Seguimos pela rodovia até as primeiras araucárias darem o ar da graça. Estávamos perto de Barbacena e a subida da serra tinha ficado para trás. Quando entrei no trevo, Gaspar ficou confuso e eu, que conhecia pouco daquele trecho de estrada, de pouco tempo que vivia em Minas Gerais, acabei me perdendo e dando várias voltas pelos braços e entroncamentos em torno da cidade, sem que ele se decidisse para onde ir. Parecia nervoso, cheirava o ar com mais vontade, dando a entender que estava perto o lugar que procurávamos. Já estávamos tontos de tentar achar direções, quando ele estendeu o braço para a esquerda, tão de repente que quase me atingiu o nariz, e decretou:
— Entra por ali. Sete léguas mais adiante.
Era uma estradinha lateral muito estreita e quase imperceptível, que se encontrava com uma das saídas da cidade, à distância. Ainda foram dois quilômetros até chegar até lá. A estrada parecia não ir a lugar nenhum, tantos os buracos e valetas que maltratavam o carro. Sete léguas seriam um suplício digno de contos de terror. Mais adiante, porém, a estrada melhorou um pouco, poupando os pobres amortecedores.
O sol quente e a preguiça do almoço me faziam vacilar ao volante, com a cabeça pesando como uma abóbora e o peito suando como se estivesse na ginástica. E o carro não facilitava, insistindo em desviar cada vez que as rodas entravam em alguma panela. Meus braços quase não conseguiam controlar o volante que pinoteava como um cavalo de rodeio nas minhas mãos. Praguejei pensando na loucura de ter entrado com ele por aquele verdadeiro trilho de cabritos, mas ele se divertia com o sacolejo do carro nos buracos, como um cavaleiro domando um potro brabo.
Logo chegamos a uma encruzilhada. Antes que eu fizesse menção de reduzir a marcha do carro, José Gaspar já me havia indicado que era para pegar o caminho da esquerda. Quando começava a me sentir presa do cansaço, ele sorriu, dizendo que haviam sido só duas léguas. Uma eternidade depois passamos a terceira légua e encontramos outra encruzilhada, que novamente tinha de ser dobrada à esquerda. Foi quase só depois do fim do mundo que passamos pela quarta légua, e só um pouco depois achamos a terceira encruzilhada. A estrada melhorou, então. Ficou mais estreita, porém mais plana e coberta de uma camada quase regular de plantas rasteiras, que raspavam no fundo do carro com um ruído hipnótico. Amassadas pelas rodas e cortadas pela lataria, elas desprendiam um cheiro forte, que parecia entrar no carro e adocicar mais o olfato, aumentar a sensação de torpor que a digestão pesada me trazia.
Subitamente me vi a ponto de cair por uma pirambeira e travei as rodas no chão, sentindo a morte na nuca. José Gaspar apenas ria, o desgraçado. Engatei a ré e manobrei com cuidado para fazer a curva estreita, para a esquerda, claro. Todas as curvas estranhas das estradas do mundo parecem sempre virar para a esquerda. Então notei que estávamos novamente subindo — e que fazia uma hora ou mais que eu não via ninguém pela estrada, nem a pé, nem a cavalo, nem de charrete, nem sequer voando em uma vassoura. A tarde começava lentamente a cair, meu estômago pedia café com pão e manteiga e um vento fresco parecia soprar de todos os lados, redemoinhando em volta do carro.
A paisagem ao nosso redor era desolada, de um verde bruto e ainda ressequido, apesar das chuvas recentes da primavera. Fazia um calor abafado e úmido, um jeito de chuva emprenhava o ar. Ao longe víamos um mar de morros redondos, quase todos pelados ou tristemente roubados de suas cores ancestrais. Mas a estrada que eu seguia era ainda ladeada por árvores cheirosas, várias delas floridas, cava vez mais altas, querendo abraçar-se acima do caminho, delicadamente sombreando o céu. Junto com as pessoas haviam também ficado para trás as vacas e quase todos os animais domésticos, mas eu já vira, curiosamente, um tamanduá chispando através da estrada.
— Estamos chegando — ele me disse, quando eu já estava começando a achar que não chegaríamos nunca, depois de tanta encruzilhada. Quantas? Parei de contar depois da terceira, mas tinha sido pelo menos o dobro disso.
À frente de nós apareceu, então, uma porteira desconjuntada, dessas que até parece que ninguém nunca abre. E logo depois dela uma casinha de pau-a-pique cuidadosamente pintada com tabatinga.
— É aqui!? — perguntei-lhe.
— Estamos chegando — foi tudo o que ele disse, já saltando do carro para abrir a porta.
Passamos por aquela porteira e logo adiante havia mais uma encruzilhada, certamente a décima ou décima primeira naquela estrada. Tomamos o caminho da esquerda, como de todas as vezes anteriores. O sol começava a tomar o caminho da noite, mergulhando entre dois curiosos morros arredondados que se arreganhavam como pernas no horizonte. O caminho indicado por José Gaspar parecia seguir a direção aproximada daquele lugar, serpenteando por entre subidas e descidas e curvas e lugares cada vez mais silenciosos e sombrios.
Não sei dizer se aquela sombra que eu via nas coisas era porque a tarde caía, ou se de alguma forma o sol ali brilhava menos. Sei que uma melancolia me assaltou depois que o carro passou pela porteira, uma vontade de desistir e de voltar. Por um momento eu me perguntei o que, afinal de contas, estava fazendo ali. Mas esta resposta a minha mente não conseguia me dar, era como se a minha vontade fosse obrigada, aonde quer que eu estivesse indo.
Pegamos uma estrada estreita e pedregosa, mas ainda transitável, ladeada por goiabeiras e marmeleiros que pareciam muito velhos. Tive a curiosidade de acompanhar no odômetro do carro e reparei que a estrada acabava depois de mais ou menos mil e seiscentos metros, que são, curiosamente, três treze avos de uma légua. Ali o caminho se dividiu em três. O braço do meio ficava meio oculto por uma moita de paineiras e jenipapeiros e parecia rumar direto para a face de um morro.
— Estamos chegando — ele me apontou a estrada do meio.
Fechei os olhos e embiquei o carro pela direção que mal conseguia ver. Ao fazer essa loucura eu não sabia se mais adiante haviam crateras ou abismos, mas José Gaspar estava tão convicto que me transmitiu a sua vontade de seguir. Quando dei por mim estava subindo penosamente um morro íngreme, em uma estrada surpreendentemente melhor do que a de antes.
Terminada a subida, a estrada nivelou e eu vi diante de mim a passagem entre os dois morros redondos, que eu vira de longe. No odômetro estavam marcados três mil e quinhentos metros, sete treze avos de uma légua.
José Gaspar me apontou outra casa de pau-a-pique, desta vez quase imperceptível, construída à sombra de uma figueira imensa, que parecia ter sido plantada no tempo da infância da minha avó. A casa era bem pequena, as suas paredes eram escurecidas com esterco e tinha uma camada da sapê, presa com ripas rústicas, em vez de telhado. Mas toda essa impressão de impenetrável antiguidade se desfez quando reparei que aquela habitação minúscula, que mal parecia ter quarto onde um pudesse dormir, tinha uma larga porta lateral, grande para um carro entrar.
— É aqui?
— Quase — ele respondeu, ainda enigmático. Vamos deixar o carro porque daqui para a frente não tem mais estrada para ele.
E ao dizer isso já saltou do carro, destravou a tranca tosca que cerrava a porta trançada em taquara e me acenou para eu entrar com o meu carro na escuridão cavernosa que ele abriu diante de mim. Foi preciso reunir toda a minha coragem para fazer isso — e mesmo depois que eu fiz, ainda fiquei dentro do carro, sem conseguir abrir a porta, ouvindo a escuridão e temendo por aranhas e lacraias infestando o chão quando pisasse. Mas ele bateu no vidro, com uma vela acesa na mão.
— Pode sair, não tem perigo.
Saí então, que me restava fazer? O ar cheirava a poeira velha, certamente do barro usado para erguer as paredes. Mas o chão estava limpo.
Quando saímos de dentro daquele lugar pavoroso, a sombra da figueira se estendia por sobre a estrada, enforcando a cor rosada da poeira que as poucas chuvas da recente primavera ainda não haviam apagado bem. José Gaspar me levou até o meio da estrada e me apontou a passagem, que parecia pouco mais que uma trilha entre os morros, que naquele lugar se tocavam quase.
— Aí está a entrada da Serra da Estrela, se você quis saber — ele usava tempos verbais curiosos, como alguém que saboreia uma língua exótica.
A entrada não se abria, não se via quase. Era apenas um amassado peculiar na uniformidade da macega que unia os morros. Somente então eu entendi que a Serra da Estrela não poderia ser, de forma nenhuma, um lugar qualquer, onde viveriam pessoas quaisquer. Aquela entrada não será vista sempre, não será vista por todos que a procurem naquele canto esquecido de Minas Gerais. Ela só estará visível sob um certo ângulo, sob uma certa luz, em certa época do ano, quando a sombra da figueira toca a estrada por volta da sexta hora. Uma trilha tão estreita e obscura que os raros moradores daquela mesma região tão pouco habitada talvez nem se lembrem ou nem saibam mais que existe. A estrada não mais existe naquele ponto: a grama de décadas se transformou em capoeira, as chuvas abrandaram o corte dos barrancos que um dia a gente da Serra abriu a golpes de enxadão. Para a maioria das pessoas segue apenas uma curva à direta, são poucos os que entrarão à esquerda.
— Por onde vamos? — eu perguntei.
— Não vamos, você vai — ele respondeu, com o rosto carregado de preocupações, com as garras firmes no chão, o corpo todo parecendo retesado para sair correndo.
— Não quer ver a sua irmã?
— Quero, muito. Mas tenho meus motivos para ficar de fora. Depois que estiver por dentro você há de entender.
— Me trouxe até aqui e quer que eu entre sem você!?
— Eu fui te buscar por amor de minha irmã. Por amor dela eu voltei até aqui. Mas não tem amor que me faça dar outro passo para lá — ele apontou com o queixo, enquanto as mãos se agarravam num mourão da cerca.
Eu me sentia sem chão. O que estava fazendo mesmo ali? Minha mente hesitou sem responder. Um nome me passou pela cabeça, quase com uma ordem para entrar e procurar.
— Não se preocupe muito em procurar por Felipa. Ela vai acabar por te achar.
Ele disse isso sorrindo, mostrando dentes malévolos no canto da boca. Foi a primeira vez que notei nele aquela frialdade, aquele estanho cálculo. Mas isso não me causou desconfiança: de certa forma eu sentia que ele não mentira sobre sua irmã, sobre a Serra da Estrela ou sobre as coisas estranhas que haveriam nela.
Então tomei coragem e comecei a contemplar a sombra que avançava devagar sobre a macega.
— Você tem que ir logo, ou a noite cai não haverá mais caminho.
Dei três passos decididos, percebi a lua subindo no horizonte, cheia. A entrada escura se aproximava. Meu pé começou a roçar em galhos mortos, folhas verdes, teias de aranha. Atrás de mim ouvi um rugido estranho, mas antes que eu pensasse em me virar para ver o que poderia ser eu entrei na sombra e meus ouvidos não ouviram nada mais que os grilos, os mosquitos e um lento gotejar de água suave, como se ainda houvesse chuva nas flores. Quando olhei para trás a encruzilhada parecia um quadro a óleo muito antigo, paralisado no tempo, gretado pelos séculos. Estava vazia, exceto pelas marcas no chão, onde parecia que um animal se espojara.
Mais alguns passos e as folhas começaram a se abrir. Diante de mim continuava a estrada. Era como se a macega fosse uma porteira que eu abrira com as mãos e cruzara para outra propriedade. Ali o capim era mais viçoso e o ar tinha um cheiro limpo, tranquilo. A lua se arrastava no céu, ensanguentada de tão perto, enorme. Compreendi, então, porque tivera de cruzar a pé. Quem queira ir à Serra da Estrela não tem como ir de outro modo, a não ser andando, levando apenas a roupa do corpo. Nenhum automóvel subirá por aqueles estreitos caminhos até o fim, passando por todas as macegas e moitas de espinhos. Mas se o viajante insiste, haverá do outro lado outro caminho, que prossegue o de cá, como se entrasse para dentro de um espelho. Ali também existe uma casinha pequenina, que fica perto de uma figueira que cresceu além da conta, que fica ao lado de um regato raso, também no topo de um morro agudo que, no entanto, você desce em vez de subir. E quando dá com esse morro, vê diante de si um vale longo, para onde vai o riacho que eu ainda não sei onde nasce. Lá no fundo existe um brejo onde martelam sapos e as almas dos mortos queimam em labaredas azuis sob a lua. Depois da porteira nas sombras você sai desse mundo veloz e entra na Serra da Estrela. Ali o tempo é outro, as cores são mais vivas.
Se algum dia você estiver a perambular sem norte pelas estradas do interior de Minas Gerais e chegar a um lugar como esse que descrevi, engula em seco, esfregue os olhos e volte. Não desça pela trilha que desce o morro e leva à Vargem dos Lírios. Não siga, de jeito nenhum, em direção ao Pico da Flecha. Nem todos os tolos que o fazem têm a sorte de escapar do Brejo das Almas. Retorne, viajante sem rumo. Retorne, porque você pode acabar em um lugar onde realmente não existe o norte.
Digo isso porque hoje sei que existem outras porteiras escondidas, em lugares quietos, quase sempre onde morros se encontram, formando vales que parecem regaços, onde macegas crescem e escondem a entrada de outro mundo.
Não seja louco como fui. A ponto de penetrar por minha vontade quase livre por um lugar onde somente os perdidos entram por engano, e permanecem perdidos.