Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
27
Fev 12
publicado por José Geraldo, às 08:10link do post | comentar

Recebo ocasionalmente mensagens não solicitadas que me oferecem cursos de «escrita criativa». À parte o estranhamento de imaginar como podem ensinar criatividade, estas ofertas não me interessam, nem remotamente. Se me fossem feitas pessoalmente eu responderia, educadamente, que «muito obrigado» e, no caso de uma insistência equivalente à da frequência com que tenho recebido tais mensagens, removeria o «educadamente» e o «muito obrigado» de minha resposta e diria apenas que «não me interessa aprender o que vocês pretendem ensinar».

Várias são as razões que me levam a desinteressar-me definitivamente destas propostas. Algumas destas razões são impublicáveis, pelo menos em seu palavreado original, outras podem ser relevantes somente para mim, outras são óbvias; mas o óbvio é o mais difícil de ser visto pela maioria das pessoas, existem povos inteiros no mundo que não sabem que o céu é azul, segundo certo antropólogo que um dia deu uma palestra que assisti, enquanto, para outros, todas as espécies de plantas rasteiras que crescem nas planícies podem ser resumidas na palavra «pasto». Lutando contra estas dificuldades, semânticas e outras, pretendo explicar porque, em minha opinião, não apenas tais cursos não me interessam como não deveriam interessar a ninguém.

Para começar, gostaria de observar que nenhum divórcio é mais amigável que o do tolo e de seu dinheiro. Existem pessoas que, simplesmente, estão dispostas a pagar por ar engarrafado, sentem-se mais ricas por possuírem tais garrafas, sentem-se superiores. Estas pessoas facilmente se ofendem diante da sugestão de que o conteúdo de suas garrafas é apenas ar ou, pior ainda, que elas poderiam ter de graça aquilo porque pagaram. Não é para estas pessoas que eu estou escrevendo, mas elas provavelmente constituirão a maior parte dos que comentarão este texto, se ele, ao contrário dos demais do blogue, tornar-se comentado.

O que tais cursos pretendem com a ideia de ensinar «escrita criativa»? O que é, de fato, «escrita criativa» ou, como alguns pretendem, «escrita para o mercado» ou «escrita comercial». Com todo respeito aos proponentes de tais ideias, os conceitos são incompatíveis. Escrita criativa não é — e nunca poderá ser — «para o mercado». Livro não é peixe e nem é sabonete para ter um desígnio focado no «mercado». Livro que se foca no mercado se rebaixa a ele. Escrita para o mercado, com um pouco menos de respeito, mas ainda dentro da civilidade, é lista de compras. Escrita comercial é contabilidade.

Começa-se, portanto, com um conceito vago, baseado na palavra mágica que a todos seduz: mercado, esse deus (ou monstro) de muitas mãos e cabeças que, supostamente, regula o valor das coisas e das pessoas (e efetivamente iguala ambas as categorias em uma só, embora as segundas sempre fiquem num patamar ligeiramente secundário, por não serem tão maleáveis e nem tão adaptadas). Acima de tudo, o curso se baseia na ideia de que a escrita tem que ser para o mercado.

Quando se parte de uma quimera como essa, fica difícil chegar a algum lugar. Mas esta dúvida se dissipa quando vemos o que é que se ensina. A simples leitura do currículo de certos cursos deveria ruborizar quem os fez, mais ainda quem compra. Se o rótulo de um remédio tivesse a inscrição «placebo ineficaz e amargo que não vai curar seu fígado» e as pessoas ainda insistissem em consumi-lo, isso seria vergonhoso. As matérias incluídas em tais currículos partem de coisas como «gêneros de escrita», «estruturas de enredo», «escrita descritiva», «protagonista e antagonista», «projetos de publicação», «outlining» etc. Obviamente os cursos de «escrita criativa» não incluem a criatividade no plano de curso, apenas técnicas, «macetes», «dicas», «toques». Como dizia Raul: «Enquanto Freud explica as coisas, o diabo fica dando uns toques…»

Não vou aqui fazer afirmativas peremptórias de que «talento não se ensina». Não tenho tanta certeza disso, apenas de que é impossível ensinar talento com o currículo destes cursos de escritores. Uma certeza limitada é sempre mais segura que uma negativa plana e abrangente. Não pretendo terraplenar o mundo de acordo com os meus conceitos. Apenas acredito que nada tenho a aprender e que, para as pessoas que acham que aprenderão alguma coisa, provavelmente já é tarde demais para aprender.

Tarde demais porque já adquiriram muitos vícios, tarde demais porque não tiveram boa formação de leitura durante a infância, tarde demais porque acreditam que a fórmula do sucesso reside na ingestão de uma fórmula. São pessoas com mente de apertador de botões, que acham que seu cérebro possui os botões certos para serem apertados e produzirem um livro genial. Cada um de nós é o produto da gradual transformação, piora ou aperfeiçoamento daquilo que aprendeu, sentiu e viveu quando era ainda criança. Mas as técnicas pseudocientíficas da auto-ajuda sempre insistirão que «nunca é tarde», que se pode «recuperar o tempo perdido» pagando um supletivo, etc. Não se recupera tempo perdido. Tempo passado é tempo esgotado. Tempo é irremediável.

Imagino, porém, que tais cursos não se destinam aos despossuídos das letras, mas a pessoas que já sabem escrever alguma coisa, que apenas querem evoluir. Nesse caso fico mais inseguro. Obviamente, se o curso for frequentado apenas por pessoas que escrevem desde a infância, existe uma tendência a que os formados exibam qualidades literárias evidentes. O fato de terem aprendido a pontuar melhor as frases, dar uma organizada no conteúdo ou apresentarem sua obra devidamente empacotada e pesada (em número de páginas, palavras e capítulos) faz com que tenham a ilusão de que se tornaram escritores melhores. Mas seria justo atribuir mérito ao curso pelo talento que os autores já tinham antes?

Não creio, porém, que haja em suficiente número pessoas que sabem escrever. Um curso dirigido apenas a tais pessoas teria poucos alunos, tão poucos que não se sustentaria. Maior é o número das pessoas que apenas acham que sabem escrever alguma coisa. Parece-me mais provável que este seja o público alvo. Amestrar tais pessoas na arte de construir frases mais claras, distribuir seus conceito em capítulos e organizar suas ideias em sinopses apenas refinará aquilo que elas não possuem: conteúdo. Da destilação deste vazio poderão apenas sair obras vazias, que ajudarão a submergir na massa de sua insignificância a literatura do mundo.

Não quero, de maneira alguma, parecer arrogante, mas um outro ponto que me preocupa em tais cursos, mais até do que o currículo, é o mestre. Todos sabemos que um professor capacitado pode dar uma grande aula, mesmo com um currículo produzido por um inepto. Portanto, a salvação do curso pode estar no nome de quem seja escolhido para dar as aulas. Não vejo tal nome apregoado como o grande plus desse curso. Certamente o mestre não é alguém significativo, porque se fosse pelo menos alguém dotado de notoriedade, ou de um currículo respeitável, estariam imprimindo seu nome em letras vermelhas, negrito, tamanho 48. Que tenho eu para aprender da boca de um anônimo como eu, utilizando um currículo que não me inspira confiança alguma?

Se o professor, mais que alguém com renome, fosse de reconhecido talento, eu nem ligaria para o currículo. Ouvir um autor competente falar sobre abóboras durante vinte minutos ensina mais do que um ano de curso com um professor de português preocupado com a colocação pronominal e que acha que o brasileiro não sabe falar (para estes curiosos espécimes, o povo seria uma criatura simiesca, que precisa ir à escola aprender uma língua de gente). Um diploma sobre abóboras assinado por Carlos Drummond de Andrade é muito mais currículo, para mim, do que uma pós-graduação em Letras Anglo-Saxônicas por uma dessas faculdades fast-food que pulularam por esse país de trinta anos para cá. Tenho muito a aprender, mesmo que seja só sobre abóboras, com muitos autores que ainda estão vivos. Não tenho nada a aprender sobre «escrita comercial» com um professor de literatura. Escrita comercial eu aprendi no curso noturno de Técnico em Contabilidade, no Colégio Cataguases, turma de 1990.


23
Fev 12
publicado por José Geraldo, às 20:49link do post | comentar

Esta semana a minha crônica em seis partes Carta Aberta ao Senhor Motorista do Tanque foi republicada no Revolução E-Book, o blogue oficial do movimento editorial eletrônico brasileiro. Sinto-me honrado pela republicação, devido ao calibre das pessoas envolvidas com o site (e não me refiro a competência ou influência apenas, mas também a simpatia, gentileza e sintonia com as tendências) e à demonstração de que eles realmente têm uma mente aberta, ao contrário de certos ambientes que já frequentei na Internet, nos quais toda e qualquer tentativa de discórdia automaticamente cria uma divisão arbitrária entre grupos opostos e sectários, a ponto de você poder ser expulso ou escorraçado por bancar o advogado do diabo. Num mundo cada vez mais sem sutilezas, e marcado pelo cenho cerrado e pelas reações a ferro e fogo, é bom saber que ainda é possível ser prestigiado como nota dissonante, e não apenas quando engrossa o coro. Muito obrigado à Stella Dauer, por ter entendido a proposta do texto e ter resolvido valorizar os questionamentos que ele faz, não por aversão ao novo, mas por receio natural contra as armadilhas da inexperiência.


22
Fev 12
publicado por José Geraldo, às 00:45link do post | comentar

Subíamos a muito custo, por falta de costume, de equipamento. Mas subíamoscom muita vontade, com máquina fotográfica e a esperança de ver na face do valea pegada da civilização. A montanha estava à nossa espera ali, onde sempreestivera, sua face sul vincada como um punho erguido, desafio aos nossos pésacostumados a planícies.

A trilha ondeava como uma veia rosada a romper overde grosso da floresta original, que se estendia sobre nós a ponto de, àsvezes, não termos a cor do céu para medir as horas. Chovera um pouco durante asubida, essa chuvinha fina que mal molha o chão. Normalmente um grupo como onosso pararia, mas enquanto as pernas não doíam nem as botas machucavam, nossasalmas imploravam pelo fim da sufocante trilha.

— Novehoras.

— Caramba, parece uma eternidade. Meus pulmões estãocomeçando a queimar.

— Não tenham medo, gente — esclareceu oguia, quando não der mais para subir a gente para e descansa meiahora.

— Se eu parar por meia hora tenho que voltarrolando.

Todos riram. Todos voltariam rolando se parassem meia hora. Masenquanto ainda tínhamos fôlego e tempo, seguimos subindo a passos cada vez maisespaçados, pela trilha enforcada de tanta árvore, como formigas escalando ummuro.

— Vamos parar, pessoal — pedi, depois que o ar quasefaltou quando meu peito o pediu. O coração bombeava com uma força de tambor emmeus ouvidos e eu só não suava porque estava ainda fresco da manhã recente,naquela mata onde raramente o sol pousava.

O guia se aproximou, me deu amão, ajudou-me a terminar de subir mais um barranco e descortinamos umdescampado um pouco mais tranquilo no altiplano.

— Podemos pararagora, são nove e dez. Saímos de novo às nove e meia.

De um grupo de dozepessoas ouviu-se uma voz ou outra resmungando. O silêncio aliviado de outras dezou onze sufocou qualquer reclamação.

Peguei minha garrafa de água e sorvium gole longo, «camelídeo», como costumava dizer Estefânia, que o diabo a tenha.Bebi mais meia garrafa, desejando que fosse rum, mas era só água mineralgasosa.

O guia aproveitou a parada para rever os planos:

—Temos já cinquenta e quatro minutos de caminhada. Já percorremos quatroquilômetros e setecentos e vinte metros e subimos cento e noventa metros acimado nível do vale.

Eram números impressionantes, mas abstratos. Eu nãotinha ânimo para questionar o que ele dissesse. Fossem quatro quilômetros oudoze eu não conseguia mais distinguir se estava certo. Só tinha a impressão deque cento e noventa metros parecia muito pouco: era como se tivéssemos subidoaté as grimpas das montanhas da serra, mas estávamos ainda arranhando o sopé deuma delas, nem sequer a maior, apenas a mais próxima.

— Vamos, vamos— interrompi meus doloridos pensamentos por causa das palmas batidas peloguia.

Sacudindo a parca mochila nos ombros, pus-me à vontade para caminharde novo.

Continuamos subindo, agora bem mais devagar. No novo passo queadotamos teríamos andado os mesmos quatro quilômetros em um tempo quase duasvezes maior. Mas a montanha ficava cada vez mais a pique diante de nós, eu játemia pelo momento em que teria que usar uma corda. Montanhas são cruéis,guardam seus trechos mais difíceis para quando os ossos já estão falhando. E asescaladas são como dizia o cantor: «quando o cansaço e a estafa bater, o sol domeio-dia espera você».*

Eram dez e quarenta quando o primeiro de nóscomeçou a passar mal, um turista gringo de cabelo cor de cenoura que falava umportuguês quase bom, mas puxava um esse carioca que soava sempre engraçado.Quando ele desmaiou e o guia correu para acudir eu me lembrei do quanto forarelapso no briefing antes da subida. Fôramos apresentados, um a um, pornome e profissão. Cada um confessara quantas vezes antes escalara, e que tipo demontanhas. Calhara de ser o primeiro e, depois de me abrir o mínimo possível,gastara o resto do tempo contemplando as copas verde-negras das árvorescentenárias, de troncos grossos e nomes arcanos que eu ainda não conseguidecorar. Então o gringo desmaiou e eu, que fui o primeiro a ver, não pude sequerlembrar seu nome e apenas gritei:

— Tem alguém passando malaqui.

Senti-me culpado por isso. Imaginei que, do além, ficaria bastantechateado se no meu velório os meus colegas de trabalho apenas comentassem «temum morto ali». Quando ele começou a voltar a si, resolvi compensar minha faltade tato com um gesto de consideração. Aproximei-me do cabeleira de cenoura,perguntei se estava bem e pedi-lhe que me confirmasse seu nome.

Não sei oque ele me respondeu. Seja qual for o nome pelo qual seus pais o chamaram quandoo registraram em algum cartório da Holanda ou da Bélgica, não foi um nomereconhecível pelos meus ouvidos interioranos.

— Bem, você tem algumapelido mais fácil de pronunciar? Posso, por exemplo, chamá-lo de Hans?

Ocabeleira de cenoura sorriu timidamente, esse sorriso curto e envergonhado queos gringos têm quando estão tentando enturmar-se:

— Hansh não é meuapelido de verdade, mash acho que você também terria dificuldadesh com meuapelido.

Tive mesmo. A pronúncia parecia fácil, mas não consegui repetirnenhuma vez sequer direito. Diante da ameaça de ser chamado de «Cenoura» ogringo preferiu ser chamado de Hans.

Ajudei Hans a se manter de pé depoisque o guia o largou para organizar mais um pouco da subida. Ele reclamava dedores nas pernas, certamente câimbras como as minhas. Mas ainda tinha vontade desubir mais.

— Dez e quarenta e cinco, dez e quarenta e cinco —alertou-nos o guia — descontando uma parada de vinte minutos e mais dezminutos desta, pelo meu relógio, temos uma hora e quinze de caminhada total.Nesse tempo nós percorremos seis quilômetros e meio, e subimos duzentos esessenta e sete metros, pelo meus cálculos.

— Quantos metros temmesmo essa montanha da peste? — perguntou uma voz com vago sotaquenortista ou nordestino.

— Quinhentos e setenta e quatro —informou-nos o guia.

Uma vaga de desânimos se manifestou em suspiros,resmungos e bocejos.

— Sem drama, gente — provocou o guia— porque se fosse fácil, todo mundo vinha.

Tentei calcularmentalmente quantos grupos de turistas não tentavam aquela mesma escalada todomês. A trilha era tão larga e limpa que parecia que um exército espartano subiae descia por ela todos os dias — mas não encontráramos ninguém mais,talvez fosse a época do ano.

— Vamos fazer outraparada?

Resmungos e murmúrios de assentimento apoiaram a sugestão. O guia,então, consultou o seu bom-senso e recomendou que sim.

— Todo mundorepondo líquido e comendo uma barra de cereal, somente uma.

Oestalar de doze invólucros de barras alimentares xexelentas perturbou osilêncio, sufocando o pio dos pássaros. Quinze minutos depois, com os músculosalongados e os ânimos melhorados um pouquinho, a subida recomeçou.

Eradifícil conversar, tendo que fornecer alento a um corpo tão precário em umajornada tão difícil. Hans pareceu entender o meu silêncio lendo a careta em meurosto. Ele também não parecia nada bonito com as suas sobrancelhas amarelaspingando gotas grossas e cada ruga precoce de sua pele de pergaminho preenchidade sal e suor. Pobre Hans, vindo de um país onde não há montanhas, o que fazaqui nessa terra onde as planícies se esgueiram com tanto medo por entre osmorros?

Atingíramos um trecho quase horizontal do caminho, que pareciacircular em torno do pico como uma linha enrolada no carretel. Não poderia serde outra forma: à nossa direita a rocha se erguia como uma parede. Andávamos comas pernas soltas, ousadas, mas já sabendo que teríamos à frente outra subidamalvada. Mesmo andando assim os nossos pulmões andavam carregados de fogo e Hanssuava muito mais do que antes.

Isso porque saíramos do mato e estávamos aosol, seguindo por uma estrada que riscava em torno do morro e nos expunha àclaridade impiedosa. A pedra esquentava e um mormaço desconfortável nos faziaquerer ficar longe dela, mas a trilha era estreita e o parapeito, inconfiável.

Começou a ventar. Um vento fresco de outono, mas mesmo assim um vento quenão nos confortava muito. Vinha em guaspadas decididas, súbitas, surpreendentes.Assobiava nas folhas e nas gretas como uma gaita dos infernos. O vento vinha dosul-sudoeste, um sinal sempre péssimo. Vinha chuva. Chuva longa, chuva fria.Chuva para dias. A descida prometia ser pior que a subida, a menos que chovesselogo, e a subida ficasse tão ruim quanto possível.

— Ninguém olhou aprevisão do tempo, gente? — questionei em voz alta.

O guia gargalhoue perguntou, querendo fazer graça:

— E por causa de uma chuvinhabesta a gente deixava de subir essa montanha linda?

Disse isso arrancandouma flor de capim e tentando parecer leve na subida, mas não teria conseguidoimitar nenhum passo de bailarino.

— Vamos voltar!?

—Por que, Antônio? Sei que lá no Ceará não chove muito, mas não precisa ter medo,que não faz mal! — o guia começava a parecer impertinente, querendo quesubíssemos de qualquer jeito.

— Ele tem razão — interrompeu oHans — em qualquer lugar morro abaixo estarremos sem prroteção contrra achuva. Deve haver um abrrigo mais adiante.

Hans estava certo, claro.Descer só parecia melhor porque a alma da planície sempre pensa que uma desgraçaem baixa altitude é melhor do que num píncaro. Andamos então com o passo maisjusto, tentando vencer logo aquele trecho maldito e exposto em que a trilhabordejava a pedra nua. Mas foi em vão.

A chuva se formou com uma rapidezque deu até medo. Logo nuvens pesadas se formaram no horizonte, e o vento astrouxe para abraçar a montanha. O dia foi ficando escuro, os passarinhos calaramseus bicos no fundo dos ninhos, o vento foi ficando forte, arrancandopedregulhos, arrastando folhas pelo chão, arrepiando nossas nucas.

—Valha-me Santa Bárbara!

A visão do vale se dissolveu na névoa. De repentetrovões se ouviram perto, muito perto. O ar coriscou subitamente e o assobiogorgorejante do vento nas locas e gretas do rochedo pareceu ainda maismefistofélico que antes. Desgraçou a chover assim como se tivessem aberto umatorneira. Chuva gelada, misturada com granizo fino e com um vento que batiacordas de chuva contra a pedra, nos empurrando e empapando.

— Nãotem para onde ir aqui — berrou o guia, no meio da borrasca — temosque continuar subindo porque mais a frente tem um acampamen....

Outrotrovão, dessa vez mais violento ainda. Meus ouvidos doíam, minha pele estava tãogelada que minhas roupas pareciam quentes, mesmo molhadas da mesma água. Cadapelo de meu corpo de eriçara, eletrificado, pavoroso. Trovões, trovões, e achuva ficando quase tão densa que era difícil respirar sem por a mão diante dasnarinas.

— Todo mundo dando as mãos, e vamos devagar.

Todosaconchegados na proximidade segura da pedra. Todos andando com as botas repletasde água, rangendo como queijo verde no dente.

Nenhuma onomatopeia descreveaqueles trovões, nenhum adjetivo serve para tanto relâmpago. Além de nossospróprios medos, só conseguíamos escutar a tempestade, e enxergar dois ou trêsmetros diante do nariz. Estávamos dentro de uma nuvem de chuva, enfrentando osraios de bem perto.

Por fim chegamos a um lugar escuro, que depoissoubemos ser a sombra de um pau-brasil secular. Ali os hippies costumavamacampar. Era o último lugar da montanha aonde se podia chegar em um veículo:quem fosse bastante louco poderia subir até ali em uma moto ou triciclo. Alihaviam construído banheiros, captavam água de uma nascente e serviam-na numtanque. Ali havia um galpão permanente, onde os guias de escalada mantinhamalgum equipamento.

Debaixo do galpão, no seco e ao abrigo dos relâmpagos,começamos a pensar em secar os nossos corpos. Apareceu um fogareiro e outro,acenderam logo uma fogueira. Logo o lugar estava mais aconchegante, mas aindaficamos mais de meia hora tiritando, alguns espirrando, outros tossindo, todoscertamente resfriados até o último poro.

O aguaceiro despejou aindadurante uns dez minutos, depois se reduziu a uma chuva dessas que fazem a gentedormir na roça, depois uma neblina fina que apenas enodoava o horizonte. Até quepassou a água e ficou a umidade, ficou o frio. Eram mais de uma da tarde quandofinalmente o sol reapareceu.

Saímos do galpão ainda sacudindo água doscabelos, como cachorros recém lavados. O sol era melhor do que qualquerfogueira, mesmo um sol ainda atenuado por tanta nuvem.

A chuva dera umbanho de cores em tudo quanto era mato ou flor. O vermelho das pétalas pareciamais aceso, mais líquido, mais feito. Cada folha gotejava, cada lâmina de capim.Tanta beleza justificava as câimbras todas. Hans sacou de sua máquina, ainda comos dedos molhados e as sobrancelhas parecendo tufos de flores. Mirava edisparava sem pensar direito, como se achasse tudo belo, até a lagartixa quebotou a cabeça para fora de sua loca.

Então nos demos conta da fome.Aquecemos nossas pequenas refeições nos fogos que tínhamos e comemos em silênciorespeitoso diante da natureza. Quando o tapete de neblina de dissolveu,finalmente, pudemos ver as cicatrizes da infestação humana nas montanhas maisdistantes. Mas isso não diminuiu a beleza de nenhuma flor sequer, somente nosfez temer melancolicamente por cada uma delas.

* O verso é de uma canção do mineiro (como eu) Zé Geraldo.

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21
Fev 12
publicado por José Geraldo, às 10:56link do post | comentar

Um poema (originalmente sem título e sem data) encontrado datilografado no verso de uma folha de rascunho perdida em uma das muitas caixas de papel velho em minha biblioteca. Miraculosamente salvo do lixo, não consigo imaginar a razão pela qual este texto não foi incluído entre os meus «poemas completos» anteriormente.

Temo ferir o teu viçocom os espinhos que adquiri.Talvez a dor, no entanto, a faça ver mais cedoo que tão tarde eu descobri:não há salvação sem a verdade,não há destino sem partilhae não há felicidade,absolutamente.Mas isso não quer dizer somenteque estou insensível: não o ouso dizer, apenas digo.Preciso de um clarão no horizonte,e de calor em minhas mãos,mas isto só se acha ondeeu ache algo que não caiba em mim.Não fui sempre este estranho,sou o que me fui tornando.Não quero mais unir-me ao mundocom toda sua ânsia.Caminho só por entre as pessoascomo um romeiro anônimo de um santo antigo,atravesso pontes como um cão mutiladoem uma estrada hostil,como uma formiga entre os doces da festa.Insignificante,ignorado,incomunicável.Como exigirei que se solidarizem com meu absurdo?Não posso sequer exigir que alguém fique.Eu sei que já era assim quando você me viu,mas não precisa ficar mais, pode fingir que descobriuporque eu sei que os olhos do amor escondem muito.Não, não vou mudar. Ninguém muda ninguém. Ninguém muda.Todos apenas se tornam cada vez mais aquilo que vão ser.Mas como não sei viver nas trevas e sem nada,como não sou bom adivinho, nem Teseu no labirinto,nem artista de circo e nem gênio de caricatura,vou seguindo a trombar entre ilusões, como a sua.Ah, é esperar demais de mim, você pedir que eulhe demonstre mais afeto.Não tenho tanto amor assim:Amor é algo tão restrito, tão pequeno,tão pouco nesse mundo, tão oásis. Como você quer que eu tenha em abundânciao que serve de lenda e consolo para todos,mas não brota como um pasto pelo chão,mas sim como um cacto nas cinzas.Ah, é esperar demais de mim, você pedir que eulhe demonstre mais afeto.A nudez dos sentimentos é pior que a do corpo.Que pouca é a vergonha que você acha que eu tenho!Ah, não. Não é que eu insisto em feri-la.Não sou ferino como você acha,Apenas quero ilusões segurascomo a de não amá-la.

20
Fev 12
publicado por José Geraldo, às 12:34link do post | comentar | ver comentários (1)

Esta semana tive o prazer de ler o mais novo conto deste jovem autor. Como de todas as outras vezes, me restou o queixo caído e uma profunda inveja. Inveja positiva, não essa inveja que tenta apagar o sol alheio que incomoda sua treva pessoal. Tive deixar-lhe um comentário, que aqui reproduzo.

Felipe, eu não preciso repetir o que penso de sua obra. Você sabe muito bem que, em certos momentos, eu quase tenho vontade de lhe pedir um autógrafo. Este conto foi um desses momentos.

Um autor se torna grande quando consegue escrever uma grande obra sem ter uma "grande" história. Um autor pequeno vai procurar escrever, no mínimo, sobre o fim da civilização ou a destruição até de um universo. Seus personagens precisarão ser fisicamente gigantes para esconderem a pequenez de sua alma.

Mas o grande autor não precisa de histórias 'grandes' e nem de 'grandes' histórias, ele engrandece as histórias que escolhe contar, mais ou menos como o músico habilidoso que pega um tema popular e o transformar em uma sinfonia. Não pense encontrar nada parecido com as Rapsódias Húngaras de Liszt no folclore da Hungria, nem que os caipiras toquem rabeca e viola como em uma bachiana de Villa-Lobos.

Esse seu texto é absolutamente um exemplo da razão pela qual eu acho que você é, ou ainda será, um grande autor. Não existe absolutamente NADA nele além de seu talento. Ninguém morre, ninguém nasce, nenhuma civilização desaparece, nenhum vampiro se transforma em lobisomem ou coisa parecida. Está o leitor apenas diante dos meandros de sua alma sofisticada e das histórias absolutamente banais, porém universais, que você capta no dia a dia.

Essa sua característica tem algo de Machado de Assis. Sua ficção evoca fortemente o melhor da obra machadiana no aspecto do romanceamento do nada ou do quase-nada. Se você não prestar muita atenção à leitura de Dom Casmurro poderá achar que é apenas a biografia de um resmungão que nada viveu. O mesmo se passa com esse seu conto, entre tantos outros: somente quem lê com talento (é preciso um certo talento para ler) perceberá as minuciosas mudanças e tragédias que ocorrem no fundo da alma dos dois personagens.

A incompreensão de seu protagonista também me evoca o Mersault, d'O Estrangeiro, que matou um desconhecido porque "o sol estava quente". Este estranhamento do homem em relação à própria vida, e à alheia. Todos os seus personagens são absolutamente trágicos, mas não precisam matar e nem matar-se para isso: o modo como vivem é a própria tragédia.

Parabéns por este conto, e confesso que já estou começando inconscientemente a me tornar seu imitador.


19
Fev 12
publicado por José Geraldo, às 11:53link do post | comentar

Prólogo para um romance de ficção científica iniciado em 1999, que eu nunca procurei terminar porque descobri que J.G. Ballard já havia escrito uma história parecida demais.

As ruas são perigosas. Sair de casa envolve sempre riscos. Por isso procuramos fortalezas, compartimentos isolados para nossos sonhos estanques. Moro em um edifício preparado para isso. Nele moram comigo cerca de mil pessoas, mais ou menos, todas em apartamentos parecidos, de duas ou três peças. Moramos aqui há mais de quinze anos e mesmo depois aqui ainda estão os que não moram mais: em uma necrópole subterrânea geometricamente organizada. Moramos aqui e mal saímos. Trabalho e lazer podem ser achados aqui mesmo: escritórios, ginástica, locadora de filmes, parque aquático coberto, salão de jogos, restaurante, lanchonete, bar dançante, café, salão de beleza, parquinho infantil, lojas de conveniência. São vários os tipos de empregos que podemos ter, graças à internet, trabalhando na segurança de nossos cubículos pessoais. As antenas que nos conectam ao mundo ficam num último andar tão fortificado que é mais fácil chegar nele de helicóptero do que por elevador ou pela escada. Obviamente nem todos têm a sorte de trabalhar dentro de casa: os que se dedicam a atividades braçais precisam sair, outros saem porque já não confiamos que os de fora entrem trazendo-nos entregas de comida, remédios ou outras coisas. Faz quinze anos que este prédio existe, investi nele economias de duas vidas: a minha e a de minha mulher. Tenho quarenta e seis anos, nenhum filho, um emprego péssimo.

Sou guarda de segurança. Agora sou guarda de segurança. Escolhi este emprego, talvez na espera de que o risco de morrer me faça querer viver melhor. Melhor, não mais. Saio de casa diariamente, quando o sol já está descendo pelo horizonte como uma bolha de ar em uma janela manchada de sangue, do sangue de Joana, do sangue que espirrou de seu peito. Joana, meu mais precioso tesouro, guardado devidamente numa urna de prata, selada com cera, no fundo de uma gaveta, no fundo de meu coração. Sou guarda de segurança, desde que não consegui proteger Joana.

Digo que «saio», mas não exatamente assim. Um túnel me conduz do térreo a uma estação de metrô. Vários túneis, vindos de outros grandes prédios, que se erguem como uma floresta de árvores sem galhos no planalto. Edifícios para assalariados, como o meu, não são mais construídos a torto e a direito, mas apenas onde chega a linha subterrânea, cada vez mais difícil de expandir. A estação quase nunca está cheia, raramente está deserta. Sei que todos os que nela aparecem são controlados e escolhidos, observados e medidos. Mas quando ela está vazia eu tenho medo de olhar no rosto de quem esteja lá comigo. Tenho medo porque o mal pode ser tanto um mendigo quanto um vizinho. Mendigos tem olhares perdidos e mentes amargas. Vizinhos têm armas.

O trem sai da estação e passa por um pátio ferroviário imenso, onde se encontram trilhos que vêm de outros lugares, levando gente como eu, e gente diferente. Os trilhos eletrificados com milhares de volts impedem que os fantasmas que perambulam pelos pátios, sob a luz cancerígena do sol, tentem entrar. Os trens têm anteparos de metal, desenhados para erguer e atirar para o lado os obstáculos que podem ficar sobre os trilhos. Só raramente vejo algum, quase sempre tenho pena.

Mendigos, prostitutas e marginais se aglomeram por ali, agitando bugigangas, braços e armas na esperança de fregueses, clientes, vítimas. Meu trem não para nestas estações externas, suas janelas à prova de bala estão sempre cerradas. Mas há os outros trens, vindos dos bairros pobres, com janelas quebradas, com a obrigação de parar em cada estação. Eles fornecem a razão de ser destas pessoas que se derretem sob o sol.

A cidade hoje é muito diferente do que era no século em que nasci. As largas avenidas não existem mais. O trânsito não funciona mais. O louco que tentasse utilizar um veículo de superfície pelas ruas não chegaria longe: ou seria vítima de uma colisão, pois já não há sinais nem regras, ou será atacado por facínoras. Não há mais um mercado para carros roubados, mas o motorista pode ter uma moeda no bolso, para justificar a bala que o bandido atira, e o metal da máquina vale algo para a reciclagem. Nem se comente o que pode acontecer a tal incauto se esbarrar em um dos milhares de pedestres que vagueiam por todo lado sem seguir a mais simples regra de bom senso: estranhos frutos pendem, às vezes, das raras árvores, frutos que frequentemente dão também em postes. Mesmo sobrevivente a todos esses contratempos, o infeliz que tente brincar de motorista não chegará ao fim da viagem na posse de todos os seus bens, quiçá nem de suas roupas. Então, tragédia maior, sem seus trajes cidadãos, seus documentos, seu cartão, seu crachá… Como poderá provar que pode entrar nas zonas reservadas, retornar à própria casa?

Os únicos veículos que andam pelas ruas pertencem à própria gente que nela ainda vive. O tráfego é irracional e os acidentes acontecem o tempo todo. Discussões e dúvidas se resolvem a bala ou a faca. Veículos inutilizados são abandonados pelas calçadas, depenados até os ossos de metal ficarem sob o sol, depois serrados aos pedaços, como a carcaça de um animal grande atacado por formigas carnívoras.

No passado a polícia ainda vinha buscar os raros e ousados criminosos que rompiam os sistemas de segurança. Mas isto foi ficando cada vez mais difícil, a ponto de cada agente ter que vir debaixo de uma armadura. Mesmo em grupos e portando armamento pesado era frequente que voltassem carregando um cadáver. Essa dificuldade de abordar o habitat dos bandidos levou à solução natural: cercas melhores e a ordem de matar quem não esteja autorizado a estar onde esteja. A ordem é que o bandido não chegue e voltar, assim não é preciso ir buscar.

Eu me lembro vagamente, quando ainda era uma criança, de uma época em que as casas tinham portas para as ruas e era possível chegar em todos os lugares. As pessoas costumavam usar bicicletas móveis como transporte: eu mesmo tinha uma prometida para quando meu pai ganhasse um aumento. Mas o agravamento da situação levou o governo a isolar certas áreas das outras, criando fortalezas cada vez mais densas. Compartimentos cada vez mais estanques. A única área livre onde se pode ainda ter a sensação de andar pelas ruas é o centro. Ele foi cercado por um muro alto de pedra, envolto por um campo minado, com guaritas de segurança e luzes fortes. No centro ainda se pode andar por ruas, mas não em bicicletas móveis: há muita gente que precisa andar, muito transporte. Não há espaço para isso, seria estranho perder pedalando um tempo que poderia ser cortado ao meio ao pegar a esteira certa e o elevador direto. Ninguém por lá anda a esmo: todos têm uma direção e cada um conhece o seu caminho, o seu restaurante. Mesmo no centro é relativamente perigoso andar à toa.

Mas se você for rico o bastante, poderá alugar um carro elétrico, com uma carroçaria que imita os antigos sedãs de luxo, e fazer um passeio, romântico ou familiar, pelos parques e praças. Alguns ao lado do centro, outros um pouco mais longe, mas unidos a ele por estreitas passagens por onde se pode ter a antiga sensação de dirigir em uma rodovia sob o sol. No parque ainda se pode tomar sorvete, pedalar no lago um barquinho em forma de cisne, sentar à sombra de uma árvore e desfrutar de minutos relativos de silêncio. Anualmente faço isso. No silêncio entre as árvores escuto a voz de Joana, lembro de quando nos conhecemos num parque desses, numa época em que ainda era aberto.

Pouca gente vive no centro. Somente alguns saudosos do passado, que querem ter a sensação de um jardim privado, de uma varanda para a rua ou da contemplação do trânsito. Custa caro, o conforto é menor que em qualquer apartamento, mas os que ainda insistem dizem que vale a pena. Eu pagaria o aluguel de uma dessas casas antigas se pudesse, para ter meu próprio carro elétrico na garagem, um canteiro de rosas na frente e uma churrasqueira no fundo para passar domingos em família. Pagaria se tivesse uma família. Nenhum aluguel seria caro para isso.

Em vez disso eu vivo nas entranhas de um edifício sem alma. Para onde volto cada noite em busca do fantasma de Joana. Volto, deito-me na cama sem fechar a janela e tento sentir o frio, deixo a luz acesa para dissipar a treva. Não sei aonde pode estar Joana, certamente não em meus sonhos. Trabalho com estranhos, minha tarefa atirar nos que tentam entrar. Tenho vergonha deles, tenho vergonha disso. Guardo meu uniforme num armário no serviço para que ninguém veja o que sou. O monstro que sou. Não salvei Joana, mas mato os sonhos de outras pessoas.

Não sei quanto tempo ainda vou aguentar. A alegria é uma bolha de ar que já chegou no parapeito da janela. O sangue de Joana escorre lentamente, me lembrando que em breve eu vou também, e não haverá nenhum Paraíso para mim, monstro que sou. Arrasto minha carcaça pelo mundo, por entre corações vazios e olhares gelados. Solitário. Essas pessoas me olham como quadros nas paredes. Mas seus olhares me seguem, às vezes, fazendo-me sentir que estou nos corredores de uma mansão mal assombrada. Um coração sem resposta, um homem sem filho, sozinho com suas lembranças. Talvez essas pessoas me reconheçam. E nenhuma sequer me odeia.


16
Fev 12
publicado por José Geraldo, às 22:53link do post | comentar | ver comentários (1)

Um dia meus tesouros acabarão, este dia está — inclusive — bastante perto. Mas ainda consigo encontrar, fuçando em velhas caixas de minha mini-biblioteca doméstica, folhas avulsas datilografadas há dez, vinte ou vinte e cinco anos. Esta semana, organizando meus arquivos pessoais, encontrei trinta e oito delas, contendo alguns contos, algumas crônicas, ideias soltas, cinco ou seis poemas inéditos. Também achei alguns cadernos e blocos com minha inexprimível garatuja dos tempos de estudante.

Nos próximos dias digerirei este conteúdo em novas postagens do blogue, fazendo o mínimo de alterações, e espero que este encontro sirva para reatar meu caminho com a inspiração, que anda meio fugida nas últimas semanas. Aguardem.


14
Fev 12
publicado por José Geraldo, às 21:45link do post | comentar | ver comentários (1)

Dei-me conta disso por causa de um desses movimentos literários altruístas e anticapitalistas que surgiram por aí. Acho que o nome é «Doe um Livro», ou coisa parecida. Eu estava esperando em uma fila de banco, ocasião em que o bom gosto fica seriamente comprometido e você pode se pegar lendo com interesse o verso de sua fatura de cartão de crédito ou uma brochura publicitária esquecida por um cliente que foi embora. Estava eu justamente desesperado em busca de letras para ler quando uma moça bonita, apesar do estranho piercing negro em seu nariz, que parecia um troço de catarro, me ofereceu um livro.

— Não, obrigado — recusei educadamente como minha mãe me ensinou a fazer da primeira vez para toda e qualquer oferta.

— Por favor — insistiu a garota com um sorriso de teclado de piano, ou melhor, de sanfona, porque o seu rosto não parava quieto em cima do pescoço.

— Mas… você está… me dando o seu livro…

— Oh, sim. Por favor, não estranhe.

Então ela me falou uns três ou quatro minutos sobre seu movimento de difusão da leitura, sobre a ideia de comprar o livro, ler e depois dar para alguém ler. Acho que era «Esqueça um Livro», ou algo assim, esqueci…

Recebi o livro, cuidadosa e femininamente encapado em plástico vermelho, com uma falta de jeito provinciana. Acho que jamais na minha vida um estranho me dera qualquer coisa além de motivos para desconfiança.

Mas enquanto o recebia notei o olhar fuzilante do segurança em nossa direção, verdadeiro agente da repressão ignara, pronto para confiscar a obra ou para dizer que tínhamos de consumi-la em leitódromos cuidadosamente controlados. Ele veio andando em nossa direção, deixando balançar na cintura o grosso cassetete preto, mais volumoso que os braços de cigarra da garota sorridente e irriquieta. Que se levantou apavorada, uma traficante surpresa pela visita da viatura. Ela se misturou entre os clientes, aproveitando-se de sua estatura de ninfa, e nunca mais a vi.

O guarda chegou perto demais, e me abordou com uma voz de tuba:

— Aquela garota estava incomodando o senhor?

— De forma alguma, ela só me deu iss…

Ainda estava com metade de «isso aqui» dentro da boca e ele já arrancara o livro de minha mão.

— Eu fico muito revoltado mesmo com esse tipo de coisa. É um absurdo completo!! A barbárie tá tomando conta do país, a imundície se alastra pelas ruas e qualquer cidadão de bem está exposto.

— Mas ela só…

O guarda arrancou a capa do livro com violência, usando seus dedos de elefante. Só então percebi do que ele me salvara, quase em lágrimas, agradeci-lhe efusivamente como se ele fosse um irmão que eu não vira por vinte anos:

— É mesmo vergonhoso que a gente não possa esperar em paz na fila do banco sem correr o risco dessa violência — eu lhe disse.

O mundo de Farenheit 451 seria terrível. Baixos espíritos literários são mais memorizáveis do que o Grande Sertão: Veredas, e para malus1 adicional a presença de um declamador de romance de auto-ajuda na sua vizinhança é mais agressiva do que a presença de um romance do Mago na estante, presente da namorada que acha lindo você ser escritor e pensou que lhe estava agradando muito com aquela obra cheia de verdades.2

1 Um «neolatinismo» inventado para ser o antônimo de «bonus».

2 O autor sugere que este conto seja lido de forma iterativa, retornando ao começo depois de ler o último parágrafo, e assim sucessivamente até o leitor ter a certeza de que realmente passou a odiar o autor.


13
Fev 12
publicado por José Geraldo, às 23:06link do post | comentar

Estou sozinho na casa vazia. Ando pelos cômodos assombrando a minha própria vida. Me distraio da morte que chega e da vida que vai comendo um queijo que amarga e se acaba e aumenta a sede. Bebi uma quantidade absurda de água e me sinto pesado como um odre, com uma sede ainda, uma que progride a passos de aranha na parede.

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