Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
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Set 11
publicado por José Geraldo, às 09:15link do post | comentar
Este texto é parte do romance “A Casa no Fim do Mundo”, de William Hope Hodgson (1907), que estou traduzindo em capítulos semanais. Visite o Índice para lê-los em sequência.

Hoje cedo eu fui ao jardim, mas achei tudo normal. Próximo à porta eu examinei o trilho, buscando pegadas, mas, outra vez, não havia nada que me sugerisse se eu tinha ou não sonhado aquilo tudo ontem à noite.

Foi só quando fui ter com o cão que eu descobri provas tangíveis de que algo havia de fato acontecido. Quando cheguei ao canil, ele ficou escondido, encolhido em um canto, e eu tive que lhe chamar carinhosamente para fazê-lo vir até mim. Quando ele, enfim, consentiu em sair, foi de uma forma estranhamente acovardada e medrosa. Quando lhe acarinhei, minha atenção foi atraída por uma mancha esverdeada no seu flanco esquerdo. Examinando-a, vi que o pelo e a pele haviam sido aparentemente queimados ali, e a carne aparecia, viva e chamuscada. O formato da marca era curioso, lembrando-me a impressão de uma grande garra ou mão.

Eu me ergui pensativo. Meu olhar se dirigiu à janela do escritório. Os raios do sol nascente luziam sobre a mancha esfumada no canto inferior, fazendo-a oscilar entre verde e vermelho, curiosamente. Ah! Aquela era sem dúvida outra prova, e logo a Coisa horrível que vi ontem à noite me veio à memória. Olhei para o cão, outra vez. Eu sabia qual a causa daquela ferida de aparência tão odiosa em seu lado. Sabia, também, que a minha visão noturna tinha sido de algo real. E um grande desconforto me preencheu. Pimenta! Tip! E também aquele pobre animal! Olheu para o cão outra vez e notei que ele estava lambendo sua ferida.

“Pobre criatura!” — eu murmurei — e me curvei para acariciar sua cabeça. Com isso ele se pôs de pé, esfregando o focinho em minha mão e me lambendo avidamente.

Então eu o deixei, pois tinha outros assuntos para tratar.

Depois do jantar fui vê-lo outra vez. Ele parecia quieto e indisposto para sair do canil. Pela minha irmã soube que tinha se recusado a comer o dia todo. Ela parecia um tanto confusa ao me dizer isso, embora não fizesse idéia de nada que lhe desse motivo para ter receio.

O dia passou, quase sossegado. Depois do chá eu saí outra vez para dar uma olhada no cão. Ele parecia triste e algo inquieto, mas insistia em ficar no canil. Antes de trancar as portas para a noite eu mudei o canil de lugar, para longe da parede, de forma que eu pudesse vê-lo da janela durante a noite. Pensei até em trazê-lo para dentro de casa para passar a noite, mas o respeito me fez deixá-lo fora. Não posso dizer, aliás, que esta casa seja menos temível do que o jardim. Pimenta estava dentro de casa, e mesmo assim…

Agora são duas da manhã. Desde as oito eu vigiei o canil a partir da pequena janela lateral do escritório. Mas nada aconteceu e agora estou cansado demais para vigiar mais. Vou me deitar…

Durante a noite eu estive insone. Isto é raro em mim, mas consegui dormir um pouco quando já amanhecia.

Acordei cedo e visitei o cão depois do desjejum. Ele estava calmo, mas mal-humorado, e se recusou a sair. Gostaria que houvesse algum veterinário nas redondezas, eu lhe teria pedido para examinar a pobre criatura. Durante o dia inteiro ele não comeu nada mas demonstrou uma evidente necessidade de água — lambendo-a com avidez. Fiquei aliviado ao perceber isso.

A noite chegou e eu estou agora em meu escritório. Eu quero seguir o meu plano de ontem à noite e observar o canil. A porta que dá para o jardim está trancada e bloqueada. Estou decididamente feliz por haver grades nas janelas…

Noite: Meia noite já se foi. O cão estava silencioso até agora. Através da janela lateral, à minha esquerda, eu posso ver vagamente os contornos do canil. Pela primeira vez o cão se mexeu, ouvi o retinir de sua corrente. Olhei para fora rapidamente. Ao olhar, o cão se mexeu de novo, inquieto, e eu vi uma pequena mancha de luz difusa brilhar no interior do canil. Ela se apagou, então o cão se agitou de novo, e outra vez o brilho apareceu. Fiquei surpreso. O cão aquietou-se e eu ainda podia ver a coisa luminosa claramente. Ela aparecia bem definida. Havia algo familiar em seu formato. Por um momento eu duvidei, mas então eu percebi que ela não era diferente de uma mão com quatro dedos e um polegar. Como uma mão! E eu me lembrei do contorno daquela ferida apavorante no corpo do cão. Deve ser o que estou vendo. Ela é luminosa durante a noite — Por que? Os minutos se passaram e a minha mente se encheu dessa descoberta nova…

Subitamente ouço um som nos jardins. Como isso me dá medo! Aproxima-se. Pat, pat, pat. Uma sensação penetrante percorre a minha espinha, e parecesse subir até os meus cabelos. O cão se move no canil, e geme, medroso. Ele deve ter virado de lado, pois não posso mais ver o contorno de sua ferida luminosa.

Lá fora o jardim está silencioso outra vez, e eu ouço com medo. Um minuto se passa e depois outro, então ouço de novo o som de pisoteio. Ele está bem próximo, e parece vir descendo pelo trilho de cascalho. O ruído é curiosamente medido e deliberado. Ele para junto à porta e eu me ponho de pé e fico imóvel. Da porta me vem um som muito leve — a aldrava é lentamente erguida. Um ruído musical fica em meus ouvidos e sinto uma pressão em torno da cabeça…

A aldrava cai, com um estalo forte, sobre seu suporte. O barulho me assusta de novo, provocando horrivelmente os meus nervos tensos. Depois disso eu fico por um bom tempo em meio a uma quietude crescente. De repente os meus joelhos começam a tremer e logo tenho que me sentar.

Um período indefinido de tempo passa e gradualmente eu começo a perder o sentimento de terror que me possui. Mas ainda fico sentado. Pareço ter perdido a capacidade de me mover. Estou estranhamente cansado, e tentado a cochilar. Meus olhos se fecham e abrem e então eu me vejo adormecendo e acordando uma vez e outra.

Só um bom tempo depois que eu percebo que uma das velas está chegando ao fim. Quando acordo de novo ela já se apagou, deixando o cômodo na penumbra, à luz da única chama restante. A escuridão parcial me perturba pouco. Eu perdi aquela horrível sensação de terror e meu único desejo parece ser o de dormir, dormir…

Então, mesmo sem ouvir ruído algum, fico acordado, bem acordado. Tenho a aguda noção da proximidade de um mistério, de uma Presença poderosa. Até o ar está impregnado de terror. Permaneço sentado, encolhido, e apenas ouço, atentamente. Mas não se ouve ainda nenhum som. A própria natureza parece morta. Então a imobilidade opressiva é quebrada pelo uivo sobrenatural do vento, que sopra em torno da casa e desaparece na distância.

Deixo meu olhar percorrer o cômodo mal iluminado. Próximo ao grande relógio no canto oposto está uma sombra alta e escura. Por um curto instante eu a encaro assustado. Então vejo que não é nada e fico momentaneamente aliviado.

Nos minutos a seguir, a idéia me passa através do cérebro: por que não deixar esta casa, esta casa de mistério e de terror? Então, como em resposta, pecorre-me a mente a visão do maravilhoso Mar do Sono … o Mar do Sono onde ela e eu pudemos nos encontrar depois de anos de separação. Percebo então que preciso ficar aqui, seja o que for que me aconteça.

Através da janela lateral eu noto o sombrio negrume da noite. Minha visão percorre os arredores do cômodo, parando um pouco na sombra de cada objeto. Subitamente eu me viro e olho pela janela à minha direita, e ao fazê-lo respiro rápido e me inclino para a frente, com um olhar cheio de medo por algo que está fora da janela, mas muito perto da grade. Eu vejo uma vasta e vaga face suína, acima da qual flutua uma chama coruscante de cor esverdeada. É a Coisa da arena. A boca trêmula parece gotejar continuamente uma baba fosforescente. Os olhos estão mirando diretamente para dentro, com uma expressão inescrutável. Assim eu fico, rígido, congelado.

A Coisa começou a mover-se. Ela se volta lentamente em minha direção. Sua face gira para encontrar-me. Ela me vê. Dois olhos imensos, inumanos, eles me olham através da penumbra. Estou frio de medo, mas mesmo assim permaneço consciente e noto, de uma forma quase casual, que as estrelas à distância são eclipsadas pela massa daquele rosto gigantesco.

Um novo horror sobrevem. Levanto-me da cadeira, sem a menor vontade. Estou de pé, e algo me impele em direção à porta que dá para o jardim. Quero parar, mas não posso. Um poder inarredável se opõe à minha vontade, e sigo em frente, devagar, sem querer, tentando resistir. Meu olhar percorre o quarto, importente, e para na janela. A grande face suína desapareceu e eu posso ouvir, de novo, aquele pisoteio furtivo, pat, pat, pat. Ele para do lado de fora da porta, da porta que estou sendo compelido a…

Um curto silêncio se sucede, um silêncio intenso, e então há um som. Som da aldrava sendo erguida devagarinho. Com isso eu sou tomado de desespero. Eu não quero dar mais nenhum passo. Faço um esforço imenso para voltar, mas é como se tentasse atravessar uma parede invisível. Começo a grunhir alto, na agonia de meu medo, e o som da minha voz é assustador. Outra vez ouço o barulho, e tremo, pastosamente. Eu tento, sim, brigo e luto, para tentar voltar atrás, mas é inútil…

Estou junto à porta e vejo a minha mão, de uma maneira quase mecânica, mover-se para destrancar a trava de cima. Ela o faz inteiramente sem qualquer intenção minha. Tão logo toco a trava, a porta é violentamente sacudida e eu recebo um sopro doentio de ar mofado, que parece penetrar pelos interstícios das pranchas de madeira, vindo da soleira. Giro a tranca para trás, devagar, lutando estupidamente enquanto isso. Ela sai de seu encaixe com um estalido e eu começo a tremer de angústia. Há mais duas, uma ao pé da porta e outra, uma bem grande, localizada no meio.

Por talvez um minuto eu fico de pé, com os meus braços pendendo moles ao longo do corpo. A influência que me ordenava mexer nas trancas da porta parece ter desaparecido. Então eu ouço o súbito ranger de ferro aos meus pés. Olho para baixo e noto, com um horror inexprimível, que o meu pé está empurrando a tranca inferior. Uma sensação de total impotência me assalta… A tranca sai de seu encaixe com um rangido baixo e eu me firmo em meus pés, agarrando-me à grande tranca central para não cair. Um minuto se passa, depois outro… Meu Deus, ajude-me! Estou sendo forçado a remover a última das trancas. Não vou! Melhor morrer que abrir ao Terror que está do outro lado da porta. Não haverá escapatória? Deus me ajude, eu já puxei a tranca pela metade para fora do encaixe! Meus lábios emitem um grito rouco de terror, a tranca já percorreu três quartos do encaixe e a minha mão inconsciente ainda trabalha pela minha danação. Restando apenas uma fração de aço entre a minha alma e Aquilo. Duas vezes eu grito na suprema agonia de meu medo e então, com um esforço louco, arranco minhas mãos da tranca. Meus olhos parecem não ver. Uma grande escuridão me envolve. A natureza veio ao meu socorro. Sinto meus joelhos falhando. Há um ruído alto de alguma coisa caindo, caindo, sou eu…

Devo ter ficado desmaiado lá por pelo menos um par de horas. Quando me recupero, percebo que a outra vela já se queimou também, e que o cômodo está em quase total escuridão. Não posso pôr-me de pé, porque estou enregelado e tomado por terríveis cãimbras. Mas o meu cérebro está limpo, não há mais nele o peso daquela influência maligna.

Cautelosamente eu me ponho de joelhos e procuro a tranca central. Logo a encontro e a ponho de volta em segurança, depois a que fica embaixo também. Já então sou capaz de me erguer e assim consigo trancar também a de cima. Depois disso eu me ponho sobre meus joelhos outra vez e rastejo por entre os móveis na direção da escadaria. Ao fazer isso, furto-me à observação da janela.

Chego à porta oposta e, ao deixar o escritório, dou uma olhadela nervosa por cima de meus ombros, em direção à janela. Lá fora, na noite, parece-me ver de soslaio alguma coisa impalpável, mas pode ser somente uma impressão. Então eu chego ao corredor, e à escadaria.

Chegando ao meu quarto de dormir, trepo na minha cama, todo vestido como ainda estou, e puxo os cobertores. Então, depois de um longo tempo, começo a recuperar a minha autoconfiança. É impossível dormir, mas me sinto bem pelo calor das cobertas. Então começo a tentar pensar sobre as coisas da noite passada, mas, embora não consiga dormir, vejo que é impossível, não dá para obter pensamentos conectados. Minha mente parece estranhamente vazia.

Com a proximidade da manhã eu começo a me virar na cama, agitado. Não consigo descansar e logo saio do leito e piso no chão. O amanhecer de inverno começa a entrar pelas janelas e a mostrar o precário conforto deste velho quarto. Estranhamente, após tantos anos, nunca me ocorrera o quanto esse lugar é lúgubre. E assim o tempo passa, e amanhece.

De algum lugar lá embaixo sobe-me um som. Vou até a porta do quarto e ouço. É Mary, mexendo na grande e velha cozinha, preparando o desjejum. Sinto-me pouco interessado. Não tenho fome. Meus pensamentos, porém, continuam fixos nela. Quão pouco os acontecimentos estranhos desta casa parecem afetá-la. Exceto pelo incidente com as criaturas do Abismo, ela parece sempre inconsciente de qualquer coisa incomum acontecendo. Ela é velha, como eu, mas nós temos muito pouco a ver um com o outro. Será porque temos tão pouco em comum, ou porque, sendo velhos, nos preocupamos menos com companhia do que com silêncio? Estes e outros temas me passam pela cabeça enquanto medito, e ajudam-me a distrair a atenção, por um momento, dos pensamentos opressivos sobre a noite.

Depoi de um tempo eu vou até a janela e abro, olho para fora. O sol está acima do horizonte e o ar, embora frio, está suave e limpo. Gradualmente o meu cérebro se desanuvia e uma sensação de segurança provisória me atinge. Algo mais alegre, desço as escadas e saio ao quintal para ver o cão.

Ao me aproximar do canil, encontro o mesmo fedor de mofo que me assaltara junto à porta na noite anterior. Superando um medo momentâneo, chamo pelo cão, mas ele não atende e então, depois de chamar outra vez, jogo um pedregulho dentro do canil. Com isso ele se mexe, debilmente, e eu grito o seu nome de novo, mas não me aproximo. Então minha irmã sai e se junta ao meu esforço para atraí-lo para fora do canil.

Em um instante o pobre bicho se ergue e manquitola titubeantemente. À luz do dia ele fica de pé oscilando de um lado para o outro e piscando os olhos estupidamente. Noto ao olhar que a horrível ferida está maior, muito maior, e parece ter uma aparência esbranquiçada, de micose. Minha irmã faz menção de acariciá-lo, mas eu a impeço, explicando que acho melhor não tocá-lo nem ficar perto dele por uns dias, já que é difícil saber o que pode haver de errado com ele, e é bom ter cuidado.

Um minuto depois ela nos deixa e retorna em seguida com uma bacia de restos de comida. Ela os deposita no chão, perto do cão, e eu empurro para seu alcance com a ajuda de um galho de arbusto. Porém, mesmo a carne sendo tentadora, ele não a percebe, mas retorna ao seu canil. Ainda tem água em sua vasilha e então, depois de conversar por um momento, minha irmã e eu voltamos para casa. Posso ver que minha irmã está muito curiosa sobre qual pode ser o problema com o animal, mas seria loucura sequer lhe dar pistas sobre a verdade.

O dia passa sem mais novidades, e a noite logo vem. Estou determinado a repetir o meu experimento da última noite. Não posso dizer que isto seja sábio, mas já tomei a decisão. No entanto, desta vez tomei precauções, pois prendi com pregos grossos cada uma das três trancas da porta que se abre para o jardim. Isto vai prevenir pelo menos que aconteça outra vez o mesmo perigo da última noite.

De dez da noite às duas e meia eu vigio, mas nada acontece. Então, finalmente, vou tropeçando até a cama, onde logo adormeço.


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Fechei para textos de ficção. Não vou mais blogar ...
Eu tenho acompanhado esses casos, não só contra vo...
Lamento muito que isso tenha ocorrido. Como sabe a...
Este saite está bem melhor.
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