Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
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Out 11
publicado por José Geraldo, às 22:28link do post | comentar

Há anos um parágrafo escrito por Howard Phillips Lovecraft não me sai da cabeça. Já o devo ter traduzido uma dezena de vezes, para postar em duas ou três dezenas de lugares. Aqui vai a décima primeira tradução, como introito deste artigo que, mais uma vez, me alijará de alguns amigos e leitores:

A coisa mais misericordiosa no mundo, creio, é a incapacidade da mente humana para interligar todos os seus conhecimentos. Vivemos em uma plácida ilha de ignorância em meio aos mares negros do infinito, e não fomos feitos para ir muito longe. As ciências, cada qual puxando em uma direção, até agora nos causaram pouco mal, mas um dia a montagem de todo o conhecimento desconexo abrirá tais terríveis visões da realidade, e de nossa precária posição nela, que enlouqueceremos com a revelação ou fugiremos da luz fatal, para a segurança e a paz de uma nova idade das trevas.

Lovecraft escreveu no entre-guerras, uma época em que o mundo estava muito pessimista — e com plena razão: treze anos após terem sido escritas estas palavras o mundo mergulhou na pior guerra de todos os tempos, uma que, em seus efeitos de longo prazo, praticamente destruiu a civilização ocidental. Por paradoxal que isso possa parecer, a orgia de massacres e destruição da Pior de Todas as Guerras deu ao mundo um otimismo tal como nunca se vira, e a humanidade embarcou num sonho de grandeza extraordinário: sonhamos em conquistar as estrelas, colonizar sistemas solares, ser mestres de galáxias. Lênin não dizia que o capitalismo, se pudesse, anexaria os planetas? Pois bem, a utopia do século XX sonhava exatamente com isso.

Mas as palavras de Lovecraft, mesmo esquecidas de quase todos, continuavam profeticamente denunciando a vaidade de nossos sonhos. E cada nova descoberta da ciência foi pondo uma pá de cal a mais na cova da utopia. Sonhamos, sim, com as estrelas, mas elas estão distantes de nossas mãos, somos crianças brincando numa poça, sonhando agarrar as estrelas que se refletem na água. Sonhamos com uma maravilhosa máquina prateada que nos eleve e nos leve além de nossos horizontes cinzentos, tal como na canção do Hawkwind:

Acabei de passear em uma Máquina Pratada / e ainda estou me sentindo tonto. / Você gostaria de também ver-se transportado / ao outro lado do céu? / Eu tenho uma Máquina Prateada / que voa diagonalmente no tempo. / É um aparelho eletrizante / vindo exatamente de meu signo do zodíaco. / Tenho uma Máquina Prateada / Tenho uma Máquina Prateada

Que tal canção tenha feito grande sucesso nos anos setenta não é nenhum espanto: era o auge do delírio espacial do homem.

Se todos nós pudéssemos ajuntar os cacos partidos do conhecimento humano, já teríamos visto a enormidade do desafio: a extensão do cosmos vai muito além do que o intelecto medíocre pode conceber, mas no jargão dos fãs de ficção científica fala-se em anos luz como se fossem «quilômetros espaciais». De certa forma, são, mas nós somos para tal quilômetro fantástico menos do que formigas na estrada. Estrelas comparáveis ao sol existem nas nossas proximidades, a meros anos luz. Elas parecem, no entanto, minúsculas e frias porque meros anos luz transformam o Sol em uma estrela a mais. A maioria das «estrelas» que vemos no céu são super gigantes, agrupamentos de estrelas ou até galáxias distantes. Como pudemos sonhar romper estas distâncias que transformam sóis em velas? Somente com ingenuidade, e ignorância.

Mas a orgia de tal sonho teve um fim: o mundo de hoje não consegue mais reunir tantos excedentes e obter verbas em escalas suficientes para desenvolver projetos semelhantes ao que levou o homem à Lua. Com a tecnologia que temos, a repetição do feito seria quase trivial: os computadores de bordo das naves Apollo não tinham a capacidade de uma calculadora científica de hoje. Ir à Lua seria fácil, mas ainda não temos nada de útil para fazer lá. Então o projeto espacial se torna obsoleto, desnecessário. As distâncias são muito grandes, o espaço é muito frio. Nós fomos lá fora, vimos os mares negros do infinito e estamos presos na praia. São vários os fatores que nos limitam: nossas almas, nossos corpos, nossa tecnologia, nossa finitude.

As leis da física estão contra nós: basta fazer uma conta simples, como a que fez Poul Anderson, em seu romance «Tau Zero». Mesmo sem a resistência oferecida pelo ar, mesmo ainda beneficiados pela inércia, no espaço nós precisamos de quantidades imensas de energia para empurrar nossas naves meteóricas. Cada aceleração adicional exige mais energia, uma dose de energia que cresce exponencialmente a cada acréscimo aritmético da velocidade. A energia necessária para acelerar da metade a dois terços da velocidade da luz é maior do que toda a energia necessária para chegar à primeira. E uma vez tendo chegado a 90% (algo que ninguém mais crê ser possível) qualquer aceleração adicional já exigiria uma quantidade praticamente infinita de energia. Mais do que isso, devido à relatividade do espaço-tempo, uma nave tal, supondo que seja possível a um objeto físico real acelerar a tanto, estaria de tal forma afetada pela velocidade que no espaço de uns poucos anos para seus tripulantes transcorreria um tempo maior que a atual idade do universo. Nossas almas ficariam para trás, ainda que nossos frágeis corpos resistissem a tudo isso.

E falando de frágeis corpos, não cessam de acumular dados sobre os efeitos negativos da permanência no espaço. Passada a fase romântica em que era interessante usar toneladas de explosivos para atirar fora da atmosfera frágeis bolhas de metal e vidro levando corajosos (ou loucos?) indivíduos que sonhavam com a posteridade, hoje não parece haver muito sentido em expor corpos humanos às condições da órbita: os ossos se fragilizam, os músculos definham, o labirinto se atrofia, o sangue fica estranho. Não faz um ano descobriu-se que os astronautas que permanecem no espaço mais do que alguns dias retornam com a visão afetada também. Quanto resistiria o frágil corpo humano em uma viagem realmente dura, de anos ou décadas pelo espaço vazio, rumo ao nada? Chegaríamos sem ossos, sem músculos, cegos, desequilibrados. Cegos e desequilibrados talvez já estejamos.

Existem tecnologias teóricas que poderiam vencer tais obstáculos. Fala-se em hiperespaço, buracos de minhoca, gravidade artificial. Fala-se de tais coisas tal como na idade média se falava em carruagens mágicas, feitiços do tempo, pedra filosofal, panaceia universal. Tal como naquela época, falamos destas coisas sem ter a mínima ideia de como poderiam ser obtidas. Sob certo aspecto, o romance medieval de cavalaria mencionando o bálsamo cura tudo e o fogo grego é uma obra de ficção científica tão legítima quanto uma moderna, que fale sobre viagens por buracos de minhoca, em naves maravilhosas, rumo a planetas desconhecidos. A vassoura mágica de uma feiticeira em seu sabá é tão científica quanto o disco voador do alienígena (bom ou mau) que aparece do nada, para punir ou pregar. Cada idade tem seus demônios e seus deuses, e como disse Clarke, tecnologia suficientemente mais avançada não se distingue de mágica.

Sim, meus amigos. Lovecraft tinha razão. Não fomos feitos para ir muito longe. Sonhamos apenas com isso, e nossos sonhos hoje não são mais com anjos que nos levem para ouvir a música das esferas, mas com inventos fantásticos que nos levem desse mundo cada vez mais vazio. Mas não adianta sair: este é, ainda, o único mundo que nós temos.


publicado por José Geraldo, às 09:15link do post | comentar
Este texto é parte do romance “A Casa no Fim do Mundo”, de William Hope Hodgson (1907), que estou traduzindo em capítulos semanais. Visite o Índice para lê-los em sequência.

Pus de lado o manuscrito e olhei para o Tonnison: ele estava sentado, contemplando a escuridão. Esperei um minuto e então falei.

— Então?

Ele olhou para mim lentamente. Seus olhos pareciam voltar de uma imensa distância.

— Ele estava louco? — perguntei, indicando o manuscrito com o queixo.

Tonnison me encarou, distraído, por um momento e então sua concentração retornou ele compreendeu subitamente o meu questionamento.

— Não — ele disse.

Abri os lábios para oferecer uma opinião contraditória, pois o meu senso de sanidade nas coisas não me permitiria aceitar o relato literalmente, então cerrei-os de novo, sem nada ter dito. De alguma maneira, a certeza na voz de Tonnison afetara minhas dúvidas. Senti, subitamente, que tinha menos certezas, embora ainda não estivesse convencido.

Depois de uns momentos de silêncio Tonnison se levantou, rígido, e começou a despir-se. Ele parecia pouco inclinado a conversa, então eu não disse nada, e segui seu exemplo. Eu estava cansado, embora ainda estivesse com a cabeça cheia da história que havia acabado de ler.

De alguma maneira, quando eu me enfiei nos cobertores, voltou-me à mente a lembrança dos velhos jardins, tal como os havíamos visto. Lembrei do estranho receio que o lugar tinha causado aos nossos corações e logo percebi, com toda convicção, que Tonnison estava certo.

Acordamos muito tarde, quase ao meio dia, pois a maior parte da noite havíamos passado lendo o manuscrito.

Tonnison estava mal humorado e eu me sentia meio desconexo. Foi um dia meio lúgubre, com um toque de friagem no ar. Nem pensamos em sair para pescar. Comemos e depois ficamos fumando em silêncio.

Então Tonnison me pediu o manuscrito. Eu o entreguei e ele passou a maior parte da tarde lendo-o sozinho.

Enquanto ele se ocupava disso um pensamento me veio:

— O que você me diz de dar uma outra olhada no… — e indiquei o rio acima com o queixo.

Tonnison ergueu os olhos.

— Nada! — ele disse, abruptamente, e eu fiquei mais aliviado do que ofendido por sua resposta.

Depois disso eu o deixei sozinho.

Pouco antes da hora do chá ele me procurou:

— Desculpe, velho amigo, se eu fui um pouco grosso com você agora há pouco — “agora há pouco”, ele disse, mas tínhamos ficado sem nos falarmos por mais de três horas — mas eu não volto lá de novo — e ele indicou onde com a cabeça — por nada que você possa me oferecer. Argh!

E ele parou de falar na história de terror, esperança e desespero daquele homem.

Na manhã seguinte acordamos cedo e fomos nadar como de costume. Tínhamos em parte esquecido a depressão do dia anterior e então pegamos nossas varas depois do desjejum e passamos o dia em nosso esporte favorito.

Depois desse dia nós aproveitamos nossas férias ao máximo, embora ansiosos pelo momento em que o cocheiro viria nos buscar, pois estávamos ambos tremendamente ansiosos para perguntar-lhe, e através dele perguntar às pessoas do vilarejo, se alguém poderia nos dar alguma informação sobre o estranho jardim que jazia esquecido no coração daquele pedaço quase desconhecido do país.

Por fim chegou o dia em que esperávamos que o cocheiro viria buscar-nos. Ele veio cedo, quando ainda estávamos deitados, e a primeira coisa que vimos foi ele abrindo a tenda e nos perguntando se tivéramos boa pesca. Respondemos que sim e então, os dois juntos quase em uníssono, fizemos a pergunta que estava mais premente em nossas mentes: se ele sabia algo do velho jardim, do grande buraco e do lago, situados a alguns quilômetros de distância, rio abaixo, ou se ele alguma vez soubera de uma grande casa ali por perto.

Não, ele não sabia e não tinha conhecimento de nada parecido, mas ele ouvira um rumor, muito tempo antes, sobre uma grande e velha casa isolada nos campos selvagens, mas — se ele se lembrava bem — era um lugar deixado para as fadas ou — se não fosse assim — ele tinha pelo menos a certeza de que havia algo estranho a respeito dele e, de qualquer maneira, ele não ouvia mais nada sobre isso há muito tempo — pelo menos não desde seus dias de pirralho. Não, ele não se lembrava de nada em particular sobre o lugar e, de fato, ele não se lembrava de nada, nada mesmo, antes que nós lhe perguntássemos.

— Veja então — disse Tonnison, ao ver que isso era tudo que ele podia nos dizer — se pode dar uma passada no povoado, enquanto nos vestimos, e descobrir alguma coisa.

Com uma saudação enigmática o homem saiu em sua busca, enquanto nos apressávamos em vestir nossas roupas, depois do que começamos a preparar o desjejum.

Estávamos ainda começando a comer quando ele retornou.

— Tão tudo na cama os preguiçoso, s'ôr — ele disse, com uma repetição da saudação e um olho guloso sobre as coisas que tínhamos disposto sobre o cesto de provisões que usávamos como mesa.

— Ah, bem, sente-se então — respondeu o meu amigo — e coma alguma coisa aqui conosco — o que o homem fez sem mais demora.

Depois do desjejum, Tonnison mandou-lhe de novo na mesma busca, enquanto descansávamos e fumávamos. Ele ficou fora por três quartos de uma hora e quando voltou era evidente que ele tinha descoberto alguma coisa. Ele parecia ter conversado com um velho do povoado que, provavelmente, sabia mais sobre a estranha casa do que qualquer pessoa viva — embora ainda fosse pouco.

A substância desse conhecimento era que na juventude do velhote — e só Deus sabe há quanto tempo foi isso — havia uma grande casa no centro dos jardins, onde hoje só resta aquele fragmento de ruína. Tal casa estivera vazia por muito tempo, desde muito antes do nascimento do velhote. Era um lugar evitado pela gente do povoado, tal como fora evitado por seus pais antes deles. Muitas eram as coisas ditas sobre ele, e todas eram más. Ninguém jamais se aproximara de lá, nem de dia e nem de noite. Para a gente do povoado, a casa era sinônima de tudo que fosse ímpio e horrível.

E então, um dia, veio um homem, um estrangeiro, que passou a cavalo pelo povoado e se dirigiu ao rio, na direção da Casa, tal como a gente de lá a chamava. Algumas horas depois ele cavalgou de volta, seguindo a trilha pela qual viera, na direção de Ardrahan. Então, por três meses ou mais, nada se ouviu falar. Ao fim desse tempo ele reapareceu, mas estava acompanhado de uma senhora idosa e de um grande número de burros, carregados de vários artigos. Eles passaram pelo povoado sem parar, e foram direto para a margem do rio, na direção da Casa.

Desde então ninguém viu ou ouviu falar dos dois, a não ser o homem que tinham contratado para trazer-lhes suprimentos mensais de Ardrahan, e mesmo este ninguém jamais tentou fazer falar, apenas sabiam que ele era bem pago pelo seu incômodo.

Os anos se passaram sem grandes novidades no pequeno povoado, com o homem fazendo suas viagens mensais, regularmente.

Um dia ele apareceu como de costume em seu trajeto. Ele tinha passado pelo povoado sem fazer mais que um gesto rude aos habitantes e se dirigido à casa. Normalmente ele só teria voltado à noite. Mas daquela vez ele reapareceu no povoado poucas horas depois, extraordinariamente excitado e com uma informação bombástica de que a Casa tinha desaparecido totalmente e que um abismo estupendo então se abria no lugar onde ela tinha estado.

Tais novidades, ao que parece, excitaram tanto a curiosidade dos habitantes do povoado que eles superaram os seus medos e marcharam em massa para lá. Ali encontraram tudo como fora descrito pelo comerciante.

Isto foi tudo que pudemos saber. Sobre o autor do manuscrito, quem era e de onde veio, talvez nunca saibamos.

Sua identidade, tal como parece ter sido o seu desejo, está sepultada para sempre.

Naquele mesmo dia nós deixamos o solitário povoado de Kraighten. Até hoje não voltamos lá.

Às vezes, em meus sonhos, vejo aquele enorme buraco, cercado como está por arbustos e árvores selvagens. E o ruído da água se ergue e se mescla, em meu sonho, com outros ruídos, mais baixos, enquanto por sobre tudo se estende um manto eterno de gotículas.


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Eu tenho acompanhado esses casos, não só contra vo...
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