Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
07
Ago 11
publicado por José Geraldo, às 20:57link do post | comentar
Eu não devia te dizer. Mas essa lua, mas esse conhaque… deixam a gente comovido como o diabo — Carlos Drummond de Andrade.

Nos encontramos em um bar imaginário, durante uma digressão sonambúlica. Tentei assaltá-lo com uma pergunta, mas ele é refratário a tais abordagens e sempre reverte a tentativa com uma proposição inesperada. Ontem, por exemplo, quando lhe perguntei quem eram as pessoas cujos nomes ele me recomendara conhecer, ele ignorou o que eu dissera e me perguntou se eu tenho escrito. Reconheço que é inútil tentar conduzir a conversa quando se trata dele, então acabei aceitando a pergunta, na esperança de que as dobras do assunto acabassem por esbarrar na resposta do que eu queria descobrir.

Então lhe disse que andava escrevendo pouco, pois preciso de muito silêncio para refletir, e silêncio é uma mercadoria rara, que bem valeria a pena pagar caro para consumir e que eu queria muito, mas muito mesmo, fazer alguma coisa que atraísse atenção, que me trouxesse leitores. Enquanto falávamos disso, e não das outras coisas que eu queria estar discutindo naquele momento, ele ergueu o dedo, como costuma fazer quando está entrando em transe filosófico, e decretou, como um profeta diante do Templo:

— Acredito que você pode fazer qualquer coisa, desde que não tenha a ilusão de que será lido. Ninguém mais lê ninguém. Não dá mais tempo. Há tanto para fazer, tantas sensações para experimentar.

— E no entanto o que nos resta fazer: ganhar centavos de atenção promovendo eventos inúteis? Ficar em casa trancados em nossas ilusões, esperando que alguém nos leia?

— Você fica?

Tive vergonha de admitir que ainda sonhava em ter leitores. Mas ele não me ridicularizou por isso, não ainda. Apenas disse:

— Não tenho mais a ilusão de que um dia serei lido. Estamos no fim de uma era, meu amigo. Sinto-me como um dos últimos romanos, talvez um que escreveu depois da queda do Império. Sinto-me como se já escrevesse em latim bárbaro, como se eu próprio já fosse filho bastardo da civilização que se foi. Que respeito terá o futuro por mim? Ninguém se lembra dos decadentes.

— Se for mesmo assim, meu amigo, pelo menos nos restará termos vivido e amado, da forma especial com que cada ser humano vive e ama.

Ele ouviu a minha frase com impaciência, quase espreitando uma interrupção para cortá-la, com a faca ensanguentada de seu pessimismo:

— Eu digo mais: não seremos amados.

— Nem mesmo pelas putas?

— Acreditar nelas é uma ilusão romântica estúpida. Putas não são românticas, são só mulheres pobres ou viciadas vagabundas que se degradam por dinheiro. Só péssimos poetas têm a mania de acreditar que possa haver uma Dama das Camélias. Exceto pela tuberculose, tudo era ilusão.

— Não quis dizer que a puta nos ame, mas ao vil metal. Quis dizer que ela nos dá amor em troca de nosso dinheiro.

— Nem isso. A puta não precisa do dinheiro, mas das coisas que ele compra. E sempre escolherá quem tenha mais, da mesma forma como o mineiro preferirá a jazida maior: para não ter de viver sempre à procura.

— Ah, mas você está insuportável hoje. Logo quando eu estava sentindo uma vaga inspiração para escrever uma poesia.

— Esse troço de “vaga inspiração para poesia” é frescura.

Tive de rir da minha própria inocência. Eu já devia saber que aquele iconoclasta não resistiria à oportunidade de reduzir a pó minhas intenções póeticas.

— Eu já escrevi poemas, você sabe. Hoje não mais. Eu tive uma revelação sobre o amor que me matou a poesia: nós não amamos ninguém, nós apenas buscamos satisfações.

— Como assim, meu amigo?

— Não amamos o ser, mas a perspectiva daquilo que o relacionamento com tal ser poderá nos dar: prazer, dor, conforto, orgulho, dinheiro. Diga-me, você gosta de amendoeiras, não?

Ele certamente conhecia minha fixação por estas árvores curiosas, sendo uma das poucas pessoas a quem eu mostrara alguns antigos textos sobre elas.

— Sim, gosto.

— É mentira. Você gosta de amêndoas, ou da sombra que a árvore lhe dá. Se a amendoeira não desse amêndoas e nem sombra, você certamente a desejaria destruir.

Naquele momento me senti firme para discordar:

— Isto não é exatamente verdade: existem várias satisfações possíveis, além da mera utilidade.

— Se é uma satisfação, então é uma utilidade. Nada que satisfaça a algo ou alguém é inútil.

— Mas mesmo que ela fosse inteiramente inútil, mesmo que eu a desejasse destruir… você não acha que o impulso de destruir é uma forma de desejo?

— Mas nesse caso você gosta é da destruição, não da árvore inútil.

Mais uma vez, derrotado. Ele perdeu a poesia, que ainda tenho, mas possui uma agudeza que constrange. E tendo sufocado minha resposta ainda no fundo da garganta, sentiu-se a cavalo para pontificar:

— Se você ama a alguém, é porque essa pessoa lhe faz algum bem. Se essa pessoa cessar de lhe fazer esse bem, você deixará de amá-la.

— Creio que há um engano aí, meu amigo. Você subestima a perversidade do ser humano. Na verdade matamos a amendoeira, apesar da amêndoa e apesar da sombra. O homem é como o escorpião da fábula.

O meu amigo ergueu as sobrancelhas ao ouvir-me dizer isto. Interrompeu sua profecia por alguns segundos, bateu na mesa, quase derrubando a cerveja, e admitiu, para minha glória momentânea:

— Você tem razão! Como não pensei nisso antes!? Isto é irracional, mas é verdade.

— Verdade seja dita, meu amigo, é justamente por ser irracional é que é tão humano. É mentira que sejamos diferentes dos animais por agirmos racionalmente, nós somos diferentes deles porque podemos suicidar-nos. Razão é apenas o nome que damos àquilo que nos diferencia do nosso cão, que não sabe dar nomes às coisas.

Meu momento de glória foi abatido em pleno voo por outro ataque de cinismo da parte de meu amigo:

— E quem sabe se o cão não dá nomes às coisas? É possível que apenas não saibamos compreender os nomes que ele dá.

Parei o copo de cerveja no ar, a meio caminho da trajetória até a boca. Aquelas palavras pareciam caindo da língua dele já gravadas em blocos imensos de granito, como tábuas de mandamentos. Eu não conseguia destruir a impressão que elas me causavam. Falhara minha última tentativa de salvar a dignidade humana dos efeitos avassaladores da presença de meu amigo naquela mesa de bar. Ele seguia, de sabre em punho, decapitando minhas ilusões:

— Pode ser. Somos animais, afinal. Embora animais escritores de poesia, animais construtores de canhões. E de fato não há diferença entre um soneto e um canhão: ambos estimulam os mesmos neurônios.

Meu amigo pediu a conta, deixou trinta reais sobre a mesa e se foi embora depois de uma despedida breve, durante a qual mal consegui balbuciar um boa noite. A conta veio menos de vinte reais, mas eu me senti roubado, mesmo ficando com o troco.


03
Ago 11
publicado por José Geraldo, às 11:37link do post | comentar
Você tem exatamente três mil horas para parar de me beijar – Cazuza.

Estava escuro ainda quando Manoel acordou. A cerração ainda recobria as encostas da serra e as estrelas estavam sumidas no meio de tanta umidade no céu. Mas tinha ficado difícil continuar dormindo, e ele não sabia porque. Dentro da barraca o frio não entrava tanto, o saco de dormir isolava bem a umidade, mas de alguma forma ele acordou e foi se sentar, ainda enrolado nos agasalhos que catou da mochila. Acendeu o fogareiro e começou a esquentar água para preparar um café solúvel. Reparou então que as outras barracas estavam vazias.

“Mas com mil diabos, aonde esse pessoal foi parar no meio da noite?”

Subitamente lembrou de um sonho que tivera, um sonho molhado com algum tipo de criatura sensual. Por alguma razão inexplicável, no sonho, os seus companheiros de acampamento fugiam esbaforidos, como ratos diante do ronronar de um gato esfomeado. Mas ele ficara. Sentiu retornar à boca o estranho gosto de água de mina, de caneca de latão, de colher oxidada. Gosto rico em ferro.

“Devo ter mordido o lábio, ou estou com as gengivas inflamadas outra vez.”

A água começou a formar bolhas na caneca.

“Onde estará o maldito pote de café?”

Saiu tateando pela escuridão, tentando que a pouca luz das labaredas lhe mostrasse o caminho. Então sentiu novamente arrepiar a nuca, uma sensação que lhe lembrou o sonho. Virou-se assustado, poderia ser uma onça. Mas não era, era só uma mulher. Uma mulher bonita, embora não extraordinariamente bela. A mulher do sonho — ora bolas! Tinha um ar de camponesa, as unhas malfeitas, o cabelo ligeiramente emplastado de umidade.

— De onde você veio?

A mulher não deu sinais de compreender o que ele dizia. Repetiu a pergunta. Ela pelo menos pareceu perceber que tinha sido uma pergunta. Disse-lhe algumas frases em uma língua desconhecida:

— Nu înţeleg ce spui, draga.

— Hem? O que…?

Então era uma gringa. Inútil esperar que ela mantivesse uma conversa normal. Aproximou-se do fogareiro e finalmente viu a lata de café, tombada junto à mochila de um dos companheiros de acampamento. Abriu-a e já se preparava para derramar um pouco na água que já estava prestes a ferver quando resolveu tentar alguma mímica para falar com a estranha. Esfregou a mão no braço, tentando dizer que estava frio e apontou-lhe a água quente e o café.

— Café?

— Da, o cafea mica. Vă rugăm să…

O café ficou pronto instantaneamente, tal como a embalagem prometia. Só não ficou bom. Mas no alto da serra qualquer bebida quente era maravilhosa àquela hora da madrugada velha.

Por alguma razão não conseguia evitar os arrepios na nuca e os nós na garganta. Tinha vontade de correr, de chorar ou de pelo menos dar um berro animalesco. Mas não o fazia. Não sabia porque deveria. Não conseguia entender como se segurava. Terminou de tomar o café, ainda esfregando os olhos para espantar o sono. A mulher ali estava.

Aproximou-se dela com cuidado e curiosidade e loucura. Ousou tocar seu queixo duro, era frio como uma das pedras. Puxou seu rosto para cima e mirou naqueles olhos que redemoinhavam como o Estige e o Aqueronte. Veio puxando lentamente para perto de si aqueles lábios rasgados na carne pálida. Ela não resistiu, ainda que o deslocar de seu rosto fosse pesado, e voluntário. Havia momentos em que até lhe parecia que era o queixo dela que empurrava a sua mão.

Dois pares de lábios se tocaram. A troca de calor parecia provocar oscilações coloridas em sua imaginação. Lembrou-se de uma letra de música, queria que o beijo nunca terminasse. “Estamos, meu bem, por um triz, pro dia nascer feliz.”

Seus olhos queriam fechar-se, mas sua mente, arrepiada como os cabelos de um cavalo assustado por um lobo, insistia que não. Então, por uma sorte destas que ampara aos tolos, conseguiu contemplar a própria mão e notou nela veias saltadas que antes ela não possuía. Então o sonho voltou com mais força à sua lembrança e descobriu por que todo o seu ser queria gritar e fugir da presença da estranha.

Atirou-se ao chão como pôde, desprendendo os seus lábios dos dela. Mas ela não o soltou. Apenas conseguiu, por efeito da surpresa, fazer com que o equilíbrio de ambos oscilasse no mesmo instante. Caíram sobre o fogareiro, o gás escapou e envolveu-os em chamas, brevemente. Ela o soltou, deixando um rugido demoníaco sair de sua boca. Enquanto ela gritava, rolou sobre a grama úmida, apagando as chamas. Ela batia as mãos contra as vestes negras, completamente atarantada.

Se tivesse juízo, teria fugido como os demais. Teria aproveitado o sol que dentro em pouco assombraria a paisagem, como prometia a nesga láctea no horizonte. Mas como fazer isso com aquela beldade? Encheu a caneca de água fria da fonte e atirou sobre ela, apagando as chamas.

Ela se calou, intrigada. Uma fumaça branca ainda subia do tecido, a pele estava avermelhada em vários pontos, talvez do fogo, talvez do jorro de energia adquirido. Um forte cheiro de cabelo queimado empestava o ambiente.

— De ce am fost salvat? De ce am fost salvat, draga?

Um comprido raio de sol atravessou as nuvens e atingiu a encosta da montanha desolada. A mulher deu um gemido e cobriu o rosto com os cabelos falhados pelas queimaduras. Depois disso Manuel não se lembra mais de nada. Lembra-se apenas de ter acordado com tapas no rosto e gotas de uma água fria que parecia flocos de geada que derretiam com o calor de sua pele.

— Quem é o veado que está me molhando…?

Nem acabou a frase. Os seus amigos estavam todos em volta, assustados.

— Que merda foi essa que você fez, Manuel?

O fogareiro estava derrubado, e um largo trecho de grama seca estava queimado.

— Vocês não tinham ido embora?

— Embora para onde? Acordamos com os seus gritos, maluco!

Manuel já se erguia, confuso e imaginando que estava louco. Então sentiu outra vez o arrepio na nuca, com uma força tão grande que era como se lhe socassem pelas costas: como não reparara antes em tantos fios grisalhos e tantas rugas de expressão no rosto dos colegas de faculdade? Olhou a própria mão, vincada de veias. E notou, com um horror que nem teve a coragem de mencionar, pedaços de tecido preto ao lado da pedra à beira do barranco.


02
Ago 11
publicado por José Geraldo, às 09:31link do post | comentar
Este texto é parte do romance “A Casa no Fim do Mundo”, de William Hope Hodgson (1907), que estou traduzindo em capítulos semanais. Visite o Índice para lê-los em sequência.

Talvez tenha sido só um milhão de anos depois que eu percebi sem sombra de dúvida que a toalha chamejante que iluminava o mundo estava mesmo escurecendo.

Outro imenso intervalo se passou e a enorme chama tinha decaído para uma cor de cobre intenso. Depois escureceu gradualmente de cobre para bronze e então para uma profunda e pesada coloração púrpura que tinha em si a estranha sugestão de sangue.

Embora a luz estivesse sempre decrescendo, não percebia nenhuma diminuição na velocidade aparente do sol. Ele ainda se arremetia velozmente formando aquele atordoante véu.

O mundo, pelo menos o quanto dele eu conseguia enxergar, tinha adquirido um horrível tom sombrio, como se realmente fossem os últimos dias do mundos que se aproximavam.

O sol estava morrendo, disso não poderia restar nenhuma dúvida, mas a terra ainda girava, através do espaço e das eras. Naquele momento, eu me lembro, uma extraordinária sensação de pavor me atingiu. Achei-me então com meus pensamentos vagando em meio a um caos de fragmentárias teorias, modernas e antigas e também as bíblicas, sobre o fim do mundo.

Então, pela primeira vez, veio-me à mente a noção de que o sol, com seu sistema de planetas, estaria, e tinha sempre estado, viajando através do espaço a uma velocidade incrível. Abruptamente, surgiu a questão: para onde? Por um tempo enorme eu pensei no assunto, mas finalmente, com a compreensão da futilidade de meu embaraço, deixei meus pensamentos vagarem para outras coisas. Comecei a me perguntar, por exemplo, quanto tempo a casa duraria de pé. Também me perguntei se eu estaria destinado a permanecer na Terra, incorpóreo, através da era de escuridão que eu sabia aproximar-se. De tais pensamentos eu passei novamente a especular sobre a possível direção da viagem do sol pelo espaço… e então um outro grande intervalo de tempo passou.

Com a passagem gradual do tempo eu comecei a sentir a friagem de um forte inverno. Lembrei-me então que, se o sol estava morrendo, o frio deveria estar mesmo extraordinariamente intenso. Lenta, lentamente, à medida em que as épocas fluíam rumo à eternidade, a Terra imergia em uma luminosidade cada vez mais pesada e vermelha. A chama fosca no firmamento assumia um tom cada vez mais escuro, sombrio e turvo.

Por fim, percebi que tinha havido uma mudança. A flamejante cortina de fogo que se estendera oscilante pelo céu, chegando até o céu meridional, começou a desvanecer e encolher, tal como as vibrações de uma corda de harpa, até que eu vi mais uma vez o sol atravessar o céu como uma correnteza de luz que se agitava, adoidadamente, para o Norte e para o Sul.

Aos poucos a semelhança com um lençol de fogo desapareceu e eu pude ver, claramente, a batida lenta da rota do sol. Porém, mesmo então, a velocidade de sua passagem era inconcebivelmente alta. E todo o tempo, o brilho do arco de fogo se tornava cada vez mais embotado. Abaixo dele, o mundo jazia na penumbra, uma região indistinta e espectral.

Acima, o rio de chamas oscilava mais lentamente, cada vez mais lentamente, até que, por fim, passou a mover-se norte-sul em ciclos amplos e lentos, que duravam alguns segundos. Um longo tempo passou, e então os movimentos do grande cinturão passaram a durar quase um minuto, até que, depois de mais outro grande intervalo, deixei de distinguir um movimento visível, e o leito de fogo através do céu corria como um rio manso de chamas foscas cercado por um céu de aparência morta.

Um período de tempo indefinido se passou, e pareceu que o arco de fogo se tornou menos definido. Ele pareceu mais tênue, e eu pensei ver listras negras ocasionalmente. Naquele momento, diante de meus olhos, o movimento contínuo cessou e eu pude perceber escurecimentos momentâneos, mas a intervalos regulares. Continavam aumentando até que, mais uma vez, a noite caía, como momentos periódicos de trevas sobre a terra exausta.

As noites foram ficando cada vez mais longas e os dias as igualavam em duração, de forma que, por fim, o dia e a noite adquiriram a duração de segundos, e o sol se mostrou mais uma vez, como uma bola vermelho-cobre quase invisível, envolta em uma espécie de neblina luminosa. Correspondendo às linhas escuras que se mostravam, às vezes, em sua luz, apareciam ocasionalmente, de forma bem distinta em sua própria face, grandes faixas escuras.

Anos e anos se tornaram passado, e os dias e noites se alargaram até a duração de minutos. O sol já não tinha mais nenhuma cauda aparente, nascendo e se pondo como um tremendo globo de coloração bronzeada, em parte circulado por faixas vermelho sangue, em outras partes cheio de manchas escuras, como já disse. Tais círculos, tanto os vermelhos quanto os negros, eram de largura variável. Por um momento eu não consegui compreender sua presença. Então me ocorreu que seria bem pouco provável que o sol esfriasse uniformemente em sua superfície, e que todas aquelas marcas seriam devidas, provavelmente, a diferenças de temperatura entre as várias regiões; o vermelho representando as partes ainda relativamente quentes e o negro, aquelas porções já comparativamente frias.

Ocorreu-me ser algo peculiar que o sol esfriasse em faixas tão regulares, até que me lembrei que elas seriam, provavelmente, trechos isolados que assumiam uma aparência de listras devido à grande velocidade de rotação do astro. O sol, por sua vez, estava muito maior do que o que eu conhecera nos velhos dias, e disso eu concluí que ele deveria estar consideravelmente mais próximo.1

Durante as noites, a Lua ainda aparecia,2 mas pequena e remota, e a luz que refletia era tão fraca e fosca que ela parecia ser pouco mais que um fantasma da velha lua, a que eu conhecera.

Gradualmente os dias e noites se alongaram, até que igualaram a duração mais ou menos equivalente à de uma hora dos antigos dias; com o sol nascendo e se pondo como um grande disco de bronze avermelhado, rajado de faixas de negro profundo. Mais ou menos então eu me achei capaz de, novamente, ver os jardins com clareza. Pois o mundo tinha então se tornado muito lento, imóvel e imutável. Porém, não é certo que eu diga “jardins” — pois não havia mais jardins, ou qualquer coisa que eu entendesse ou reconhecesse. No lugar deles eu via apenas uma vasta planície, que se estendia pela distância. Um pouco à minha esquerda havia uma cadeia de colinas baixas. Por toda parte havia a cobertura uniforme da neve, que em alguns lugares formava outeiros e ravinas.

Foi somente então que eu percebi o quanto a nevasca tinha sido grande. Em alguns lugares a neve se aprofundava imensamente, como testemunhava uma grande monte ondulante à minha direita, embora não fosse impossível que esta aparência se devesse em parte à algum soerguimento da superfície do mundo. Estranhamente, contudo, a cadeia de colinas à minha esquerda — já mencionada — não estava totalmente coberta pela neve universal. Em vez disso, apareciam em vários pontos as suas encostas descarnadas e escuras. E por toda parte reinava sempre um inacreditável silêncio de morte e desolação. A quietude imóvel e horrível de um mundo moribundo.

Todo esse tempo os dias e noites tinham ficado perceptivelmente mais longos. Cada dia já ocupava, talvez, duas horas entre a aurora e o ocaso. À noite, eu me surpreendi com a descoberta de que havia pouquíssimas estrelas no céu, e estas eram pequenas, embora dotadas de um brilho extraordinário, que eu atribuí à escuridão absoluta, mas transparente e peculiar, daquelas noites.

Na direção do Norte eu discernia uma espécie de nebulosidade indefinida, não muito diferente, em aparência, de uma porção qualquer da Via Láctea. Poderia ser um aglomerado de estrelas extremamente remoto ou — o pensamento me sobreveio de repente — talvez o universo sideral que eu conhecera, então deixado para trás para sempre, uma nuvem apagada de estrelas, perdidas nas profundezas do espaço.

Os dias e noites ainda aumentavam de duração, sempre lentamente. O sol cada vez se erguia mais apagado do que se pusera. E as faixas escuras aumentavam de largura.

Nesse momento aconteceu algo novo. O sol, a terra e o céu subitamente ficaram obscurecidos e pareceram invisíveis por um breve instante. Eu tive a sensação (pois pouco podia enxergar) de que a terra estava passando por uma grande nevasca. Então, em um instante, o véu que ocultara a tudo se dissipou e eu olhei novamente para fora. Uma visão maravilhosa me encontrou. A depressão na qual esta casa e seus jardins se localizam estava cheio até à borda com a neve.3 Ela chegava até o parapeito da minha janela. Por toda parte ela se estendia, uma grande extensão branca, que recebia e refletia melancolicamente os raios sombrios do moribundo sol acobreado. O mundo se tornara uma planície sem sombras, de horizonte a horizonte.4</sup>

Olhei então para o sol. Ele brilhava com uma clareza extraordinária, mas mortiça. Eu o via então como alguém que até então só o vira através de um meio parcialmente ofuscante. Ao redor dele o céu se tornara totalmente negro, de um negrume total, profundo, claro e assustador pela sua proximidade, pela sua extensão incomensurável, e por sua completa hostilidade. Por um tempo muito longo eu olhei para ele, maravilhado, abalado e cheio de medo. Ele estava muito próximo. Se eu fosse uma criança, eu teria expressado minha sensação de angústia dizendo que o céu tinha perdido seu teto.

Depois, então, eu olhei em torno de mim, pelo cômodo. Por toda parte ele estava coberto de uma mortalha fina de branco onipresente. Eu só conseguia enxergar com muita dificuldade, tão sombria era a luz que iluminava o mundo. Aquela brancura parecia agarrar-se às paredes arruinadas e a poeira espessa e macia dos milênios, que recobrira o chão até a altura dos joelhos, não estava mais visível. A nevasca provavelmente soprara pelas janelas e gretas. Porém em lugar algum ela se acumulara, mas se depositara por todo o velho cômodo de uma forma suave e igual. De qualquer forma, não tinha ventado nos últimos milênios. Mas havia neve, como disse.5</sup>

E a Terra estava silenciosa. E havia um frio como nenhum homem jamais viveu para conhecer.

A Terra era então iluminada, de dia, por uma luz muito lúgubre, além de meu poder de descrição. Era como se eu enxergasse uma grande planície através de um mar tingido em tons de bronze.

Era evidente que o movimento de rotação da Terra estava cessando, regularmente.6</sup>

Então o fim veio, de uma vez. A noite tinha sido a mais longa de todas, e quando o sol moribundo nasceu, finalmente, à borda do mundo, eu tinha ficado tão cansado da escuridão que o saudei como a um amigo. Ele se ergueu firmemente até mais ou menos uns vinte graus acima do horizonte. Então ele parou subitamente e, depois de um breve e estranho movimento retrógrado, ficou parado, um grande escudo no céu.7</sup> Apenas a borda circular aparecia brilhando. Apenas ela e uma estreita faixa de luz próxima ao equador.

Gradualmente até mesmo esta faixa estreita de luz se apagou, deixando do antigo e glorioso sol apenas um vasto disco morto, circulado por uma estreita fímbria de luz vermelho-bronze.

As “Notas do Editor” mencionadas abaixo foram, na verdade, escritas pelo próprio William Hope Hodgson, que apresenta este livro como a publicação de um manuscrito encontrado nas ruínas da Casa.

1. Devido à época em que esta obra foi originalmente publicada, o autor não teria como saber a real velocidade de rotação do sol (mencionada acima) ou os processos envolvidos na decadência e morte de uma estrela. Neste aspecto, em particular, um autor moderno teria dito que o sol havia realmente crescido, e não que a Terra se aproximara dele — Nota do Tradutor.

2. Não é será feita nenhuma menção posterior à Lua. A partir do que aqui é dito, fica evidente que o nosso satélite teria se distanciado bastante da Terra. Possivelmente, em uma era mais tardia, ele poderia ter até mesmo se desprendido de sua atração. Não posso senão lamentar que nenhum esclarecimento seja feito quanto a esse ponto. — Nota do Editor.

3. Possivelmente o ar congelado — Nota do Editor.

4. Na hipótese de ocorrer um resfriamento da terra suficiente para fazer a atmosfera cair em forma de neve, isto não seria, de fato, suficiente para cobrir todo o planeta (como Hodgson corretamente descreve), pois a massa total da atmosfera é cerca de trezentas vezes menor que a massa total dos oceanos — Nota do Tradutor.

5. Ver as notas prévias. Isto explicaria a neve (?) pelo cômodo — Nota do Editor.

6. Conforme o autor já mencionou anteriormente, à medida em que o sol perdia luminosidade a Terra se aproximava dele e girava mais devagar. Este processo, curiosamente, está de acordo com os princípios da gravitação, mais uma vez evidenciando que Hodgson pesquisou antes de escrever, pois a uma proximidade muito grande do Sol, a gravidade deste faria com que a duração dos dias e anos passasse a coincidir, um fenômeno conhecido como “acoplamento de maré”. Inclusive o afastamento da Lua é algo predito pela astronomia — Nota do Tradutor.

7. Fico confuso que nem aqui e nem mais tarde o Recluso faça qualquer menção da continuidade do movimento Norte-Sul (movimento aparente, é claro) que o sol deveria executar de solstício a solstício — Nota do Editor. A falta desta menção é compreensível se supusermos que a aproximação em relação ao sol também teve o efeito de mudar o eixo de rotação da Terra, tornando-o em ângulo reto com o plano da eclíptica — Nota do Tradutor.


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