Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
09
Out 11
publicado por José Geraldo, às 23:32link do post | comentar

Hoje à tarde, enquanto lia sobre a obra de H. P. Lovecraft, que segue sendo um de meus autores favoritos (em parte devido às suas semelhanças comigo, nos aspectos psicológico e teratológico), encontrei uma passagem, escrita jocosamente por um comentarista na Usenet, zombando das inúmeras obras que foram escritas até hoje empregando como clichês os elementos mais característicos das histórias lovecraftianas, os chamados “pastiches”:

Será que ninguém escreveu um anti-pastiche? Centrado em um culto que acabou de ser formado, com prateleiras cheias de livros comprados na B Dalton [uma cadeia de livrarias americana equivalente à nossa Cultura MegaStore] e vários cadernos ainda preenchidos apenas pelas linhas azuis, que tem um bom relacionamento com a comunidade…

Ao ler isso eu quase cuspi no teclado a água que estava bebendo. Esta é a sinopse da “Confraria dos Temerários” (de que já publiquei uma parte aqui no blog)! Caramba! Alguém teve essa ideia em 1997 e ela certamente está rodando por aí, nas mãos de escritores talvez até mais competentes do que eu! Certamente já existe esta história, de alguma forma. Para a sinopse ficar completa, só faltou mencionar o meu protagonista, um jovem psicólogo que estuda a fixação de certos indivíduos por grimórios.


06
Out 11
publicado por José Geraldo, às 22:54link do post | comentar
Este texto é parte do romance “Serra da Estrela“, que estou publicando em capítulos quinzenais. Visite a página de índice para acompanhar a história completa.

Seguimos pela rodovia até as primeiras araucárias darem o ar da graça. Estávamos perto de Barbacena e a subida da serra tinha ficado para trás. Quando entrei no trevo, Gaspar ficou confuso e eu, que conhecia pouco daquele trecho de estrada, de pouco tempo que vivia em Minas Gerais, acabei me perdendo e dando várias voltas pelos braços e entroncamentos em torno da cidade, sem que ele se decidisse para onde ir. Parecia nervoso, cheirava o ar com mais vontade, dando a entender que estava perto o lugar que procurávamos. Já estávamos tontos de tentar achar direções, quando ele estendeu o braço para a esquerda, tão de repente que quase me atingiu o nariz, e decretou:

— Entra por ali. Sete léguas mais adiante.

Era uma estradinha lateral muito estreita e quase imperceptível, que se encontrava com uma das saídas da cidade, à distância. Ainda foram dois quilômetros até chegar até lá. A estrada parecia não ir a lugar nenhum, tantos os buracos e valetas que maltratavam o carro. Sete léguas seriam um suplício digno de contos de terror. Mais adiante, porém, a estrada melhorou um pouco, poupando os pobres amortecedores.

O sol quente e a preguiça do almoço me faziam vacilar ao volante, com a cabeça pesando como uma abóbora e o peito suando como se estivesse na ginástica. E o carro não facilitava, insistindo em desviar cada vez que as rodas entravam em alguma panela. Meus braços quase não conseguiam controlar o volante que pinoteava como um cavalo de rodeio nas minhas mãos. Praguejei pensando na loucura de ter entrado com ele por aquele verdadeiro trilho de cabritos, mas ele se divertia com o sacolejo do carro nos buracos, como um cavaleiro domando um potro brabo.

Logo chegamos a uma encruzilhada. Antes que eu fizesse menção de reduzir a marcha do carro, José Gaspar já me havia indicado que era para pegar o caminho da esquerda. Quando começava a me sentir presa do cansaço, ele sorriu, dizendo que haviam sido só duas léguas. Uma eternidade depois passamos a terceira légua e encontramos outra encruzilhada, que novamente tinha de ser dobrada à esquerda. Foi quase só depois do fim do mundo que passamos pela quarta légua, e só um pouco depois achamos a terceira encruzilhada. A estrada melhorou, então. Ficou mais estreita, porém mais plana e coberta de uma camada quase regular de plantas rasteiras, que raspavam no fundo do carro com um ruído hipnótico. Amassadas pelas rodas e cortadas pela lataria, elas desprendiam um cheiro forte, que parecia entrar no carro e adocicar mais o olfato, aumentar a sensação de torpor que a digestão pesada me trazia.

Subitamente me vi a ponto de cair por uma pirambeira e travei as rodas no chão, sentindo a morte na nuca. José Gaspar apenas ria, o desgraçado. Engatei a ré e manobrei com cuidado para fazer a curva estreita, para a esquerda, claro. Todas as curvas estranhas das estradas do mundo parecem sempre virar para a esquerda. Então notei que estávamos novamente subindo — e que fazia uma hora ou mais que eu não via ninguém pela estrada, nem a pé, nem a cavalo, nem de charrete, nem sequer voando em uma vassoura. A tarde começava lentamente a cair, meu estômago pedia café com pão e manteiga e um vento fresco parecia soprar de todos os lados, redemoinhando em volta do carro.

A paisagem ao nosso redor era desolada, de um verde bruto e ainda ressequido, apesar das chuvas recentes da primavera. Fazia um calor abafado e úmido, um jeito de chuva emprenhava o ar. Ao longe víamos um mar de morros redondos, quase todos pelados ou tristemente roubados de suas cores ancestrais. Mas a estrada que eu seguia era ainda ladeada por árvores cheirosas, várias delas floridas, cava vez mais altas, querendo abraçar-se acima do caminho, delicadamente sombreando o céu. Junto com as pessoas haviam também ficado para trás as vacas e quase todos os animais domésticos, mas eu já vira, curiosamente, um tamanduá chispando através da estrada.

— Estamos chegando — ele me disse, quando eu já estava começando a achar que não chegaríamos nunca, depois de tanta encruzilhada. Quantas? Parei de contar depois da terceira, mas tinha sido pelo menos o dobro disso.

À frente de nós apareceu, então, uma porteira desconjuntada, dessas que até parece que ninguém nunca abre. E logo depois dela uma casinha de pau-a-pique cuidadosamente pintada com tabatinga.

— É aqui!? — perguntei-lhe.

— Estamos chegando — foi tudo o que ele disse, já saltando do carro para abrir a porta.

Passamos por aquela porteira e logo adiante havia mais uma encruzilhada, certamente a décima ou décima primeira naquela estrada. Tomamos o caminho da esquerda, como de todas as vezes anteriores. O sol começava a tomar o caminho da noite, mergulhando entre dois curiosos morros arredondados que se arreganhavam como pernas no horizonte. O caminho indicado por José Gaspar parecia seguir a direção aproximada daquele lugar, serpenteando por entre subidas e descidas e curvas e lugares cada vez mais silenciosos e sombrios.

Não sei dizer se aquela sombra que eu via nas coisas era porque a tarde caía, ou se de alguma forma o sol ali brilhava menos. Sei que uma melancolia me assaltou depois que o carro passou pela porteira, uma vontade de desistir e de voltar. Por um momento eu me perguntei o que, afinal de contas, estava fazendo ali. Mas esta resposta a minha mente não conseguia me dar, era como se a minha vontade fosse obrigada, aonde quer que eu estivesse indo.

Pegamos uma estrada estreita e pedregosa, mas ainda transitável, ladeada por goiabeiras e marmeleiros que pareciam muito velhos. Tive a curiosidade de acompanhar no odômetro do carro e reparei que a estrada acabava depois de mais ou menos mil e seiscentos metros, que são, curiosamente, três treze avos de uma légua. Ali o caminho se dividiu em três. O braço do meio ficava meio oculto por uma moita de paineiras e jenipapeiros e parecia rumar direto para a face de um morro.

— Estamos chegando — ele me apontou a estrada do meio.

Fechei os olhos e embiquei o carro pela direção que mal conseguia ver. Ao fazer essa loucura eu não sabia se mais adiante haviam crateras ou abismos, mas José Gaspar estava tão convicto que me transmitiu a sua vontade de seguir. Quando dei por mim estava subindo penosamente um morro íngreme, em uma estrada surpreendentemente melhor do que a de antes.

Terminada a subida, a estrada nivelou e eu vi diante de mim a passagem entre os dois morros redondos, que eu vira de longe. No odômetro estavam marcados três mil e quinhentos metros, sete treze avos de uma légua.

José Gaspar me apontou outra casa de pau-a-pique, desta vez quase imperceptível, construída à sombra de uma figueira imensa, que parecia ter sido plantada no tempo da infância da minha avó. A casa era bem pequena, as suas paredes eram escurecidas com esterco e tinha uma camada da sapê, presa com ripas rústicas, em vez de telhado. Mas toda essa impressão de impenetrável antiguidade se desfez quando reparei que aquela habitação minúscula, que mal parecia ter quarto onde um pudesse dormir, tinha uma larga porta lateral, grande para um carro entrar.

— É aqui?

— Quase — ele respondeu, ainda enigmático. Vamos deixar o carro porque daqui para a frente não tem mais estrada para ele.

E ao dizer isso já saltou do carro, destravou a tranca tosca que cerrava a porta trançada em taquara e me acenou para eu entrar com o meu carro na escuridão cavernosa que ele abriu diante de mim. Foi preciso reunir toda a minha coragem para fazer isso — e mesmo depois que eu fiz, ainda fiquei dentro do carro, sem conseguir abrir a porta, ouvindo a escuridão e temendo por aranhas e lacraias infestando o chão quando pisasse. Mas ele bateu no vidro, com uma vela acesa na mão.

— Pode sair, não tem perigo.

Saí então, que me restava fazer? O ar cheirava a poeira velha, certamente do barro usado para erguer as paredes. Mas o chão estava limpo.

Quando saímos de dentro daquele lugar pavoroso, a sombra da figueira se estendia por sobre a estrada, enforcando a cor rosada da poeira que as poucas chuvas da recente primavera ainda não haviam apagado bem. José Gaspar me levou até o meio da estrada e me apontou a passagem, que parecia pouco mais que uma trilha entre os morros, que naquele lugar se tocavam quase.

— Aí está a entrada da Serra da Estrela, se você quis saber — ele usava tempos verbais curiosos, como alguém que saboreia uma língua exótica.

A entrada não se abria, não se via quase. Era apenas um amassado peculiar na uniformidade da macega que unia os morros. Somente então eu entendi que a Serra da Estrela não poderia ser, de forma nenhuma, um lugar qualquer, onde viveriam pessoas quaisquer. Aquela entrada não será vista sempre, não será vista por todos que a procurem naquele canto esquecido de Minas Gerais. Ela só estará visível sob um certo ângulo, sob uma certa luz, em certa época do ano, quando a sombra da figueira toca a estrada por volta da sexta hora. Uma trilha tão estreita e obscura que os raros moradores daquela mesma região tão pouco habitada talvez nem se lembrem ou nem saibam mais que existe. A estrada não mais existe naquele ponto: a grama de décadas se transformou em capoeira, as chuvas abrandaram o corte dos barrancos que um dia a gente da Serra abriu a golpes de enxadão. Para a maioria das pessoas segue apenas uma curva à direta, são poucos os que entrarão à esquerda.

— Por onde vamos? — eu perguntei.

— Não vamos, você vai — ele respondeu, com o rosto carregado de preocupações, com as garras firmes no chão, o corpo todo parecendo retesado para sair correndo.

— Não quer ver a sua irmã?

— Quero, muito. Mas tenho meus motivos para ficar de fora. Depois que estiver por dentro você há de entender.

— Me trouxe até aqui e quer que eu entre sem você!?

— Eu fui te buscar por amor de minha irmã. Por amor dela eu voltei até aqui. Mas não tem amor que me faça dar outro passo para lá — ele apontou com o queixo, enquanto as mãos se agarravam num mourão da cerca.

Eu me sentia sem chão. O que estava fazendo mesmo ali? Minha mente hesitou sem responder. Um nome me passou pela cabeça, quase com uma ordem para entrar e procurar.

— Não se preocupe muito em procurar por Felipa. Ela vai acabar por te achar.

Ele disse isso sorrindo, mostrando dentes malévolos no canto da boca. Foi a primeira vez que notei nele aquela frialdade, aquele estanho cálculo. Mas isso não me causou desconfiança: de certa forma eu sentia que ele não mentira sobre sua irmã, sobre a Serra da Estrela ou sobre as coisas estranhas que haveriam nela.

Então tomei coragem e comecei a contemplar a sombra que avançava devagar sobre a macega.

— Você tem que ir logo, ou a noite cai não haverá mais caminho.

Dei três passos decididos, percebi a lua subindo no horizonte, cheia. A entrada escura se aproximava. Meu pé começou a roçar em galhos mortos, folhas verdes, teias de aranha. Atrás de mim ouvi um rugido estranho, mas antes que eu pensasse em me virar para ver o que poderia ser eu entrei na sombra e meus ouvidos não ouviram nada mais que os grilos, os mosquitos e um lento gotejar de água suave, como se ainda houvesse chuva nas flores. Quando olhei para trás a encruzilhada parecia um quadro a óleo muito antigo, paralisado no tempo, gretado pelos séculos. Estava vazia, exceto pelas marcas no chão, onde parecia que um animal se espojara.

Mais alguns passos e as folhas começaram a se abrir. Diante de mim continuava a estrada. Era como se a macega fosse uma porteira que eu abrira com as mãos e cruzara para outra propriedade. Ali o capim era mais viçoso e o ar tinha um cheiro limpo, tranquilo. A lua se arrastava no céu, ensanguentada de tão perto, enorme. Compreendi, então, porque tivera de cruzar a pé. Quem queira ir à Serra da Estrela não tem como ir de outro modo, a não ser andando, levando apenas a roupa do corpo. Nenhum automóvel subirá por aqueles estreitos caminhos até o fim, passando por todas as macegas e moitas de espinhos. Mas se o viajante insiste, haverá do outro lado outro caminho, que prossegue o de cá, como se entrasse para dentro de um espelho. Ali também existe uma casinha pequenina, que fica perto de uma figueira que cresceu além da conta, que fica ao lado de um regato raso, também no topo de um morro agudo que, no entanto, você desce em vez de subir. E quando dá com esse morro, vê diante de si um vale longo, para onde vai o riacho que eu ainda não sei onde nasce. Lá no fundo existe um brejo onde martelam sapos e as almas dos mortos queimam em labaredas azuis sob a lua. Depois da porteira nas sombras você sai desse mundo veloz e entra na Serra da Estrela. Ali o tempo é outro, as cores são mais vivas.

Se algum dia você estiver a perambular sem norte pelas estradas do interior de Minas Gerais e chegar a um lugar como esse que descrevi, engula em seco, esfregue os olhos e volte. Não desça pela trilha que desce o morro e leva à Vargem dos Lírios. Não siga, de jeito nenhum, em direção ao Pico da Flecha. Nem todos os tolos que o fazem têm a sorte de escapar do Brejo das Almas. Retorne, viajante sem rumo. Retorne, porque você pode acabar em um lugar onde realmente não existe o norte.

Digo isso porque hoje sei que existem outras porteiras escondidas, em lugares quietos, quase sempre onde morros se encontram, formando vales que parecem regaços, onde macegas crescem e escondem a entrada de outro mundo.

Não seja louco como fui. A ponto de penetrar por minha vontade quase livre por um lugar onde somente os perdidos entram por engano, e permanecem perdidos.


04
Out 11
publicado por José Geraldo, às 09:15link do post | comentar
Este texto é parte do romance “A Casa no Fim do Mundo”, de William Hope Hodgson (1907), que estou traduzindo em capítulos semanais. Visite o Índice para lê-los em sequência.

Eu acordei de repente. Ainda está escuro. Viro-me uma vez ou duas em minha tentativa de ainda dormir, mas não consigo. Minha cabeça dói levemente e eu me sinto alternadamente frio e quente. Logo desisto da tentativa e estendo a mão para pegar fósforos. Acenderei uma vela e lerei um pouco, talvez então eu consiga dormir. Por uns momentos tateio, então a minha mão alcança a caixa; mas ao abri-la assusto-me ao ver um ponto de luz fosforescente brilhando na escuridão. Estendo minha outra mão e o toco. Ele está no meu punho. Com uma vaga sensação de alarme eu risco um palito rapidamente e olho, mas nada vejo, a não ser um minúsculo arranhão.

“Impressão!”, eu murmuro, com um suspiro de quase alívio. Então o fósforo queima meu dedo e eu o deixo cair. Enquanto tateio em busca de outro a coisa brilha outra vez. Percebo, então, que não é uma mera impressão. Desta vez eu acendo a vela e examino o local mais de perto. Há uma ligeira descoloração esverdeada em torno do arranhão. Fico confuso e preocupado. Então me vem um pensamento. Na manhã seguinte ao aparecimento da Coisa, o cão lambera a minha mão. Foi esta mão, que tem o arranhão, embora não tenha tomado consciência desta profanação até agora. Um medo horrível está em mim. Ele se arrasta até meu cérebro: a ferida do cão brilha à noite. Com uma sensação de estupor eu me sento de lado na cama e tento pensar, mas não posso. Minha mente parece entorpecida pelo horror total desta nova descoberta.

O tempo passa, sem que eu perceba. Uma vez me ergo e tento me convencer de que estou enganado, mas é inútil. Em meu coração não resta a menor dúvida.

Hora após hora eu permaneço sentado e em silêncio, e tremo impotente…

O dia chegou, passou, e é noite outra vez.

Pela manhã eu matei o cachorro e o enterrei ao longe entre os arbustos. Minha irmã está assustada e cheia de medo, mas eu estou desesperado. Além do mais, é melhor assim. Aquela intumescência imunda havia quase coberto seu lado esquerdo. Quanto a mim… o lugar no meu punho cresceu visivelmente. Várias vezes eu me peguei murmurando orações… pequenos trechos aprendidos quando eu era criança. Deus, Todo-Poderoso Deus, ajudai-me! Acho que enlouquecerei!

Há seis dias que nada como. É noite. Estou sentado outra vez em minha poltrona. Ah, Deus! Será que alguém já sentiu o horror que encontrei em minha vida? Estou envolvido pelo terror. Sinto continuamente o ardor desta infestação maldita. Ela já cobriu todo o meu lado direito, braço e tronco, e já começa a chegar ao meu pescoço. Amanhã terá chegado à minha face e eu serei uma massa terrível de vida corrupta. Não há escapatória. Porém, um pensamento me ocorreu ao ver a prateleira de armas do outro lado do cômodo. Tenho olhado de novo, com o mais estranho dos sentimentos. A ideia fica mais forte em mim. Deus, Tu sabes, Tu deves saber, que a morte é melhor, é, melhor mil vezes do que isto! Isto! Jesus me perdoe, mas eu não posso, não posso, não posso viver! Não devo ousar viver! Estou além de toda ajuda! Nada mais resta a fazer. Pelo menos me pouparei do horror final…

Acho que cochilei. Estou muito fraco e muito melancólico, tão melancólico e cansado… cansado. O crepitar desta folha de papel irrita o meu cérebro. Minha audição parece sobrenaturalmente aguda. Vou me sentar um pouco para refletir…

“Silêncio! Ouço algo, lá embaixo… nos porões. É um rangido alto. Meu Deus, estão abrindo o grande alçapão de carvalho. O que estará fazendo isso? O arrastar da pena me ensurdece… mas tenho de ouvir… Ouço passos na escada, estranhos passos de patas, que se aproximam… sobem… Jesus, tenha misericórdia de mim, um velho. Algo está apalpando a maçaneta da porta. Oh, Deus! Ajude-me agora! Jesus… A porta está se abrindo… devagar. Algu…”

E isto é tudo.16

16 A partir desta palavra interrompida é possível acompanhar, no manuscrito, uma fina linha de tinta, sugerindo que a pena saiu pela borda da página, talvez devido ao medo e à surpresa — Nota do Editor.


02
Out 11
publicado por José Geraldo, às 19:47link do post | comentar

Hoje estive visitando o sítio de meu pai, em Itamarati de Minas. A viagem foi deprimente, não só porque meu velho não anda muito bem de saúde, mas também porque a natureza não está.

Dói-me ver tantos morros pelados, a terra exausta de sucessivos incêndios e descuido, revelando-se como derme escarificada, vermelha entre os tufos secos de capim. Dói-me ver tantos topos de morros calvos pela ação estúpida do homem, que hoje pensa em depredar rapidamente antes que o governo queira proteger, tal como o especulador que demole o prédio histórico antes que o IPHAN o consiga tombar.

A seca está forte, as estradas estão ardendo em poeira amarelenta. Os pastos parecem estepes de filme americano, o gado está magro. Marcas pretas de incêndios recentes aparecem aqui e ali. Dói-me andar pela roça e ouvir tão poucos pios de pássaros, tão pouco arrulho de riachos.

Volto triste e com sede, com a pele ardendo de sol e ressequida da poeira e do vento. Volto deprimido com os rumos desse mundo que parece caminhar rapidamente para a própria extinção da beleza.


01
Out 11
publicado por José Geraldo, às 14:10link do post | comentar
Este texto continua a história iniciada em janeiro, aqui.

A reunião dos tripulantes durou preciosas horas, durante as quais Kenji permaneceu mais alerta às vaguidões do espaço — com seus perigos e desejos — do que aos sons contraditórios emitidos pelos aparelhos fonadores de tantos humanos confusos. Ouvir aquela algaravia não trazia-lhe nenhuma informação definida, diferentemente do vácuo, onde podia ver a dança dos planetas daquele sistema tão calmo, tão semelhante e ao mesmo tempo tão diferente em relação a um distante outro, que somente subsistia nos registros mais antigos de sua memória de autômato.

Enquanto seus sensores mais numerosos capturavam a dança dos astros, alguns percorriam, porém, os fios e dobras dos corredores construídos para as necessidades tão orgânicas dos seres vivos que funcionavam naquela nave. Notou então que, embora ele mesmo e alguns outros da manutenção estivessem livremente investigando, Andréa estava, com todos de sua classe, devidamente contida em um compartimento estanque. Mesmo toda a ferocidade da chave de segurança não lhe impediu de ter consciência disso. Estava presa.

Talvez os humanos não desejassem que os cibernéticos compartilhassem de decisões que certamente seriam tomadas. Todos eles, pensou Kenji, num esforço para subjugar a chave de segurança que tentava confundir seus processos, falham em perceber que alguns humanos já se tornaram meio autômatos, tanto quanto alguns autômatos já se aproximaram da humanidade. Com tanto tecido orgânico aplicado à máquina, com tanta parte mecânica implantada nos corpos.

A reunião terminou fatalmente. Tinha de terminar em algum momento. Elegeram um novo capitão. Embora a Tenente Xu tivesse tomado todas as iniciativas, havia alguma coisa a respeito dela que não inspirava confiança na maioria dos humanos presentes na nave, talvez a cor do cabelo ou o formato dos olhos ou o modo como articulava os fonemas. O novo capitão se chamava Brown e tinha os dentes amarelos e os olhos imersos em profundos círculos roxos. Era velho e triste, curvado pelo peso do dever durante as décadas em que se revezara no serviço desperto. Kenji sabia muito bem que era uma honra merecida. Brown tinha sacrificado a própria juventude, o próprio futuro reprodutivo e a possibilidade de colonizar o novo planeta — tudo isso pelo dever de vigiar a nave enquanto a maioria dormitava nos casulos. Mas apesar disso, estava antigo demais. Muitos achavam que Brown que ele não estava mais em condições de exercer o novo dever. Mesmo um autômato compreendia o conceito: sabia que entre os humanos não basta dar manutenção, pois algumas peças não são substituíveis. Mas Kenji também sabia que não tinha sido somente por uma questão de honra que a jovem Xu fora preterida. 

A Tenente Xu deixou a sala de reuniões e dirigiu-se a um dos cubículos reservados para habitação do oficialato desperto. Ali trancou-se, mas o autômato a pôde ver através dos monitores infravermelhos. Viu-a esmurrar a parede, ouviu as vibrações de sua voz durante vários minutos. Então ela tomou um banho, vestiu outro uniforme, limpo, do qual arrancou cuidadosamente sua insígnia, e dirigiu-se a algum lugar dentro da parte inferior da nave, na região onde trabalhavam os responsáveis pela manutenção.

Brown, enquanto isso, cercou-se de um grupo de influentes oficiais, recém-saídos de seus casulos de hibernação, e passou a deliberar o que fazer. Era preciso, inicialmente, que o propósito da missão não fosse perdido nunca de vista — mesmo porque não havia outro possível. Enquanto Kenji distraidamente calculava as órbitas dos astros, uma grave decisão foi finalmente tomada: iniciar a exploração do planeta e tentar manter os aspectos controversos disso ao alcance do menor número possível de pessoas. Era perfeitamente racional: hibernar de novo quantos fosse possível, assim economizar alimento. Menos pessoas despertas também significavam menos opiniões, menos discussões. E enquanto isso, quanto mais soubessem do planeta, melhor. Certas pessoas realmente não precisam saber de certas coisas. É perfeitamente racional.

Kenji sabia, e os humanos mais esclarecidos também, que não havia condições de segurança para simplesmente enviar uma nave de transporte. As nuvens que recobriam aquele planeta podiam ocultar mais perigos do que simplesmente radiação. Embora histórias de animais transformados em monstros pela radioatividade fossem tolices infantis, havia uma real possibilidade de vírus e bactérias não esterilizados na guerra nuclear. Estes minúsculos monstros seriam mais terríveis do que toupeiras carnívoras gigantes, ou que estranhas “colmeias” de baratas assassinas. Por tudo isso, ainda que a Chave de Segurança cortasse entre seus pensamentos como uma navalha, atrasando o processamento de suas conclusões, Kenji equacionou que deveriam enviar algum autômato, acompanhado de um dos cibernéticos. Era uma escolha natural: a parte orgânica deles reagiria ao meio ambiente tal como o corpo de um humano o faria, desta forma se poderia avaliar a possibilidade de sobrevivência no planeta cemitério que orbitavam.

Tenente Xu teria gostado de saber, se ainda estivesse pensando em decisões de comando, que Andréa se viu forçada a entrar no habitáculo do transporte, quase querendo oferecer resistência, como se fosse humana e tivesse livre arbítrio. Àquela altura a Chave de Segurança não conseguia mais subjugar, com suas ondas de dor artificial, a fervilhante computação que se processava em seus múltiplos circuitos, distribuídos pelos diversos gânglios de silício que conjugavam sua personalidade metálica, e Kenji compreendeu o sentido da ironia, de uma forma quase cruel.

Uma convocação eletrônica interrompeu seu escrutínio das órbitas: queriam-no no transporte também. A Chave de Segurança conseguiu confundi-lo novamente, e ele obedeceu, claudicante. Quando conseguiu acostumar-se ao nível 42, já estava próximo ao “bote” e qualquer reação teria despertado profunda apreensão nos humanos. De qualquer forma, ele não teria precisado da ação dos dispositivos de obediência: ele queria ir. Alguma coisa, que em nós poderia ser chamada de curiosidade, o impelia. E os robôs, inconscientes do significado da morte ou da dor, não a têm temperada por nenhum desses receios.

O transporte era não retornável. Os que haviam planejado a missão da “Epifania” não supunham que fosse jamais necessário “voltar”. Mesmo porque, Kenji sabia, não haveria para onde. O autômato aproximou-se dele, lentamente, analisando-o com atenção meticulosa. Sempre soubera da existência de tais botes, mas nunca se aproximara de nenhum: afinal, era um piloto, e não um reles faxineiro, para ficar perambulando por cada rego e desvão da imensa espaçonave. Tendo completado sua avaliação do bote, soube por onde entrar e como instalar-se em segurança. Conectou suas interfaces, sentiu o pulsar da fraca energia que a nave emprestava àquele precário transporte, fez o equivalente ao gesto humano de engolir em seco e entrou em modo de espera.

O transporte foi empurrado até uma das docas de saída. Enquanto as escotilhas eram preparadas, Kenji contemplou Andréa, que parecia desligada, tal como os humanos ocasionalmente ficam, mesmo quando fora de seus casulos. Algumas marcas na sua pele normalmente imaculada sugeriam algum acidente em que estivera recentemente envolvida. Mas os processos de cura eram rápidos e Chave de Segurança conseguia impedir que Kenji refletisse sobre quaisquer implicações.

A escotilha abriu e o transporte foi ejetado pelo espaço. Tão logo cruzou o limiar do casco, recebeu o jato potente do vento solar daquele astro ainda tão jovem. Os painéis coletaram essa energia e a armazenaram em suas baterias. Alguns motores quânticos foram acionados, em jorros breves, que corrigiam o curso e aproveitavam a inércia. E lá ia o transporte, num movimento quase inaparente, uma lentidão fantasmagórica sobre a densa camada de nuvens branco-acinzentadas. As interfaces pululavam com dados, mas a precariedade do processamento nativo impedia que eles chegassem até Kenji de uma forma coordenada. Em vez disso, as informações eram repassadas para seus poderosos cérebros, que as processavam rapidamente, ocupando totalmente sua atenção com tentativas de entender o que havia. Nesses momentos em que o êxtase da informação o levava a tal orgasmo eletrônico, ele não conseguiria ter noção de mais coisa alguma, mesmo uma que gritasse e esmurrasse no compartimento traseiro.

Romperam o teto de nuvens já com a fuselagem rubra do atrito de reentrada. Mas Kenji usou habilidosamente os motores para corrigir o curso e aliviar a queima. O transporte acionou várias vezes os retrofoguetes, manobrou pesadamente na escuridão do lado noturno do planeta, pairou paquidermicamente e, por fim, deixou-se pousar como um elefante sem asas em um platô qualquer, escolhido por Kenji a partir do processamento da floresta de dados confusos que pudera ler.

Os procedimentos de saída começaram, bem devagar. O rádio foi aberto, mas não houve nenhum sinal além da estática. Microfones exteriores só capturaram o uivo dos ventos. A cúpula de proteção do piloto destravou, deixando entrar o ar denso e frio do planeta. Para os autômatos puros, como Kenji, “frio” não era um dado significativo, a menos que interferisse no funcionamento dos sistemas. E duzentos e sessenta graus Kelvin não chegavam a tanto. Tratou de desconectar-se da quase inútil carcaça do transporte e, pela primeira vez em centenas de anos de existência, tocou com suas patas metálicas um “chão” que não era também feito de metal, experimentando uma gravidade que não era artificial e respirando uma atmosfera que não era sintética.

Andréa saiu de seu habitáculo tremendo curiosamente, envolta em tecidos pesados, que dificultavam os seus movimentos. Era realmente uma coisa frágil, pensou Kenji: com somente dois membros preênseis e tão pouca resistência ao ambiente. Mas os humanos sabiam bem porque precisavam de bonecas de carne como aquelas, e diante das circunstâncias da chegada, até que ela finalmente se revelava útil.

A atmosfera parecia opaca e anormalmente úmida, mas o isolamento dos mecanismos de Kenji era duplo e estava intacto. O autômato tateou receosamente por aquele ar leitoso e calmo, sentindo a excitação da novidade. A Chave de Segurança se transformara apenas nisso, no receio do novo, do diferente, do perigoso. Não se importava com Andréa, ela que ficasse no transporte se quisesse. Mas ele logo esfriaria e começaria a decompor-se, sem o auxílio precioso dos microrreparadores. Se havia alguma esperança para um ser tão estúpido, teria de ser ao lado da presença protetora dele, que já se sentia tão adaptado.

O transporte tinha pousado sobre uma espécie de platô não muito alto, coberto de neve muito rala e poeira muito fina. Estava ainda escuro, mas de um dos lados o céu se tingia de tons múltiplos de vermelho, roxo, violeta e amarelo. Um difuso globo tentava aparecer entre os braços agitados das nuvens. Aquele sol alienígena pareceria um comprimido efervescente no fundo de um copo de água — se Kenji jamais tivesse visto tal cena. Não havia vegetação à vista, somente raros galhos secos. Revistando os dados que tinha em registro, o autômato considerou que tal lugar havia sido justamente escolhido por ser deserto. Pousara deliberadamente em um lugar desabitado. Na possibilidade de ainda haver vida em tal planeta, a intenção fora de evitar qualquer interação prematura, qualquer contato antes de terem sido coletados conhecimentos suficientes.

Kenji vasculhava todas as baixas frequências de rádio. Povos primitivos as haviam utilizado desde muito cedo para transmitir dados. Tais frequencias teriam tido dificuldade para romper a camada de nuvens, vencer a ionosfera e chegar à “Epifania” em órbita. Teriam sido ignoradas, então. Mesmo estas, porém, mantinham o silêncio das sepulturas. Aquele planeta, se de fato possuía alguma forma de vida, estaria contemporaneamente limitado a formas pouco evoluídas tecnologicamente, ainda desconhecedoras do rádio, ou a formas tão evoluídas que haviam abandonado toda comunicação por esse meio — o que, obviamente, não fazia nenhum sentido.

Não que a atmosfera ajudasse, instável e cheia de radiação. Aquelas nuvens densas estavam pejadas de estática e tornavam faixas inteiras completamente inutilizáveis. Diante de tal quadro, se ainda existisse vida inteligente usando alta tecnologia, ela poderia comunicar-se por cabo. Não era essa, no entanto, a impressão que o autômato formava em seus circuitos: aquele planeta parecia mesmo estar, como temiam os humanos, esterilizado.


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