Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
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Set 11
publicado por José Geraldo, às 16:43link do post | comentar
Este texto é parte do romance “A Casa no Fim do Mundo”, de William Hope Hodgson (1907), que estou traduzindo em capítulos semanais. Visite o Índice para lê-los em sequência.

Pimenta está morto! Mesmo agora, às vezes, eu mal consigo acreditar que está. Já se foram muitas semanas desde que eu voltei daquela estranha e terrível jornada através do espaço e do tempo. Há vezes, em meu sono, em que eu sonho sobre isso, e novamente atravesso todo aquele acontecimento temível. Quando acordo, os meus pensamentos continuam nisso. O Sol — aqueles Sóis, seriam eles realmente os grandes Sóis Centrais em torno dos quais o universo todo e os céus desconhecidos revolvem? Quem poderá dizer? E os glóbulos brilhantes flutuando eternamente na luz do Sol Verde! E o Mar do Sono, sobre o qual eles flutuam! Quão inacreditável é tudo isso. Se não fosse pelo Pimenta eu deveria inclinar-me, mesmo depois de todas as coisas extraordinárias que presenciei, a imaginar que tudo não passou de um gigantesco sonho. E depois, a assustadora nebulosa escura (com as suas multidões de esferas vermelhas) movendo-se sempre à sombra do Sol Escuro, percorrendo a sua estupenda órbita, eternamente envolva em trevas. E as faces que olhavam para mim! Deus, será que elas existem mesmo?… E ainda tem aquela pequena pilha de poeira cinzenta no chão de meu escritório. Não vou tocá-la.

Às vezes, quando estou mais calmo, tenho pensado no que aconteceu aos planetas exteriores do Sistema Solar. Ocorreu-me que eles devem ter se desprendido da atração do sol e se perdido no espaço. Isto é, porém, apenas uma hipótese. Há muitas coisas sobre as quais só posso cogitar.

Agora ao escrever, devo registrar que tenho a certeza de que algo horrível está por acontecer. Ontem à noite aconteceu uma coisa que me encheu de um terror ainda maior do que o pavor do Abismo. Vou escrever sobre isso agora e, se mais alguma coisa ocorrer, tentarei tomar nota disso no mesmo instante. Tenho uma sensação de que aconteceram mais coisas nesse último encontro do que em todos os outros. Estou trêmulo e nervoso, mesmo agora ao escrever. De alguma forma a more me parece não estar muito longe. Não que eu tema a morte — a morte como a entendemos. Mesmo assim está no ar algo que me dá medo — um horror frio e intangível. Eu o senti ontem à noite. Foi assim.

Ontem à noite eu estava sentado aqui no meu escritório, escrevendo. A porta que dá para o jardim estava entreaberta. Às vezes um ruído metálico soava debilmente. Ele vinha da corrente do cão que eu comprei depois que o Pimenta morreu. Eu não o deixo entrar na casa — não depois de Pimenta. Mesmo assim eu me sinto melhor em ter um cão por perto. São criaturas maravilhosas.

Eu estava muito concentrado em meu trabalho e o tempo passava depressa. Subitamente ouvi um ruído leve do lado de fora, na passagem do jardim… pat, pat, pat, era um som furtivo e singular. Ergui a cabeça em um movimento súbito e olhei pela pela porta aberta. Outra vez ouvi o ruído… pat, pat, pat. Parecia estar se aproximando. Com uma discreta sensação de nervosismo eu olhava para o jardim, mas a noite ocultava tudo.

Então o cão deu um longo ganido e eu me assutei. Por um minuto ou mais eu observei atentamente, mas não podia ouvir nada. Pouco depois eu peguei a pena, que havia deixado, e recomecei o meu trabalho. A sensação de nervosismo tinha passado, porque eu imaginei que o som ouvido não fora mais que o andar do cão em torno de seu canil, até o fim do comprimento de sua corrente.

Passou-se mais ou menos um quarto de hora, então, subitamente, o cão ganiu outra vez, e com uma nota de tristeza insistente, de tal forma que eu saltei de pé, deixando cair a pena e borrando a página que estava escrevendo.

“Maldito cão!” — eu murmurei, vendo o que tinha acontecido. Então, ao mesmo tempo em que dizia tais palavras, soou novamente aquele estranho pat, pat, pat. Estava horrivelmente perto — quase junto à porta, pelo que notei. Soube, então, que não poderia ter sido o cão, pois a corrente não lhe teria permitido vir tão perto.

O ganido do cão soou outra vez e eu notei, subconscientemente, a nódoa do medo que ele continha.

Fora da janela, no parapeito, eu podia ver Tip, o gato de estimação da minha irmã. Logo que o vi, ele saltou de pé, eriçando a cauda visivelmente. Por um instante ele permaneceu assim, parecendo olhar fixamente para algo na direção da porta. Então, rapidamente, ele começou a recuar através do parapeito até que, tendo chegado à parede, não pode recuar mais. Lá ele ficou, rígido, como se um terror extraordinário o tivesse congelado.

Assustado e curioso, peguei um bastão no canto do cômodo e fui até a porta em silêncio, levando uma das velas comigo. Eu tinha chegado a poucos passos quando, de repente, uma peculiar sensação de medo me afetou — um medo palpitante e real, sem que eu soubesse de que ou de onde. Tão grande era o meu terror que eu não perdi tempo, mas recuei pelo mesmo caminho, andando de costas e mantendo meu olhar cheio de medo fixo à porta. Gostaria muito de ter ido até lá fechá-la e cerrar a tranca, pois a mandei consertar e reforçar de tal maneira que ela ficou mais forte do que antes. Tal como o Tip, no entanto, eu continuei meu recuo inconsciente até que a parede me parasse. Quando isso ocorreu, comecei a olhar em volta apreensivamente. Nisso meus olhos pararam, momentaneamente, sobre a prateleira de armas de fogo e eu dei um passo na direção dela, mas parei, com a estranha reflexão de que elas seriam desnecessárias. Lá fora, no jardim, o cão gania estranhamente.

Subitamente ouvi o guincho feroz e prolongado do gato. Com um sobressalto, olhei em sua direção. Algo luminoso e fantasmagórico o envolvia, e crescia em minha visão. Aquilo tomou a forma de uma mão brilhante e transparente, com uma chama esverdeada e bruxuleante luzindo em torno de si. O gato deu um último e horrível ronronado e eu o vi queimar e soltar fumaça. Minha respiração saiu com um esgasgo e eu me apoiei contra a parede. Aquela parte da janela ficou coberta por uma mancha verde e fantástica, que escondia a coisa de mim, embora o brilho do fogo a atravessasse fracamente. Um fedor de queimado penetrou o cômodo.

Pat, pat, pat — alguma coisa passou pelo trilho no jardim e um odor leve de mofo pareceu entrar pela porta aberta e mesclar-se ao cheiro de queimado.

O cão tinha estado silencioso por alguns momentos. Então o ouvi uivar agudamente, como se sentisse dor. Então ele ficou quieto, exceto por um gemido ocasional de medo contido.

Um minuto se passou e então o partão do lado oeste do jardim bateu à distância. Depois disso, nada mais, nem mesmo o lamento do cão.

Eu devo ter estado parado por alguns minutos. Então um fragmento de coragem invadiu meu coração e eu corri receosamente até a porta, encostei-a e passei o ferrolho. Depois disso, por uma hora inteira, fiquei sentado, inerme, olhando rigidamente para o nada.

Lentamente a vida me voltou e eu tomei meu caminho, cambaleando, em direção à cama, no andar de cima.

Isto foi tudo.


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