Subíamos a muito custo, por falta de costume, de equipamento. Mas subíamoscom muita vontade, com máquina fotográfica e a esperança de ver na face do valea pegada da civilização. A montanha estava à nossa espera ali, onde sempreestivera, sua face sul vincada como um punho erguido, desafio aos nossos pésacostumados a planícies.
A trilha ondeava como uma veia rosada a romper overde grosso da floresta original, que se estendia sobre nós a ponto de, àsvezes, não termos a cor do céu para medir as horas. Chovera um pouco durante asubida, essa chuvinha fina que mal molha o chão. Normalmente um grupo como onosso pararia, mas enquanto as pernas não doíam nem as botas machucavam, nossasalmas imploravam pelo fim da sufocante trilha.
— Novehoras.
— Caramba, parece uma eternidade. Meus pulmões estãocomeçando a queimar.
— Não tenham medo, gente — esclareceu oguia, quando não der mais para subir a gente para e descansa meiahora.
— Se eu parar por meia hora tenho que voltarrolando.
Todos riram. Todos voltariam rolando se parassem meia hora. Masenquanto ainda tínhamos fôlego e tempo, seguimos subindo a passos cada vez maisespaçados, pela trilha enforcada de tanta árvore, como formigas escalando ummuro.
— Vamos parar, pessoal — pedi, depois que o ar quasefaltou quando meu peito o pediu. O coração bombeava com uma força de tambor emmeus ouvidos e eu só não suava porque estava ainda fresco da manhã recente,naquela mata onde raramente o sol pousava.
O guia se aproximou, me deu amão, ajudou-me a terminar de subir mais um barranco e descortinamos umdescampado um pouco mais tranquilo no altiplano.
— Podemos pararagora, são nove e dez. Saímos de novo às nove e meia.
De um grupo de dozepessoas ouviu-se uma voz ou outra resmungando. O silêncio aliviado de outras dezou onze sufocou qualquer reclamação.
Peguei minha garrafa de água e sorvium gole longo, «camelídeo», como costumava dizer Estefânia, que o diabo a tenha.Bebi mais meia garrafa, desejando que fosse rum, mas era só água mineralgasosa.
O guia aproveitou a parada para rever os planos:
—Temos já cinquenta e quatro minutos de caminhada. Já percorremos quatroquilômetros e setecentos e vinte metros e subimos cento e noventa metros acimado nível do vale.
Eram números impressionantes, mas abstratos. Eu nãotinha ânimo para questionar o que ele dissesse. Fossem quatro quilômetros oudoze eu não conseguia mais distinguir se estava certo. Só tinha a impressão deque cento e noventa metros parecia muito pouco: era como se tivéssemos subidoaté as grimpas das montanhas da serra, mas estávamos ainda arranhando o sopé deuma delas, nem sequer a maior, apenas a mais próxima.
— Vamos, vamos— interrompi meus doloridos pensamentos por causa das palmas batidas peloguia.
Sacudindo a parca mochila nos ombros, pus-me à vontade para caminharde novo.
Continuamos subindo, agora bem mais devagar. No novo passo queadotamos teríamos andado os mesmos quatro quilômetros em um tempo quase duasvezes maior. Mas a montanha ficava cada vez mais a pique diante de nós, eu játemia pelo momento em que teria que usar uma corda. Montanhas são cruéis,guardam seus trechos mais difíceis para quando os ossos já estão falhando. E asescaladas são como dizia o cantor: «quando o cansaço e a estafa bater, o sol domeio-dia espera você».*
Eram dez e quarenta quando o primeiro de nóscomeçou a passar mal, um turista gringo de cabelo cor de cenoura que falava umportuguês quase bom, mas puxava um esse carioca que soava sempre engraçado.Quando ele desmaiou e o guia correu para acudir eu me lembrei do quanto forarelapso no briefing antes da subida. Fôramos apresentados, um a um, pornome e profissão. Cada um confessara quantas vezes antes escalara, e que tipo demontanhas. Calhara de ser o primeiro e, depois de me abrir o mínimo possível,gastara o resto do tempo contemplando as copas verde-negras das árvorescentenárias, de troncos grossos e nomes arcanos que eu ainda não conseguidecorar. Então o gringo desmaiou e eu, que fui o primeiro a ver, não pude sequerlembrar seu nome e apenas gritei:
— Tem alguém passando malaqui.
Senti-me culpado por isso. Imaginei que, do além, ficaria bastantechateado se no meu velório os meus colegas de trabalho apenas comentassem «temum morto ali». Quando ele começou a voltar a si, resolvi compensar minha faltade tato com um gesto de consideração. Aproximei-me do cabeleira de cenoura,perguntei se estava bem e pedi-lhe que me confirmasse seu nome.
Não sei oque ele me respondeu. Seja qual for o nome pelo qual seus pais o chamaram quandoo registraram em algum cartório da Holanda ou da Bélgica, não foi um nomereconhecível pelos meus ouvidos interioranos.
— Bem, você tem algumapelido mais fácil de pronunciar? Posso, por exemplo, chamá-lo de Hans?
Ocabeleira de cenoura sorriu timidamente, esse sorriso curto e envergonhado queos gringos têm quando estão tentando enturmar-se:
— Hansh não é meuapelido de verdade, mash acho que você também terria dificuldadesh com meuapelido.
Tive mesmo. A pronúncia parecia fácil, mas não consegui repetirnenhuma vez sequer direito. Diante da ameaça de ser chamado de «Cenoura» ogringo preferiu ser chamado de Hans.
Ajudei Hans a se manter de pé depoisque o guia o largou para organizar mais um pouco da subida. Ele reclamava dedores nas pernas, certamente câimbras como as minhas. Mas ainda tinha vontade desubir mais.
— Dez e quarenta e cinco, dez e quarenta e cinco —alertou-nos o guia — descontando uma parada de vinte minutos e mais dezminutos desta, pelo meu relógio, temos uma hora e quinze de caminhada total.Nesse tempo nós percorremos seis quilômetros e meio, e subimos duzentos esessenta e sete metros, pelo meus cálculos.
— Quantos metros temmesmo essa montanha da peste? — perguntou uma voz com vago sotaquenortista ou nordestino.
— Quinhentos e setenta e quatro —informou-nos o guia.
Uma vaga de desânimos se manifestou em suspiros,resmungos e bocejos.
— Sem drama, gente — provocou o guia— porque se fosse fácil, todo mundo vinha.
Tentei calcularmentalmente quantos grupos de turistas não tentavam aquela mesma escalada todomês. A trilha era tão larga e limpa que parecia que um exército espartano subiae descia por ela todos os dias — mas não encontráramos ninguém mais,talvez fosse a época do ano.
— Vamos fazer outraparada?
Resmungos e murmúrios de assentimento apoiaram a sugestão. O guia,então, consultou o seu bom-senso e recomendou que sim.
— Todo mundorepondo líquido e comendo uma barra de cereal, somente uma.
Oestalar de doze invólucros de barras alimentares xexelentas perturbou osilêncio, sufocando o pio dos pássaros. Quinze minutos depois, com os músculosalongados e os ânimos melhorados um pouquinho, a subida recomeçou.
Eradifícil conversar, tendo que fornecer alento a um corpo tão precário em umajornada tão difícil. Hans pareceu entender o meu silêncio lendo a careta em meurosto. Ele também não parecia nada bonito com as suas sobrancelhas amarelaspingando gotas grossas e cada ruga precoce de sua pele de pergaminho preenchidade sal e suor. Pobre Hans, vindo de um país onde não há montanhas, o que fazaqui nessa terra onde as planícies se esgueiram com tanto medo por entre osmorros?
Atingíramos um trecho quase horizontal do caminho, que pareciacircular em torno do pico como uma linha enrolada no carretel. Não poderia serde outra forma: à nossa direita a rocha se erguia como uma parede. Andávamos comas pernas soltas, ousadas, mas já sabendo que teríamos à frente outra subidamalvada. Mesmo andando assim os nossos pulmões andavam carregados de fogo e Hanssuava muito mais do que antes.
Isso porque saíramos do mato e estávamos aosol, seguindo por uma estrada que riscava em torno do morro e nos expunha àclaridade impiedosa. A pedra esquentava e um mormaço desconfortável nos faziaquerer ficar longe dela, mas a trilha era estreita e o parapeito, inconfiável.
Começou a ventar. Um vento fresco de outono, mas mesmo assim um vento quenão nos confortava muito. Vinha em guaspadas decididas, súbitas, surpreendentes.Assobiava nas folhas e nas gretas como uma gaita dos infernos. O vento vinha dosul-sudoeste, um sinal sempre péssimo. Vinha chuva. Chuva longa, chuva fria.Chuva para dias. A descida prometia ser pior que a subida, a menos que chovesselogo, e a subida ficasse tão ruim quanto possível.
— Ninguém olhou aprevisão do tempo, gente? — questionei em voz alta.
O guia gargalhoue perguntou, querendo fazer graça:
— E por causa de uma chuvinhabesta a gente deixava de subir essa montanha linda?
Disse isso arrancandouma flor de capim e tentando parecer leve na subida, mas não teria conseguidoimitar nenhum passo de bailarino.
— Vamos voltar!?
—Por que, Antônio? Sei que lá no Ceará não chove muito, mas não precisa ter medo,que não faz mal! — o guia começava a parecer impertinente, querendo quesubíssemos de qualquer jeito.
— Ele tem razão — interrompeu oHans — em qualquer lugar morro abaixo estarremos sem prroteção contrra achuva. Deve haver um abrrigo mais adiante.
Hans estava certo, claro.Descer só parecia melhor porque a alma da planície sempre pensa que uma desgraçaem baixa altitude é melhor do que num píncaro. Andamos então com o passo maisjusto, tentando vencer logo aquele trecho maldito e exposto em que a trilhabordejava a pedra nua. Mas foi em vão.
A chuva se formou com uma rapidezque deu até medo. Logo nuvens pesadas se formaram no horizonte, e o vento astrouxe para abraçar a montanha. O dia foi ficando escuro, os passarinhos calaramseus bicos no fundo dos ninhos, o vento foi ficando forte, arrancandopedregulhos, arrastando folhas pelo chão, arrepiando nossas nucas.
—Valha-me Santa Bárbara!
A visão do vale se dissolveu na névoa. De repentetrovões se ouviram perto, muito perto. O ar coriscou subitamente e o assobiogorgorejante do vento nas locas e gretas do rochedo pareceu ainda maismefistofélico que antes. Desgraçou a chover assim como se tivessem aberto umatorneira. Chuva gelada, misturada com granizo fino e com um vento que batiacordas de chuva contra a pedra, nos empurrando e empapando.
— Nãotem para onde ir aqui — berrou o guia, no meio da borrasca — temosque continuar subindo porque mais a frente tem um acampamen....
Outrotrovão, dessa vez mais violento ainda. Meus ouvidos doíam, minha pele estava tãogelada que minhas roupas pareciam quentes, mesmo molhadas da mesma água. Cadapelo de meu corpo de eriçara, eletrificado, pavoroso. Trovões, trovões, e achuva ficando quase tão densa que era difícil respirar sem por a mão diante dasnarinas.
— Todo mundo dando as mãos, e vamos devagar.
Todosaconchegados na proximidade segura da pedra. Todos andando com as botas repletasde água, rangendo como queijo verde no dente.
Nenhuma onomatopeia descreveaqueles trovões, nenhum adjetivo serve para tanto relâmpago. Além de nossospróprios medos, só conseguíamos escutar a tempestade, e enxergar dois ou trêsmetros diante do nariz. Estávamos dentro de uma nuvem de chuva, enfrentando osraios de bem perto.
Por fim chegamos a um lugar escuro, que depoissoubemos ser a sombra de um pau-brasil secular. Ali os hippies costumavamacampar. Era o último lugar da montanha aonde se podia chegar em um veículo:quem fosse bastante louco poderia subir até ali em uma moto ou triciclo. Alihaviam construído banheiros, captavam água de uma nascente e serviam-na numtanque. Ali havia um galpão permanente, onde os guias de escalada mantinhamalgum equipamento.
Debaixo do galpão, no seco e ao abrigo dos relâmpagos,começamos a pensar em secar os nossos corpos. Apareceu um fogareiro e outro,acenderam logo uma fogueira. Logo o lugar estava mais aconchegante, mas aindaficamos mais de meia hora tiritando, alguns espirrando, outros tossindo, todoscertamente resfriados até o último poro.
O aguaceiro despejou aindadurante uns dez minutos, depois se reduziu a uma chuva dessas que fazem a gentedormir na roça, depois uma neblina fina que apenas enodoava o horizonte. Até quepassou a água e ficou a umidade, ficou o frio. Eram mais de uma da tarde quandofinalmente o sol reapareceu.
Saímos do galpão ainda sacudindo água doscabelos, como cachorros recém lavados. O sol era melhor do que qualquerfogueira, mesmo um sol ainda atenuado por tanta nuvem.
A chuva dera umbanho de cores em tudo quanto era mato ou flor. O vermelho das pétalas pareciamais aceso, mais líquido, mais feito. Cada folha gotejava, cada lâmina de capim.Tanta beleza justificava as câimbras todas. Hans sacou de sua máquina, ainda comos dedos molhados e as sobrancelhas parecendo tufos de flores. Mirava edisparava sem pensar direito, como se achasse tudo belo, até a lagartixa quebotou a cabeça para fora de sua loca.
Então nos demos conta da fome.Aquecemos nossas pequenas refeições nos fogos que tínhamos e comemos em silênciorespeitoso diante da natureza. Quando o tapete de neblina de dissolveu,finalmente, pudemos ver as cicatrizes da infestação humana nas montanhas maisdistantes. Mas isso não diminuiu a beleza de nenhuma flor sequer, somente nosfez temer melancolicamente por cada uma delas.
* O verso é de uma canção do mineiro (como eu) Zé Geraldo.