmente a sua verve satírica, talvez achem motivo para gostar de Multiplicai-vos e Crescei ou de Chega de Anjos, ou ainda de Fausto de Souza. O primeiro é uma crítica falida à falida moral burguesa. Certamente é um texto datado, mas a data é recente. Leiam-no enquanto o tema ainda não está vencido. Os outros dois são mais experimentais e talvez tenham um prazo de validade mais equivalente ao leite de caixinha do que ao “barriga-mole”. Chega de Anjos puxa um distante fio machadiano, acrescenta fartas doses de vodca e cachaça, depois dá um banho e faz tomar mingau de fubá com couve. Inicialmente fora concebido como uma brincadeira que certo dono de comunidades do Orkut tinha em usar referências angelicais nos títulos de suas obras inacabadas, mas hoje disso nada restou. Fausto de Souza, por sua vez, é uma versão modernizada (e mineirizada) da célebre história concebida por algum escritor famoso do século XVIII que este ignorante aqui não sabe quem é e está com preguiça de ir pesquisar na Wikipédia.

E assim eu termino o meu post de quinta-feira, elogiando dois caras que merecem elogios e tirando uma casquinha para ressuscitar bons textos meus que vocês que me leem talvez nem conheçam porque esses ficam escondidos nas brumas do passado. Se ao menos o blogger tivesse um jeito de apresentar uma lista das páginas por categoria!


17
Ago 11
publicado por José Geraldo, às 18:00link do post | comentar

Ontem meu amigo Ronaldo Brito Roque, uma dessas inexplicáveis criaturas de Cataguases, brindou aos seus seletos leitores com um texto que realmente é destes que me dá vontade de ter escrito. Tenho isso, às vezes: leio alguma coisa e penso comigo que eu precisava ter sido o autor daquilo. O texto em questão é um delicioso conto sobre um restaurante que só serve três pratos; intitulados “o melhor”, “o médio” e “o pior”; e as reações dos fregueses a tal estranho cardápio.

Nas mãos de um reles autor de auto-ajuda isto provavelmente redundaria num texto de estilo parecido ao das “correntes de e-mail” que pululam na Internet, com uma moral bem tosca e óbvia ao final, para nos fazer ter algum tipo pasteurizado de “iluminação”. Mas Ronaldo Brito Roque não é um autor de tal naipe, mas um ironista hábil, que reduz a pó qualquer intenção moralista, e o texto termina mais fazendo troça do que ensinando.

Existem, claro, algumas falhas no texto. Especialmente o final, que poderia ter sido o melhor,* mas foi apenas o médio. Mas a habilidade do autor em evitar a pieguice faz com que o andamento geral da história recaia na sátira, e não na parábola filosófico-religiosa-self-service que agrada às massas.

Não vou falar muito mais sobre o texto, vou deixar que vocês o saboreiem com cuidado, e que se perguntem quantas vezes na vida não se contentaram em pôr umas alcaparras por cima de algo medíocre, torcendo para o cliente não saber reconhecer o melhor que você pode fazer.

*Pergunta-me o autor deste texto: “mas, afinal, de que forma você teria escrito o final?” É uma pergunta justa, tanto quanto é difícil de responder. É sempre muito mais fácil detectar algo “errado” do que sugerir o melhor conserto. Séculos antes da invenção do remédio a medicina já tinha o diagnóstico. Acredito que eu teria feito um final mais cético, no qual o cozinheiro não desse nenhuma lição de moral do tipo auto-confiança, valorização de si próprio, etc. Faltou ao cozinheiro um pouco mais de desprezo pelos fregueses. Não que uma dose extra de desprezo tornasse o texto mais crível. Literatura não tem que ser crível. Tem, aliás, que ser incrível. Coisas críveis eu leio nos jornais. Refiro-me apenas que tal atitude tornaria o todo mais harmônico. Pelo menos em minha modesta opinião.


16
Ago 11
publicado por José Geraldo, às 09:00link do post | comentar
Este texto é parte do romance “A Casa no Fim do Mundo”, de William Hope Hodgson (1907), que estou traduzindo em capítulos semanais. Visite o Índice para lê-los em sequência.

Desde o arcobotante,1 onde estiveram as janelas através das quais eu contemplara aquela primeira aurora fatal, eu podia ver que o sol estava incomensuravelmente maior do que era quando a Estrela iluminara o mundo pela primeira vez. Estava tão grande que o seu limite inferior parecia quase tocar o horizonte distante. Enquanto eu olhava eu imaginava até que ele se aproximava. A radiância verde que iluminava a terra congelada crescia constantemente em brilho.

Desta forma as coisas permaneceriam por um longo tempo. Então, de repente, eu vi que o sol estava mudando de forma, e ficando menor, tal como a lua o fazia nos tempos passados. Em um instante apenas um terço de sua parte iluminada estava voltada para a terra. A Estrela perfurava o céu à esquerda.

Gradualmente, à medida em que o mundo se movia, a Estrela brilhou sobre o frontão da casa, mais uma vez, enquanto o sol se mostrava apenas como um grande arco de fogo verde. No que pareceu apenas um instante o sol sumiu. A Estrela ainda estava completamente visível. Então a terra entrou na sombra preta do sol, e tudo voltou a ser noite… Uma noite negra, sem estrelas e intolerável.

Tomado por pensamentos tumultuosos, observei através da noite… esperando. Anos, talvez, e então, na casa escura por detrás de mim, o silêncio coagulado do mundo se rompeu. Pareceu-me ouvir um pisar suave de muitos pés e o débil som de sussurros inarticulados cresceu em meus sentidos. Eu olhei em torno através da escuridão e vi uma multidão de olhos. Enquanto eu os olhava eles cresceram e pareceram aproximar-se de mim. Por um instante eu permaneci parado, incapaz de mover-me. Então um horrível ruído suíno2 ergueu-se na noite e eu, com isso, saltei pela janela, para dentro do mundo congelado. Tenho a confusa lembrança de ter corrido um pouco e, depois disso, de ter apenas esperado… esperado. Várias vezes ouvi berros, mas sempre parecendo à distância. Exceto por tais sons eu não tinha ideia da direção onde se localizava a casa. O tempo avançava. E eu tinha consciência de pouca coisa, a não ser de uma sensação de frio, desespero e medo.

Uma eternidade depois, pelo que me pareceu, surgiu um ligeiro calor, que antecipou a luz que se aproximava. Então — como uma réstia de glória extraterrena — o primeiro raio da Estrela Verde feriu a borda do sol escuro e iluminou o mundo. Ele recaiu sobre uma grande estrutura arruinada, a uns duzentos metros de distância. Era a casa. Contemplando-a, pude ver algo assustador: sobre suas paredes esgueirava-se uma legião de Coisas profanas, quase recobrindo o velho edifício, das torres instáveis às fundações. Eu as pude ver claramente: eram as Coisas Suínas.

O mundo se movia na direção da luz da Estrela eu eu percebia então que ela parecia abranger quase um quarto do firmamento. A glória de sua luz lívida era tão tremenda que ela parecia encher o céu de labaredas tremulantes. Então eu vi o sol. Ele estava tão próximo que metade de seu diâmetro ficava abaixo do horizonte, e à medida em que o mundo circundava sua face, ele parecia erguer-se contra o céu como uma estupenda cúpula de fogo esmeraldino. De tempo em tempo eu olhava para a casa, mas as Coisas Suínas pareciam alheias à minha proximidade.

Anos pareceram passar-se, lentamente. A terra tinha praticamente chegado ao centro do disco solar. A luz do Sol Verde — como ele já merecia ser chamado — brilhava através dos interstícios que cravejavam as paredes castigadas da velha casa, dando-lhe a aparência de estar envolta em chamas verdes. As Coisas Suínas ainda se esgueiravam pelas paredes.

Subitamente, ergueu-se de lá um troar de vozes suínas, e do centro da casa, já sem teto, subiu uma vasta coluna de chamas encarnadas. Eu vi as pequenas e tortas torres e vigias brilhar no fogo, embora ainda preservassem sua curvatura torta. Os raios do Sol verde atingiam a casa e se misturavam com essa luz lúgubre, dando lugar a uma fornalha fulgurante de fogo verde e vermelho.

Fascinado eu observei, até ser subjugado por uma sensação de perigo iminente que me chamou a atenção. Olhei para cima e logo pude perceber que o sol estava mais perto, tão perto, na verdade, que parecia pairar sobre todo o mundo. Então — não sei como — eu fui puxado para cima até alturas estranhas, flutuando como uma bolha através daquela fulguração horrível.

Abaixo de mim eu vi a terra, com a casa em chamas sendo tomada por uma montanha de chamas cada vez maior. Ao redor dela o chão parecia estar esquentando, e em certos pontos pesadas fumarolas amarelas subiam da terra. Parecia que o mundo estava sendo aceso por aquele mancha pestilenta de fogo. Eu mal podia ver as Coisas Suínas. Elas pareciam praticamente ilesas. Então o chão pareceu abrir-se, subitamente, e a casa, com toda a sua carga de criaturas imundas, desapareceu nas profundezas da terra, produzindo uma nuvem estranha cor de sangue que subiu até as alturas. Lembrei-me então do infernal Abismo que havia debaixo da casa.

Pouco depois eu olhei à minha volta. O corpo enorme do sol se erguia acima de mim. A distância entre ele e a terra diminuia rapidamente. Subitamente a terra pareceu saltar para a frente. Em um instante ela atravessou o espaço até o sol. Eu não ouvi nenhum som, mas da face do sol foi expelida uma língua de chamas fascinantes. Ela pareceu saltar quase até o diante Sol Verde, brevemente cortando a luz esmeralda, uma verdadeira catarata de fogo ofuscante. Ela chegou ao seu limite e caiu de volta sobre o sol, deixando uma vasta mancha de fogo branco: a sepultura da terra.

O sol estava muito perto de mim, então. Porém eu notei que estava me distanciando dele até que, por fim, passava acima dele, no vazio. O Sol Verde estava tão grande que seu tamanho parecia preencher todo o céu à minha frente. Olhei para baixo e vi que o sol estava passando exatamente abaixo de mim.

Um ano pode ter se passado — ou um século — e eu permaneci sozinho, suspenso. O sol aparecia ao longe — uma massa negra circular contra o esplendor derretido do grande Orbe Verde. Próximo à borda eu vi o surgimento de um brilho lúgubre, marcando o lugar onde a Terra caíra. Com isso eu soube que o sol, há muito tempo morto, ainda estava girando, embora muito lentamente.

À minha direita, na distância, eu parecia ver, às vezes, um fraco brilho de uma luz branquicenta. Por muito tempo eu estive inseguro se devia considerar isso uma impressão apenas. Então, por um momento, eu olhei com inquietação renovada, até ver que não era nada imaginário, mas algo real. Tornou-se mais brilhante e então deslizou detrás do verde um pálido globo do branco mais suave. Ele se aproximava, e eu vi que estava aparentemente cercado por um mando de nuvens que luziam calmamente. O tempo passou…

Olhei na direção do sol que diminuía. Ele aparecia aparenas como uma mancha escura na face do Sol Verde. Enquanto o olhava, vi que se tornava cada vez menor, constantemente, como se corresse na direção do orbe superior a uma velocidade imensa. Atentamente eu o contemplei. O que aconteceria? Eu tinha consciência de extraordinárias emoções, ao compreender que ele atingiria o Sol Verde. Ele se tornou, então, menor do que uma ervilha e eu olhava, com toda a minha alma, para testemunhar o destino final de nosso Sistema — esse sistema que havia levada o mundo através de tantas e incontáveis eras, com sua multidão de alegrias e tristezas, e que então…

Subitamente algo cruzou minha visão, bloqueando a visão de qualquer vestígio do espetáculo a que eu assistia com todo o interesse de minha alma. O que houve com o sol morto eu não sei, mas não tenho razão — à luz do que vi depois — para duvidar que ele caiu no fogo estranho do Grande Sol, e ali pereceu.

Então, subitamente, uma pergunta extraordinária surgiu em minha mente, se não seria aquele estupendo globo de fogo verde o vasto Sol Central3 — o grande sol em torno do qual o nosso universo e incontáveis outros revolvem. Senti-me confuso. Pensei no provável fim do sol morto, e uma outra sugestão me veio, tolamente: farão as estrelas do Sol Verde a sua sepultura? Esta ideia não me pareceu nada grotesca, mas como algo não somente possível como provável.

1. Em construções de estilo gótico (como parece ser o caso da estranha casa em que se passa esta história), o arcobotante é uma estrutura exterior que serve de apoio ou contraforte para paredes massivas ou abóbadas. Trata-se de uma espécie de arco de círculo que repousa no chão. Evidentemente os arcobotantes não possuem janelas, mas as paredes pesadas que eles escoram certamente que sim, então o autor provavelmene se refere ao fato de estar vendo através dos arcobotantes depois que as janelas (e talvez as próprias paredes) deixaram de existir por causa do progressivo desmoronamento do edifício — Nota do Tradutor.

2. A respeito da propagação de sons, ver nota no capítulo xviii — Nota do Editor.

3. À luz do conjunto da obra de Hodgson, este conceito que aqui aparece pode ser uma menção à ideia de Deus. Não como um ser dotado de personalidade, claro — Nota do Tradutor.


15
Ago 11
publicado por José Geraldo, às 22:20link do post | comentar
Um conto pessimista escrito em 2003, em homenagem a um melhor amigo real, que não quebrou um braço, mas disse algumas das coisas que o personagem expressa.

O meu melhor amigo voltou das férias ontem com um braço quebrado.‭ ‬Ninguém ainda parece haver notado nada de estranho nisso,‭ ‬como se férias normalmente quebrassem ossos.‭ ‬Mas eu não me contenho de perguntar por que motivo alguém voltaria do litoral com um membro na tipóia.‭ ‬Nada porém que me leve a romper o silêncio que ele,‭ ‬por motivos certamente justos,‭ ‬está mantendo.

Hoje à tarde eu fui visitá-lo.‭ ‬Encontrei-o regando as flores da irmã no pequeno canteiro nos fundos de casa.‭ ‬No momento em que entrei,‭ ‬mal o reconheci:‭ ‬normalmente as pessoas voltam mesmo estranhas de suas férias,‭ ‬mas ele tinha algo mais.

‎— ‏Está difícil voltar àquela‭ ‬vida de antes,‭ ‬meu amigo.

Aproveitei a deixa e perguntei o porquê do braço.‭ ‬Ele riu pragmático e respondeu que se me contasse a verdade não teria mais nenhuma graça,‭ ‬pois havia sido algo bem comum e idiota.

— ‏Não foram as férias que me quebraram os ossos e nem é o meu braço que me dói nesse momento.

Ele me olhou com um assomo de sorriso no canto externo do olho.

— ‏Sinto-me prostituído cada vez que me sento naquela cadeira.‭ ‬E o pior é que eu não consigo me desligar da lembrança do violão.‭ ‬Trabalhar fica difícil sem sonhos para fazer a gente esquecer esta desgraça que é viver nesta merda de mundo.‭ ‬Jogar tudo para o alto e começar de novo é algo que já assusta quando se passou dos trinta anos.‭ ‬Daí para frente alguém aceita ser violado até nos últimos princípios em nome de uma falsa segurança.‭ ‬É aí que o homem descobre que deixou seus sonhos no sereno e eles foram roubados enquanto dormia.

Para quê eu tentaria convencer o meu amigo de algo que não creio eu‭? ‬Derrapando na curva dos trinta tristes anos eu olho para trás com amargura e lamento a festa a que não fui,‭ ‬os beijos que não dei,‭ ‬as oportunidades que passaram por mim sem que eu me arrojasse.‭ ‬E principalmente lamento estar vivendo na casa de minha mãe e estar vivendo neste mundo de meu Deus onde já não se faz mais música e nem amores como antigamente.

O meu amigo sabe,‭ ‬como eu,‭ ‬que é tarde para lutar pelos velhos sonhos.‭ ‬Ele já não será o astro que quis ser e eu pressinto que nunca fui ou serei o escritor que o menino do interior ambicionava ser.‭ ‬Ou simplesmente estamos convencidos dessas coisas.‭ ‬Não há um Sistema para culpar,‭ ‬não houve conspiração alguma além da própria vida contra nós…

Não vamos nascer de novo e nem vamos descobrir uma outra vida um belo dia.‭ ‬Estávamos armados de falsas ilusões que se perderam em fumaça e agora eu cultivo uma barriga iniciante enquanto me prostituo em‭ ‬ particulares.‭ ‬O meu amigo tem mais sorte:‭ ‬rega flores e se senta atrás da mesa de uma repartição pública.

Mas não nos está sendo fácil exorcizar o violão e o livro.


14
Ago 11
publicado por José Geraldo, às 19:38link do post | comentar
Crônica escrita originalmente em 2005 para o primeiro site que eu criei, hoje perdido nas trevas da web.

Escrever contos é uma atividade das mais prazerosas, se bem que difícil. Para mim especialmente, escrever histórias sempre foi — mais que um mero requinte — um objetivo que eu sentia essencial, um desafio de caráter quase pessoal a que me propus desde que escrevi meu primeiro poema sobre a “Chuva” (1988, perdido).

No entanto, foram necessários muitos anos até que minhas primeiras tentativas bem-sucedidas viessem à luz. Esta demora deveu-se, em parte, à minha convicção de que escrever histórias era extremamente difícil e demandava muito tempo — coisa que absolutamente não tinha para gastar.

Meus primeiros contos só foram escritos à época da revista trem azul, em 1997, por insistência de meu parceiro na edição, Emerson Cardoso. Dos que escrevi naquela época, só sobreviveram ao meu perfeccionismo os que publiquei. Todos os demais eu desprezei ou submeti a tantas mudanças que já não posso dizer que são os mesmos que escrevi naquela época.

Aliás, é justamente essa coisa de querer estar sempre reescrevendo e melhorando cada coisa que escrevo a maior dificuldade ao meu progresso como autor de ficção: simplesmente não consigo deixar um texto na gaveta sabendo que não está bom. Acredito que minha relação com meus textos seria menos severa se eu os publicasse: a publicação precoce eliminaria não só o excessivo pudor que tenho deles como também ajudaria a libertar-me deste tormento de querer torná-los perfeitos.

Em parte esta obsessão sempre se referiu ao fato de eu ter tido a impressão de que minhas primeiras narrações dependiam profundamente do trabalho do Emerson. Acontece que, embora eu goste do que ele escreve, vejo nele um caráter antiquado e algo “palavroso”: ele não é um narrador formado, ele não tem uma técnica definida, apenas talento. Além disso, eu não tive sobre minha ficção nenhuma influência decisivamente inspiradora como aconteceu com minha poesia, que cresceu sob os auspícios de Renato Russo, Manuel Bandeira, Roger Waters e — mais tarde — Neil Peart. Influências contraditórias, que definem o meu [parco] estilo.

Foi preciso que eu lesse e evoluísse muito até que meu estilo se tornasse próprio. Mas, de certo modo, eu ainda acho que minha ficção é um tanto primitiva. Tanto no mau sentido, de sua precariedade de inspiração e de execução, como no bom, não ser mero pastiche de autores conhecidos.


13
Ago 11
publicado por José Geraldo, às 15:32link do post | comentar | ver comentários (3)

“Severo Snape” (nome fictício) era proprietário de uma empresa que ia razoavelmente bem. Era, no entanto, dotado de um ego maior do que sua grandeza e de uma insegurança que lhe obrigava a reinar sozinho. Por isso tratava de aproveitar-se do poder de todas as formas, submetendo seus empregados a um regime de intimidação e represálias, cuja principal finalidade era impedir que algum deles se destacasse mais que o proprietário. Era também amante de três funcionárias (e supostamente de um funcionário também). Seus relacionamentos se misturavam ao serviço, pois dava privilégios a quem lhe dava e distribuía todo tipo de benesses e influências e aumentos de forma a privilegiar seus protegidos.

Como o clima na empresa era ruim, a rotatividade dos funcionários era alta. Toda semana havia alguém que não aguentava e se demitia ou não suportava mais e era demitido. Toda semana chegavam novos funcionários e a empresa ia seguindo. Não crescia, mas continuava. Ela era grande o bastante para ser atraente e havia sempre jovens ingênuos dispostos a entrar. Não perdia dinheiro, mas faturava menos do que poderia.

Um dia Severo desapareceu. Surgiram boatos de que teria sido forçado a vender a empresa para pagar dívidas. Reapareceu dias depois, usando o humilde uniforme dos auxiliares de escritório, para espanto de todo mundo. Que obra do destino obrigara o antigo ogro a arranjar um emprego reles na própria empresa que um dia fora sua?

Os primeiros dias foram de incredulidade. Ninguém acreditava que fosse verdade. Na surdina todos comentavam com cem por cento de certeza informações de que tudo não passava de uma farsa. Mas à medida em que foram se acostumando com a situação, os empregados começaram a se sentir mais à vontade. Mesmo os mais céticos passaram a duvidar do ceticismo. Por fim, algumas das vítimas do tirano caído aproveitaram para ir à forra do, xingando-lhe de nomes ou armando-lhe arapucas diversas. As suas amantes se recusaram: sem o dinheiro o homem está reduzido à sua idade e à sua feiúra. Seus poucos amigos, embora inicialmente fieis, começaram a ficar incomodados com o fato de que, mesmo empobrecido, ainda esperava ser tratado com a mesma deferência de antes, chegando ao cúmulo do “você sabe com quem está falando?”. Como antes, quando obtinha o respeito pelo terror.

Depois de nove dias o clima na empresa era de balbúrdia. Todas as regras um dia estabelecidas por Severo eram ativamente quebradas. A disciplina tinha desaparecido. Para tentar defender a empresa os diretores amigos de Severo tiveram que tomar atitudes com as quais ele não poderia concordar, uma delas dizer que se ele não se enquadrasse como empregado e fizesse o seu serviço teria de ser demitido.

Foi outra semana de caos generalizado. Mas, enfim, as coisas pareciam encaminhar-se para uma solução. Então, subitamente, ele apareceu na cadeira da presidência de novo.

Começou a caça às bruxas. Demissões em massa. A linha de montagem ficou paralisada por falta de braços enquanto eram contratados novos empregados, ou treinaods em suas funções. Diretores foram escorraçados simplesmente porque não haviam sido subservientes ao auxiliar de escritório Severo durante as três semanas.

«Eu fiz tudo isso para testar quem seria fiel a mim na adversidade — ele dizia — e descobri que ninguém foi.»

Sozinho em sua sala, sem amantes e sem amigos, Severo voltou a tiranizar a empresa, sem se importar se isso era bom ou não para os negócios. Na sua solidão a própria sobrevivência do negócio se tornava secundária. A conjuntura não lhe dizia nada, apenas acreditava que tudo ficaria bem no fim:

«Meu negócio cresce sozinho. Essa empresa ganha dinheiro praticamente sem precisar fazer nada.»

Ao fim de dois anos a empresa hoje possui imensos estoques de produtos que ninguém quer comprar, a sede está cada vez mais arruinada e pouca gente aparece para realmente trabalhar. Severo não vai à linha de produção, apenas crê que os milhares de empregados registrados estão fazendo bons produtos e os novos diretores, raramente presentes, estão sempre em viagem de negócios, fazendo preciosos contatos.

Alguém lhe recomendou que usasse óculos, ele finalmente acreditou que poderia estar enxergando errado, e saiu pela porta da fábrica um dia, grisalho e tateante, em busca da visão perdida, deixando para trás o deserto de um antigo sonho, as ruínas de coisas que poderiam ter sido.

Requiescat in pacem, Severus.


09
Ago 11
publicado por José Geraldo, às 09:00link do post | comentar
Este texto é parte do romance “A Casa no Fim do Mundo”, de William Hope Hodgson (1907), que estou traduzindo em capítulos semanais. Visite o Índice para lê-los em sequência.

O mundo ficou prisioneiro de uma escuridão selvagem — fria e intolerável. Tudo lá fora estava quieto, quieto! Por trás de mim, no cômodo escuro, ecoava ocasionalmente a pancada surda1 da queda de matéria — fragmentos da pedra que apodrecia. Então o tempo passou, a noite se apoderou do mundo, embrulhando-o em lençóis de negrume impenetrável.

Não havia mais céu noturno como o conhecemos. Mesmo as poucas estrelas extraviadas tinham desaparecido, definitivamente. Eu poderia estar em um quarto fechado, sem luz alguma, por tudo que podia ver. Contra a impalpável paisagem das trevas apenas ardia em aquele vasto fio circular de fogo dolente. Além dele não havia nenhum raio de luz em toda a vastidão da noite que me cercava, a não ser, no distante Norte, aquela névoa luminescente que ainda brilhava.

Silenciosamente os anos se passaram. Quanto tempo se passou eu nunca saberei. Pareceu-me então, naquela espera, que eternidades vieram e passaram, discretamente, e eu ainda continuei observando. Eu só podia ver o brilho da superfície do sol, às vezes, porque ele então começara a falhar, acendendo um pouco e depois desaparecendo.

Subitamente, durante um desses períodos de vida, uma chama súbita apareceu na noite — uma claridade rápida que iluminou brevemente a terra morta, permitindo-me um vislumbre de sua plana solidão. A luz pareceu vir do Sol — surgindo de algum lugar próximo ao seu centro, diagonalmente. Por um momento eu contemplei assustado. Então a chama saltitante afundou nas trevas e a escuridão caiu de novo sobre o mundo. Mas não era mais tão escuro, e o sol estava cingido de uma linha fina de luz branca e vívida. Eu a contemplei atentamente. Teria um vulcão aparecido no Sol?2 Porém, eu logo abandonei esse pensamento, tão rápido quanto se formara. Eu notei que a luz tinha sido branca demais, e forte demais, para ter tal causa.

Outra ideia me ocorreu: a de que um dos planetas interiores teria caído no Sol — tornando-se incandescente com o impacto. Esta teoria me pareceu bem mais plausível, e explicava mais satisfatoriamente o tamanho e o brilho extraordinários da explosão que havia iluminado o mundo morto de uma forma tão inesperada.

Cheio de interesse e de emoção, contemplei através da escuridão aquela linha estreita de fogo branco que cortava a noite. Uma coisa ela me dizia, sem dúvida, que o sol ainda estava girando a uma velocidade enorme.3 Então eu soube que os anos ainda estavam fugindo a uma velocidade incalculável; ainda que, no que diz respeito à Terra, a vida, a luz e o tempo fossem coisas pertencentes a um período perdido em eras há muito passadas.

Depois daquela explosão de chamas, a luz tinha se mostrado apenas como uma faixa de fogo brilhante. Porém, diante de meus olhos, ela foi lentamente empalidecendo em tons encarnados, depois para cores brônzeas tal como ocorrera ao sol. Então ela adquiriu uma tonalidade ainda mais escura, e depois de um tempo começou a flutuar, tendo períodos de brilho e então de apagamento. Assim, depois de um longo tempo, ela desapareceu.

Muito antes disso, porém, a circunferência do sol tinha se apagado em escuridão total. E então, naquele tempo sumamente futuro, o mundo, escuro e intensamente silencioso, seguia em sua tétrica órbita em torno da massa pesada do sol morto.

Meus pensamentos, durante aquele período, mal podem ser descritos. No começo eles tinham sido caóticos e sem coerência. Mas depois, com o passar das eras, minha alma pareceu embeber-se da própria essência da solidão e do pavor opressivos que afetavam a terra.

Cm esta impressão me veio uma maravilhosa clareza de pensamento e eu compreendi, para meu desespero, que o mundo poderia vagar para sempre através daquela noite imensa. Por um momento esta ideia doentia me preencheu, com uma sensação de desolação total, tanta que eu poderia ter chorado como uma criança. Com o tempo, porém, este pensamento se tornou menos forte e uma esperança sem motivo me possuiu. Pacientemente eu esperava.

De tempos em tempos o ruído de pedaços caindo, por trás de mim, chegava discretamente aos meus ouvidos. Uma vez eu ouvi um barulho alto e me virei, instintivamente, para olhar, esquecendo-me por um momento da impenetrável luz em que cada detalhe estaria submerso. Pouco depois meu olhar buscou o céu, dirigindo-se, inconscientemente, para o norte. Sim, o brilho nebuloso ainda aparecia. De fato eu quase imaginava que ele parecia algo mais definido. Por um longo tempo eu mantive meu olhar fixo nele, sentindo em minha alma solitária que aquela bruma suave era, de algum modo, um laço com o passado. São curiosas as ninharias de que podemos extrair conforto! Mesmo assim, se eu tivesse sabido… Mas disso vou falar no momento apropriado.

Por um longo tempo eu vigiei sem experimentar nada que fosse parecido a uma vontade de dormir, que me teria ocorrido nos velhos dias da terra. Como eu a teria recebido bem, mesmo que somente para passar o tempo, distraindo-me dos meus pensamentos e perplexidades!

Diversas vezes o som incômodo de algum grande pedaço de cantaria caindo perturbou as minhas meditações, e uma vez me pareceu ter ouvido sussurros no cômodo atrás de mim. Porém teria sido inútil tentar ver qualquer coisa. Tal negrume como o que havia mal pode ser concebido. Era palpável e horrivelmente brutal aos sentidos, como se algo morto se apertasse contra mim — algo macio e frio como o gelo.

Diante de tudo isso, cresceu em mim um grande e irresistível incômodo com a tensão, que me deixou a ponto de recair em uma sonolência desagradável. Senti que devia lutar contra isso e então, esperando distrair meus pensamentos, eu me virei para a janela e olhei para o rumo norte, em busca da brancura nebulosa que eu ainda acreditava ser a distante e pálida luminescência do universo que havíamos abandonado. Logo ao erguer meus olhos eu fui surpreendido por uma sensação maravilhosa, pois aquela luz tênue havia se consolidado em uma única e grande estrela, de brilho verde vivo.

Enquanto a encarava, atônito, passou-me pela mente que a terra deveria estar vagando na direção da estrela, não para longe dela, como imaginara. Depois, que não deveria ser o universo que terra deixara, mas possivelmente uma estrela exterior, pertencente a algum dos vastos aglomerados globulares escondidos nas profundezas enormes do espaço. Com uma sensação mesclada de espanto e curiosidade eu a observei, perguntando-me que novidade me seria revelada.

Por um momento pensamentos vagos e especulações me ocuparam, e enquanto isso o meu olhar residiu insaciavelmente naquele único ponto de luz isolado naquela escuridão de poço. A esperança crescia dentro de mim, expulsando a opressão do desespero que parecera sufocar-me. Para onde quer que a Terra estivesse viajando seria, afinal, mais uma vez em direção aos domínios da luz. Luz! É preciso passar uma eternidade envolto na noite silenciosa para entender o horror completo que é estar sem ela.

Lenta, mas decididamente, a estrela cresceu às minhas vistas até que, por fim, brilhava tanto quanto o planeta Júpiter dos velhos dias da Terra. Com o aumento do tamanho a sua luz ficou ainda mais impressionante, lembrando-me uma imensa esmeralda, cintilando em raios de fogo pelo mundo.

Anos se passaram em silêncio e a estrela verde cresceu até se tornar uma mancha de fogo no céu. Um pouco depois eu vi uma coisa que me encheu de espanto. Foi a fantasmagórica silhueta de um vasto crescente, uma gigantesca lua nova que parecia crescer no meio das trevas onipresentes. Completamente fascinado eu a encarei. Ela parecia estar muito perto, relativamente, e eu não entendia como a terra pudera chegar tão perto dela sem que eu a visse antes.

A luz emitida pela estrela ficou mais forte e então eu percebi que era possível novamente enxergar a paisagem da terra, embora indistintamente. Por um instante eu observei, tentando discernir algum detalhe na superfície do mundo, mas vi que a luz era insuficiente. Logo desisti da tentativa e olhei novamente na direção da estrela. Mesmo no curto espaço de tempo durante o qual a minha atenção fora desviada ela aumentara consideravelmente e parecia então, ao meu olhar confuso, ter quase um quarte do tamanho de uma lua cheia. A luz que ela emitia era extraordinariamente poderosa, mas a sua cor era tão abominavelmente estranha que o pouco que podia ver do mundo parecia irreal, mais como se eu contemplasse uma paisagem de sombras do que qualquer outra coisa.

Todo esse tempo o grande crescente estava aumentando seu brilho, e começava já a luzir com um tom verde perceptível. Constantemente a estrela aumentou de tamanho e de brilho, até parecer tão grande quanto a metade de uma lua cheia, e à medida em que ela se tornava maior e mais brilhante, da mesma forma o vasto crescente emitia mais e mais luz, embora fosse de um tom verde ainda mais escuro. Com o fulgor combinado de suas radiações a paisagem que se estendia diante de mim parecia cada vez mais visível. Logo eu me vi capaz de observar todo o mundo, que então aparecia, àquela luz estranha, terrível em sua fria, horrível e plana melancolia.

Foi um pouco depois que a minha atenção foi atraída pelo fato de que a grande estrela de luz verde estava lentamente se movendo do norte para o leste. No começo eu mal pude crer que estava vendo direito, mas logo não houve mais dúvida de que era isso mesmo. Gradualmente ela se pôs, e à medida em que baixava, o vasto crescente de luminosidade verde começou a encolher e encolher até reduzir-se a um mero arco de luz contra o céu lividamente colorido. Depois ele desapareceu, dissolvendo-se no mesmo lugar onde eu o vira emergir lentamente.

Nesse momento a estrela tinha chegado a cerca de uns trinta graus do horizonte. Em tamanho ela poderia ter rivalizado com uma lua cheia, embora mesmo então eu ainda não pudesse discerinir seu disco. Tal fato me levou a concluir que ela estava ainda a uma distância extraordinária, e sendo assim, eu soube que seu tamanho deveria ser enorme, além das concepções que o homem pode entender ou imaginar.

Subitamente, enquanto eu a olhava, a parte inferior da estrela desapareceu — cortada por uma linha reta e escura. Um minuto — ou um século — se passou e ela desceu mais, até que desapareceu de minha visão pela metade. Ao longe, na grande planície, eu vi uma sombra monstruosa que a ocultava, e avançava rapidamente. Somente um terço da estrela era então visível. Logo, num átimo, a solução deste fenômeno extraordinário se revelou. A estrela estava sendo oculta pela enorme massa do sol morto. Ou melhor, o sol — obedecendo à sua atração — estava surgindo em sua direção, com a terra seguindo em seu encalço.4 Enquanto esses pensamentos ainda se passavam em minha mente a estrela desapareceu, completamente oculta pelo volume tremendo do sol. Sobre a terra recaiu outra vez a noite melancólica.

Com a escuridão veio uma sensação intolerável de solidão e medo. Pela primeira vez eu pensei no Abismo e em seus hóspedes. Depois disso surgiu-me à mente outra Coisa ainda mais terrível, a que havia assombrado as margens do Mar do Sono e que espreitava as sombras daquele velho edifício. Onde estavam? Eu me perguntei e estremeci com pensamentos acabrunhados. Por um momento o medo me controlou e eu orei, selvagem e incoerentemente, para que algum raio de luz afastasse o frio negrume que envolvia o mundo.

O quanto eu esperei é impossível dizer — mas certamente foi muito tempo. Então, subitamente, eu notei uma réstia de luz brilhando diante de mim. Gradualmente ela ficou mais distinta. Então um raio de luz verde luziu através da escuridão. No mesmo instante eu vi uma fina linha de chamas vivas, à distância na noite. No que pareceu só um instante ela cresceu até se tornar uma grande mancha de fogo, sob a qual o mundo se estendia banhado em um brilho de luz verde-esmeralda. Ela cresceu constantemente até que toda a estrela verde apareceu novamente à vista. Mas então ela não poderia ser chamada mais de estrela, pois tinha adquirido proporções vastas, sendo incomparavalmente maior do que o sol tinha sido nos velhos tempos.

Enquanto olhava eu notei que podia ver a borda do sol sem vida, brilhando como uma grande lua crescente. Lentamente a sua superfície iluminada se expandiu para mim, até que a metade de seu diâmetro ficou visível, então a estrela começou a se pôr à minha direita. O tempo passou e a terra continuou a se mover, atravessando lentamente a face tremenda do sol morto.5

Gradualmente, enquanto a terra avançava, a estrela se inclinou mais para a direita, até finalmente brilhar por trás da casa, enviando uma inundação de raios interrompidos pelas paredes esqueléticas. Olhando para cima eu vi que muito do teto tinha caído, o que me permitiu ver que os andares superiores estavam ainda mais arruinados. O telhado, evidentemente, tinha desaparecido por inteiro e eu podia ver o resplendor verde da luz da estrela chegando até mim, obliquamente.

1. Neste ponto a capacidade de propagação sonora da atmosfera já deveria estar incrivelmente atenuada ou, mais provavelmente, ser inexistente. Tendo isto em vista, não podemos supor que estes ruídos, ou quaisquer outros, teriam sido perceptíveis por ouvidos vivos, audíveis de uma forma que nós, que vivemos em corpos materiais, pudéssemos entender ou sentir — Nota do Editor.

2. Esta dúvida do autor, bem como outras descrições feitas por ele, sugerem que o Sol por ele concebido seria, ou teria se tornado, um corpo celeste sólido. Este paradigma era aceitável na época, considerando as teorias de Lord Kelvin sobre a origem das estrelas e o mecanismo de seu funcionamento — sobre as quais não cabe falar nestas breves notas. Não devemos, portanto, imaginar que “A Casa no Fim do Mundo” ou “A Terra Noturna” sejam obras de pura fantasia.

3. Só posso supor que o tempo da jornada anual da Terra tinha deixado de ter sua relaçãopresente com o período da rotação do Sol — Nota do Editor. Na verdade, ao contrário do que se supunha na época de Hodgson, a duração do ano terrestre não tem nenhuma relação com o período de rotação do sol, que é de vinte e cinco dias — Nota do Tradutor.

4. Uma leitura atenta do manuscrito sugere que ou o sol estava percorrendo uma órbita de grande excentricidade ou então estava se aproximando da estrela verde em uma órbita decadente. E nesse momento eu imagino que ele finalmente fora arrancado de seu curso oblíquo pela atração gravitacional da imensa estrela — Nota do Editor.

5. Deve-se notar aqui que a terra estava “atravessando lentamente a face tremenda do sol morto”. Nenhuma explicação é dada para isso, e devemos concluir que a velocidade do tempo tinha diminuído ou então que a terra estava realmente avançando em sua órbita a uma razão muito lenta, comparada pelos padrões atuais. Um estudo cuidadoso do manuscrito, no entanto, me leva a concluir que a velocidade do tempo é que tinha estado diminuindo por um período de tempo considerável — Nota do Editor. O tipo de relação de movimento que ocorre entre a Terra, o sol morto e a estrela verde não é mera fantasia do autor, que os baseou nos movimentos do planeta Vênus, que ocupa em relação à Terra e ao Sol, uma situação análoga à que o sol morto ocupa neste contexto. Vênus nunca apresenta para a Terra uma face “cheia” porque está entre nós e o sol, da mesma forma que o sol tampouco se mostra “cheio” em relação ao narrador. Este é um dos indícios de que Hodgson não recorreu à fantasia ilimitada para construir a sua obra, mas ao que ele julgava ser a ciência de seu tempo (nesse caso temos a astronomia). Os aspectos desta obra que parecem meramente fantásticos são, na verdade, devidos às novas descobertas científicas, que tornaram obsoletas as concepções nas quais Hodgson se baseou. Entre elas, por exemplo, as teorias de Lord Kelvin sobre a evolução estelar, que resultariam em um sol muito menor — e sólido — ao final de umas poucas dezenas de milhões de anos. Hoje se sabe que o sol ainda terá algumas centenas de milhões (talvez até alguns bilhões) de anos pela frente e que uma forma sólida, parecida com um planeta, não será um de seus futuros possíveis — Nota do Tradutor.


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