Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
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Set 11
publicado por José Geraldo, às 12:10link do post | comentar
Este texto é parte do romance “Serra da Estrela“, que estou publicando em capítulos quinzenais. Visite a página de índice para acompanhar a história completa.

Ele era um rapaz muito estranho que chegou à faculdade no fim da quaresma de 198… com apenas a roupa do corpo. Tinha uma barba ruiva muito rara e unhas enormes, endurecidas e escuras. Meu Deus, como ele fedia!

Poderia ser apenas outro mendigo que invadia o campus para cagar ou esmolar, outro caso para a guarda dar cabo. Mas percebi algo diferente quando ele, assustado ao me ver, por uma razão inexplicável, começou a falar em um estranho dialeto que, de imediato, me evocou algo muito familiar, de tão inesperado. Ele repetia ñe’ë nde ñe’ëngatu yvyt’îara?, palavras que eu imaginei que soavam como deveria ser a língua mestiça da gente do Brasil-Colônia, a Língua Geral Brasílica formada pelo tupinambá paulista acrescentado dos vocábulos e estruturas sintáticas extraídas do português para o que fosse necessário.

Foi isso que me chamou a atenção para aquela criatura. Poucos mais no campus teria notado algo de especial nisso, mas minha cátedra de História do Brasil me permitia saber que me tomava por algum tipo de divindade. Não foi, porém, esse engano que me chamou a atenção, mas ele estar falando em uma língua esquecida há séculos, que a maioria dos brasileiros nem sabe que os seus tataravôs falavam, cujos traços se revelam nas amputações e enxertos que fizemos na Última Flor do Lácio Inculta e Bela. Resolvi que ele merecia algum estudo e pedi autorização à reitoria para mantê-lo no campus por algumas semanas, a fim de poder colher mais informações sobre quem era e o que estava fazendo no mundo dos vivos.

A presença de José Gaspar foi o acontecimento mais comentado do primeiro semestre, embora ele se mantivesse tremendamente arredio no cubículo que lhe arranjamos e nunca ousasse falar com ninguém. Todas as nossas tentativas de comunicação foram em vão durante semanas, pois ele parecia falar apenas aquele idioma esdrúxulo. Mas um dia, quando estávamos os dois sentados num banquinho próximo ao Jardim Botânico, ele apontou para umas touças de capim que cresciam selvagens junto a uma parede e disse, em trôpego, mas claro português:

— Os pranta num gosta de cantêro.

— Hem? Você fala nossa língua?

— Falo que todo mundo fala.

— Por que, então, não falou conosco desde o começo.

— Porque meu sinhô divia de falar em língua de gente bom.

Era nítido o esforço dele para escolher palavras e tentar encaixar nos rudimentos de português o que tentava dizer, como alguém que sabe uma língua estrangeira, mas sabe mal e sabe pouco. Cooperei com ele, simplificando as frases ao máximo ao tentar conversar.

— Seu nome é?

— Izé Gaspar Barboza, seu criado.

Seu cumprimento tinha o cheiro de um baú de tesouro do século dezoito, uma antiguidade escavada em algum lugar e perdida na mão de um atravessador.

— Gil Fernandes. De onde você é?

— Sô de Serra de ‘Strela.

— Onde fica isso?

Ele me olhou, desesperado. Era óbvio que não sabia. Dava para ler em seus olhos que era um pobre analfabeto de quinta ou sexta geração, talvez descendente de uma família que jamais tivera um letrado. O pobre coitado nem falava português, mas uma língua de antigos índios na qual nem havia palavras para a maior parte das coisas que via ao seu redor e na qual sequer havia termos para os pontos cardeais ou contagem maior que quatro. Não, ele não sabia onde era a “Serra da Estrela”, ele não tinha a menor noção de orientação geográfica.

— E por que saiu de lá?

— Eu vim buscar senhor. Meu irmão precisa senhor.

— Muito bem, gostaria muito de conhecer seu irmão, a tal Serra da Estrela, e tudo o mais. Nas férias de julho será um prazer ir até lá. O lugar de onde você veio deve, no mínimo, ser tão interessante quanto você.

— O senhor não fala assim, não é jeito de falar.

— Mas como eu posso ir consigo até a Serra da Estrela se você não sabe onde fica?

Ele devaneou por instantes, e então disse, brincando com a barba que já crescia outra vez desde que lhe pagáramos um barbeiro:

— Eu lembro como vim. Consego vortar.

— E se eu for com você até a Serra da Estrela, o que vamos fazer quando chegarmos lá? O que o seu irmão quer comigo?

— Num sei. Quando chegar em casa, ele vai dizer p’r ‘cê. Mais fica tranqüilo q’ meu irmão é pessoa de bom. Ele não gosta de coisa errado não sinhor.

Foi então que percebi o irritante solecismo de jamais usar gênero feminino e raramente artigos. Pensando bem, era algo que fazia sentido se tinha nheengatu como língua materna, especialmente se aprendera português depois de adulto ou, conforme começava a suspeitar, se o aprendera aos trancos e barrancos depois de sair da Serra da Estrela. Nas línguas do tronco tupi-guarani não há gênero e nem artigo. O complicado disso é que eu não teria como saber se ele me queria buscar a mando de um irmão ou uma irmã, só se perguntasse diretamente.

— Tykyra? Tendyra?

Ele se surpreendeu que eu conhecesse ao menos alguma palavra de sua própria língua e sorrindo emendou uma matraqueada interminável da qual só consegui entender as duas primeiras palavras: xe tendyra, “minha irmã”. Ao perceber, porém, que eu não era fluente em sua língua ele perdeu o entusiasmo e ficou taciturno como antes. Senti até uma ponta de remorso por não conhecer a velha língua geral brasílica, embora fizesse parte do escopo de minha cátedra. Mas para que aprendê-la se não havia ninguém com quem falar?

Instalamos José Gaspar como jardineiro. Ninguém poderia ter-lhe feito algo melhor, pois ele parecia amar às plantas muito mais do que aos seres humanos. Cuidava delas com desvelo e incrível competência, podando-as e organizando-as de uma forma peculiar, assimétrica, mas extremamente produtiva. Sob suas mãos aquelas plantas raquíticas ganhavam vida, árvores murchas davam fruto.

Com os alunos havia um problema. Embora ele não desse grande bola para os garotos, se irritava com a presença de qualquer aluna vestida em trajes mínimos — que a moda manda e os jovens livres obedecem sem questão. Irritação não é exatamente a melhor palavra para descrever, mas tenho um bacharelado em História e não uma graduação em Psicologia. Ele se sentia excitado por elas, como se nunca tivesse visto nada semelhante, mas ao mesmo tempo se reprimia e retraía, raivoso. Mais tarde descobrimos que ele frequentemente se açoitava à noite usando um chicote de urtigas que ele mesmo fizera.

O caso foi objeto de uma reunião do Diretório Acadêmico. Eu compareci, tentando atrair simpatias para a causa de José Gaspar. Acima de tudo, queria convencer as meninas a não se vestirem com roupas tão parecidas com trajes de praia, afinal estávamos a mais de trezentos quilômetros do litoral.

— É uma questão de humanidade — tentei explicar ao presidente do Diretório — ele é uma pessoa desajustada, completamente inapta para o convívio em sociedade.

— Mas o que essa criatura está fazendo no campus? Isso é um absurdo. Ele pode ser um assassino fugitivo, ou quem sabe um maníaco. Devíamos chamar a Polícia.

— Na verdade nós já chamamos, mas eles não têm nenhuma queixa contra o coitado, que me parece mais frágil do que ameaçador — ajudou-me a colega da faculdade de Psicologia.

— Mesmo assim, o que esse cara faz no campus? — insistiu uma terceiranista de Direito.

— Nós achamos que é um caso interessante para a ciência. E considerando que ele tem se mostrado tranquilo, socialmente produtivo e razoavelmente benigno de comportamento, imaginamos que seja possível mantê-lo aqui, cuidando das plantas, em vez de colocá-lo num manicômio, onde será abusado e agredido e não terá a menor chance de encontrar uma inserção na sociedade. Claro que é uma opção que ainda temos, mas esperamos não ser necessário, se tivermos um pouco de cooperação por alguns meses.

Saímos da reunião sem nenhuma promessa concreta, mas nos dias seguintes a frequência de estudantes ao Jardim Botânico para ver o “bicho do mato que Gil instalou no campus” foi rareando até tornar-se apenas ocasional — e exatamente aí estava o perigo.

José Gaspar começou a mudar, a olhos vistos. O que pagávamos não era muito, mas ele logo aprendeu a conhecer dinheiro, mostrando que não era bronco como supúnhamos. Essa conquista foi uma evolução notável em aparência, pois passou a barbear-se e cortar o cabelo semanalmente, sempre sábados pela manhã, a banhar-se todos dias e a cortar as unhas, que começaram a clarear e a ter uma aparência menos animalescamente dura. O rádio, presente de algum estudante gaiato, acabou sendo outro elemento integrador, pois permitiu melhorar a fluência em português com uma facilidade que evidenciava intelecto acima da média.

Quando o fim do semestre se aproximava, ele já não era o lobisomem fedido que chegara ao campus, mas se revelara um rapaz de boa aparência, de cabelos castanho-avermelhados e olhos verdes, que teria entre seus vinte e cinco e trinta anos. Falava português cada dia melhor e já não o víamos nunca remoendo sozinho em seu dialeto. Descobri, para meu espanto, que uma aluna de Pedagogia andara ensinando-lhe a ler — e que ele aprendera razoavelmente. Maior foi meu espanto ao descobrir que a mesma aluna costumava dormir com ele na residência de caseiro que ele ocupava!

Foi um escândalo que a muito custo se conseguiu abafar. O reitor esteve a ponto de me demitir da cátedra, mas a casualidade feliz de se tratar de uma estudante baiana cujos pais viviam a centenas de quilômetros de distância salvou o meu emprego.

— Lamento, Gil, mas o seu “experimento” tem que acabar. Esse sujeito não pode ficar no campus nem mais um dia. Ou então vai ser você que não poderá ficar!

— Ele não pode ficar nem ao menos até o fim do semestre? Ele tinha prometido me levar até a terra de onde ele veio, porque sua irmã, por alguma razão, quer falar comigo.

— E você, com essa sua mentalidade de ameba adolescente, acha que é uma boa ideia ir com esse estuprador até Deus sabe onde?

— Ele não é estuprador, ao que consta a aluna ficou com ele por livre e espontânea vontade.

— Nenhuma moça de família se entrega por livre e espontânea vontade a um lobisomem daqueles! Isso é loucura!

Naquele dia percebi que não basta ser reitor de uma universidade tão antiga para superar preconceitos arraigados na tradição. Na cabeça daquele luminar da filosofia nacional, que dirigia um dos maiores centros de saber do país era inimaginável que uma mulher de classe média fosse sexualmente atraída por um homem analfabeto e de origem desconhecida, mesmo que ele fosse, de fato, um bom pedaço, e ainda por cima intelectualmente brilhante, como estava se revelando a cada dia.

Não consegui dobrar o reitor, mas consegui avisar José Gaspar da necessidade de evadir-se, e rápido, antes que a polícia o buscasse ou que fosse posto num manicômio — conceitos que ele, de forma quase inacreditável, pareceu compreender.

Manuseando um calendário (meu Deus, o que é essa criatura?), ele me encarou com seus olhos fuzilantes e me perguntou quando terminavam, exatamente, as aulas. Marcou no calendário o dia que lhe disse e começou a arrumar suas coisas, com uma paciência perigosa.

— Não se preocupe comigo, estou bem e vou me arranjar, não sou mais nenhum índio. No dia sete me encontre, às sete da manhã, à porta da Universidade.

— Aonde vamos?

— Serra da Estrela. Devo isso à minha irmã, levar você lá. Depois volto a buscar Rafaela.

— Meu Deus, Gaspar. Você acha que…

— Tudo vai se resolver mais rápido e mais fácil do que você imagina, Gil. Eu vou conseguir um registro de nascimento falso em algum lugar por aí, dizendo que sou índio.

— Não vão acreditar em você, não com esses olhos verdes.

— Olhos verdes podem ser facilmente ocultos por lentes.

— Eu fico sem saber o que pensar, é chocante a quantidade de coisas que você aprendeu em pouco mais de três meses aqui.

— Eu vim parar no melhor lugar do país para aprender coisas, e não perdi meu tempo.

— De fato não perdeu. Mas o que pretende com seu registro de nascimento?

— Obter documentos, arranjar-me na vida. Rafaela prometeu me esperar por dois anos.

Rafaela não era nem um pouco bonita. Era vesga, macérrima, usava um pesado aparelho nos dentes e tinha o nariz torto, herança de um lábio leporino várias vezes operado. Ainda era um pouco fanha, embora não muito, e tinha a pele coberta de sardas e manchas, especialmente no colo e nas costas. Era óbvio que José Gaspar havia aprendido também isso: que um casamento de interesse com uma herdeira rica e feia é uma ótima maneira para um joão ninguém se fazer na vida. Parecia muito natural que uma jovem tão sem atrativos esperasse por dois anos um homem tão bonito. E o mais engraçado era que eu não achava mais nenhum absurdo que ele em dois anos, talvez, conseguisse chegar à casa dos pais dela montado em um carro novo e ostentando o talão de cheques de uma conta garantida.

— O que vai fazer com ela?

— Ei, eu não sou nenhum monstro, ao contrário do que você possa pensar. Prometo que vou fazer Rafinha feliz.

— Ela não é uma mulher muito bonita…

— Ah, isso não me preocupa. Eu tenho muito tempo para encontrar mulheres mais bonitas no mundo — as respostas de José Gaspar ficavam cada vez mais enigmáticas.

— Seu nome é mesmo José Gaspar?

— Lhe juro pela Santa Madre Igreja.

— Você nunca foi à missa todos esses meses.

— Isso não posso fazer, mas juro que creio mais na Santa Igreja Católica do que você. Tenho todos os motivos do mundo para saber que o ensinamento de Sua Santidade, o Papa, é infalível.

Ele disse isso com uma sinceridade quase vociferante. Não me parecia nem lícito duvidar.

— Mas como pode cumprir os mandamentos sem assistir as missas de preceito, homem?

— Eu cumpro outros mandamentos da Santa Madre Igreja.


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