Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
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Mar 12
publicado por José Geraldo, às 09:00link do post | comentar | ver comentários (1)

É difícil compreender as razões pelas quais tantas pessoas rejeitamde forma tão ríspida um ensino progressista do português, baseadonas descobertas da Linguística e da Pedagogia. Certa­mente asrazões disto envolvem ideologia, pois um ensino que não discrimineos falares populares ameaça uma estrutura de humilhação dasclasses oprimidas. Então, por se oporem à inclusão social e aoprogresso do ensino, erguem bandeira de guerra contra qualquerindício de que se está buscando uma abordagem não preconceituosado fenômeno linguístico.

O casorecente do livro de português que ensinava «nós pega o peixe» foium exemplo emblemático de como a ideologia e o preconceito deram asmãos para desqualificar uma obra que, com todos os seus defeitos,tinha o mérito de seguir o que é consenso no mundo científico emrelação ao ensino de línguas.

As vozesque se ergueram, porém, foram todas de leigos. Ninguémremotamente dotado de alguma formação na área manifestou-se. Asvozes ouvidas foram, em primeiro lugar, de jornalistas — queaprendem a escrever segundo «manuais de redação» impositivos esão ensinados por fonoaudiólogas a falar com uma pronúnciaartificial, que busca ser neutra mas emula a da Zona Sul do Rio deJaneiro e os melhores quarteirões da Paulicéia. Muitos blogueirosse manifestaram, em geral pessoas das áreas de Exatas e Biológicas,que entendem muito de planta, de bicho e de números, mas não deinterações entre pessoas, ou pessoas educadas em colégiosrigorosos, em geral mantidos por entidades religiosas. Gente do tipoque acha que o pessoal de Humanas é um bando de maconheiros que seformou paquerando a professora, lendo o Manifesto Comunista ebeijando a bunda de um bode nas sextas-feiras. Nenhuma destas pessoasparou para analisar seria­mente o livro citado, muito menos paratentar entender o que é Linguística. Linguística é uma dessasciências «esquerdistas», não é mesmo?

Mas apedagogia moderna propõe ensinar um «vale tudo» linguístico?

Óbvioque não. Seria uma insanidade derrubar a ideia de uma línguapadrão. O fim do ensino desta é algo que normalmente só ocorre como fim de uma civilização, quando o estado falido não é mais capazde difundir sua cultura. Foi o que aconteceu com o Império Romano,levando os dialetos regionais a se dividirem em protolínguas, os«romances», e dando origem às dez línguas nacionais neolatinas:português, espanhol, catalão, galego, francês, provençal,italiano, dálmata (hoje extinto), romanche e romeno. Não se querque num futuro próximo o Brasil esteja dividido em dezenas deregiões independentes, cada qual com sua língua neo-portuguesa.

Tudo oque a Linguística procura ensinar aos professores de português (masuma minoria deles está disposta a aceitar isso, ou é capaz deaprender isso) é que a situação da língua padrão em relaçãoaos falares populares requer uma abordagem diferente da que vem sendoadotada em nossas escolas. Especialmente em países como o Brasil,nos quais a divergência entre a língua culta e a coloquial jáse tornou tão grande que podemos afirmar que existe, ou estápróxima de existir, uma situação de «diglossia», ou seja, acoexistência de duas línguas.

Hávários tipos de diglossia, mas o que nos interessa é aquelasituação na qual a norma padrão é conservadora em relação àevolução do falar do povo. A do português é intencionalmentearcaizante, tendo sido definida no século XVIII, sob o paradigma daimitação do latim e do grego.1Ao longo do século XX, começando com a reforma ortográficaportuguesa de 1910 (à qual o Brasil só começou a aderir em 1946),livramo-nos do ranço desta ortografia, mas não do ranço dagramática criada pelos mesmos perpetradores da ortografiaetimológica. Isto faz com que a língua que se pretende ensinar naescola seja diferente da língua que as pessoas estão acostumadas aempregar no seu dia a dia. Este tipo de situação não é único noportuguês. Isto já aconteceu antes em outros países e osresultados foram sempre os mesmos: é inútil opor-se à língua dopovo. Vamos analisar quatro casos bem emblemáticos deste tipo dediglossia.

NaGrécia, até bem recentemente, a língua ensinada nas escolas erapraticamente idêntica ao grego comum antigo, o koiné hellenikós.Esta língua, o katharevousa («língua purificada») eramuito diferente do grego falado, a ponto de as pessoas terem queestudá-lo como se fosse outra língua. Esta situação se mantevegraças ao conservadorismo do Estado, muito mais voltado para aherança histórica do que para as necessidades presentes do país.Com a democratização, esta situação foi resolvida e os gregospassaram a estudar a norma padrão baseada no grego moderno.

NaAlemanha e na Itália, a existência de uma grande variedade defalares regionais, alguns muito diferentes entre si, resultado daunificação tardia dos dois países. Em ambos os casos, porém,havia uma «norma padrão» anterior. Para o alemão foi o dialetoturíngio, usado por Lutero para traduzir a Bíblia. Posteriormenteesta norma, até então usada somente pelos escritores e, de formalimitada, pelo teatro, foi difundida, com a pronúncia prussiana,como a língua nacional da Alemanha unificada. O italiano padrão foio dialeto toscano, utilizado por Dante Aligheri para a famosa DivinaComédia. Em ambos os casos o padrão é conservador, embora oitaliano moderno seja mais conservador, em relação ao italianomedieval, que o alemão. Italianos de hoje não têm grandesproblemas para ler Dante, caso dominem o italiano padrão, mas têmproblema para conseguir dominá-lo porque, para os habitantes deregiões mais afastadas, especialmente no sul do país, trata-sequase de uma língua estrangeira. Os alemães permitiram que sualíngua padrão evoluísse um pouco mais, especialmente após a IIGuerra Mundial, quando os movimentos migratórios apagaram um poucoas diferenças dialetais milenares.

Na Rússiaaté a época da Revolução Bolchevique a norma padrão eraextremamente arcaizante, influenciada por uma língua falada mil anosantes, o «eslavo eclesiástico», «velho búlgaro» ou«eslavônico». O alfabeto tinha letras desnecessárias, algumas sóusadas para escrever palavras de origem grega, por exemplo. Quando oscomunistas assumiram o poder, uma das primeiras coisas que fizeramfoi simplificar a norma padrão, reduzindo o alfabeto a 36 letras(eram 40) e mudando a ortografia de milhares de palavras por causa daeliminação de duas vogais. Sob o domínio soviético a línguapadrão se aproximou do uso comum, eliminando arcaísmos. A reformalinguís­tica do russo talvez seja o grande motivo pelo qual osconservadores se opõem à modernização da norma culta. Esquecem-sede que movimentos semelhantes ocorreram sob regimes de direita, comoa África do Sul dos tempos do apartheid, quando o holandêsque se falava no país foi alçado à posição de línguaindependente, o africâner.2

Nosquatro casos apresentados a situação de diglossia era resultante defatores diferentes. No caso do grego, houve o desenvolvimentointencional de uma norma arcaizante, algo parecido com o doportuguês. Nos casos de Alemanha e Itália a diglossia resultou daformação tardia da identidade nacional a partir de povos quefalavam dialetos muito diferentes. Alguns dialetos «italianos», porexemplo, estão mais relacionados com os falares do sul da França(occitânico, provençal) do que com o italiano padrão, enquantooutros, como o sardo, são de fato línguas independentes. No caso doRusso a diglossia resultava da contínua influência de um padrãoconservador, o eslavo eclesiástico, travando a atualização danorma culta, o que também tem certas semelhanças com o caso dalíngua portuguesa.

Quando setem uma situação de diglossia, como nos casos apresentados, osestudantes precisam passar, no aprendizado da norma padrão, por umprocesso de aprendizagem que tem semelhanças com o do ensino delínguas estrangeiras. Em uma situação de diglossia, a norma cultaé, para fins práticos, uma outra língua. O «problema» daaprendizagem de português no Brasil, denunciado por gramáticos«pop» — como Pasquale Cipro Neto, Sérgio Nogueira Duarte e LuizAntônio Sacconi — reflete apenas esta situação: a língua que oestudante fala é tão divergente da norma padrão que não podemossimplesmente assumir a «Língua Portuguesa» enquanto disciplinacomo sendo «sua» língua, tanto quanto o inglês ou o espanhol nãoo são, com a única diferença que o contato com a línguaportuguesa é mais frequente do que com estas.

Ignoraresta situação é ignorar a verdadeira causa do problema. Ignorar averdadeira causa do problema significa que todas as estratégiaspropostas para solucioná-lo estarão erradas, salvo um lance desorte improvável. É como trocar peças aleatórias de um carrodefeituoso esperando que ele funcione em algum momento. Se de fatoele vier a funcionar, será somente por sorte e depois de muitotempo. De outra forma, sabendo qual peça trocar o carro funcionarámuito mais rápido e sem o desperdício de tantas peças.

O que aLinguística propõe é a abordagem científica do problema, parasaber «qual peça trocar». As reações que aconteceram aosrecentes casos de livros didáticos «que ensinam o erro» foramhistéricas, injustificadas e obscurantistas. Foram reações deleigos, de pessoas que não sabem do que estão falando e que seacham no direito de desqualificar uma ciência que não conhecem, nãoentendem ou que rejeitam por razões ideológicas ou por meropreconceito.

Arejeição da reforma do ensino da língua portuguesa em nossasescolas é muito parecida com a rejeição do ensino da Teoria daEvolução pelos criacionistas. Em ambos os casos temos pessoas malinformadas ou mal intencionadas, que difundem concepçõesretrógradas, pseudocientíficas, reacionárias, preconceituosas eincorretas, que fazem isso porque estão condicionadas a rejeitareste conhecimento científico específico por causa ideologia sob aqual foram criadas. O criacionista rejeita o ensino da TE porque elalhe causa insegurança quanto à validade do texto sagrado de suareligião. O «gramatiquista» rejeita o ensino moderno do portuguêsporque ele próprio se vê detentor de um conhecimento sobre alíngua, que será obsoleto com a reforma. Em ambos os casos serecorre à «culpa por associação» para desqualificar aquilo quese rejeita por preconceito. O criacionista associa a TE às crendiceseugênicas do início do século XX, incluindo o nazismo. O«gramatiquista» associa reformas ortográficas ou mudanças nalíngua padrão ao «comunismo». No fundo, ambos sentam-se em cimade um grande rabo, que não admitem ter: sua rejeição aoconhecimento se deve a uma confissão implícita da própriaimpotência. O criacionista depende da validade plena de seu textosagrado. O «gramatiquista», tendo sofrido tanto para aprender o quesabe de português, teme ter de aprender de novo. Quando foi feita aprimeira reforma ortográfica do alemão, em 1911, adicionou-se àlei um artigo que autorizava o kaiser a continuar utilizando anorma antiga enquanto vivesse.

Mas agrande pergunta que precisa ser respondida para que possamos fecharesta humilde série de reflexões sobre o tema «preconceitolinguístico» é: de que forma reconhecer uma situação dediglossia resolve o problema da falta de domínio da língua cultapelos nossos estudantes?

Na raizdesta dúvida há o medo de que o reconhecimento da diglossia sejauma espécie de Caixa de Pandora, que levará à degeneração danorma culta, ao esquecimento da literatura e a uma série de malesterríveis e inomináveis. Como vimos nos exemplos da Grécia e daRússia, as atualizações da norma culta não produziram nenhumefeito negativo. No caso da língua grega, os estudantes seguemincapazes de ler Homero diretamente, tal qual já não conseguiamantes. Mas hoje conseguem ler e escrever melhor a língua que usam nodia a dia. Para quem queira ler Homero, as universidades oferecemedições críticas contendo o texto original e uma versãomodernizada. No caso do russo, os livros apenas tiveram que serreimpressos na nova ortografia e os russos não leem menos hoje doque liam nos tempos do czar.

Ambosos povos saíram de uma situação que era de fato diglossia (casogrego) ou caminhava para tornar-se (caso russo) e a literatura deambas as línguas só teve a ganhar com isso. Não houve degeneraçãoda norma culta porque a língua já havia de fato mudado, só faltavaaceitar que isso ocorrera. Não houve o esquecimento da literatura,porque o que faz os jovens lerem não é o arcaísmo da norma padrão,mas uma tradição (inclusive familiar) de valorização da leitura —que existia tanto na Grécia quanto na Rússia, mas não seconsolidou ainda entre nós. No entanto, a solução da diglossiapode não ser desejável nos casos, como o nosso, emque a língua sofreu e está sofrendo um processo de dialetaçãoimportante. Em tal situação, análoga às de Itália e Alemanha,ensinar uma norma culta útil para a comunicação entre as diversasregiões e estratos sociais é uma forma de manter a unidadenacional.

Oque vem sendo proposto já há alguns anos pelos autores antenadoscom a Linguística, para grande ira dos gramáticos normativoscarranças, não é a substituição da norma culta por alguma outraforma linguística, mas, sim, a adoção de uma estratégia de ensinodo português empregando técnicas normalmente empregadas no ensinode línguas estrangeiras — entre elas a separa­ção conceitualentre a língua que o aluno fala e aquela que a escola pretendeensinar, conscientizando desde cedo o estudante da dicotomiaexistente entre o universo coloquial e o universo da língua formalpadrão nacional.

Faz-seisto por várias razões. Primeiro porque se é possível ensinaringlês ao estudante brasileiro, tem de ser possível ensinar-lheportuguês, que é uma língua muito mais parecida com o que eleemprega no seu dia a dia. Segundo porque é uma questão de respeito:o aluno não é um animal estú­pido que tem de «aprender afalar» na escola, ele é um indivíduo que fala o dialeto peculiar àsua região, na variante correspondente aos grupos sociais quefrequenta. Terceiro porque reconhe­cer a realidade tal como éserá o primeiro passo para buscar influenciá-la no sentidodesejado.

Tendoem vista estes objetivos, não é nenhum absurdo que um livrodidático contenha a frase «nós pega o peixe» (aliás, napronúncia de meu dialeto é «nóis péga o pêxe»), se ela forusada para ilustrar a diferença entre o coloquial e o formal.Absurdo é escrever um livro didático que fica de costas para arealidade do aluno e seguir culpando-o pela própria dificuldade deaprender algo que lhe é ensinado errado. Absurdo é não ter acompetência de ensinar e dizer que a culpa é do português, por seruma língua difícil. Difícil é abrir a cabeça de gentepreconceituosa, que se acha detentora de alguma migalha de saber.

1 Então se desenvolveu a «ortografia etimológica» (na verdade pseudoetimológica), em que as palavras eram grafadas de forma a lembrar sua origem, às vezes em desacordo com a pronúncia: pharmacia, machina, mysterio, hybrido, orthographia, sceptico, asthma, physico, Hespanha, bahia, propheta, photographia, diccionario, eschola e choro.

2 Apesar da ideologia racista predominante na África do Sul de então, o africâner é um idioma de base fonética e léxica holandesa, com grande influência inglesa na gramática e significativa contribuição de vocabulário de línguas africanas.


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Mar 12
publicado por José Geraldo, às 23:16link do post | comentar
«A língua é um enorme iceberg flutuando no mar do tempo» —Marcos Bagno

Na semana passada comecei a falar sobre opreconceito linguístico que grassa em nosso país de uma formaparticularmente intensa. Lembrei que a Linguística é uma ciênciaestabelecida solidamente há mais de duzentos anos, com copiosaprodução de conhecimento, mas que persiste uma profunda ignorânciasobre seus aspectos mais básicos, ignorância alimentada pelos meiosde comunicação, que somente dão espaço ao discurso retrógrado epseudocientífico daqueles que rejeitam o conhecimento científicopor razões ideológicas. Perguntei também por que razão pessoasque são céticas de várias outras formas, e têm tanto a criticarna postura, por exemplo, dos criacionistas, não percebem que suaposição em relação à Linguística é idêntica à daqueles emrelação à Biologia: rejeição irrefletida e a priori motivadapor preconceitos e razões de foro íntimo.

Hoje pretendo explicar melhor em que consiste o famoso «preconceito linguístico»que é tão ou mais negado que o preconceito racial.1Para isso tomarei como guia a obra Preconceito Linguístico:O Que É, Como Se Faz , de MarcosBagno. Sei que alguns leitores torcerão o nariz, pois o autor temuma reputação de «comunista» entre o baixo clero da direitahidrofóbica que cola esta acusação coringa na testa de quem aincomoda, para não ter que discutir suas ideias.2Mas eu reajo com a mesma resposta que os debatedores «céticos»mais afoito costumam dar aos criacionistas mais folclóricos quandovêm com histórias de «hidroplacas» e «baramins» em algumadiscussão sobre Biologia ou Geologia: vão estudar parapelo menos entenderem onde estão errando.

O preconceitolinguístico é ligado à confusão criada entre a língua em si e agramática normativa. Mas uma receita de bolo não é um bolo, ummolde de roupa não é uma roupa e uma gramática não é uma língua.Esta confusão, alimentada pela mídia e por uma série de mitos quefazem parte da autoimagem (muito negativa) que o brasileiro tem desi, resulta em uma percepção distorcida de nossa cultura e nossopapel no seio dela. Os mitos a que Bagno se refere são os seguintes:

A línguaportuguesa falada no Brasil apresenta uma unidade surpreendente

Este mito foi o primeiro a ser contestado pela ciência, existindopesquisas etnográficas e linguísticas datadas desde o início doséculo XX que comprovaram que: a) existem dialetos regionais noBrasil, b) os dialetos regionais se diferenciaram bastante cedo emnossa história, com base nas origens diversas dos imigrantes que seestabeleceram nas diferentes regiões e c) apesar da forçahomogeneizante da televisão e do rádio, tais dialetos seguem sediferenciando.

É um mito prejudicial porque, ao não reconhecer a variedade regional doportuguês falado, oferece um diagnóstico incorreto da situaçãosociolinguística dos alunos, criando mais uma dificuldade paratrabalhar eficientemente o ensino da língua padrão. Na cabeça dospreconceituosos, reconhecer a existência dos dialetos é um «perigo»porque legitimaria o «falar errado» em detrimento do «falar certo»(conforme o entendem). Trata-se de uma concepção anticientíficapor duas razões: 1) a realidade não precisa ser “reconhecida”para existir e 2) o diagnóstico incorreto do problema cria novosproblemas em vez de preveni-los ou solucionar os existentes.

Brasileiro não sabe falar português.

A ideia de que não sabemos falar a nossa própria língua geralmentevem associada à de que em Portugal, sim, se fala direito. Não épreciso mencionar que essa concepção é fruto de uma mentalidadecolonizada, que imagina que um povo «mestiço» ou, dito de umaforma menos evidentemente racista, «tropical», não seria incapazde falar direito nem a «sua» própria língua.3Obviamente ninguém diz abertamente a razão pela qual o brasileiro«não sabe falar português» porque envolveria a sugestão de que obrasileiro é uma espécie de bípede implume que só apreende afalar se for amestrado na escola. Muitas das pessoas que têm talconcepção nunca visitaram outros países para ver como seushabitantes também «não sabem falar» suas respectivas línguas,4outros aderem ao preconceito para vender livros.

Este preconceito não resiste à comparação com nenhum paísde mais de um milhão de habitantes: italianos de diversas regiõesquase não se entendem em dialeto, franceses tampouco, os falaresalemães chegam a ser agrupados em duas línguas diferentes (alto ebaixo alemão). O árabe da Arábia Saudita é ininteligível por umegípcio, que, por sua vez, quase nada entende da fala de ummarroquino, que, por sua vez, sofre para entender um sírio. E nem sefale da salada de dialetos que cruza os Bálcãs, da Ístria à costado Mar Negro. Por que, então, diferentemente da maioria dos paísesdo mundo, o Brasil teria uma «uniformidade surpreendente» de sualíngua? Se existe tal uniformidade, como tanta gente «não sabefalar»?

Em todos esses países, a solução para o problema da comunicação é a difusão de umalíngua padrão, a norma culta, geralmente baseada em um dialeto deprestígio. Em nenhum desses países se aceita que idiotas apareçamna televisão dizendo que o povo não sabe falar. Ai de quem o diga,pois as pessoas consideram os dialetos parte da sua identidade e nãoaprendem a língua padrão porque «não sabem falar» direito, massim porque desejam integrar-se ao conjunto da nação.

Português é muito difícil.

«A desculpa do preguiçoso é a dificuldade», dizia o ditado popular. Adificuldade pode ser uma ilusão, causada pela abordagem incorreta doproblema. Quem tentar carregar água na peneira terá muito maisdificuldade do que quem usar uma caneca.

A ideia de que o português é muito difícil resulta do fato de o ensino de portuguêsno Brasil partir de um diagnóstico errado da situação do aluno, deuma apresentação incorreta da matéria e da apresen­tação damatéria errada. Imagina-se que o aluno, mesmo «não sabendo falar»,fala uma língua que tem «surpreendente unidade». Esta língua lheserá então ensinada através de um sistema educa­cionalprecário, por profissionais mal treinados e mal remunerados. Porfim, a língua que se ten­tará ensinar é uma versãoarcaizante, desconectada da realidade do aluno. Então, quando osalunos falham em massa no aprendizado, a culpa é da língua. Dapobre língua, única que não pode se defender. Gramáticos epedagogos discursam bonito. Políticos, que fazem escolas e definemcurrículos, podem defender-se. A língua, porém, é um ser abstratoe leva a culpa calada.

Nota-se o quanto esse mito está equivocado quando analisamos a percepção que os outrospovos têm de nossa língua. Numerosos levantamentos feitosinternacionalmente com estudantes de diversas partes do mundo colocamem «2» o nível de dificuldade do português, numa escala de «1»a «5». No nível «1» ficam as línguas de gramática mais simplese regular (como esperanto e indonésio) e no nível «5» línguascomo coreano, mandarim, japonês, cantonês, sânscrito e árabe.Sempre em tais levantamentos o português é colocado no mesmo nívelde dificuldade do inglês, do espanhol e do italiano, e um nívelmais fácil que francês, alemão, ou holandês.

As pessoas sem instrução falam tudo errado.

Aqui o preconceito fica um pouco mais claro. A falta de instruçãoestá associada à falta de contato com a língua propagada atravésdo sistema educacional que, obviamente, é a língua da elite. Existeuma estigmatização do falar das classes populares, não por causade suas características, mas por serem populares. Todos os «erros»do português coloquial também são encontráveis em textos degrandes escritores do passado, evidenciando que tais «erros»”nada mais são do que fenômenos linguísticos que já aconteceramantes e podem acontecer de novo. A troca do «L» por «R», porexemplo, considerada a «marca da besta» entre os «erros» deportuguês, pode ser lida abundantemente nos poetas portugueses ebrasileiros entre os séculos XV e XVIII: «frecha», «pranta» e«frauta» se encontram aos montes em Camões, Bocage, Sá deMiranda, Gregório de Matos e Guerra e numerosos outros, provando queestas pronúncias eram correntes na época. Tanto isso é verdade quese você as digitar no seu programa de edição de textos sesurpreenderá ao constatar que elas não são marcadas como erros!Ora, se é válido admitir variações como «flauta/frauta»,«flecha/frecha», «planta/pranta» e outras, por que não admitir«plano/prano», «claro/craro» e outras? Trata-se do mesmo fenômenolinguístico, operando da mesmíssima forma.

A única diferença é que as palavras do primeiro grupo foram legitimadaspela elite através de sua literatura, enquanto as do segundo gruposão estigmatizadas por serem encontradas somente nas variantespopulares do português. Mas os preconceituosos, em vez de imaginarque estamos diante da persistência, no seio do povo, de um fenômenolinguístico que existe há séculos, prefere pensar que quem fala«craro» possui algum tipo de atraso mental. Talvez se ospreconceituosos lessem mais, aprenderiam sobre a própria língua esua história, em vez de confiar em preconceitos alimentados pelaignorância.

Onde melhor se fala português no Brasil é o Maranhão.

Parte do complexo de inferioridade do brasileiro em relação à sualíngua se baseia em sempre deslocar geograficamente o lugar onde sefala o português ideal. Muitas pessoas dizem que é o Maranhão,afinal ele é suficientemente remoto. Em Minas Gerais muitosacreditam que os cariocas falam melhor. No Rio de Janeiro existe essacrendice sobre o Maranhão, mas também sobre o Rio Grande do Sul. Ospaulistanos estigmatizam os «caipiras» do interior, enquantoreverenciam os gaúchos.

Em geral se acredita que onde se fala ainda o «tu» o português é melhor(tanto cariocas quanto gaúchos e maranhenses o empregam ainda,embora raramente conjuguem o verbo de acordo). Esta fixação com opronome da segunda pessoa é mais um reflexo da subserviência aPortugal, que se manifesta no persistente luto de nossos gramáticospela morte do sistema pronominal clássico, que ocorreu no Brasilainda durante o século XIX, mas ainda hoje não foi assimilada.

É preciso falar como se escreve.

Se estivéssemos apenas falando de padronizar a pronúncia da normaculta para facilitar a comunicação inter-regional, seria aceitávelpreconizar a pronúncia baseada na ortografia, ainda que de formalimitada. Mas ocorre que nem mesmo norma culta padrão segue talregra. A abolição dos acentos diferenciais tornou ainda mais vaga arelação entre a letra e a leitura, a ponto de termos pares depalavras que se distinguem pelo timbre, mas têm a mesma grafia(«olho» e «olho», «molho» e «molho», «porto» e «porto»,«pelo» e «pelo»). Como então cobrar que um mineiro leia «móínho»em vez de «mũe» citando que é preciso falar como se escreve?Obviamente esta é uma desculpa para negar voz aos dialetos regionaise forçar a homogeneização a partir de uma norma culta ideal quenão é falada nem mesmo pelos cariocas e paulistas em cujos dialetosela supostamente se baseou.

Ocorre que a escrita é representação da fala, tal como o desenho é uma representaçãodo objeto. A função da escrita é nos lembrar dos elementos queempregamos na fala, tal como o desenho nos relembra o objeto.Subordinar a fala à escrita é como querer que as coisas reaispassem a parecer com os desenhos que são feitos delas. Imagine se umerro de impressão faz com que o desenho de uma galinha saia semcrista. Quem sairá pelo mundo amputando cristas das penosas? Existeum erro na avaliação da função da escrita em relação à língua,e certa categoria de gramáticos «pop» e professores seus fãsparece querer andar pelo mundo, de estilete à mão.

É preciso saber gramática para falar e escrever bem.

Se o bom conhecimento da gramática fosse requisito para falar eescrever bem, todos os bons escritores seriam exímios gramáticos, eum bom número de gramáticos teria talento literário. Ocorre quenenhum gramático jamais escreveu coisa que preste em termos deliteratura e os grandes escritores costumam ser unânimes críticosdeles. A lista de escritores que destilaram veneno contra osgramáticos é extensa e notável, com nomes como Rubem Braga,Vinícius de Morais, Leon Eliachar, Carlos Drummond de Andrade,Machado de Assis, Monteiro Lobato, entre outros. Todos, sem exceção,viam a gramática mais como obstáculo do que como ferramenta de seutrabalho. Machado de Assis escreveu uma crônica sobre suaincapacidade para ajudar um sobrinho a fazer seus deveres deportuguês, por exemplo. Se nem o Bruxo conseguia se dar bem com asabsurdidades da gramática, como podemos esperar que um aluno comum oconsiga?

Mesmo assim, existe uma«propaganda enganosa» de que os alunos passarão a falar e aescrever melhor se aprenderem gramática. Esta propaganda esconde queas gramáticas foram inventadas muito depois da literatura (e estamuito depois da escrita). A gramática não é a base de coisanenhuma, apenas um guia para os que desejam dominar uma determinadavariedade linguística. A primeira gramática grega surgiu somente noséculo II a.C., séculos após Homero, Xenofonte, Safo, Platão,Aristóteles, Eurípides, Aristófanes, Ésquilo, Anacreonte, Hesíodoe outros. As primeiras gramáticas do português surgiram no séculoXVIII, séculos após Sá de Miranda, Camões, Dom Dinis e outros.Como explicar que tantas obras de tão alta qualidade tivessem sidoproduzidas antes da existência de gramáticas? Inspiração peloEspírito Santo?

O domínio da norma culta é um instrumento de ascensão social.

Este mito retorna ao primeiro e ao segundo, aqui se considerando uma«boa ação» dar uma língua aos «sem língua» para permitir queeles superem sua condição de pobreza e marginalização. Existecerta verdade na ideia de que a educação é transformadora dasociedade, para melhor, mas não se deve levar isso a ferro e fogo.Se dominar a norma culta fosse um instrumento eficaz de ascensãosocial, professores de português (e gramáticos, principalmente)seriam pessoas extremamente poderosas e prestigiadas.

A verdade fica muito longe disso, com pessoas de pouca ou nenhuma instruçãoadquirindo ou conservando popularidade e poder por vários meios.Mais do que isso: ninguém corrige o falar de um político poderoso,por mais que cometa solecismos e «erros de concordância». Nãodominar a norma culta não lhe impediu de galgar o poder e não oexpõe à crítica. Portanto, quando criticamos o falar de uma pessoado povo, não estamos criticando o falar propriamente dito, mas a suacondição social.

É fato que a profusão de «erros» está relacionada ao posicionamentodo falante na estrutura da sociedade: quanto mais baixo mais «erra».Não somente por falta de acesso à «cultura», mas também porqueas classes dominantes não aceitam como legítima a cultura dasclasses subalternizadas, a não ser quando apropriada na forma defolclore ou artesanato.

O preconceito linguístico é uma ferramenta de exclusão e de humilhaçãodaqueles que se encontram na base da pirâmide: para eles oreconhecimento só pode vir através do domínio de uma norma cultaque lhes é imposta, domínio que não lhes garante ascensão sociale não os isola de serem ridicularizados ainda assim, por sua«correção pedante», quando se defrontam com pessoas dotadas depoder, que não precisam se preocupar com todos os «esses e erres».

Estes oito mitos do preconceito linguístico se sustentam em um tripé perverso: agramática tradicional, o ensino tradicional e o livro didático. Agramática tradicional (normativa, intolerante, preconceituosa,arcaizante e lusófila) inspira um sistema educacional tradicional(excludente, intolerante, unilateral, colonizado), que alimenta aindústria do livro didático (instrumental, unilateral, alienante,superficial) que, por sua vez, recorre à gramática tradicional parafonte de sua ideologia e de seus métodos. Fecha-se um círculovicioso difícil de romper, pois livros que tentem desviar da normaserão combatidos pela mídia (que está associada à indústria dolivro didático e ao ensino particular instrumental) e ignoradospelas escolas (que são cobradas pela mídia, pelos pais e pelo“mercado” de acordo com a sua fidelidade ao ensino tradicional).Escolas que tentem inovar terão dificuldade para conseguir livrosdidáticos e sofrerão ataques da mídia e boicote dos pais dealunos, especialmente se tal escola for particular. E assim seperpetua a concepção de que o povo não sabe falar, uma situaçãona qual a escola não sabe ensinar e um resultado de que o povo nuncasaberá o que precisaria saber: o domínio suficiente da norma culta.

1 Eu digo que é até pode ser mais negado, porque a prática de tal forma de preconceito é uma maneira menos rude de discriminar as pessoas sem evidenciar uma posição abertamente racista.

2 Uma reputação evidentemente absurda, pois Bagno não é um político, mas um cientista, e quase tudo que ele escreve é corroborado por pesquisas feitas no mundo todo. Chamá-lo “comunista” ou termo que o valha é como acusar todo o estabelecimento universitário da maior parte do planeta de estar envolvido em uma conspiração.

3 O pronome possessivo vem entre aspas porque nesta série estamos justamente discutindo «de quem» é a língua que a escola pretende ensinar.

4 Para os que consideram a Argentina uma espécie de ilha de cultura nesta América Latina mestiça e chucra, sugiro fortemente que pesquisem sobre o voseo, um fenômeno linguístico característico do espanhol portenho (comum à Argentina, ao Uruguai, ao Paraguai e ao sul da Bolívia) que consiste na substituição do «tú» e do «vosotros» por um «vos» que se comporta de forma análoga ao «vous» francês e ao «você» brasileiro.


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Mar 12
publicado por José Geraldo, às 20:07link do post | comentar

Corria o já quase lendário ano de 1998 — três anos antes do incrível show do Camel em Cataguases — quando esta foto abaixo foi tirada, pela máquina emprestada por um amigo. Emerson « Toquinho » Teixeira Cardoso e eu estamos empacotando os exemplares do número 4 (e último) da revista Trem Azul, que nós fizemos, com cara, coragem e alguma falta de juízo. Este é o estande do jornal Zona da Mata, que nos cedeu o espaço compartilhado em troca de nosso trabalho. Era assim que se tentava fazer revista literária nos anos 90, antes que o computador ficasse tão barato e fácil de usar.

Oportunamente vou desenterrar das cavernas da internet uma série de artigos escritos por mim sobre essa revista.

assuntos:

21
Mar 12
publicado por José Geraldo, às 11:59link do post | comentar

Um amigo meu me enviou uma captura de tela preocupante: quando ele tentou acessar este blog no domingo recebeu um alerta de seu software anti-virus de que aqui seria uma «conhecida fonte de código malicioso» e não houve como fazer a visita. Tentei entrar em contato com a Symantec, empresa responsável pelo programa em questão, mas não consegui localizar nenhum canal que me permitisse interagir com eles e questionar o bloqueio. Pelo menos quando o Google faz isso ele nos dá a opção de ignorar o aviso e também de relatar se o bloqueio procede ou não. Vários sites e blogues que já foram bloqueados pelo Google puderam tomar conhecimento das razões e fazer o desbloqueio. Um bom exemplo foi o blog Cloaca News, bloqueado entre outubro e novembro de 2011. Aparentemente, porém, somente usuários do produto em questão podem contactar a Symantec e questionar as marcações. Como eu não sou, e jamais serei, usuário de nenhum produto desta empresa de “venda de proteção”, não tenho como me defender da acusação de que meu blogue difunde o mal. Peço, portanto, ajuda aos meus leitores que são clientes da Symantec e que estejam conseguindo me ler, através de um navegador ou computador diferente, ou através do feed rss, para que verifiquem as razões do bloqueio e me ajudem a reverter esta injustiça, que já está se refletindo em sensível queda no número de visitas.

Antecipadamente grato

Este blogueiro que vos escreve infrequentemente.


18
Mar 12
publicado por José Geraldo, às 10:00link do post | comentar

Este post foi escrito originalmente no sábado, mas agendado para hoje, domingo, para não encavalar com o outro que já havia sido escrito ontem. Mas tive de escrevê-lo logo após porque o assunto era urgente, não podia ficar para hora melhor, não havia hora melhor. Ontem, sábado, assisti de novo uma peça perdida de meu passado: o dia em que entrevistei Andy Latimer.

Vamos por partes. Andy Latimer, para quem entende de rock progressivo, é um dos nomes mais queridos e importantes da história do gênero. Guitarrista, flautista, vocalista principal e único membro permanente do grupo «Camel», ele é uma lenda viva da música, embora não seja tão famoso quanto outros que tiveram mais sucesso nas paradas. Andy Latimer esteve em turnê no Brasil no ano 2001 e uma das paradas da turnê foi em Cataguases. Sim, você leu certo. Cataguases recebeu um show de um dos maiores grupos de rock progressivo de todos os tempos, lá no Cine Edgard. E eu entrevistei Andy Latimer. Se você consegue acreditar que o Camel esteve em Cataguases, talvez consiga crer que eu fiz mesmo a entrevista.

A loucura foi responsabilidade de Rodrigo «Nômade» Rocha, empresário cataguasense, proprietário da Voltage, extinta loja de discos onde, por muito tempo, eu deixava meu dízimo (mínimo de 10% do salário gasto comprando obras primas da música). Rodrigo descobriu que trazer artistas de rock progressivo renomados não era difícil: além do cachê ser razoavelmente barato, eles em geral eram pessoas acessíveis e dispostas a aventuras, como encarar horas de estrada para ir tocar em lugares obscuros no interior do Brasil.

Infelizmente pouca gente acreditou na época. Sei disso porque ajudei a divulgar o evento e quando eu começava a falar muita gente achava que eu estava brincando. Mas Latimer veio a Cataguases, hospedou-se no Bevile Hovel com a banda, andou a pé pela rua desfilando seus famosos pés tamanho 46 (motivo do apelido “Sasquatch”). E na noite de 22 de março, às 21h00, subiu no palco do Cine Edgard para mais de oitenta minutos de puro delírio musical na presença de uma platéia de cerca de 100 pessoas mais ou menos (que nem chegou a dar metade da lotação).

Acredito que se Rodrigo morresse sem ter feito mais nada na vida ele já teria deixado algo para ser lembrado: levar o Camel a Cataguases foi uma realização estupenda. Feita na base do puro amor à música, sem pensar em ganhar dinheiro, na base do amadorismo mesmo. Isso é algo que deve dar orgulho. Eu, por exemplo, tenho orgulho de minha pequena parte desempenhada: fiz o cartaz, o fôlder (cuja frente, contendo um autógrafo de Latimer, ilustra esta postagem) e fiz uma entrevista com Latimer, que tenho agora transcrita em DVD a partir do surrado VHS que guardei por onze anos na gaveta — e que um dia vou postar no YouTube.

Claro que a entrevista ficou uma porcaria. Eu não tenho boa dicção (nem em português, quanto mais em inglês), não sou repórter, não tinha nenhum roteiro prévio e jamais aparecera na televisão. Então, de repente, eis que me aparece uma equipe da TV Minas que ia fazer uma reportagem sobre o evento. Eles tinham vindo sem intérprete e precisavam de alguém para fazer o programa. Alguém me indicou como um «carinha que manja muito de inglês» e eu, num acesso desses de insanidade que tenho de vez em quando, topei a parada. Não havia roteiro, havia quinze minutos para o fim da passagem de som. Rabisquei algumas perguntas em um pedaço de papel qualquer, com sugestões de pessoas que estavam por perto, passei o pente no cabelo mal e mal e me sentei ao lado de Andy para a entrevista, tentando parecer natural, tentando ignorar a luz forte dos refletores e a presença incômoda daquela luzinha vermelha da câmera, que indicava que estavam me gravando.

Andy percebeu o amadorismo da situação e deve ter se perguntado onde, diabos, estava com a cabeça quando topara aquele show, mas mesmo assim concedeu-nos vinte e cinco minutos, respondendo a perguntas que já devia ter respondido cem vezes ou mais em toda a vida. Mas algumas pessoas me disseram que eu fui bem, apesar de gaguejar várias vezes e ter congelado por dez segundos em certo momento. Fui bem porque resisti a tietar e consegui interagir com Andy, mudando as perguntas de acordo com o contexto das respostas. No fim, apertei a mão de meu ídolo e fui pedir autógrafos.

Esta é uma das histórias que levo pela vida toda, como demonstração inequívoca de que temos de estar preparados para as oportunidades que aparecem, sem medo da luzinha vermelha acesa, sem medo de parecer ridículo como o meu cabelo despenteado.

Naquela noite o Camel tocou com:Andy Latimer: guitarra, vocais, flautaColin Bass: contrabaixo, vocaisGuy LeBlanc: tecladosDennis Clément: bateria

Não tenho o set list, mas sei que o bis foi “Lady Fantasy” (vídeo compartilhado abaixo, com muito medo do ECAD).

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17
Mar 12
publicado por José Geraldo, às 11:28link do post | comentar | ver comentários (2)

Nos últimos anos tem estado muito em evidência o debate sobre o “preconceito linguístico”, notadamente desde que um homem do povo (e por isso xingado de “apedeuta” por uma mídia preconceituosa e elitista) chegou ao poder. Tal debate é, porém, feito por leigos e para leigos, nunca, jamais, em hipótese alguma permitindo que os especialistas tenham o mesmo destaque que os palpiteiros. Fala-se sobre a língua, sem nunca sequer mencionar que existem linguistas. O que é mais ou menos como conversar sobre doenças sem mencionar que existem médicos. Fala-se sobre gramáticos, políticos, escritores e professores de português, é verdade, o que equivale a, mesmo esquecendo os médicos, lembrar de uma série de outras profissões relacionadas à saúde, algumas sérias, outras não.

Quando um apologista cristão diz não crer na Evolução e enfileira uma série de comentários deturpados e desconexos, que evidenciam desconhecimento completo ou muito grande das coisas mais básicas de Biologia, as reações jocosas no meio do “movimento ateu” são quase instantâneas. Há quem chegue a recomendar à criatura que “vá estudar”, há quem lhe aponte as “falácias” de seu raciocínio ou até o fato de argumentar desconhecendo coisas básicas e imediatas, que deveriam ser evidentes no quotidiano. É unânime entre os que não são fundamentalistas religiosos que um criacionista é uma pessoa que tem um sério problema intelectual (dissonância cognitiva), uma profunda ignorância científica ou então é um manipulador que desconsidera fatos a fim de ter apelo junto às pessoas que não os conhecem ou compreendem. Em uma linguagem mais direta, criacionista só pode ser burro, ignorante ou desonesto.

Este estado de coisas não tem a ver, necessariamente, com religião. O criacionismo não é causado pela necessidade de crer em Deus, visto que muitas pessoas creem nEle sem serem criacionistas. Na verdade o criacionismo reflete o apego a um conjunto de explicações que — mesmo obsoleto e em contradição com aquilo que se observa na ciência (e até no quotidiano, em alguns casos) — continua tendo apelo porque oferece uma visão de mundo mais simples, imediata e inteligível. “Deus fez” é uma explicação que não exige muito raciocínio, não humilha quem não tem tempo de estudar e tem, na cabeça de muita gente, o salutar efeito de diminuir a distância entre um diploma de primário e um de doutorado. Em simples palavras: o criacionismo é uma reação anti-intelectual, que procura restaurar um mundo ideal que homens eram homens e sabiam consertar os motores de seus carros.1

Existe, porém, uma ciência que sofre um ataque muito mais cerrado da pseudociência, um ataque muito mais cruel e eficiente. Esta ciência foi estabelecida há mais de duzentos anos e; mesmo mostrando notável capacidade de produção de conhecimento, inclusive com modelos que permitem fazer predições; é praticamente ignorada fora dos meios acadêmicos, enquanto seus detratores têm acesso fácil à mídia para propagar seus panfletos reacionários. E de tal forma isso, que o discurso pseudocientífico se tornou a norma e os pesquisadores precisam enfrentar o ceticismo e o descrédito quando apresentam seus trabalhos. Ceticismo e descrédito que chegam, inclusive, entre os pesquisadores de outras áreas do conhecimento.

A ciência de que estamos falando é a Linguística. Fora dos círculos acadêmicos pouca gente ouve falar dela, embora seja frequente que os conhecimentos por ela produzidos se difundam, sem crédito, por uma variedade de meios. A Linguística permitiu a tradução de textos em línguas perdidas e a reconstrução da autoria da Bíblia; provou a múltipla autoria do Pentateuco e do Alcorão; determinou as relações étnicas entre os povos da Europa, do Oriente Médio, da Ásia Central e do Subcontinente Indiano; permite detectar fraudes documentos históricos; é parte da análise que busca determinar a validade de uma inteligência artificial; ajudou a desconstruir o discurso totalitário etc. As descobertas da Linguística são incríveis, para uma ciência tão recente e que estuda um fenômeno tão complexo quanto as linguagens humanas.

Porém a Linguística desperta sua quota de reações entre aqueles que sonham com um mundo ideal, que homens eram homens e tudo que se precisava aprender era o trivium e o quadrivium.2

Ocorre que a Linguística se insurge contra um dos últimos bastiões do preconceito nossa sociedade. Não é mais aceitável discriminar os indivíduos por fatores como a cor de sua pele ou a religião, resta apenas como última distinção do elitismo a afirmação de um sistema de castas linguísticas, que perpetua e justifica a exclusão de uns favor de outros. Ao demonstrar a cientificamente a falsidade dos paradigmas em que se assenta tal divisão, a Linguística atrai a ira dos que se aproveitam deles para exercer privilégios ou para ganhar uns trocados. E ganha-se muito dinheiro vendendo dicionário e gramática, e cursinho e concurso e manual de redação.

Refiro-me, obviamente, à cultura de gramática e dicionário, herdeira dos sistemas medievais de ensino. Tal cultura se baseia na crença de que certas línguas são superiores a outras,3 que “as pessoas” (aqui geralmente entendidas como “as pessoas das classes inferiores”) pertencem a uma espécie de bípede pelado e estúpido que não saberá se comunicar a menos que a escola ensine. Se não for ensinadas direitinho pelo “sistema educacional”, crescerão falando “errado”, do jeito que puderam aprender com outros ignorantes, como seus pais, por exemplo.

Colocando a coisa nestas palavras ela soa um pouco ofensiva. Talvez algumas pessoas que estejam lendo este texto ouçam soar o alarme: “Ei, eu não penso assim!” Será mesmo? Façamos um exame de consciência, às vezes só conseguimos enxergar certos detalhes quando exagerados na caricatura. E a caricatura dessa visão de mundo é o gramático normativo conservador, figura já satirizada com força por Monteiro Lobato, em Emília no País da Gramática, escrito incrivelmente em 1934. Entre esses há um gramático famoso hoje em dia, que tem por sobrenome a marca de um remédio que causa abortos, que tem espaço até na televisão para difundir “regrinhas” de uma gramática que reflete uma língua falada no século XVIII e que nem mesmo a elite fala mais.

Um cético não pode compactuar com essa visão de mundo. Já falei anteriormente sobre como o ceticismo tem sido abastardado pela convivência com preconceitos, a ponto de arengas céticas incluírem injúria racista contra um povo historicamente discriminado. Aqui estou indo além: a cultura da gramática e do dicionário é preconceituosa, embora não da forma grosseira como se manifesta o preconceito racial contra negros, judeus ou ciganos.

O preconceito a que me refiro é reflexo de uma sociedade de classes, na qual os valores e experiências do povo são desconsiderados e os valores e experiências das classes dominantes são impostos através de sistemas ideológicos. A elite é que sabe falar, e vai ensinar o povo a falar. O “não saber falar” significa que, para a elite, o que quer que o povo esteja falando é uma “não língua”. A História está repleta de exemplos de situações nas quais a imposição da língua dominante refletiu um processo de dominação política.

Ao ser entrevistado para a Veja, o professor foi introduzido pelo seguinte comentário: … professor de português — idioma que, de tão maltratado no dia a dia dos brasileiros, precisa ser divulgado e explicado para os milhões que o têm por língua materna. Não houve contestação desta definição por parte do professor, certamente porque ele gosta de se ver assim, como uma espécie de missionário entre os primitivos. Será realmente necessário “divulgar e explicar” o português para pessoas que o têm por língua materna?

Ocorre que, conforme demonstra a Linguística, os dialetos populares não são uma “corrupção” da língua nacional pela ignorância do povo: eles têm uma origem, uma história e uma lógica interna. Os dialetos regionais já existiam no Brasil Colônia, como reflexo das origens geográficas diferentes dos imigrantes de cada região do país,4 como se percebe facilmente estudando episódios como a “Guerra dos Emboabas”, no qual o falar definia a identidade das pessoas, da mesma forma que seu vestir. Ora, se sabemos que os dialetos têm uma história, como seguir afirmando que nada mais são do que fruto da ignorância de um povo que “não sabe falar”? Não podemos, eis porque segue existindo, entre os que se beneficiam dos métodos de “ensinar a falar”, uma barragem contínua de críticas e desqualificações contra a ciência da Linguística.

Infelizmente, porém, quando uma ciência começa a detectar as estruturas de dominação ideológica que mantêm as coisas “em seu lugar” ela começa a ser associada com movimentos revolucionários que procuraram ou ainda procuram colocar outras coisas no mesmo lugar. Esse discurso da Linguística, que explicita como as elites estabelecem-se como portadoras da “língua certa” e se arrogam a missão de ensinar o povo, passa então a ser visto como perigosamente “comunista” por pessoas que não sabem o que é Linguística e, muitas vezes, não sabem o que é comunismo.

Você já deve ter ouvido falar esse tipo de coisa por aí. É muito frequente entre os adeptos de ciências exatas a depreciação das ciências humanas, como se elas fossem coisa de “maconheiros comunistas gays”. Não percebem os que dizem estas bobagens que adotam um discurso análogo ao dos criacionistas, que rejeitam a priori e em bloco todo um ramo do conhecimento que não estudaram, apenas porque as teses se chocam com as suas opiniões leigas.

Gostaria de enfatizar esta última palavra. Debatedores como o Franciso Quiumento — mas não somente ele — adoram esfregar esse termo na cara de criacionistas para descartar suas opiniões. Acho justo: ninguém confia na opinião de um “leigo medicina” para tratar-se ou de um “leigo engenharia” para construir uma ponte. Natural, portanto, que o bom senso rejeite o que um “leigo biologia” tenha a dizer. Mas será que tipo de reações que eu provocarei se disser que os vociferantes críticos da Linguística são “leigos” que não sabem o que estão falando? Será que essas pessoas terão a racionalidade de reconhecerem que agem como o apologista de Bíblia à mão que grita que “A Evolução É Só Uma Teoria”? Tenho certeza de que a maioria não. Tal como é impossível demover o criacionista, ao menos não subitamente, é impossível demover os críticos da Linguística, porque do alto de sua ignorância eles acham que estão “certos”, que as ciências humanas não são ciências “de verdade”, enquanto eles têm à mão a régua exata para medir o mundo.

Cabe perguntar qual a razão do preconceito contra as Ciências Humanas por parte das pessoas que cursam Exatas ou Biológicas. Talvez tal preconceito seja agravado pelo reflexo das distorções de nosso mercado de trabalho, que tornam mais financeiramente bem sucedido um médico ou engenheiro do que um professor, mas o fenômeno é encontrado também outros lugares do mundo, o que nos sugere uma causa mais profunda do que as imperfeições de nossa sociedade tropical. Se eu quisesse cometer um comentário tão abusivo quanto os que já me foram dirigidos por pessoas de Exatas ou Biológicas eu diria que aqueles que são instrumentalizados pelo sistema serão por ele pregados como peões na luta contra o conhecimento que ameaça a atual estrutura do mesmo sistema. Não creio, porém, que esses comentários sejam deliberados, mas fruto de irreflexão e, portanto, não é justo que eu reaja com um ataque desse tipo. Justo é, porém, que eu convide as pessoas que desqualificam as Ciências Humanas a examinar não as motivações de tais críticas, pois tal pedido seria falacioso, mas a validade delas.

Na próxima semana volto ao tema, para falar especificamente sobre as formas como se manifesta tal preconceito.

1 Uma das provas de que o criacionismo não é um monstrengo isolado, nem a Biologia a Geni das ciências, é que existem vários outros fenômenos análogos afetando outras ciências, exatas, humanas e biológicas. A pseudociência existe em todos os ramos do conhecimento, sempre acompanhada de uma pregação panfletária contra o “elitismo” da ciência estabelecida e seus controles e apresentando-se com uma humildade cativante que fala ao coração do leigo com o conforto da sugestão de que o esforço de estudar é uma vaidade sem sentido. Exemplos de fenômenos tais podem ser encontrados na História (revisionismo do Holocausto, deuses astronautas, fenícios cariocas), na Geografia (Amazônia pulmão do mundo), na Medicina (homeopatia, osteopatia, auras, cura pela fé), na Geologia (terra oca, terra jovem), na Astronomia (Nibiru/Hercólubus) etc. Talvez os outros tipos de pseudociência não consigam ter a mesma projeção do criacionismo por não contar com o púlpito para divulgá-los (inclusive o púlpito eletrônico), mas epistemologicamente falando não há uma grande diferença entre crer Adão e Eva ou crer crianças índigo.

2 O currículo das escolas mantidas pela Igreja na Idade Média se baseava no estudo de dois grupos de matérias. As básicas correspondiam ao trivium, de que deriva o adjetivo “trivial”, e as demais eram consideradas avançadas. O trivium era composto de gramática, lógica e retórica; enquanto o quadrivium tinha de aritmética, geometria, música e astronomia. Este currículo correspondia às “artes liberais”, enquanto outros cursos ensinavam as “artes práticas” (como a medicina e a arquitetura).

3 Os anglófonos, por exemplo, julgam o inglês a língua “mais própria à civilização” por possuir o maior conjunto de vocábulos (ainda que os dicionários de inglês sejam inflados por todo e qualquer termo estrangeiro que adquira certo uso corrente e que as diferentes acepções de uma mesma palavra sejam frequentemente postas verbetes separados). Os francófonos consideram o francês superior porque possui “o sistema de conjugação verbal mais preciso entre as línguas latinas”, entre outras bobagens. Para cada língua há um meio de demonstrar sua “superioridade” segundo algum critério arbitrário: o alemão e sua incrível capacidade de derivação morfológica, o italiano e sua plasticidade sonora, o espanhol e sua estabilidade ortográfica e gramatical de quase oito séculos, o grego e sua tradição de dois mil e quinhentos anos etc.

4 A influência açoriana nos dialetos do extremo sul, por exemplo, ou da língua tupi sobre os dialetos do centro-oeste e de São Paulo.


12
Mar 12
publicado por José Geraldo, às 19:21link do post | comentar

Não sei quando foi e nem porque, mas eu coloquei o blogue em modo «moderado» e por isso os comentários dos leitores não andavam aparecendo. Eu até já estava triste, achando que ninguém comentava. Daí hoje, por acaso, descobri mais de uma dezena deles esperando.

Peço desculpas aos meus leitores por toda essa demora em liberar os comentários e, para evitar isso, estou novamente «desmoderando» este blogue.


09
Mar 12
publicado por José Geraldo, às 21:57link do post | comentar

…ou não andavam tão bem acompanhados. Era um mundo melhor, no qual você não se fazia ouvir nem na esquina, mas podia pelo menos desfrutar da doce sensação de que as suas ideias não seriam incompreendidas e ridicularizadas por idiotas.

O ser idiota é um ser coletivo, gregário, agremiado, associado, mesmo que informalmente. Ninguém consegue ser realmente um idiota quando está sozinho porque o eco das paredes nos dá a estranha sensação de que não somos geniais ou, ainda pior, de que nossa genialidade nunca será compreendida. Em ambos os casos poupamos o mundo de nossas palavras por tempo suficiente para que amadureçam, ou amadureçamos, ou emudeçamos, ou apodreçamos.

Um grupo de pessoas apenas moderadamente bobas pode transformar-se em uma turba vociferante de trogloditas. Um babaca não comprará uma briga contra o carinha que lhe «olhou torto» na rua, um grupo de babacas pode massacrar um mendigo pelo prazer de ouvir ossos quebrando. Coletivamente, a idiotice se potencializa. Mas remova cada um dos idiotas de seu bando e você terá um gatinho educado. Sem «amigos lá fora» para impor sua interpretação idiota do mundo, o gatinho aprenderá a negociar, a conversar. Esta é a grande virtude das prisões: as prisões deveriam ser o «cantinho pensamento» para os meninos maus da sociedade. Infelizmente, vivemos numa sociedade em que os castigos são vistos como manifestações autoritárias da tradição. Talvez sejam, mas negociar uma entrada honrosa no mundo adulto é algo que já saiu meio de moda. Todos querem entrar arrombando, pisoteando, idioteando.

O mundo era melhor no tempo em que não havia tantos bandos de valentes, no tempo em que os valentes se orgulhavam de resolver sozinhos. Hoje em dia, já que estamos ficando modernos, resolvemos redescobrir a Idade Média e trouxemos de lá o que os franceses chamavam de melée, a guerra bruta e desorganizada que só terminava quando os vivos começavam a tropeçar demais nos mortos. A guerra estúpida e bárbara contra a qual a civilização procurou impor códigos de cavalaria, tréguas dominicais, direitos de asilo, honra militar etc. Briga em porta de escola é um choque de bandos, ninguém ali possui individualidade, são idiotas que se entregam ao espírito do bando — e todo bando é necessariamente idiota, todo partido é utópico, toda associação é ingênua, todo grupo é meio besta. Houve um tempo em que afirmar-se como indivíduo era sinal de honra. Hoje, a folha de grama que se destaca é aparada.

Conformem-se, garotos que estão hoje nas escolas. Vocês não terão a permissão de viver com a liberdade que eu vivi. Eu vivi sob uma ditadura os meus tempos de escola, mas vivi mais livre do que vocês. Porque as correntes com que nos amarramos a nós mesmos são as mais difíceis de romper. Quem romperá a corrente de massificação, de idiotização? Experimente gostar de uma garota diferente, ouvir uma música diferente, passar por uma rua diferente, vestir-se com uma roupa diferente. Escárnio, no começo, xingamentos, pouco depois, talvez uma pedrada na testa ou, se for possível, um linchamento. Moral ou físico, já tanto faz. Não existe muita vida depois que você perde o direito de ser você mesmo. E passa a ser um dos idiotas do bando.


08
Mar 12
publicado por José Geraldo, às 07:45link do post | comentar

Neste Dia Internacional da Mulher, reservo este post para fazer uma homenagem a uma senhora alemã chamada Bertha, que causou uma tremenda comoção em seu país no ano de 1888. Bertha era a mulher do inventor Karl Benz, construtor de alguns dos primeiros automóveis, entre eles o primeiro movido por motor à explosão, chamado “Benz Patent Motorwagen”.

Esta senhora, em uma época em que ainda era cientificamente aceito que a mulher era menos inteligente e menos dotada de iniciativa que o homem, praticou um ato que é impressionante, quando visto em perspectiva.

No dia 5 de agosto de 1888 ela pegou o veículo construído pelo marido e viajou com os dois filhos pequenos, de Manheim, onde ficava a fábrica de Benz, a Pforzheim, onde residiam seus pais.

Não foi uma viagem fácil. O veículo tinha três rodas e era instável em estradas esburacadas. Tinha apenas uma marcha, que não era bastante forte para subir os morros mais íngremes levando mais de um passageiro. As pessoas por toda parte fugiam amedrontadas com o barulho e a fumaça produzidos pelo veículo e algumas foram agressivas.

Houve problemas mecânicos também. O motor ainda não estava plenamente testado e teve vários defeitos no meio do caminho, que a própria Senhora Benz teve de consertar, já que não havia mecânicos naquela época. O único defeito que ela não consertou pessoalmente foi a ruptura da corrente de tração, que foi solucionada por um ferreiro, que soldou a peça. Entre os defeitos que ela mesma consertou, um entupimento da válvula de alimentação de combustível, que ela solucionou usando um grampo de cabelo, e o desgaste prematuro das lonas de freio, que ela trocou usando um par reserva trazido de casa.

Outro problema foi conseguir combustível, já que o tanque do veículo era muito pequeno e o motor, pouco econômico. Ela resolveu isto comprando os ingredientes em empórios de produtos químicos e fazendo ela mesma a mistura, seguindo a receita que vira o marido tantas vezes preparar.

A viagem da Senhora Benz foi a primeira viagem da História feita em um veículo movido por motor a explosão. Antes dela ninguém andar mais do que algumas centenas de metros, sempre em recintos fechados. E não foi qualquer viagem, foram 106 quilômetros (mais ou menos dois terços da distância do Rio de Janeiro a Juiz de Fora).

Por incrível que pareça, ela não fez isso por mero capricho: ela tinha um objetivo: além de visitar os pais, divulgar a invenção do marido.

Nisso ela foi extremamente bem sucedida: o escândalo que ela causou, as notícias de jornal, tudo contribuiu para popularizar o conceito de automóvel. Bertha Benz não foi a primeira mulher motorista, foi a primeira motorista.


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