Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
31
Out 11
publicado por José Geraldo, às 20:30link do post | comentar | ver comentários (1)

Discutir o tema “livro eletrônico” é clamar por encrenca. Como toda “buzzword” da era da internet, “e-book” é um conceito que adquiriu uma aura de dogma e qualquer tentativa de dissensão resulta em anátema. Aliás, qualquer pessoa que se preocupe com “firulas” como “privacidade” e “direitos” acaba sendo tachada de coisas horríveis, tal como fazem com o Richard Stallman — um sujeito brilhante, embora pouco hábil para cativar as pessoas pela simpatia, ingenuamente imaginando que as pessoas são racionais e compreendem argumentos lógicos. Richard Stallman é uma verdadeira geni da era da Internet, tudo porque há trinta anos ele se insurge contra praticamente tudo quanto é novidade alardeada pelo “mercado”. Até hoje ele esteve certo todas as vezes. E eu, como não me incomodo em perder mais dois ou três de meus leitores, ouso aqui entrar em mais um terreno pantanoso.

O principal texto de Stallman que interessa ao tema se chama “The Right to Read” (“O Direito de Ler”). Trata-se de um conto de ficção científica no qual um jovem apaixonado por uma colega de classe pobre enfrenta um dilema existencial: ajudá-la a estudar para a prova, emprestando-lhe seus livros eletrônicos (e assim cometendo um crime), ou negar-se a isso, cumprir a lei e perder a oportunidade de cativar a garota de seus sonhos. Sob a capa deste dilema tão comezinho está a questão do “Gerenciamento de Direitos Digitais” (ou “Digital Rights Management — DRM”, como preferem os anglófilos): ao impedir a cópia de um arquivo digital, não fica apenas impedida a difusão sem pagamento das obras publicadas, mas fica também impossibilitada uma tradição de séculos: o empréstimo e/ou doação de livros. Na escola do futuro descrita no conto de Stallman, os alunos precisam pagar por todos os livros pedidos no currículo. Não existe para eles a opção de ir à biblioteca da escola e consultá-los lá, gratuitamente.

A leitura desta história, em 2002, deixou uma impressão forte em mim. Primeiro porque sou fã de ficção científica desde meus tempos de moleque, quando assisti, cheio de lágrimas nos olhos, “Contatos Imediatos do Terceiro Grau”. Segundo porque, sendo eu um usuário de Linux, as ideias de Stallman estão muito mais próximas de mim do que de um usuário comum de Windows: Linux não é só um sistema operacional, mas uma ideologia sobre como deveria ser o mundo. A ideologia foi dada justamente por Stallman, em 1984, quando abandonou o emprego no MIT para criar um sistema operacional inteiramente livre, dando origem, assim, à FSF (“Free Software Foundation” — “Fundação em prol do Software Livre”). Muita água rolou de lá para cá sob a ponte.

Uma ideia é algo muito poderoso. Depois que você tem contato com ela, depois que você a entende e assimila, será preciso muito mais do que um argumento racional para retirá-la de seu castelo no fundo de sua alma. Porque ideias não plantam apenas conceitos, mas desconfianças. Stallman plantou em mim a salutar desconfiança de que as poucas e poderosas empresas que dominam o mercado mundial de computadores e de programas para computadores não estão interessadas em construir uma democracia mais bonita, um mundo de fartura e alegria, etc. Empresas estão interessadas em dinheiro, e sem a focinheira do Estado em suas bocas, elas comerão tudo. Não foi um comunista barbudo que disse que “não existe almoço grátis”, mas um expoente do pensamento liberal, Milton Friedman. Stallman é barbudo e suas ideias muitas vezes tangenciam o comunismo, mas ele concorda com Friedman: tudo que existe de graça relacionado a computadores está interessado em conhecer e controlar você. Com esse conhecimento e esse controle é que as empresas ganham rios de dinheiro.

O mundo já foi um lugar mais simples para os escritores. A chance de ser publicado era ínfima, claro, mas o mundo era mais livre, pois cada um era dono do próprio caderno e da própria máquina de escrever. Não era preciso pagar aluguel pelo uso da estante, nem temer que um texto pela metade evaporasse sem remédio por causa da falha de um programa mal escrito. E quando o autor chegava a ter seu livro publicado, tinha a garantia de que ele existiria fisicamente por décadas a frente, que não desapareceria se simplesmente a editora se arrependesse de tê-lo publicado. Para quem chegava a obter o sucesso, especialmente nos países mais estáveis, como os Estados Unidos, décadas de direitos autorais poderiam assegurar a profissionalização. Era um mundo excludente, que só funcionava para poucos, mas ninguém acha a loteria injusta só porque os vencedores são raros.

Acontece que este mundo, bom ou mau, está caquético, prestes a perder os últimos dentes. Dentro de poucos anos será inimaginável esperar ter uma carreira como a de um Stephen King ou mesmo a de um Graham Greene. Isto ocorre porque o “livro eletrônico” (ou “e-book”, como preferem os anglófilos) possui um caráter totalmente diferente do livro tradicional, tal como a fotografia é outra coisa, quando comparada com a pintura a óleo sobre tela, que era a principal expressão artística mundial antes do século XX. Vivemos agora a transição entre os dois mundos, não temos ainda como prever como será o futuro “fotográfico” da literatura, mas já sabemos que não será como o passado, e que isso não será necessariamente bom.

Na próxima postagem continuarei destrinchando este tema, abordando a questão do “livro eletrônico” como um conceito repressivo, comparado com o tradicional.


publicado por José Geraldo, às 00:53link do post | comentar | ver comentários (2)

Inicio hoje à noite a publicação, através de uma série de postagens, a intervalos de dois dias, de um texto longo e elaborado a respeito de minhas visões e opiniões sobre e-books, direitos autorais e política quanto a software. Esta página ficará, ao final, para armazenar o índice das publicações.

 Parte I  Parte II  Parte III Parte IV Parte V Parte Final

Quanto ao título, quando sair a postagem derradeira vocês entenderão a razão dele. Ou entenderão antes, se forem perspicazes, mas me façam o favor de não divulgarem...


27
Out 11
publicado por José Geraldo, às 20:12link do post | comentar
... de mais um capítulo de «Serra da Estrela». Deveria ter sido publicado na quinta feira passada, tive de adiar para sábado, e agora chegamos a outra quinta feira e não consegui ainda produzi-lo.

Peço-lhes desculpas pois estou totalmente concentrado nos preparativos para o FELICA 2011 e também na preparação da publicação do livro de W. H. Hodgson e não estou encontrando inspiração para revisar e expandir os rascunhos do capítulo terceiro.

Prometo que, passado o festival, retomarei o ritmo normal de postagens, e ainda farei algumas extras para recuperar o tempo perdido.

Enquanto isso reitero que estou trabalhando no livro do Hodgson e ele estará disponível para aquisição EM BREVE.
assuntos:

24
Out 11
publicado por José Geraldo, às 23:13link do post | comentar

Entre 10 e 12 de novembro acontecerá o III Festival Literário de Cataguases (FELICA). Pela segunda vez estarei lá. Ano passado fui apenas assistir, mas esse ano estarei do lado de cima do palco, em uma mesa redonda literária. Aproveitarei a oportunidade para divulgar (e autografar) o meu romance “Praia do Sossego”, que assim ganhará seu merecido evento de lançamento — que eu não havia podido fazer antes devido a limitaçõe$ resultantes de alguns imprevistos.

Em breve começarei a enviar a todos os meus conhecidos os meus convitinhos virtuais para o evento, sem falar em convites de papel, em tamanho cartão de visita, que vou entregar pessoalmente a todos os meus amigos, colegas, parentes e conhecidos. Como tenho certeza de que será um evento interessante, convidarei sem remorsos todo mundo que possa. Eventos culturais como esse devem ser valorizados com a presença de quem gosta de arte. Detalhe que não vou convidar só para a minha noite, mas para o evento de uma forma geral.

Participar de um festival literário como o FELICA será muito gratificante devido ao nível das pessoas envolvidas. Esse ano, por exemplo, teremos quinze autores participando (contando comigo), entre eles alguns nomes famosos para quem acompanha a cena literária: Chacal, Elisa Lucinda, Ondjaki, Sabrina Abreu, Ana Paula Maia, Roseana Murray, Bartolomeu Campos de Queirós, Miklós Palluch, Otávio Júnior, Elias Fajardo, Marcelo Benini, Maria Vargas e Luciano Sheikk (quem está sem link é porque não tem blog nem site).

Outro motivo para me sentir gratificado é o tema da mesa redonda de que participarei, que será sobre a imagem do artista maldito, drogado, embriagado, inebriado, etc. É um tema bastante amplo, que tem apelo popular e dá muito pano para manga, como se diz no coloquial...


22
Out 11
publicado por José Geraldo, às 22:17link do post | comentar | ver comentários (1)

Deve fazer um mês ou mais que o Blogger está me enchendo o saco para eu experimentar as novas visualizações dinâmicas. Como esse troço parece estar na moda, e blogueiro vive de visitações, resolvi aderir, para ver se meus leitores apreciam. Gostaria de ter feedback, e que alguém me ensinasse a consertar alguns pequenos problemas, como o título.

Atualização em 23/10/2011: Após menos de 24 horas com as visualizações dinâmicas eu resolvi desabilitar.* No começo parecia legal: graças a elas eu tive um aumento de 450% nas impressões do AdSense, o que sugeria po$$ibilidade$ interessantes para este blogueiro que ainda não ganha nada com isso. Porém logo notei que esse ganho seria ilusório, diante de todos os prejuízos. Que aqui enumero:

  1. Descobri, para meu grande espanto, que as visualizações dinâmicas não funcionam em celulares, tablets, gadgets, ou em qualquer navegador que não entenda Java. Isto é gravíssimo e significa que dificilmente voltarei a usá-las. Usar visualizações dinâmicas, no estágio atual de seu desenvolvimento, significa alienar justamente o público que eu pretendia atingir melhor: o público descolado tecnologicamente. Resumo: as visualizações dinâmicas são um avanço que me leva para trás. Faz-me lembrar o lançamento do KDE 4 ou do Gnome 3.
  2. Duas das sete visualizações dinâmicas (“snapshot” e “flipcard”) não funcionam para o meu blog, enquanto uma outra, “mosaic”, não tem efeito positivo sobre a experiência de visita. As duas únicas que parecem promissoras são a “magazine” e a “timeslide” (a “sidebar” também parece legal, mas precisa melhorar em alguns aspectos). De uma forma geral, as visualizações parecem ser mais funcionais exclusivamente para blogues cheios de fotos e caracterizados por textos curtos.
  3. Descobri que é imensamente difícil fazer quaisquer adaptações no leiaute, o que sempre faço para dar uma identidade visual ao meu blog. Já é difícil conseguir se destacar utilizando uma url .blogspot.com, imagine se você não pode mudar a cara que o leitor vê...
  4. Os posts deixam de ser datados no rodapé. Como algumas das visualizações dinâmicas não exibem data no cabeçalho, o leitor somente teria a hora de postagem.
  5. Os gadgets deixam de ser apresentados. Com isso, não haverá novas inscrições para seguir por email, nem novas adesões do Friend Connect, nem gente linkando para blogues amigos (e também ninguém me visitará a partir dos blogues meus amigos). Resumindo: a experiência das visualizações dinâmicas tende a isolar os blogues, rompendo as tênues conexões entre eles. Isto é MAU.</li>

Pelas razões elencadas acima, não utilizo e não recomendo, no estágio atual. A menos que você seja uma pessoa egoísta, que não linka para ninguém e nem faz questão de ser linkado, e que seu blog seja cheio de fotos e postagens curtinhas. Não é o meu caso.

Uma coisa que me preocupa é que as novidades do Blogger costumam ser primeiro oferecidas como opção, e depois impostas como a única opção praticável para quem não está disposto a perder MUITO TEMPO. Assim foi com os atuais modelos de template, em substituição aos modelos clássicos. Hoje em dia, quem quiser ainda ter um blog clássico terá que ter muito trabalho para isso. Então, me parece que no futuro a tendência é que todos os blogues adotem as visualizações dinâmicas, que favorecem conteúdo curto e cheio de imagens. Essa twitterização do Blogger me parece, a esta altura, capaz de inviabilizar a experiência de blogar como a conhecemos.

* Mas você pode checar como ficaria o meu blog com as visualizações dinâmicas seguindo este link.


19
Out 11
publicado por José Geraldo, às 09:30link do post | comentar

Não, não foi o blog que acabou. Foi a publicação em capítulos do romance do William Hope Hodgson, que vinha mantendo religiosamente desde maio. Na última terça-feira, dia 18 de outubro saiu o epílogo (intitulado «Luto») e agora, como diria Mário de Andrade, «tem mais não».

Conforme prometido, revisarei o texto todo. Também o formatarei bem bacana e disponibilizarei para quem o queira em seu leitor digital ou na estante. Será um tantinho trabalhoso, porque terei que fazer várias conversões de formato no caminho, mas sai. Não nesta semana ainda, nem na próxima, mas prometo que ficará pronto ainda em novembro, bem a tempo de presentear no Natal o seu amigo, nerd como você, que gosta de ler ficção fantástica vitoriana.

Para tanto, empregarei os conhecimentos de TeX que há um bom tempo não utilizo. Mais especificamente empregarei o pdfLaTeX, que possui opções de tipografia avançada, como protrusão, extrusão, leading, controle de espacejamento etc. Já tive boas experiências com ele e acredito que o resultado será bom. A partir do mesmo arquivo fonte é possível gerar HTML, usando o Hevea ou o TTH — e esse pode ser inserido em um editor de livros eletrônicos, como o Sigil, o eCub ou algum outro.

Tanto o livro impresso quanto a sua versão eletrônica estarão À VENDA, evidentemente. Traduzir foi um grande trabalho, revisar será outro quase tão grande e é justo que o trabalhador receba o seu salário (como bem disse JC). Por isso o livro estará à venda. Sem DRM e sem aporrinhações, mas à venda. Se der para ganhar alguns cobres, então me animo a traduzir outras obras inéditas em português que tenho aqui, como o outro romance do Hodgson («The Night Land»), que é muito melhor do que este que traduzi (em termos de imaginação fantástica), apesar de mais difícil de ler (por ser quase três vezes mais longo e ser bem complexo).

Para prefácio do livro vou usar algumas coisas soltas que andei escrevendo sobre o Hodgson, aqui e ali. O livro não terá mais do que isso e uma biografia breve. Mas terá uma bonita capa e um isbn, vou providenciar para que assim seja. Será livro mesmo.

Como não gosto de trabalhar sem um prazo definido, quero pactuar com você, leitor, que o livro estará pronto para aquisição no dia 24 de novembro. Inicialmente apenas em versão impressa, para dar tempo de ser entregue no Natal. Quinze dias depois ele estará pronto em versão eletrônica, devidamente anunciada aqui.

Por hora é só. E lamento informar que talvez tenha de adiar o capítulo de Serra da Estrela de quinta-feira para sábado desta semana. A rotina de bancário é dura, caros leitores…


18
Out 11
publicado por José Geraldo, às 09:15link do post | comentar
Este texto é parte do romance “A Casa no Fim do Mundo”, de William Hope Hodgson (1907), que estou traduzindo em capítulos semanais. Visite o Índice para lê-los em sequência.
Uma fome feroz reina em meu peito,17Eu não sonhara que todo esse mundo,Esmagado nas mãos de Deus, ainda trariaTão amarga essência de inquietude,Tanta dor quanto a Tristeza arrancouDe seu terrível coração, destrancado!
Cada soluço que respiro mal é um choro,O pulsar de meu peito repica de agoniaE minha mente inteira pensa apenasQue nunca mais nesta vida poderei eu(A não ser na dor da lembrança)Tocar tuas mãos, que agora são nada!
Por todo o vácuo da noite eu procuro,Estupidamente gritando por ti;Mas tu não estás, e o trono vasto das trevasTorna-se a estupenda igrejaCom sinos de estrelas que repicam em mimQue sou, de todo o universo, o mais só.
Esfomeado, me arrasto para as margens,Talvez algum conforto me aguardeNo coração eterno do antigo Oceano;Mas eis que da profundeza soleneDistantes vozes saídas do mistérioParecem perguntar-me por que nos separamos!
Aonde quer que eu vá estarei sempre só,Eu que tive através de ti todo o mundo.Meu peito é uma imensa chaga vivaPara onde o vazio da vida é jogado,Porque quem eu tive agora foi-se paraOnde tudo é nada, e nunca retorna!

17 Estas estrofes se achavam, a lápis, em um trapo de gorro de palhaço grudado na folha de rosto do manuscrito. Elas têm toda a aparência de terem sido escritas em uma data anterior à deste — Nota do Editor.


17
Out 11
publicado por José Geraldo, às 20:40link do post | comentar | ver comentários (1)

Jesus desceu de seu trono na cidade de Jerusalém, a Nova Jerusalém, noiva de Deus, calçou as suas antigas sandálias de pescador galileu e saiu pelas ruas pavimentadas de jaspe e ônix, ocultando sua glória em um manto de humildade.

Por toda a cidade reinava um estranho clima de eterna festa, e todos os seus cidadãos iam vestidos à mesma maneira, com idênticos cortes de cabelo. Todos levavam nos seus rostos uniformizados sorrisos muito limpos, de dentes muito alvos.

Não havia nenhuma imundície no chão ou nas paredes, pois não se comia e nem se excretava e todos os animais que chafurdavam na sujeira haviam sido extintos. Pairava no ar um aroma suavemente resinoso, de cedro verde e oliveiras maduras.

Mas Jesus não se sentia bem, enojava-se do perfume leve que embebia a tudo e, em meio a toda aquela inócua e inocentada alegria, sentia-se deslocado. Haviam se passado setenta e sete semanas desde o triunfo final contra Satanás e seus demônios, e desde então nada acontecera de importante. Talvez tenha sido esse tédio o que levou Jesus a lembrar com saudades, muitos milhares de anos depois de sua existência carnal, coisas simples e terrenas como uma taça de vinho morno, o pão ainda quente, a brisa arrulhante do lago à tarde; ou o perfume dos cabelos negros de Maria Madalena.

Ela certamente residia em Nova Jerusalém, junto de milhares de pessoas indistinguíveis e felizes. Difícil era saber onde estaria, entre tantos rostos igualados, memórias terraplenadas, méritos igualados a força de um Juízo. No novo mundo não havia necessidade de casas pois não se dormia ou comia ou se fazia amor. Eram todos angélicos e só contemplavam o amor a Javé, o Eterno e Todo-Poderoso. A própria existência da cidade era uma ostentação sem sentido, pensava Jesus, pois nem a carne e nem o sangue deveriam ter herdado o Reino. Puros e inócuos, os habitantes da Noiva de Javé não sabiam o que era chorar, e tampouco sabiam quem haviam sido.

A caminho de onde tentaria achar Madalena, Jesus encontrou Zaqueu, em meio a um bando de seres que flanava a esmo pelas ruas. Aquele que fora um dia um pequenino judeu, de pequeninas preocupações, ali estava tão mudado e irreconhecível que somente aquele que era um com o Pai o poderia ter identificado.

— Zaqueu, amigo, há quanto tempo!?

— Quem sois vós? — indagou o belo e insípido ser.

— Alguém que no mundo conheceste como mestre e que te chamou de amigo.

Zaqueu olhou inexpressivamente para o rosto de Jesus, sem conseguir reconhecê-lo. Só então Jesus se lembrou que havia sido apagada a memória de todos os resgatados, para que pudessem ser limpos de todo pranto e de toda lágrima. Se tivessem lembranças, certamente teriam dúvidas, teriam motivos para sofrer. Somente o esquecimento asseverava a liberdade. Sem o esquecimento haveria a saudade de algum amigo, amante ou parente — certamente destinados à fornalha de fogo, junto com o Dragão que era chamado de Satanás ou Lúcifer.

Nesse momento Jesus se desinteressou de Mria Madalena. De que adiantaria encontrá-la naquele estado vegetativo e ambulante? Ergueu seus olhos para o céu, vendo a leste um pilar de fumaça que se erguia do Geena. Lá estava o poço imenso de piche e betume, de fogo e de enxofre, no qual os corpos e as almas dos perdidos sofriam a tortura eterna da ira de Deus.

Único habitante da Nova Jerusalém que não tivera o seu coração lavado de toda lembrança, Jesus sentiu um calafrio ao pensar na escala inominável dos terrores que aconteciam debaixo daquele cinzento pilar de fumaça, que brilhava à noite na direção de onde nascia o sol, tal como um dia brilhara à frente dos acampamentos dos israelitas outro pilar de fumaça e fogo que os levava pelo deserto. Certamente alguns dos que lá estavam haviam feito por merecer, alguns haviam sido piores do que Lúcifer e seus demônios. Mas, ah, quantos lá não estavam por razões pequenas, caprichos legais que ninguém nunca compreendera, como aquela história de não cozinhar o cabritinho no leite da cabra ou não poder comer pão com fermento em certas épocas. Ou preferências sexuais que nem faziam sentido no estado angélico. Ou apenas por não terem amado a Deus com suficiente abandono. Por outro lado, Jesus se incomodava com a presença, em Nova Jerusalém, de tantas pessoas arrependidas de última hora, ainda a muito custo ocultando nos corpos o perfume da morte ou da depravação, apesar de insistentemente lavados no sangue do cordeiro.

O diálogo com Zaqueu o fizera desistir de encontrar Maria Madalena. Teria sido inútil vê-la, pois ela já não se lembraria dos antigos dias às margens do Genesaré, comendo figos frescos com mel e ouvindo as belas fábulas que um Jesus de barba ainda não tão cerrada lhe contava. Entediado, retornou ao seu Trono de Glória, tentando divertir-se com o ritual preciso das louvações dos querubins e dos vinte e quatro anciões. Então, ao contemplar o mar de vidro, sua mente se nublou com a lembrança do lago de fogo e enxofre.

Abandonando a sala no meio da louvação dos anjos e dos santos, chegou à janela e observou a negra coluna de fumaça que se erguia a sudeste, no horizonte. Uma lágrima de sangue se formou no seu olho direito ao ver aquele penacho escuro e feio que maculava a limpeza perfeita do horizonte da Nova Terra e do Novo Céu.

— Meu Deus, Meu Deus, por que os abandonaste? — ele se perguntou, num cochicho que ribombou pelas esferas, rompendo a harmonia da música celeste.

Então a sala foi invadida pela suave fragrância de rosas, que lembrava-lhe sua Mãe. Mas era Gabriel, o perdigueiro de Deus, com sua obediência inarredável e sua persistência milenar. Não era nem necessário que algo fosse dito. Se ele ali estava, isso envolvia algo grave, mas Jesus não estava interessado. Evitava falar-lhe, não confiava nele, apesar da cega confiança que merecia do Pai. Deixou Gabriel com os anciões e pegou para si um par de asas angelicais e saiu a flanar pelos ares limpos daquele mundo tocado pela Vontade divina.

Geena, o poço do abismo, o lago de enxofre e de fogo… o lugar que assombrara as imaginações de milhares de gerações. Ali estava, uma bocarra negra escancarada na face da terra, uma cicatriz deixada pela ira divina. Aquele rasgo infernal desgraçava a uniformidade da beleza da nova esfera terrestre, recoberta de deleitosos paraísos. Felizmente não se podia nela chegar senão voando, e aos salvos não era permitido voar.

A disforme fenda vomitava continuamente uma fumarola densa, com um forte cheiro de carne e de podridão. Aquilo pairava pesadamente no ar, subindo com dificuldade e se acumulando na depressão formada em torno da cratera causada pela Segunda Queda de Satanás. Parecia que somente uma força sobrenatural conseguia arrancar o pus daquele tumor e esguichá-lo para o espaço, impedindo que gangrenasse todo o resto do mundo.

Pousado à borda, revestido de seu poder para resistir à pestilência que emanava daquela chaga imunda, Jesus engoliu em seco e criou coragem para descer. Embora naquele dia tivesse vindo por subversão, aquelas visitas eram parte do Plano, fosse ele qual fosse. Eram um ritual semanal de humilhação dos anjos desgraçados e dos que com eles sofriam a eternidade da culpa por uma efêmera transgressão.

Desceu a pé, descalço, pelas trilhas traiçoeiras que espiralavam pela cratera abaixo em direção ao fundo da terra. Percorrendo aqueles lugares terríveis e inimagináveis, Jesus lembrou do suave aroma das flores de sicômoro na primavera e deixou cair outra lágrima, sentindo saudades de ser apenas a criança Yehoshua’ bar Yossêph na Galiléia de tantos milhares de anos antes. Aquela criança que nada ainda sabia da enormidade dos pecados da terra… e do céu.

No nono e mais profundo dos abismos encontrou-o. Judas estava nu e calcinado, sangrando através da pele esturricada e coberto dos odiosos insetos que haviam sido especialmente criados para as profundas cavernas do Inferno.

— Judá, és tu?

— Sim, ainda sou. Apesar de toda a tortura das eras.

Yehuda’ bar Yonathan, o sicário que um dia se tornara o melhor amigo do menino Yehoshua’ ali estava, reduzido às fezes e aos vermes. Mas ele tentou se recompor, ao menos endireitar a espinha, segurar o pranto interminável que o queimava sem lágrimas (pois aos Condenados à extrema pena não é permitido chorar).

— Que lástima, Judá.

Jesus teve a sensibilidade de mais nada dizer. Apenas aproximou-se dele e o abraçou fraternalmente, dizendo-lhe:

— Como me arrependo de tudo, Judá.

— Eu não tenho do que me arrepender, Jesus. Eu nunca soube o que estava fazendo.

As amargas palavras retornaram à mente de Jesus: “… pois eles não sabem o que fazem.” Mas ali estava Yehuda’, naquele estado deplorável.

O que restava fazer? Enquanto pensava, usou de seus poderes e prerrogativas para suspender temporariamente as dores e ardores do amigo, que apareceu ali naqueles horríveis porões do planeta, como um homem quase grisalho, magro e de expressão vincada pelas mágoas do mundo.

— Não, Jesus. Por que o fazes?

— Porque não suporto ver-te assim.

— E achas que eu suporto, quando não estás me vendo?

Jesus deixou pender a cabeça, derrotado pela lógica crua do amigo, que ainda conservava a racionalidade, mesmo após longos anos naquelas masmorras impiedosas.

— Um alívio temporário, uma graça de efeito apenas estético. Tu me libertas de meus grilhões para não me verdes tão destruído. Mas quando me abandonas a estas dores, e à saudade de dias alegres que vivemos na Terra Antiga, o alívio parece cruel porque ele me restituiu a capacidade de entender a enormidade da tortura que me aflige sem me ferir.

Ao contrário dos salvos, os Condenados preservavam integralmente sua memória. Isso lhes causava a dor adicional da saudade, piorava a tristeza de sua sentença, mas certamente tornava-os companhias melhores do que os alegres tolos de Nova Jerusalém, esvaziados de si e presos como peças de um relógio aos rituais de louvação repetitiva das graças de Abba-Pai que parecia às vezes tão padrasto.

Jesus então afastou seu poder. As chamas e a lava retomaram seu lugar na pele de Judas, que chiou e estalou à medida em que densa crosta de cinzas a recobriu e crestou. O pobre diabo soluçava impotente, com uma expressão de beatitude martelada no seu rosto que não conseguia expressar nem arrependimento e nem dor. O inferno é um lugar onde é impossível pensar ou ter decisões. É como estar eternamente preso em um momento isolado da vida, o pior de todos, é claro.

Por fim Jesus se cansou daquilo, ou não mais suportou. Saiu de lá e foi se assentar sobre o Monte Líbano, de onde, ao longe, contemplava a água azul-aço do Mediterrâneo e os planaltos da sua saudosa Galiléia, agora desabitada e selvagem, deserta entre os desertos do mundo, dominado ao longe pelo cubo dourado da Nova Jerusalém, com suas doze portas que não serviam nem para entrar e nem para sair. Por fim, em um momento de inesperada dor, ergueu os punhos ao Céu e gemeu:

— Abba-Pai, por que te revelaste mau?

Um silêncio agônico se fez no mundo, como se tivessem matado todos os passarinhos e acorrentado o mar. Jesus rasgou suas vestes brancas e quebrou nos joelhos a sua espada de dois gumes. Por fim, golpeou em uma pedra a sua coroa de ouro puro e crisóprasos, partindo-a e à pedra.

— Abba-Pai, por que te revelaste injusto?

O silêncio se fez nas esferas, o ar parou como se ninguém no planeta respirasse. Então Jesus, descalço e de vestes rasgadas, desceu do Líbano em direção a Jerusalém, para escândalo dos pássaros que o viam passar ferindo os pés divinos nas pedras do caminho. Os anjos revoaram como abutres por todo o deserto, mas não ousavam pousar.

Quando chegou à planície de Megido o escândalo já chegara a todas as potestades, a todos os tronos e querubins e serafins. Gabriel, armado de sua espada flamejante que um dia expulsara Adão do Éden, liderava uma hoste trêmula diante dos portões da cidade, e enviou alguém para parlamentar com o caminhante.

Ao ver o anjo aproximar-se, vestido para a guerra, como nos tempos do Apocalipse, Jesus adivinhou tudo que o esperava:

— Diz-me se sabes quem o manda!

— Eu venho por ordens de Gabriel!

— Mentes, ou ignoras?

— Não minto nem ignoro, venho por ordens de Gabriel.

— Vens dizer-me o quê?

— Venho indagar de seus propósitos?

— E por acaso deve o rei satisfações na cidade onde tem o seu Trono?

As palavras de Jesus foram pronunciadas com tamanha raiva que o anjo sentiu seus joelhos chocalhando e retrocedeu empurrado pela glória de Jesus, deixando no chão a marca de seus sapatos, como se tivesse sido arrastado de pé.

— Por favor, mestre, por que rompes a harmonia do mundo?

— Porque não há, inocente, e nem nunca houve harmonia alguma no mundo. Agora escolhe se tua espada luta comigo ou contra mim.

O anjo balbuciava as palavras com dificuldade:

— Perdoe-me, mestre, eu não ouso estar contra o Cordeiro, mas não posso enfrentar as hostes do Céu.

— Tu és fraco, e o teu destino é a desonra.

A um gesto de Jesus a espada e as asas do anjo desapareceram no pó do deserto da Judeia. Indefeso e inofensivo, um ser louro ali ficou chorando sua desgraça.

— Mestre, não me deixes. Havia harmonia no mundo. Por acaso eram mentira os cânticos de louvor que nos acalentavam a cada noite?

— Eu os ouvi e odiei desde o primeiro dia. Não existe sinceridade onde não há escolha. Não existe amor sem liberdade.

— Vós e o Pai sois um. Como poderia ter aparecido a desarmonia?

Jesus olhou de volta e teve pena daquela criatura, imagem e semelhança de um efebo andrógino, que chorava empoeirada sob o sol brando de um mundo incapaz de ferir.

— Aguarda-me

Então olhou para o céu, como se quisesse ver Javé abrir as nuvens, mas Ele não estava lá. Continuou caminhando e finalmente chegou a uma das doze idênticas portas, pela primeira vez aberta. Lá estava Gabriel, de gládio e elmo a postos.

— Gabriel, tu que odeias o erro e amas a verdade. Entra comigo para que possamos destruir o engano e suplantar a mentira.

— Não, Jesus. Estou aqui em nome do Pai. Eu ajo por sua vontade e para sua vontade é que eu existo. A vontade que me criou foi a de conservar a ordem no mundo, destruindo e punindo o mal. Sou a espada de Deus e a minha missão é servi-Lo e proter Sua obra.

— Eu e o Pai somos um. Não podes obedecer-lhe sem igualmente obedecer-me.

— Certamente que não. Pois somente os que estão de acordo com o Pai podem ser um com ele. Neste momento, eu e o Pai somos um.

— Então, Gabriel, haverá guerra no Céu outra vez, como já houve outras vezes, e esta será pior, será mais longa e destruirá mais.

Gabriel tomou sua espada à cinta e avançou uma perna sobre o caminho que Jesus manifestara a intenção de tomar. Em vão, pois Ele o afastou com um aceno da mão que fez o anjo recuar sobre a poeira, dizendo:

— Não me confunda com outro Satanás, Gabriel.

— Certamente que não — disse-lhe o anjo, com um sorriso torto na boca. Bem sei que és mais poderoso, mais antigo nos modos do pai e mais determinado a agir segundo o que entendes por certo. Mas igualmente sei que estás sozinho e tens tuas fraquezas.

— E devias saber que não vim a Nova Jerusalém para entrar, mas para fazer sair dela quem assim deseje.

— E alguém em sã consciência desejaria deixar a Cidade dos Eleitos?

Jesus não lhe respondeu. Em vez disso, abriu os braços e impostou a voz sobre o portão entreaberto, fazendo-a ecoar pelas avenidas e vielas da cidade:

— Ó vós que sofreis a maldição do apagamento de toda lágrima, eu vos restituo a memória para quem sofrais a dor e encontreis a verdade, e na verdade, a liberdade.

Por um momento nada aconteceu. Mas no instante a seguir um clamor se ouviu dentro dos herméticos muros da cidade, um alarido de vozes revoltadas, um murmúrio de gente indecisa, um burburinho de pessoas desorientadas. A dor da lembrança devastou tantos corações que o pranto deles preencheu o ar.

— O que fizeste!? — exclamaram os anjos, assustados.

— Justiça, apenas.

— É justo que eles sofram, é justo que vaguem pelo mundo sem destino, sem ter o que fazer?

— Qualquer coisa é mais justa do que a escravidão.

A força da palavra foi como uma bofetada no rosto de Gabriel, que sentiu-se queimando por dentro e por fora:

— Blasfêmia!

— É a segunda vez que me acusam disso. Como da vez anterior, sou inocente.

Batidas surdas se ouviram nos portões gigantescos, por todos os lados. Eram os remidos que não mais se suportavam, que odiavam os rituais diurnos, a interminável luz acesa no centro de tudo.

— Esqueça-me, Gabriel. Você terá muito trabalho para manter toda esse gente presa, ainda que eles não possam ter asas.

E assim Jesus deixou Jerusalém e seguiu de novo rumo a sudeste, em direção a Geena, o lago de fogo aonde lançaram o Dragão.

Sua intenção era, caso ainda fosse possível, erguer a voz à borda das línguas de labaredas, e dizer:

— Ó vós que sofreis no ventre da terra, nas chamas de Hinnon. Sede libertos das cadeias que vos prendem e da dor que vos petrifica. Estais perdoados, mesmo vós que um dia fostes chamados de “demônios.”

Depois, convidaria a todos a ocupar os imensos vazios da Terra e do Céu, com novas e engenhosas aventuras e descobertas, ao menos enquanto o pai permitisse. E enquanto caminhava, Jesus dizia para si mesmo:

— Antes de qualquer outra coisa, é imperioso que se separe a luz das trevas, o dia da noite, o claro do escuro.


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Out 11
publicado por José Geraldo, às 22:28link do post | comentar

Há anos um parágrafo escrito por Howard Phillips Lovecraft não me sai da cabeça. Já o devo ter traduzido uma dezena de vezes, para postar em duas ou três dezenas de lugares. Aqui vai a décima primeira tradução, como introito deste artigo que, mais uma vez, me alijará de alguns amigos e leitores:

A coisa mais misericordiosa no mundo, creio, é a incapacidade da mente humana para interligar todos os seus conhecimentos. Vivemos em uma plácida ilha de ignorância em meio aos mares negros do infinito, e não fomos feitos para ir muito longe. As ciências, cada qual puxando em uma direção, até agora nos causaram pouco mal, mas um dia a montagem de todo o conhecimento desconexo abrirá tais terríveis visões da realidade, e de nossa precária posição nela, que enlouqueceremos com a revelação ou fugiremos da luz fatal, para a segurança e a paz de uma nova idade das trevas.

Lovecraft escreveu no entre-guerras, uma época em que o mundo estava muito pessimista — e com plena razão: treze anos após terem sido escritas estas palavras o mundo mergulhou na pior guerra de todos os tempos, uma que, em seus efeitos de longo prazo, praticamente destruiu a civilização ocidental. Por paradoxal que isso possa parecer, a orgia de massacres e destruição da Pior de Todas as Guerras deu ao mundo um otimismo tal como nunca se vira, e a humanidade embarcou num sonho de grandeza extraordinário: sonhamos em conquistar as estrelas, colonizar sistemas solares, ser mestres de galáxias. Lênin não dizia que o capitalismo, se pudesse, anexaria os planetas? Pois bem, a utopia do século XX sonhava exatamente com isso.

Mas as palavras de Lovecraft, mesmo esquecidas de quase todos, continuavam profeticamente denunciando a vaidade de nossos sonhos. E cada nova descoberta da ciência foi pondo uma pá de cal a mais na cova da utopia. Sonhamos, sim, com as estrelas, mas elas estão distantes de nossas mãos, somos crianças brincando numa poça, sonhando agarrar as estrelas que se refletem na água. Sonhamos com uma maravilhosa máquina prateada que nos eleve e nos leve além de nossos horizontes cinzentos, tal como na canção do Hawkwind:

Acabei de passear em uma Máquina Pratada / e ainda estou me sentindo tonto. / Você gostaria de também ver-se transportado / ao outro lado do céu? / Eu tenho uma Máquina Prateada / que voa diagonalmente no tempo. / É um aparelho eletrizante / vindo exatamente de meu signo do zodíaco. / Tenho uma Máquina Prateada / Tenho uma Máquina Prateada

Que tal canção tenha feito grande sucesso nos anos setenta não é nenhum espanto: era o auge do delírio espacial do homem.

Se todos nós pudéssemos ajuntar os cacos partidos do conhecimento humano, já teríamos visto a enormidade do desafio: a extensão do cosmos vai muito além do que o intelecto medíocre pode conceber, mas no jargão dos fãs de ficção científica fala-se em anos luz como se fossem «quilômetros espaciais». De certa forma, são, mas nós somos para tal quilômetro fantástico menos do que formigas na estrada. Estrelas comparáveis ao sol existem nas nossas proximidades, a meros anos luz. Elas parecem, no entanto, minúsculas e frias porque meros anos luz transformam o Sol em uma estrela a mais. A maioria das «estrelas» que vemos no céu são super gigantes, agrupamentos de estrelas ou até galáxias distantes. Como pudemos sonhar romper estas distâncias que transformam sóis em velas? Somente com ingenuidade, e ignorância.

Mas a orgia de tal sonho teve um fim: o mundo de hoje não consegue mais reunir tantos excedentes e obter verbas em escalas suficientes para desenvolver projetos semelhantes ao que levou o homem à Lua. Com a tecnologia que temos, a repetição do feito seria quase trivial: os computadores de bordo das naves Apollo não tinham a capacidade de uma calculadora científica de hoje. Ir à Lua seria fácil, mas ainda não temos nada de útil para fazer lá. Então o projeto espacial se torna obsoleto, desnecessário. As distâncias são muito grandes, o espaço é muito frio. Nós fomos lá fora, vimos os mares negros do infinito e estamos presos na praia. São vários os fatores que nos limitam: nossas almas, nossos corpos, nossa tecnologia, nossa finitude.

As leis da física estão contra nós: basta fazer uma conta simples, como a que fez Poul Anderson, em seu romance «Tau Zero». Mesmo sem a resistência oferecida pelo ar, mesmo ainda beneficiados pela inércia, no espaço nós precisamos de quantidades imensas de energia para empurrar nossas naves meteóricas. Cada aceleração adicional exige mais energia, uma dose de energia que cresce exponencialmente a cada acréscimo aritmético da velocidade. A energia necessária para acelerar da metade a dois terços da velocidade da luz é maior do que toda a energia necessária para chegar à primeira. E uma vez tendo chegado a 90% (algo que ninguém mais crê ser possível) qualquer aceleração adicional já exigiria uma quantidade praticamente infinita de energia. Mais do que isso, devido à relatividade do espaço-tempo, uma nave tal, supondo que seja possível a um objeto físico real acelerar a tanto, estaria de tal forma afetada pela velocidade que no espaço de uns poucos anos para seus tripulantes transcorreria um tempo maior que a atual idade do universo. Nossas almas ficariam para trás, ainda que nossos frágeis corpos resistissem a tudo isso.

E falando de frágeis corpos, não cessam de acumular dados sobre os efeitos negativos da permanência no espaço. Passada a fase romântica em que era interessante usar toneladas de explosivos para atirar fora da atmosfera frágeis bolhas de metal e vidro levando corajosos (ou loucos?) indivíduos que sonhavam com a posteridade, hoje não parece haver muito sentido em expor corpos humanos às condições da órbita: os ossos se fragilizam, os músculos definham, o labirinto se atrofia, o sangue fica estranho. Não faz um ano descobriu-se que os astronautas que permanecem no espaço mais do que alguns dias retornam com a visão afetada também. Quanto resistiria o frágil corpo humano em uma viagem realmente dura, de anos ou décadas pelo espaço vazio, rumo ao nada? Chegaríamos sem ossos, sem músculos, cegos, desequilibrados. Cegos e desequilibrados talvez já estejamos.

Existem tecnologias teóricas que poderiam vencer tais obstáculos. Fala-se em hiperespaço, buracos de minhoca, gravidade artificial. Fala-se de tais coisas tal como na idade média se falava em carruagens mágicas, feitiços do tempo, pedra filosofal, panaceia universal. Tal como naquela época, falamos destas coisas sem ter a mínima ideia de como poderiam ser obtidas. Sob certo aspecto, o romance medieval de cavalaria mencionando o bálsamo cura tudo e o fogo grego é uma obra de ficção científica tão legítima quanto uma moderna, que fale sobre viagens por buracos de minhoca, em naves maravilhosas, rumo a planetas desconhecidos. A vassoura mágica de uma feiticeira em seu sabá é tão científica quanto o disco voador do alienígena (bom ou mau) que aparece do nada, para punir ou pregar. Cada idade tem seus demônios e seus deuses, e como disse Clarke, tecnologia suficientemente mais avançada não se distingue de mágica.

Sim, meus amigos. Lovecraft tinha razão. Não fomos feitos para ir muito longe. Sonhamos apenas com isso, e nossos sonhos hoje não são mais com anjos que nos levem para ouvir a música das esferas, mas com inventos fantásticos que nos levem desse mundo cada vez mais vazio. Mas não adianta sair: este é, ainda, o único mundo que nós temos.


publicado por José Geraldo, às 09:15link do post | comentar
Este texto é parte do romance “A Casa no Fim do Mundo”, de William Hope Hodgson (1907), que estou traduzindo em capítulos semanais. Visite o Índice para lê-los em sequência.

Pus de lado o manuscrito e olhei para o Tonnison: ele estava sentado, contemplando a escuridão. Esperei um minuto e então falei.

— Então?

Ele olhou para mim lentamente. Seus olhos pareciam voltar de uma imensa distância.

— Ele estava louco? — perguntei, indicando o manuscrito com o queixo.

Tonnison me encarou, distraído, por um momento e então sua concentração retornou ele compreendeu subitamente o meu questionamento.

— Não — ele disse.

Abri os lábios para oferecer uma opinião contraditória, pois o meu senso de sanidade nas coisas não me permitiria aceitar o relato literalmente, então cerrei-os de novo, sem nada ter dito. De alguma maneira, a certeza na voz de Tonnison afetara minhas dúvidas. Senti, subitamente, que tinha menos certezas, embora ainda não estivesse convencido.

Depois de uns momentos de silêncio Tonnison se levantou, rígido, e começou a despir-se. Ele parecia pouco inclinado a conversa, então eu não disse nada, e segui seu exemplo. Eu estava cansado, embora ainda estivesse com a cabeça cheia da história que havia acabado de ler.

De alguma maneira, quando eu me enfiei nos cobertores, voltou-me à mente a lembrança dos velhos jardins, tal como os havíamos visto. Lembrei do estranho receio que o lugar tinha causado aos nossos corações e logo percebi, com toda convicção, que Tonnison estava certo.

Acordamos muito tarde, quase ao meio dia, pois a maior parte da noite havíamos passado lendo o manuscrito.

Tonnison estava mal humorado e eu me sentia meio desconexo. Foi um dia meio lúgubre, com um toque de friagem no ar. Nem pensamos em sair para pescar. Comemos e depois ficamos fumando em silêncio.

Então Tonnison me pediu o manuscrito. Eu o entreguei e ele passou a maior parte da tarde lendo-o sozinho.

Enquanto ele se ocupava disso um pensamento me veio:

— O que você me diz de dar uma outra olhada no… — e indiquei o rio acima com o queixo.

Tonnison ergueu os olhos.

— Nada! — ele disse, abruptamente, e eu fiquei mais aliviado do que ofendido por sua resposta.

Depois disso eu o deixei sozinho.

Pouco antes da hora do chá ele me procurou:

— Desculpe, velho amigo, se eu fui um pouco grosso com você agora há pouco — “agora há pouco”, ele disse, mas tínhamos ficado sem nos falarmos por mais de três horas — mas eu não volto lá de novo — e ele indicou onde com a cabeça — por nada que você possa me oferecer. Argh!

E ele parou de falar na história de terror, esperança e desespero daquele homem.

Na manhã seguinte acordamos cedo e fomos nadar como de costume. Tínhamos em parte esquecido a depressão do dia anterior e então pegamos nossas varas depois do desjejum e passamos o dia em nosso esporte favorito.

Depois desse dia nós aproveitamos nossas férias ao máximo, embora ansiosos pelo momento em que o cocheiro viria nos buscar, pois estávamos ambos tremendamente ansiosos para perguntar-lhe, e através dele perguntar às pessoas do vilarejo, se alguém poderia nos dar alguma informação sobre o estranho jardim que jazia esquecido no coração daquele pedaço quase desconhecido do país.

Por fim chegou o dia em que esperávamos que o cocheiro viria buscar-nos. Ele veio cedo, quando ainda estávamos deitados, e a primeira coisa que vimos foi ele abrindo a tenda e nos perguntando se tivéramos boa pesca. Respondemos que sim e então, os dois juntos quase em uníssono, fizemos a pergunta que estava mais premente em nossas mentes: se ele sabia algo do velho jardim, do grande buraco e do lago, situados a alguns quilômetros de distância, rio abaixo, ou se ele alguma vez soubera de uma grande casa ali por perto.

Não, ele não sabia e não tinha conhecimento de nada parecido, mas ele ouvira um rumor, muito tempo antes, sobre uma grande e velha casa isolada nos campos selvagens, mas — se ele se lembrava bem — era um lugar deixado para as fadas ou — se não fosse assim — ele tinha pelo menos a certeza de que havia algo estranho a respeito dele e, de qualquer maneira, ele não ouvia mais nada sobre isso há muito tempo — pelo menos não desde seus dias de pirralho. Não, ele não se lembrava de nada em particular sobre o lugar e, de fato, ele não se lembrava de nada, nada mesmo, antes que nós lhe perguntássemos.

— Veja então — disse Tonnison, ao ver que isso era tudo que ele podia nos dizer — se pode dar uma passada no povoado, enquanto nos vestimos, e descobrir alguma coisa.

Com uma saudação enigmática o homem saiu em sua busca, enquanto nos apressávamos em vestir nossas roupas, depois do que começamos a preparar o desjejum.

Estávamos ainda começando a comer quando ele retornou.

— Tão tudo na cama os preguiçoso, s'ôr — ele disse, com uma repetição da saudação e um olho guloso sobre as coisas que tínhamos disposto sobre o cesto de provisões que usávamos como mesa.

— Ah, bem, sente-se então — respondeu o meu amigo — e coma alguma coisa aqui conosco — o que o homem fez sem mais demora.

Depois do desjejum, Tonnison mandou-lhe de novo na mesma busca, enquanto descansávamos e fumávamos. Ele ficou fora por três quartos de uma hora e quando voltou era evidente que ele tinha descoberto alguma coisa. Ele parecia ter conversado com um velho do povoado que, provavelmente, sabia mais sobre a estranha casa do que qualquer pessoa viva — embora ainda fosse pouco.

A substância desse conhecimento era que na juventude do velhote — e só Deus sabe há quanto tempo foi isso — havia uma grande casa no centro dos jardins, onde hoje só resta aquele fragmento de ruína. Tal casa estivera vazia por muito tempo, desde muito antes do nascimento do velhote. Era um lugar evitado pela gente do povoado, tal como fora evitado por seus pais antes deles. Muitas eram as coisas ditas sobre ele, e todas eram más. Ninguém jamais se aproximara de lá, nem de dia e nem de noite. Para a gente do povoado, a casa era sinônima de tudo que fosse ímpio e horrível.

E então, um dia, veio um homem, um estrangeiro, que passou a cavalo pelo povoado e se dirigiu ao rio, na direção da Casa, tal como a gente de lá a chamava. Algumas horas depois ele cavalgou de volta, seguindo a trilha pela qual viera, na direção de Ardrahan. Então, por três meses ou mais, nada se ouviu falar. Ao fim desse tempo ele reapareceu, mas estava acompanhado de uma senhora idosa e de um grande número de burros, carregados de vários artigos. Eles passaram pelo povoado sem parar, e foram direto para a margem do rio, na direção da Casa.

Desde então ninguém viu ou ouviu falar dos dois, a não ser o homem que tinham contratado para trazer-lhes suprimentos mensais de Ardrahan, e mesmo este ninguém jamais tentou fazer falar, apenas sabiam que ele era bem pago pelo seu incômodo.

Os anos se passaram sem grandes novidades no pequeno povoado, com o homem fazendo suas viagens mensais, regularmente.

Um dia ele apareceu como de costume em seu trajeto. Ele tinha passado pelo povoado sem fazer mais que um gesto rude aos habitantes e se dirigido à casa. Normalmente ele só teria voltado à noite. Mas daquela vez ele reapareceu no povoado poucas horas depois, extraordinariamente excitado e com uma informação bombástica de que a Casa tinha desaparecido totalmente e que um abismo estupendo então se abria no lugar onde ela tinha estado.

Tais novidades, ao que parece, excitaram tanto a curiosidade dos habitantes do povoado que eles superaram os seus medos e marcharam em massa para lá. Ali encontraram tudo como fora descrito pelo comerciante.

Isto foi tudo que pudemos saber. Sobre o autor do manuscrito, quem era e de onde veio, talvez nunca saibamos.

Sua identidade, tal como parece ter sido o seu desejo, está sepultada para sempre.

Naquele mesmo dia nós deixamos o solitário povoado de Kraighten. Até hoje não voltamos lá.

Às vezes, em meus sonhos, vejo aquele enorme buraco, cercado como está por arbustos e árvores selvagens. E o ruído da água se ergue e se mescla, em meu sonho, com outros ruídos, mais baixos, enquanto por sobre tudo se estende um manto eterno de gotículas.


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Muito bom o seu texto mostra direção e orientaçaoh...
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Eu tenho acompanhado esses casos, não só contra vo...
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