A minha curiosidade por ele era, evidentemente, de cunho apenas acadêmico. Não sou de me atrair facilmente por estranhos, mesmo que tenham olhos verdes ou uma capacidade sobrenatural para aprender idiomas. Mas em que lugar de Minas Gerais, em pleno século XX, ainda haveria uma comunidade de pessoas falando o nheengatu extinto ainda no tempo do Império? Principalmente porque nem os índios que teimavam, os pobres machacalis, crenaques, pataxós e xacriabás que vamos extinguindo aos poucos, falavam aquele tipo específico de nheengatu que eu ouvia. Tratava-se de um grupo humano totalmente desconhecido, talvez não indígena, mas descendente dos mestiços paulistas dos séculos XVII e XVIII que haviam colonizado Minas Gerais antes da chegada dos “emboabas”. Tratava-se do assunto de minha tese de doutorado. Tratava-se de uma ótima razão para seguir José Gaspar.
No dia sete de julho o encontrei, às sete da manhã, conforme prometido, no trevo da saída da Universidade. Ele entrou no carro ainda com receio, como se ainda se sentisse incomodado com o ruído do motor ou o “estranho cheiro de maldade“ que os veículos exalavam, em sua opinião. Estava bem vestido e trazia várias malas extremamente pesadas. Nem quis lhe perguntar como conseguira trazer tudo aquilo. Sua boa aparência indicava que não andava tendo problemas para se virar no mundo: tinha a barba raspada, os cabelos bem cortados, as unhas feitas e um cheiro suave de perfume vulgar. O tamanho das malas, porém, não deixou de cutucar a minha curiosidade pelo resto do dia.
Foi a primeira vez que pude vê-lo à luz plena do sol, sem qualquer sombra de árvore ou cortina escura suavizando os seus traços — e foi pela primeira vez que percebi as doses generosas de sangue índio e africano que corriam em suas veias, apesar de seus olhos verdes. Tinha o rosto quadrado, certamente herança germânica como os olhos, mas as maçãs eram salientes e rosadas. O queixo era largo e proeminente, com dentes grandes, saudáveis e perfeitamente alinhados, embora um tanto pontiagudos. Seu cabelo era liso e grosso quase como arame e sua pele tinha uma cor que parecia a mescla de todas as cores de pele possíveis no Brasil, embora clara de um jeito que não parecia natural. Não havia rugas em sua expressão, mas muitas pequenas cicatrizes.
Tentei não observá-lo muito, pois percebi que ele se incomodava com isso, pelo menos em relação a mim. Ajudei-o a por suas malas no carro — uma espaçosa, mas pouco econômica Belina 1.8 — e nos pusemos a caminho.
Enquanto eu contornava os intrincados cruzamentos que nos levariam à rodovia, percebi que estava me deixando levar por ele a um lugar que eu nem sabia direito aonde deveria ser. A surpresa desta constatação me fez, pela primeira vez, pedir-lhe detalhes de onde ficava Serra da Estrela, que tipo de lugar era, que tipo de gente havia lá:
— Sem isso — disse-lhe — não vou segui-lo até lá.
— Seguir-me você vai — ele comentou, algo ameaçadoramente — mas não faz mal dizer aonde.
Iniciou, então, uma correnteza de palavras entusiasmadas que me fizeram quase começar uma sonolência. Parei o carro, com a cabeça atordoada, e fui escutando os movimentos de sua boca, os estalidos de seus lábios e dentes, mas não o som de sua voz. Mas de alguma forma eu sabia que ele estava dizendo alguma coisa. E quando, finalmente, acordei de um sobressalto, eu sabia o que ele tinha dito — e nunca mais esqueci.
Quem anda pelas estradas do interior de Minas Gerais, especialmente à noite, fica se perguntando aonde levam tantos estreitos caminhos de terra que se juntam ao asfalto. Esses caminhos que desaparecem atrás da primeira colina ou que mergulham nas trevas de um resto de mata ou que simplesmente se perdem da vista atrás de uma curva são, quase todos, absolutamente normais. Quem entre por um deles simplesmente chegará a algum sítio ou fábrica, a um arraial ou talvez apenas a um descampado solitário. Mas há pelo menos um deles que não é assim: um desses caminhos sai da normalidade e se perde na Serra da Estrela.
É um caminho que se parece com todos os outros caminhos do interior do estado: estreito e sem enfeites, saindo do asfalto e seguindo entre barrancos altos, ladeado de cercas e quase sempre sem nenhum pedestre rompendo a solidão. Mas há certas noites nas quais é possível ver à margem dele um outro caminho que leva o andarilho a se perder. Um caminho que, ao contrário dos caminhos cristãos e seguros do mundo mapeado em que vivemos, tem um gênio incerto e serpenteia traiçoeiro por entre os montes e as capoeiras, levando o caminhante ousado aonde não deveria ir.
Saindo de Cataguases em direção a Barbacena, alguns quilômetros depois de Astolfo Dutra, talvez além de Piraúba, certamente antes de se deparar com as primeiras araucárias; é mais ou menos por aí que o viajante deverá entrar em uma estrada vicinal estreita, do lado esquerdo da rodovia e tomar um trilho antigo que passa por entre altas árvores que ninguém tem coragem de cortar. Saindo dele dá para ver um morro arredondado com três pedras em cima, que parecem ter sido postas lá. Ali começa o rádio a não pegar, a memória a vacilar, como se passarinhos estivessem comendo as migalhas de pão que levariam à estrada normal outra vez. Além desse morro desce o trilho ainda mais antigo, que segue por três sétimos de uma légua, passando por três encruzilhada. Siga sempre reto e na terceira delas escolha a esquerda e passe por uma grota sombreada por árvores grossas e sem flores. Além da grota estará, se for a lua certa, um brejo sempre úmido em qualquer seca, que brilhará de um modo raro com os raios frescos de uma lua cheia. Pelo meio do brejo vem descendo um córrego pequeno e preguiçoso, fazendo voltas como uma cobra num terreiro quente.
Esse córrego vem de uma terra esquecida dos mapas e satélites, que não existe, mas ao mesmo tempo existe tão materialmente quanto nós. Muita gente não sabe, nem os próprios moradores daquelas paragens desconfiam, embora haja comentários, sempre à boca pequena, de estranhas coisas, de misteriosos aparecimentos e desaparições — ainda pior, de parições. A Serra da Estrela parece existir apenas na imaginação da gente supersticiosa mas ocasionalmente ela aparece, mesmo para o mais cético — como apareceu para mim, na figura de José Gaspar.
Minha cabeça ainda queimava, mas era o sol que batia na minha fronte através do parabrisas sem proteção, mas eu tinha a sensação de que a minha alma estivera perambulando por caminhos, por dias, mas era só uma sensação. E José Gaspar, pela primeira vez, me deu algum medo.
— Um dos lugares para entrar é pelo brejo. Não precisa ser por dentro dele, é só achar de onde sai o córrego e entrar. Por lá se vai a pé, caminhando contra correnteza, com cuidado, certo. Mesmo que a lua seja clara. É escuro, há aranhas, mas vou na frente com uma vara arrebentando as teia e chegamos seguros do outro lado.
— E não dá para ir de carro?
Ele me respondeu como se eu lhe tivesse dito a maior das imbecilidades:
— Na Serra da Estrela não existe carro.
E esta frase soou tão esquisita, tão deploravelmente definitiva, que tive a impressão de que na Serra da Estrela seria impossível uma vida normal. Nunca soubera ser tão capaz de adivinhar.
Liguei o motor novamente e saí dirigindo. Se eu tivesse juízo talvez tivesse voltado dali, mas havia alguma coisa na promessa de entrar em tal lugar que me fazia querer ir, mesmo com a companhia inconfiável de José Gaspar.
— Você já me falou bastante sobre o lugar aonde vamos — disse-lhe — mas ainda nada disse sobre quem eu vou ver por lá.
— Melhor não falar sobre isso. Tem coisa mais importante que preciso dizer.
— Bom saber disso. Vamos logo ao ponto.
— O ponto é que eu vou levar você até a Serra da Estrela, mas não vou entrar.
— Por que não?
— Tenho minhas razões, e “perfiro” não comentar — ele ainda escorregava na pronúncia, mostrando que era humano, afinal.
Mas o que eu vou fazer lá sem ninguém que me oriente? Vou é me perder e não encontrar ninguém.
Ele sorriu, quase com maldade.
— Sempre se encontra alguém, ou alguém lhe encontra.
Você me falava de sua irmã quando me chamou para ir até lá.
Ele novamente sorriu, com uma malícia que me incomodava:
— Não se avexe, minha irmã vai te achar, mesmo que você esteja sem rumo.
— O que a sua irmã quer comigo, exatamente?
— Minha irmã quer ver você por amor de lhe dizer algumas coisas. Ela vai receber você e vai “orientar” — a maneira como ele acentuou a palavra me sugeriu que ele a estava aprendendo naquele momento.
Ele ainda relutava em dizer, porém, o que a sua irmã queria comigo. Resolvi tentar adivinhar.
— Fale-me sobre ela: nome, endereço, profissão, cor do cabelo, essas coisas.
— Ela se chama Filipa Gaspar Barbosa e mora lá na Serra da Estrela. Ela já saiu uma vez, mas voltou. Ela fala português, e quer muito encontrar você.
Em umas poucas palavras, mais informação sobre ela do que em meses. Descobri que “Gaspar” era um nome de família, que havia pessoas entrando e saindo da Serra da Estrela — ele nem era o primeiro — e que para a gente que vivia em tal lugar o português era como se fosse uma língua estrangeira.
— Ora, mas isso é muito interessante. Contar com alguém que fala português…
Havia certa ironia no meu jeito de falar. José Gaspar pareceu não perceber. Havia certas sutilezas de expressão verbal, ou mesmo corporal, que ele parecia não ter a sensibilidade de notar.
Curiosamente, porém, aquelas foram todas as informções sobre Felipa que eu consegui obter. José Gaspar tinha resolvido, novamente, fechar-se em si. Enquanto eu tentava desesperadamente puxar assunto, ele resolveu se divertir manuseando os controles do rádio de longa distância que eu tinha instalado na Belina. Eu dirigia devagar, sem pressa alguma de chegar, pois sabia que o lugar tanto poderia ser muito longe ou depois da curva seguinte. Além de irmos devagar, ainda fazíamos pausas ocasionais, nas quais ele se “orientava”.
Ele tinha um jeito muito estranho de fazer isso. Não usava mapa algum, não sabia o nome de nenhum lugar e não perguntava a ninguém. Então, em vez de se fiar nessas noções educadas, pedia que parasse o carro sempre em cruzamentos ou encruzilhadas, bifurcações, trevos ou lugares quais onde destinos se dividam. Ali ele parava, olhava a paisagem em todas as direções, aparentava cheirar o vento e depois decretava:
— É para lá.
Dizia isso com uma certeza que não se podia nem pensar em discutir, entrava no carro e voltava a manusear o rádio até a vez seguinte. À medida em que o carro se deslocava, as estações FM apareciam e desapareciam, às vezes mal dando tempo de ouvir uma música. Ele então mudou para as ondas médias, mas se irritava com o chiado incessante. Foi brincando com os controles até chegar a uma emissora em ondas curtas, irradiando em alta potência e com som bem claro: era o serviço latinoamericano da Rádio Moscou.
“El gobierno israelí sigue rechazando las iniciativas de paz que … desde …”
Ele pareceu surpreender-se com aqueles sons, mas não esperou para ouvir muito. Torceu os controles e achou, pouco depois, o serviço africano da BBC anunciando resultados de futebol.
“Nottingham Forest 2 … Queens Park Rangers … one.”
As oscilações devidas ao longo trânsito atmosférico das ondas impedia que as notícias fossem ouvidas na íntegra, mas o magnetismo daquelas palavras alienígenas fazia brilharem os olhos dele. Mas a curiosidade era tão grande que ele não conseguia ouvir por mais que alguns minutos e logo passava à estação seguinte:
“Hier ist die Deutsche Welle…”
“Brodcasting from Manila, The Phillipines, this is FBC Radio International, signing on…”
— Eu não entendo o que estão dizendo essas pessoas.
— Normal, eles estão falando em outras línguas.
— Outras línguas… — ele saboreou a informação como se fosse uma novidade excitante.
— Não sabia que existem outras línguas?
— Não.
— Sabia que existia o nheengatu e o português.
— O que é nheengatu?
— Nheengatu é o que você falava.
— Eu falo a língua de minha gente. Mas parece que ninguém mais fala, só nós da Serra da Estrela — a informação pareceu trazer uma melancolia, um incômodo qualquer, quase uma lágrima.
Paramos para almoçar em um restaurante de beira de estrada. Comemos devagar, esperando a tarde passar: aonde íamos, só se pode chegar à noite. Então não havia pressa. Havia tempo para mais um pão de queijo ou, no caso dele, para mais um grande pedaço de carne mal passada, que ele destroçava animalescamente. Tentei novamente puxar assunto sobre a Serra da Estrela, mas ele não queria mais falar, era como se a preguiça de ter comido tanta carne lhe desse vontade de hibernar. Segui viagem o resto do dia com medo de me perder enquanto ele roncava enconstado desconfortavelmente no banco do carona. E me surpreendo até hoje de pensar no quanto eu aceitei com naturalidade todas as informações que ele me repassara. Tinham sido só algumas frases soltas, mas eu tinha ouvido muito mais. Seria a minha imaginação, ou estaríamos mesmo para tomar aquele caminho de conto de fadas?