Este texto é parte do romance “A Casa no Fim do Mundo”, de William Hope Hodgson (1907), que estou traduzindo em capítulos semanais.
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O mundo ficou prisioneiro de uma escuridão selvagem — fria e intolerável. Tudo lá fora estava quieto, quieto! Por trás de mim, no cômodo escuro, ecoava ocasionalmente a pancada surda1 da queda de matéria — fragmentos da pedra que apodrecia. Então o tempo passou, a noite se apoderou do mundo, embrulhando-o em lençóis de negrume impenetrável.
Não havia mais céu noturno como o conhecemos. Mesmo as poucas estrelas extraviadas tinham desaparecido, definitivamente. Eu poderia estar em um quarto fechado, sem luz alguma, por tudo que podia ver. Contra a impalpável paisagem das trevas apenas ardia em aquele vasto fio circular de fogo dolente. Além dele não havia nenhum raio de luz em toda a vastidão da noite que me cercava, a não ser, no distante Norte, aquela névoa luminescente que ainda brilhava.
Silenciosamente os anos se passaram. Quanto tempo se passou eu nunca saberei. Pareceu-me então, naquela espera, que eternidades vieram e passaram, discretamente, e eu ainda continuei observando. Eu só podia ver o brilho da superfície do sol, às vezes, porque ele então começara a falhar, acendendo um pouco e depois desaparecendo.
Subitamente, durante um desses períodos de vida, uma chama súbita apareceu na noite — uma claridade rápida que iluminou brevemente a terra morta, permitindo-me um vislumbre de sua plana solidão. A luz pareceu vir do Sol — surgindo de algum lugar próximo ao seu centro, diagonalmente. Por um momento eu contemplei assustado. Então a chama saltitante afundou nas trevas e a escuridão caiu de novo sobre o mundo. Mas não era mais tão escuro, e o sol estava cingido de uma linha fina de luz branca e vívida. Eu a contemplei atentamente. Teria um vulcão aparecido no Sol?2 Porém, eu logo abandonei esse pensamento, tão rápido quanto se formara. Eu notei que a luz tinha sido branca demais, e forte demais, para ter tal causa.
Outra ideia me ocorreu: a de que um dos planetas interiores teria caído no Sol — tornando-se incandescente com o impacto. Esta teoria me pareceu bem mais plausível, e explicava mais satisfatoriamente o tamanho e o brilho extraordinários da explosão que havia iluminado o mundo morto de uma forma tão inesperada.
Cheio de interesse e de emoção, contemplei através da escuridão aquela linha estreita de fogo branco que cortava a noite. Uma coisa ela me dizia, sem dúvida, que o sol ainda estava girando a uma velocidade enorme.3 Então eu soube que os anos ainda estavam fugindo a uma velocidade incalculável; ainda que, no que diz respeito à Terra, a vida, a luz e o tempo fossem coisas pertencentes a um período perdido em eras há muito passadas.
Depois daquela explosão de chamas, a luz tinha se mostrado apenas como uma faixa de fogo brilhante. Porém, diante de meus olhos, ela foi lentamente empalidecendo em tons encarnados, depois para cores brônzeas tal como ocorrera ao sol. Então ela adquiriu uma tonalidade ainda mais escura, e depois de um tempo começou a flutuar, tendo períodos de brilho e então de apagamento. Assim, depois de um longo tempo, ela desapareceu.
Muito antes disso, porém, a circunferência do sol tinha se apagado em escuridão total. E então, naquele tempo sumamente futuro, o mundo, escuro e intensamente silencioso, seguia em sua tétrica órbita em torno da massa pesada do sol morto.
Meus pensamentos, durante aquele período, mal podem ser descritos. No começo eles tinham sido caóticos e sem coerência. Mas depois, com o passar das eras, minha alma pareceu embeber-se da própria essência da solidão e do pavor opressivos que afetavam a terra.
Cm esta impressão me veio uma maravilhosa clareza de pensamento e eu compreendi, para meu desespero, que o mundo poderia vagar para sempre através daquela noite imensa. Por um momento esta ideia doentia me preencheu, com uma sensação de desolação total, tanta que eu poderia ter chorado como uma criança. Com o tempo, porém, este pensamento se tornou menos forte e uma esperança sem motivo me possuiu. Pacientemente eu esperava.
De tempos em tempos o ruído de pedaços caindo, por trás de mim, chegava discretamente aos meus ouvidos. Uma vez eu ouvi um barulho alto e me virei, instintivamente, para olhar, esquecendo-me por um momento da impenetrável luz em que cada detalhe estaria submerso. Pouco depois meu olhar buscou o céu, dirigindo-se, inconscientemente, para o norte. Sim, o brilho nebuloso ainda aparecia. De fato eu quase imaginava que ele parecia algo mais definido. Por um longo tempo eu mantive meu olhar fixo nele, sentindo em minha alma solitária que aquela bruma suave era, de algum modo, um laço com o passado. São curiosas as ninharias de que podemos extrair conforto! Mesmo assim, se eu tivesse sabido… Mas disso vou falar no momento apropriado.
Por um longo tempo eu vigiei sem experimentar nada que fosse parecido a uma vontade de dormir, que me teria ocorrido nos velhos dias da terra. Como eu a teria recebido bem, mesmo que somente para passar o tempo, distraindo-me dos meus pensamentos e perplexidades!
Diversas vezes o som incômodo de algum grande pedaço de cantaria caindo perturbou as minhas meditações, e uma vez me pareceu ter ouvido sussurros no cômodo atrás de mim. Porém teria sido inútil tentar ver qualquer coisa. Tal negrume como o que havia mal pode ser concebido. Era palpável e horrivelmente brutal aos sentidos, como se algo morto se apertasse contra mim — algo macio e frio como o gelo.
Diante de tudo isso, cresceu em mim um grande e irresistível incômodo com a tensão, que me deixou a ponto de recair em uma sonolência desagradável. Senti que devia lutar contra isso e então, esperando distrair meus pensamentos, eu me virei para a janela e olhei para o rumo norte, em busca da brancura nebulosa que eu ainda acreditava ser a distante e pálida luminescência do universo que havíamos abandonado. Logo ao erguer meus olhos eu fui surpreendido por uma sensação maravilhosa, pois aquela luz tênue havia se consolidado em uma única e grande estrela, de brilho verde vivo.
Enquanto a encarava, atônito, passou-me pela mente que a terra deveria estar vagando na direção da estrela, não para longe dela, como imaginara. Depois, que não deveria ser o universo que terra deixara, mas possivelmente uma estrela exterior, pertencente a algum dos vastos aglomerados globulares escondidos nas profundezas enormes do espaço. Com uma sensação mesclada de espanto e curiosidade eu a observei, perguntando-me que novidade me seria revelada.
Por um momento pensamentos vagos e especulações me ocuparam, e enquanto isso o meu olhar residiu insaciavelmente naquele único ponto de luz isolado naquela escuridão de poço. A esperança crescia dentro de mim, expulsando a opressão do desespero que parecera sufocar-me. Para onde quer que a Terra estivesse viajando seria, afinal, mais uma vez em direção aos domínios da luz. Luz! É preciso passar uma eternidade envolto na noite silenciosa para entender o horror completo que é estar sem ela.
Lenta, mas decididamente, a estrela cresceu às minhas vistas até que, por fim, brilhava tanto quanto o planeta Júpiter dos velhos dias da Terra. Com o aumento do tamanho a sua luz ficou ainda mais impressionante, lembrando-me uma imensa esmeralda, cintilando em raios de fogo pelo mundo.
Anos se passaram em silêncio e a estrela verde cresceu até se tornar uma mancha de fogo no céu. Um pouco depois eu vi uma coisa que me encheu de espanto. Foi a fantasmagórica silhueta de um vasto crescente, uma gigantesca lua nova que parecia crescer no meio das trevas onipresentes. Completamente fascinado eu a encarei. Ela parecia estar muito perto, relativamente, e eu não entendia como a terra pudera chegar tão perto dela sem que eu a visse antes.
A luz emitida pela estrela ficou mais forte e então eu percebi que era possível novamente enxergar a paisagem da terra, embora indistintamente. Por um instante eu observei, tentando discernir algum detalhe na superfície do mundo, mas vi que a luz era insuficiente. Logo desisti da tentativa e olhei novamente na direção da estrela. Mesmo no curto espaço de tempo durante o qual a minha atenção fora desviada ela aumentara consideravelmente e parecia então, ao meu olhar confuso, ter quase um quarte do tamanho de uma lua cheia. A luz que ela emitia era extraordinariamente poderosa, mas a sua cor era tão abominavelmente estranha que o pouco que podia ver do mundo parecia irreal, mais como se eu contemplasse uma paisagem de sombras do que qualquer outra coisa.
Todo esse tempo o grande crescente estava aumentando seu brilho, e começava já a luzir com um tom verde perceptível. Constantemente a estrela aumentou de tamanho e de brilho, até parecer tão grande quanto a metade de uma lua cheia, e à medida em que ela se tornava maior e mais brilhante, da mesma forma o vasto crescente emitia mais e mais luz, embora fosse de um tom verde ainda mais escuro. Com o fulgor combinado de suas radiações a paisagem que se estendia diante de mim parecia cada vez mais visível. Logo eu me vi capaz de observar todo o mundo, que então aparecia, àquela luz estranha, terrível em sua fria, horrível e plana melancolia.
Foi um pouco depois que a minha atenção foi atraída pelo fato de que a grande estrela de luz verde estava lentamente se movendo do norte para o leste. No começo eu mal pude crer que estava vendo direito, mas logo não houve mais dúvida de que era isso mesmo. Gradualmente ela se pôs, e à medida em que baixava, o vasto crescente de luminosidade verde começou a encolher e encolher até reduzir-se a um mero arco de luz contra o céu lividamente colorido. Depois ele desapareceu, dissolvendo-se no mesmo lugar onde eu o vira emergir lentamente.
Nesse momento a estrela tinha chegado a cerca de uns trinta graus do horizonte. Em tamanho ela poderia ter rivalizado com uma lua cheia, embora mesmo então eu ainda não pudesse discerinir seu disco. Tal fato me levou a concluir que ela estava ainda a uma distância extraordinária, e sendo assim, eu soube que seu tamanho deveria ser enorme, além das concepções que o homem pode entender ou imaginar.
Subitamente, enquanto eu a olhava, a parte inferior da estrela desapareceu — cortada por uma linha reta e escura. Um minuto — ou um século — se passou e ela desceu mais, até que desapareceu de minha visão pela metade. Ao longe, na grande planície, eu vi uma sombra monstruosa que a ocultava, e avançava rapidamente. Somente um terço da estrela era então visível. Logo, num átimo, a solução deste fenômeno extraordinário se revelou. A estrela estava sendo oculta pela enorme massa do sol morto. Ou melhor, o sol — obedecendo à sua atração — estava surgindo em sua direção, com a terra seguindo em seu encalço.4 Enquanto esses pensamentos ainda se passavam em minha mente a estrela desapareceu, completamente oculta pelo volume tremendo do sol. Sobre a terra recaiu outra vez a noite melancólica.
Com a escuridão veio uma sensação intolerável de solidão e medo. Pela primeira vez eu pensei no Abismo e em seus hóspedes. Depois disso surgiu-me à mente outra Coisa ainda mais terrível, a que havia assombrado as margens do Mar do Sono e que espreitava as sombras daquele velho edifício. Onde estavam? Eu me perguntei e estremeci com pensamentos acabrunhados. Por um momento o medo me controlou e eu orei, selvagem e incoerentemente, para que algum raio de luz afastasse o frio negrume que envolvia o mundo.
O quanto eu esperei é impossível dizer — mas certamente foi muito tempo. Então, subitamente, eu notei uma réstia de luz brilhando diante de mim. Gradualmente ela ficou mais distinta. Então um raio de luz verde luziu através da escuridão. No mesmo instante eu vi uma fina linha de chamas vivas, à distância na noite. No que pareceu só um instante ela cresceu até se tornar uma grande mancha de fogo, sob a qual o mundo se estendia banhado em um brilho de luz verde-esmeralda. Ela cresceu constantemente até que toda a estrela verde apareceu novamente à vista. Mas então ela não poderia ser chamada mais de estrela, pois tinha adquirido proporções vastas, sendo incomparavalmente maior do que o sol tinha sido nos velhos tempos.
Enquanto olhava eu notei que podia ver a borda do sol sem vida, brilhando como uma grande lua crescente. Lentamente a sua superfície iluminada se expandiu para mim, até que a metade de seu diâmetro ficou visível, então a estrela começou a se pôr à minha direita. O tempo passou e a terra continuou a se mover, atravessando lentamente a face tremenda do sol morto.5
Gradualmente, enquanto a terra avançava, a estrela se inclinou mais para a direita, até finalmente brilhar por trás da casa, enviando uma inundação de raios interrompidos pelas paredes esqueléticas. Olhando para cima eu vi que muito do teto tinha caído, o que me permitiu ver que os andares superiores estavam ainda mais arruinados. O telhado, evidentemente, tinha desaparecido por inteiro e eu podia ver o resplendor verde da luz da estrela chegando até mim, obliquamente.
1. Neste ponto a capacidade de propagação sonora da atmosfera já deveria estar incrivelmente atenuada ou, mais provavelmente, ser inexistente. Tendo isto em vista, não podemos supor que estes ruídos, ou quaisquer outros, teriam sido perceptíveis por ouvidos vivos, audíveis de uma forma que nós, que vivemos em corpos materiais, pudéssemos entender ou sentir — Nota do Editor.
2. Esta dúvida do autor, bem como outras descrições feitas por ele, sugerem que o Sol por ele concebido seria, ou teria se tornado, um corpo celeste sólido. Este paradigma era aceitável na época, considerando as teorias de Lord Kelvin sobre a origem das estrelas e o mecanismo de seu funcionamento — sobre as quais não cabe falar nestas breves notas. Não devemos, portanto, imaginar que “A Casa no Fim do Mundo” ou “A Terra Noturna” sejam obras de pura fantasia.
3. Só posso supor que o tempo da jornada anual da Terra tinha deixado de ter sua relaçãopresente com o período da rotação do Sol — Nota do Editor. Na verdade, ao contrário do que se supunha na época de Hodgson, a duração do ano terrestre não tem nenhuma relação com o período de rotação do sol, que é de vinte e cinco dias — Nota do Tradutor.
4. Uma leitura atenta do manuscrito sugere que ou o sol estava percorrendo uma órbita de grande excentricidade ou então estava se aproximando da estrela verde em uma órbita decadente. E nesse momento eu imagino que ele finalmente fora arrancado de seu curso oblíquo pela atração gravitacional da imensa estrela — Nota do Editor.
5. Deve-se notar aqui que a terra estava “atravessando lentamente a face tremenda do sol morto”. Nenhuma explicação é dada para isso, e devemos concluir que a velocidade do tempo tinha diminuído ou então que a terra estava realmente avançando em sua órbita a uma razão muito lenta, comparada pelos padrões atuais. Um estudo cuidadoso do manuscrito, no entanto, me leva a concluir que a velocidade do tempo é que tinha estado diminuindo por um período de tempo considerável — Nota do Editor. O tipo de relação de movimento que ocorre entre a Terra, o sol morto e a estrela verde não é mera fantasia do autor, que os baseou nos movimentos do planeta Vênus, que ocupa em relação à Terra e ao Sol, uma situação análoga à que o sol morto ocupa neste contexto. Vênus nunca apresenta para a Terra uma face “cheia” porque está entre nós e o sol, da mesma forma que o sol tampouco se mostra “cheio” em relação ao narrador. Este é um dos indícios de que Hodgson não recorreu à fantasia ilimitada para construir a sua obra, mas ao que ele julgava ser a ciência de seu tempo (nesse caso temos a astronomia). Os aspectos desta obra que parecem meramente fantásticos são, na verdade, devidos às novas descobertas científicas, que tornaram obsoletas as concepções nas quais Hodgson se baseou. Entre elas, por exemplo, as teorias de Lord Kelvin sobre a evolução estelar, que resultariam em um sol muito menor — e sólido — ao final de umas poucas dezenas de milhões de anos. Hoje se sabe que o sol ainda terá algumas centenas de milhões (talvez até alguns bilhões) de anos pela frente e que uma forma sólida, parecida com um planeta, não será um de seus futuros possíveis — Nota do Tradutor.