Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
29
Jul 12
publicado por José Geraldo, às 23:24link do post | comentar | ver comentários (1)

O sucesso do mais novo rebento da categoria do filme hollywoodiano baseado em quadrinhos de heróis nos faz novamente refletir sobre o símbolo que a máscara representa para aqueles que com ela se identificam. O herói mascarado, mais especificamente o Batman, herói mascarado mais arquetípico e mais poderosamente enraizado nas nossas neuras e ideais, representa muito mais do que o veículo de algumas horas de diversão violenta, ainda mais quando habilmente manipulado para que sua história deixe de ser quadrinesca e kitsch para adquirir ares adultos. Um movimento que começou com Frank Miller nos anos 1980 e agora nos produz o primeiro filme de super heróis a romper realmente a barreira do infanto-juvenil e ganhar elogios de adultos (embora não de todos os adultos).

Batman faz mais sucesso que a maioria dos heróis, inclusive no quesito ardor dos fãs, porque ele é «um de nós», não um alienígena adotado pelo nosso planeta, como o Super-Homem. Porque seus poderes estão ao alcance de um ser humano dedicado e provido de recursos, em vez de derivarem de uma fonte mística qualquer; como o anel do Lanterna Verde, a filiação divina da Mulher-Maravilha, a divindade de Thor ou  algum improvável acidente nuclear (Hulk) ou elétrico (Flash). Além disso, ao contrário do Homem de Ferro, outro herói que também emprega poderes não sobrenaturais, ele não é fragilizado fisicamente. A fragilidade do Homem-Morcego é uma fragilidade ao mesmo tempo psicológica (derivada do trauma de ter presenciado, impotente, o assassinato dos pais) e moral (seu comportamento de vigilante frequentemente torna aqueles a que combate em monstros piores ou enseja que os bandidos se tornem mais viciosos para lhe fazerem frente).

Estes fatores aproximam o homem comum deste herói, cuja força está nos músculos, no cérebro e no dinheiro — os três poderes mais invejados pelos jovens de hoje. E desde que o atual diretor dos filmes, Christopher Nolan, conseguiu mostrar o herói de forma mais máscula (desviando das antigas suspeitas do relacionamento homossexual com Robin) e independente (tornando-o menos tutelado pela figura paterna do mordomo Alfred), paradigma se tornou mais evidente e o culto ao Cruzado Mascarado cresceu.

Uma coisa que sempre me chamou a atenção nas histórias do Batman foi que os seus vilões o enfrentavam de cara limpa na maioria das vezes. As poucas exceções eram justamente os personagens mais ambíguos, como a Mulher Gato, que eu, desde criança, sempre pensei que queria mais roubar o coração do Morcegão do que as joias dos museus. Pinguim, Coringa, Duas Caras, Charada, Erva Venenosa; quase todos tinham os rostos expostos ou meramente disfarçados por uma máscara que servia mais de adereço do que de disfarce. Diferentemente do Homem-Morcego, em seu pesado traje, que reflete as sombras de sua alma atormentada por uma infância interrompida por um crime absurdo e pelas sequelas de um vigilantismo que frequentemente o expõe às monstruosidades que pretende combater. Como dizia Nietzsche: quando contemplas o abismo, o abismo também te contempla. De tanto contemplar o abismo, o Morcego se torna, também ele, abissal.

Por isso é curioso que justamente esteja sendo considerado este último filme como a culminação de todos os filmes do herói com máscara de quiróptero: pois é justamente o filme no qual ele enfrenta outro que, como ele, tem o rosto oculto por trás de uma máscara. Uma máscara que é o oposto da sua: Batman oculta os olhos, para não ter que encarar de frente o abismo. Bane oculta a boca e se oferece à contemplação, ao mesmo tempo em que contempla, desafiadora e esfingicamente. Bane é um bandido que não tem nada a declarar, ao contrário de outros que muito diziam mas nada significavam, como o Charada, o Coringa ou o Pinguim. Representa a maior expressão da força bruta, descuidada da própria preservação. Sua máscara lhe mantém permanentemente sob o efeito de analgésicos e esteróides e drogas outras. Ele não quer acusar os golpes, porque se os sente talvez não golpeie com tanta força.

Poderia dizer que vejo em Bane uma metáfora para o terrorista suicida. Mas para isso eu teria de comparar a crença religiosa a uma máscara que injeta analgésicos o tempo todo pela goela abaixo de quem a põe. Vocês concordariam com isso? Não sei se eu mesmo concordo.


27
Jul 12
publicado por José Geraldo, às 00:26link do post | comentar | ver comentários (1)
Resolvi adicionar, por sugestão de uma amizade (que me brindou com a história) mais um capítulo ao romance «Amores Mortos» antes de dá-lo ao mundo. O novo capítulo ajudará a tornar o meu anti-herói romântico ainda mais ambíguo.

A necessidade, porém, de transcrever como ficção uma história real, e muito real, que aconteceu com alguém que conheço (ou pelo menos ela disse que aconteceu) me coloca diante de um dilema: como evitar que as pessoas identifiquem a verdadeira fonte da história e, ao mesmo tempo, preservar a credibilidade de algo baseado em fatos reais?

Com a palavra os que já tentaram esta temeridade.
assuntos: ,

24
Jul 12
publicado por José Geraldo, às 08:12link do post | comentar

Será que somos tão sofisticados assim? A maioria dos autores celebrados por nossa crítica pratica um tipo de prosa quase ilegível, caracterizado pela exploração intensa, quase joyceana, tanto da sintaxe quanto da semântica, aliado a um ângulo narrativo sempre oblíquo e a uma sequência fragmentária. Os autores que praticam uma narrativa mais tradicional não são tão valorizados, não são considerados mais como geniais, mesmo que suas obras exalem competência, como se o seu estilo estivesse ultrapassado, mas o Finnegans Wake já passou de oitenta anos de idade, Ulysses já é quase centenário, o movimento concretista brasileiro já começou a enterrar os seus criadores, vitimados pela velhice. Alguma coisa me parece deslocada: soa-me como se houvesse dentro da academia uma facção afastada do mundo real e preocupada em escrever livros que ninguém lerá.

A quem interessa uma literatura tão difícil? Quem lê essas obras quebra-cabeça? Suspeito que são realmente poucos os leitores e suspeito mais: suspeito que sob a capa desta complexidade artificial muitas vezes reside uma superficialidade fútil, uma falta de boa história para contar, um conservadorismo estético e conceitual que já se petrificou.

Sempre fui um crítico do excesso de formalismo, até por razões ideológicas. Se ainda houvesse no mundo alguma coisa parecida com as escolas literárias do passado eu estaria tentando seguir uma escola oposta à que estou criticando. Mas o mundo de hoje é fragmentário e os diversos autores ficam sozinhos, dialogando contra o nada. Então quando você pensa diferente, fica fácil os que pensam igual o tacharem de imodesto ou até de termos menos elegantes: nesse mundo em que a comunicação se tornou tão fácil, pode ser uma atividade bem solitária a de autor.

Enquanto pululam autores interessados em reinventar e reinverter ideias de como esconder o que não querem dizer, o mercado segue dominado pela literatura estrangeira. Boa parte de nossos autores locais parece ter desistido de lutar pela alma do leitor comum, abandonaram-no ao massacre da cultura importada, talvez porque eles próprios tenham se abandonado a tal massacre. E não deixa de ser curioso que os escritores dos «países centrais» não tenham essa preocupação de numerar capítulos usando uma tábua Ouija, de desencavar paralelismos semânticos a cada parágrafo, de referenciar cinco deuses mitológicos Ashanti em cada página ou de narrar como em um sonho de Freud. O formalismo está fora de moda nas literaturas que imitamos. Nossa literatura tem uma vanguarda tão vanguarda que deixou para trás até mesmo as vanguardas mais avançadas. Avançou tanto que deixou todo mundo para trás e se perdeu na floresta.

Não faço parte desta vanguarda. Sou um construtor de personagens e de cenas. Não curto esse lance de palavras valise ou de emprego do quiasmo como recurso expressivo. Minha literatura é bem mais simples e por isso eu nem tentei sair na Granta. Mas não estou com isso tentando dizer que considero a ignorância um fator positivo. Não saber as coisas não é uma distinção. Arte «naïf» é um conceito que não faz sentido para mim: ou o artista tem uma formação ou não tem. Supor que seja possível algum tipo de inocência criativa é, em si, uma inocência. Minha formação certamente é incompleta e divergente porque não li os livros canônicos e, se os li, foi fora da ordem recomendada, fora do contexto recomendado. Como resultado, fiquei pensando diferente do que eu deveria estar pensando se tivesse seguido a programação determinada.

E na minha programação, consta que a literatura deva ter uma preocupação social, nacional e humana. Que isto vai acima da preocupação formal, que isto é mais importante do que mostrar que consegue empregar uma rara figura de linguagem extraída da antiga literatura oriental, mais importante do que demonstrar erudição sobre povos e culturas que não fazem parte de nossa realidade imediata e nem de nossa história. Com um pouco de ousadia e iconoclasmo, chego a dizer que existe em mim uma certa influência do realismo socialista, só me falta aperfeiçoar a ideia um pouco e tolerar que minha versão deste seja «tropicalizada» com algumas características dos autores que mais me influenciaram: Guimarães Rosa, Lima Barreto, Fernando Pessoa, Machado de Assis, Ignacio de Loyola Brandão, João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira — e mais alguns que eu sempre esqueço quando começo a fazer uma lista. E julgo curioso também que quando começo a fazer tais listas, embora eu tenha lido muito autor gringo, eu só consigo encontrar seis nomes entre eles que ressoaram nas cordas de meu coração, cinco gênios e outro nem tanto, mas gosto não se discute: Jorge Luis Borges, John Banville, Stephen King, D. H. Lawrence, Evgeni Evtushenko e Julio Cortázar.


17
Jul 12
publicado por José Geraldo, às 22:00link do post | comentar
  1. Shadow of the Hierophant (Steve Hackett). Guitarrista «pouco brilhante» que foi praticamente posto para fora do Gênesis antes que ele, liderado por Phil Collins, se trans­formasse numa imensa máquina de ganhar dinheiro, com um inexplorado potencial de produção de bonequinhos fofuchos, Hackett estreou na carreira solo com um álbum de encher os ouvidos. Um álbum que eu possui durante oito anos e nunca tinha ouvido. Hoje sei lá por que cargas d'água resolvei pô-lo para rodar e meu queixo caiu. Shadow of the Hierophant («A Sombra do Sacerdote», ou algo assim) é uma longa e variada peça musical de onze minutos de duração caracterizada pela extrema beleza de cada acorde, de cada frase musical, de cada nota desferida por cada dedo. Fecha com chave de platina um álbum pouco ouvido e hoje cada vez menos conhecido de um artista que vai morrer no anonimato sem que a juventude saiba de seu talento (mas sabe fazer o lelelê).
  2. Orgasmatron (Motörhead). Sempre tive um certo preconceito contra esse grupo. Primeiro por causa da obscura história de como Lemmy Kilmister (baixista e vocalista) foi expulso do Hawkwind, um outro grupo de que eu costumava gostar (e hoje apenas detesto moderada­mente), e segundo porque certas capas de álbuns deles são de um mau gosto que devia até ser crime. Mas quando ouvi essa porrada no YouTube, por indicação de um amigo, eu percebi que preciso conhecer melhor o trabalho do Motörhead. Não tem nada a ver com a sutileza musical e a beleza estética do trabalho de Hackett, mas Lemmy manda bem a sua mistureba singela de poucos acordes, melodias grosseiras, letras políticas, vocais roufenhos e perfeita sincronia com a rebeldia dos anos oitenta.
  3. Solar Musick Suite (Steve Hillage). Outra que dormitou no meu computador durante quase uma década sem que eu a ouvisse. Os vocais adolescentes de Hillage, acompanhados por músicos de primeira (companheiros seus no porra-louca Gong) e por uma guitarra econômica, mas certeira, dão o tom desta peça mística, melodiosa, mas ao mesmo tempo provocativa e interessante. O motivo pelo qual demorei tanto a criar coragem de ouvir esta canção é justamente o Gong, grupo interessante, mas cujo trabalho não me interessa com muita frequência justamente por ser louco demais (quem duvida procure no YouTube por uma canção chamada «Flying Teapot»). Mas a carreira solo de Hillage é mais comportada e até, ouso dizer, melhor.
assuntos:

15
Jul 12
publicado por José Geraldo, às 12:44link do post | comentar

O ganso grasnou na neblina leitosa e Janaína chegou à janela para ver os raios infantis de sol nas teias de aranha que punham um véu nas folhagens úmidas, o orvalho parecia um salpico de perolazinhas: não havia maior troféu no mundo que estar viva e ver aquilo!

Dona Gertrudes trouxe uma bandeja de torradas com manteiga, café de rapadura e queijo. Tudo cheiroso como na infância soterrada pelo tempo. Há momentos na vida que parecem durar eternidades, mesmo sendo poucas semanas. E Janaína ouvia os ecos da infância como se tivessem sido numa era anterior, quase inimaginável. Estava de volta à cidade pequena e à casa da mãe. Nada era mais surpreendente do que isto. Depois que a mãe saiu num passo abatido, suspirou e começou a morder o desjejum enquanto contemplava o mundo, tão distraída que talvez não notasse um tiro de canhão.

Havia um pé de girassol além da cerca, algo melancólico de se ver, todos os dias, aquele movimento inconsciente da flor, aquela vitalidade vazia de planta… Nem as aranhas são tão desesperadas: fazem teias por instinto, mas não parece que ficam tão presas a um ciclo. Ao contrário dos girassóis elas podem pular de árvore em árvore. E tantas pessoas parecem girassóis. E tantas querem ser aranhas.

Quando deu por si mastigava o resto do queijo, que rangia gostoso na boca. Mal notou quando a mãe tirou a bandeja, resignada.

Afastou-se da janela com o cuidado que se precisa e foi ler outro capítulo do livro de Miguelito. O rapaz era atencioso, trazia-lhe livros e gastava horas preciosas de sua vida dando-lha atenção. Adorava Miguelito, ingênua e desesperada, mesmo sendo tão bonito — era um sonho inconsequente e necessário.

Dessa vez lhe trouxera um romance. Finalmente ela o convencera a parar com obras espirituais: “Não preciso me agarrar tanto a Jesus, pobrezinho. Se ficar o tempo todo falando em seu ouvido ele vai cansar e talvez não me ouça quando eu precisar”.

Miguelito se ofendera com a ideia. Sugerira, ácido, que Janaína “não aprendera nada”. Mas trouxe um livro que não era de orações nem exemplos edificantes. Demorou, porém, deixando-a com medo de ter perdido o amigo. Mas ele voltou, parecendo querer voltar — e isso importava muito.

Logo cansou do livro e preferiu pensar no amigo. Ele tinha uma pele morena muito uniforme, como se jamais tivesse sido agredido pelo sol, um tom moreno de nascença, de herença atávica. Seus olhos eram pretos, completamente pretos, como botões. Olhos que brilhavam, líquidos, quando a contemplavam. E tinha cabelos escorridos, cabelos de índio, grossos e saudáveis. Gostava de pensar nele, mas pensava melhor sob as cobertas.

Aproximou-se da cama com cuidado e com toda a energia que lhe sobrava nos braços. Ainda estava aprendendo muita coisa, ainda estava adquirindo força e delicadeza. Deixou a cadeira de rodas e passou para o leito. Enrolada nas cobertas, pensando nele, voltou a explorar restos de sensações na pele, mapeando-se, descobrindo onde ainda o sentia, imaginando o que poderia oferecer-lhe. Pois Miguelito merecia mais que seus sorrisos.


11
Jul 12
publicado por José Geraldo, às 22:07link do post | comentar
Debate no Facebook sobre o caso dos mendigos que devolveram 20 mil reais. Alguém, não podendo crer que exista gente honesta no mundo, comentou que havia visto a primeira entrevista deles e que eles haviam devolvido por medo: estavam cobrindo o rosto e falavam com a voz trêmula. Outro respondeu que isso não provava nada, pois o Brasil é mesmo um país onde para se fazer algo ético você precisa ter muito receio, fica de vez trêmula e às vezes tem até que esconder o rosto para evitar represálias. Faz sentido.

10
Jul 12
publicado por José Geraldo, às 12:29link do post | comentar | ver comentários (1)

Apareceu de repente um barui estrãe no motor do caminhão, chamano a atenção do Remundo, que cochilava no banco de carona pro Jailso dirigir. Tava de madrugadinha e era lua minguante, num dava para ver nada no escuro daquele fim de mundo.

— Jajá, para o caminhão.

Encostar ali era perigoso: ês tava no meio do nada, estradinha de terra. Canavial dum lado e dotro. Não tinha nenhuma luz de cidade apareceno no céu.

— O que foi, Mundim?

— Um barui no motor.

— Não escutei nada, ocê tá bêbo. 

—  Parece que tem um trem quarqué atrapaiano o motor a girar.

— Tem nada. Iss’ é besteira de caminhonero bêbo.

Mas o rai do barui tava lá. Remundo tamém escutô e ficô co os cabelo rupiado da nuca até a bunda. Porquê num era no motor coisa nenhuma, era arguma coisa no meio do canavial. Mas o motor tamém tava estrãe.

— Né não, Jajá. Me chama de Richarlyso se não tá aconteceno alguma coisa.

Descero então e pegaro as chave de fenda. Abriro a tampa do capô da F-150 e ficaro olhano com a lanterna, procurando um trem quarqué solto que fizesse o barui.

Então escutaro um ruído quase que não dava para ouvir, assim como os pezim duma galinha correno. A nuca do Jajá rupiô de novo e ele virô assustado como se alguém tivesse enfiado gelo na carça dele. Pela estrada afora, na luz do farol, ia umas pegada esquisita, que sumia na curva.

— Tá veno isso, Mundim?

— Olha, nem sei o que é, mas vam’ ‘bora daqui!

Montaro os dois, apertaro os cinto e ligaro o motor. Nos matagal em volta da estrada se oviu um bater de asa que parecia revoada de morcego saino do inferno.

— Jajá, acabei de pensar. As pegada vão para lá…

— Cõ efeito, Mundim, deixa de ser medroso.

Aceleraro com força. Poquim depois da virada da curva, um par de zói vermei apareceu no mei da estrada, encarano os farol.

— Ai Santa Mãe de Deus, um lobisome!

Jajá tentou frear, mas já tava muito em cima. O bicho foi na grade, fazendo um barui seco, como uma explosão de pedrera lá longe.

— Será que matamo o demõe?

— Vam’ descer e ver.

De fato mataro, só que não era nenhum demõe, mas uma pobrezinha duma capivara, gorda que só ela.

Os dois começaro a rir da bobiça enquanto examinav’ os resto da bichinha. Uma capivara, cês sabe, é mais ou meno um ratão cotó grande e cabeludo.

Enquanto ês tava lá rino de alívio, nem viro a sombra grande do disco voadô que subiu do meio do canavial, quietim, e sumiu céu acima, sem ês ver.


09
Jul 12
publicado por José Geraldo, às 23:04link do post | comentar
Se posso destruí-lo, então eu sou melhor do que você. Assim funciona o argumento da força, a ética da opressão. Intimidação física enquanto argumento não é algo tão fácil de detectar porque é a ideologia do poder, é assim que se impõem as leis. E é assim que se fazem os heróis: matando, explodindo, derrubando. O poder de construir algo belo não é tão admirado quanto o de destruir qualquer coisa, bela ou não. Uma arma fascina mais do que uma colher de pedreiro. O punhal é mais estiloso do que a faca de cozinha. A bomba atômica comanda mais admiração do que a dinamite que abre caminhos para a engenharia. Assistir a uma construção é um processo tedioso: não se juntam multidões para ver um arranha-céu subir, mas aglomera-se um povo respeitável para assistir a implosão de um que se tornou “velho”.
assuntos: ,

06
Jul 12
publicado por José Geraldo, às 18:30link do post | comentar

Incluído nos «Livros de Linhagens» da nobreza lusitana está um breve relato sobre a família de Diego Lopes, que inclui uma personagem que ficou célebre: a misteriosa mulher montanhesa com pés de cabra. Tata-se de uma história interessante por envolver profundamente as fantasias populares lusitanas (e estas fantasias, claro, ecoam na nossa própria cultura).


Aspectos culturais

Como se verá, a deficiência física (um pé deformado) era um sinal de deficiência moral. A Dama Pé de Cabra é apresentada como uma espécie de bruxa, e o seu pé deforme é uma grave advertência disso. Algumas histórias mais exageradas não apenas mencionam a deficiência como falam de uma mulher literalmente dotada de pés de cabra — mas nesse caso o casamento não ocorre pelo afeto espontâneo de Diego Lopes pela dama misteriosa, mas pela promessa que ela lhe faz de honras e glórias caso ele a desposasse e lhe fizesse mãe.

Interessante notar que a Dama Pé de Cabra nunca é mencionada por seu nome nas versões mais antigas da história (e esta que transcrevo parece ser a mais antiga). Tampouco sua filha. Afinal, os livros de linhagens se preocupavam apenas em registrar a linhagem patriarcal da nobreza. Nascer mulher era apenas um acidente, e a Dama, mesmo protagonista da história, não leva um nome.

A história está ambientada no tempo da guerra contra os mouros, antes da tomada de Toledo pelos cristãos (que foi em 1085). Isso significa que a história deve ter se passado por volta do século X ou XI (mas, é claro, sabemos que «ter se passado» é boa vontade deste que escreve, o caso é certamente lendário, ou muito modificado para tender a lenda).

Não consigo perceber muitos elementos semelhantes com contos de fada/bruxaria/cavalaria de outras culturas, e nisso reside justamente a originalidade e a beleza deste pequeno texto, que eu em breve modernizarei, para desgraça dos descendentes de Diego Lopes e da memória de Alexandre Herculano (que certamente romanceou o caso bem melhor). A diferença é que a minha Dama Pé de Cabra viverá no círculo mágico da Serra da Estrela, e não sei ainda como lhe apresentarei um Diego Lopes.

Elementos linguísticos

Saltam à vista as semelhanças com o espanhol. Inúmeros vocábulos do português arcaico (século XIII) se escrevem de forma parecida à castelhana: «muy», «ella» etc. Isto se explica porque, de fato, as duas línguas eram muito mais próximas naquela época.

Em seguida temos variações de ortografia de uma mesma palavra, «el foi», «ell lhe disse», «elle lho outorgou». Três formas diferentes do mesmo pronome e nenhum critério aparente de escolha. É algo parecido com o que acontece na escrita de uma pessoa mal alfabetizada, que erra de várias maneiras diferentes uma mesma palavra. Na Idade Média não havia gramáticas e nem academias, as pessoas escreviam como achavam que deviam e só o costume ditava alguma norma.

Você também notará palavras começadas com «cê-cedilha»: «em çima de huuma pena». Isto é porque no português antigo os grupos «ce» e «ci», bem como o «ç» eram lidos ainda com um resquício do «t» latino original: dependendo do dialeto a pronúncia deste «c» poderia ser lido como «ts» ou «θ» (o «theta» grego simboliza um «t» interdental parecido com o «th» inglês em «them»). A palavra «cima», porém, deriva de um original latino que era pronunciado como «k» (e não de um «t»), o que confunde a cabeça do falante e o leva a usar cedilha. Esta confusão secular fez com que a pronúncia do «c» como «ts» se tornasse pedante e desaparecesse por fim. Em espanhol europeu ainda existe esta pronúncia (também do «z») e pronunciar «Cima» como homófono de «sima» é considerado um vício de linguagem.

Os pronomes oblíquos não ficam separados do verbo por hífen, simplesmente porque o hífen ainda não fora inventado. Assim temos «vioa» (viu-a), «namorousse». A duplicação do «s» (nesse e em outros casos, já indica que o «s» intervocálico estava sendo sonorizado, tornando necessário deixar claros os casos em que fosse lido como «s» mesmo.

No primeiro parágrafo nota-se a menção a «muy alto linhagem». Em português medieval, tal como em espanhol ainda hoje, estas palavras terminadas em «agem» eram todas masculinas.

O pronome «que» escrevia-se «ca», o que confere com a tendência portuguesa a pronunciar o «a» átono como um «e». O «Ll» indica o fonema que hoje se escreve com «lh» e o «lh» era outra coisa, porque o «h» entre uma consoante e uma vogal indicava uma breve semivogal. Alguns autores escreviam «mha» em vez de «mia».

Usa-se o «y» em todo lugar onde a pronúncia seja de semivogal, mas também em monossílabos tônicos («ssy»), como se verá no segundo trecho. Isso parece indicar que a letra «y» não era usada necessariamente para indicar a duração menor do fonema «i», mas para indicar que em certos contextos o «i» seria pronunciado diferente. Os dialetos portugueses preservam esse «i» mais fechado (nem sempre nos mesmos contextos do português medieval), mas nós não o temos mais.

Usa-se «h» no começo de algumas palavras começadas com o fonema «u» para indicar que ele deve ser pronunciado como vogal. Ocorre que a letra «u» ainda não fora inventada e se usava a mesma letra para a vogal «u» e para a consoante «v». Quando o «u» foi inventado, criou-se uma maiúscula redonda para combinar com ele, e essa variação redonda ficou sendo a vogal. Inventaram também uma minúscula «quebrada» para combinar com o «V» e esta ficou sendo a consoante. Em português medieval segue-se a convenção latina: usa-se «u» sempre, inclusive quando a pronúncia é de consoante: «ouuyo» é «ouviu». Mas no início da palavra, especialmente maiúscula, usava-se uma variação do «u» bastante parecida com o «v», razão pela qual em alguns parágrafos você verá a letra «v».

Por fim, além da ausência da distinção entre «V» e «u», já explicada, notem que não se usa nenhum «J», nenhum «X», nenhum «W» e raríssimos «Q».

Mas não se usava o «h» inicial nos contextos em que ele era usado em latim. O verbo «auia» (havia) deriva do latim «habere». O emprego do «h» inicial atendia a uma necessidade fonética, não etimológica.

Um caso à parte é a palavra «pee», derivada do latim «pede». Evidentemente a pronúncia desse duplo «ee» tinha um significado. É provável que as palavras com «ee» final fossem pronunciadas de forma análoga ao que fazemos hoje com as terminadas em «oo».

O verbo «ter» ainda não era muito usado. Era muito recente a lembrança de seu sentido de posse material. Em vez disso usava-se mais o verbo «haver». Diego e a misteriosa dama «ouueram» (houveram) dois filhos.

Usa-se muito a conjunção «e», à maneira bíblica, para introduzir novas frases, evitando-se o ponto final. O que era fácil de fazer, pois a pontuação atual e suas regras ainda não fora inventada. Usava-se muito os dois pontos, para indicar que uma sequencia de frases segue um mesmo raciocínio (formando o que hoje nós agrupamos em parágrafos).

Notem bem que os nossos famosos ditongos nasais ainda não existem: «prisom» (em vez de prisão). Tampouco existem quaisquer acentos, somente o til, mas ele tinha um significado diferente. Não eram necessários porque não havia proparoxítonos (já que não havia latinismos e nem helenismos, apenas palavras devidamente moldadas pela boca do povo) e nem oxítonos (a não ser as palavras terminadas em consoante, inclusive verbos terminados em «s», como «tiraras», que deve ser lido «tirarás»).

Voltando ao til, ele não é usado para indicar a nasalização de uma vogal, mas que uma consoante nasal estava em processo de perda. A palavra «alaão» não contém um ditongo, mas um hiato ao final, provocado pela perda do «n» que havia entre o «a» e o «o».

Transcrição do original

Este dom Diego Lopez era muy boo monteyro, e estando huum dia em sa armada e atemdemdo quamdo verria o porco ouuyo cantar muyta alta voz huuma molher em çima de huuma pena: e el foy pera la e vioa seer muy fermosa e muy bem vistida, e namorousse logo della muy fortemente e preguntoulhe quem era: e ella lhe disse que era huuma molher de muito alto linhagem, e ell lhe disse que pois era molher d'alto linhagem que casaria com ella se ella quisesse, ca elle era senhor naquella terra toda: e ella lhe disse que o faria se lhe prometesse que numca sse santificasse, e elle lho outorgou, e ella foisse logo com elle.

E esta dona era muy fermosa e muy bem feita em todo seu corpo saluamdo que auia huum pee forcado como pee de cabra. E viuerom gram tempo e ouueram dous filhos, e huum ouue nome Enheguez Guerra, e a outra foy molher e ouue nome dona. E quando comiam de suum dom Diego Lopez e sa molher assemtaua ell apar de ssy o filho, e ella assemtaua apar de ssy a filha da outra parte.

E huum dia foy elle a seu monte e matou huum porco muy gramde e trouxeo pera sa casa, e poseo ante ssy hu sia comemdo com ssa molher e seus filhos: e lamçarom huum osso da mesa e veerom a pellejar huum alaão e huuma podemga sobrelle em tall maneyra que a podenga trauou ao alaão em a garganta e matouo.

E dom Diego Lopes quamdo esto uyo teueo por millagre e synousse e disse «samta Maria vall, quem vio numca tall cousa!» E ssa molher quamdo o vyo assy sinar lamçou maão na filha e no filho, e dom Diego Lopez trauou do filho e nom lho quis leixar filhar: e ella rrecudio com a filha por huuma freesta do paaço e foysse pera as montanhas em guisa que a nom virom mais nem a filha.

Depois a cabo de tempo foy este dom Diego Lopez a fazer mall aos mouros, e premderomno e leuaromno pera Tolledo preso. E a seu filho Enheguez Guerra pesaua muito de ssa prisom, e veo fallar com os da terra per que maneyra o poderiam auer fora da prisom. E elles disserom que nom sabiam maneyra por que o podessem aver, saluamdo sse fosse aas montanhas e achasse sa madre, e que ella lhe daria como o tirasse. E ell foy alaa soo em çima de seu cauallo, e achoua em çima de huuma pena: e ella lhe disse «filho Enheguez Guerra, vem a mym ca bem sey eu ao que ueens:» e ell foy pera ella e ella lhe disse «veens a preguntar como tiraras teu padre da prisom.» Emtom chamou huum cauallo que amdaua solto pello momte que avia nome Pardallo e chamouo per seu nome: e ella meteo huum freo ao cauallo que tiinha, e disselhe que nom fezesse força pollo dessellar nem pollo desemfrear nem por lhe dar de comer nem de beuer nem de ferrar: e disselhe que este cauallo lhe duraria em toda sa vida, e que nunca emtraria em lide que nom vemçesse delle. E disselhe que caualgasse em elle e que o poria em Tolledo ante a porta hu jazia seu padre logo em esse dia, e que ante a porta hu o caualo o posesse que alli deçesse e que acharia seu padre estar em huum curral, e que o filhasse pella maão e fezesse que queria fallar com elle, que o fosse tirando comtra a porta hu estaua ho cauallo, e que desque alli fosse que cauallgasse em o cauallo e que posesse seu padre ante ssy e que ante noite seria em sa terra com seu padre: e assy foy. E depois a cabo de tempo morreo dom Diego Lopez e ficou a terra a seu filho dom Enheguez Guerra.

Aspectos léxicos

Conforme prometido, vamos às palavras de sentido peculiar. «Monteyro» significa caçador. Deriva de «monte», porque já na Idade Média as terras baixas estavam ocupadas pela agricultura e as florestas estavam cada vez mais reduzidas às regiões montanhosas. «Atemder» significa «esperar». A «pena» sobre a qual a mulher estava sentada a cantar é uma que você não gostaria que caísse sobre sua cabeça. É cognata do espanhol «peña», que significa «rochedo». Não pensem que dom Diego desrespeitou a moça: «namorarse» significa apenas afeiçoar-se, é o antepassado de «enamorar-se». «Pois» significa «já que» ou «uma vez que», no contexto empregado.

«Alaão» e «podemga» são raças de cães. Era costume, mesmo entre os nobres, comer com cães para jogar-lhes os ossos e, eventualmente, deixar que lambessem a gordura de suas mãos. O inesperado do acontecimento é que o podengo, um cão de caça muito manso, apesar de arisco, tenha ataco e matado um cão de guarda «alano» O verbo «filhar» (cognato do nosso atual «filar») quer dizer «tomar» ou «levar» (que é o que os filadores fazem com o que nos filam, ou «filham»). «Recudir» é «recuar» e «freesta» (do latim «fenestra») é «janela». Imagino que você já saiba que «paço» é a forma popular de «palácio» (esta palavra foi reinjetada no português depois, como um novo aportuguesamento erudito de «palatium»). «Em guisa que» significa «de modo que».

«Pesar» significa «ficar triste». O nome do cavalo significa «pardal» e a misteriosa palavra «hu» significa «onde». Por fim, não imaginemos que os mouros mantinham dom Diego em um «curral» com o sentido que hoje a palavra tem, mas sim meramente em um cercado ou paliçada (esqueçam essa história de masmorra, castelos eram caros de construir e a maioria das prisões medievais eram simples paliçadas). Dom Diego «jazia» lá mas não estava morto, visto que a palavra não tinha ainda o sentido fúnebre de hoje.

Uma observação importante diz respeito aos sobrenomes. Notem que eles não existiam. O pai se chama «Diego Lopes» (provavelmente porque seu pai era um tal Lopo), mas o filho se chama «Enheguez Guerra» (provavelmente por ser famoso no combate). Os «sobrenomes» medievais são apelidos, não tem conotação familiar ainda. As famílias nobres ainda não haviam adotado o costume de identificar-se pelo nome da vila ou feudo onde tinham propriedade, e as famílias plebeias não tinham grande necessidade de identificar-se.

Conclusão

A análise deste texto nos mostra que, se não tivesse acontecido a contaminação etimológica ocorrida entre os séculos XVII e XIX e nem o influxo de latinismos eruditos e helenismos científicos, o português seria uma língua dominada por proparoxítonos, com poucos acentos gráficos, relativamente simples de se escrever e muito mais bonita.


05
Jul 12
publicado por José Geraldo, às 21:35link do post | comentar
Cada vez que acho um poema perdido numa gaveta ou num arquivo virtual amarelado pelos bits do tempo, convenço-me mais de que nunca fui realmente poeta. Fazia versos: não é a mesma coisa. Poeta é alguém que consegue escrever de vez em quando três ou quatro linhas que embasbacam até quem não sabe o que é poesia. Eu nunca fui desses, então nunca fui poeta.

Tenho mais de 1200 páginas de poesia devidamente escrita e catalogada, dolorosamente catalogada e editada ao longo de vinte anos. Foi escrevendo tudo isso que eu me fiz como gente. Foram anos de tentativa e erro, de aprendizado. Se escrevo algo que preste hoje, agradeço a ter tentado ser poeta, mesmo sem nunca ter sido. Mas vamos ser sinceros: meus melhores poemas dariam ótimas reminiscências em prosa inseridas em contos, crônicas ou qualquer outra coisa que não seja feita em versos.

Então tenho de cometer este ato de pública contrição: meus versos são umas porcarias. Não vou mais publicar poesia nenhuma em vida: o que escrevi ficará para as obras póstumas. De vez em quando vou incomodar os meus leitores com algum poema aqui no blog, claro, mas apenas porque postar poesia ruim é uma maneira de testar a fidelidade deles: os que não suportarem, é porque não gostavam suficiente de ler o que escrevo.
assuntos:

mais sobre mim
Julho 2012
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3
4
5
6
7

8
9
12
13
14

16
18
19
20
21

22
23
25
26
28

30
31


comentários novos
Ótima informação, recentemente usei uma charge e p...
Muito bom o seu texto mostra direção e orientaçaoh...
Fechei para textos de ficção. Não vou mais blogar ...
Eu tenho acompanhado esses casos, não só contra vo...
Lamento muito que isso tenha ocorrido. Como sabe a...
Este saite está bem melhor.
Já ia esquecendo de comentar: sou novo por aqui e ...
Essa modificação do modo de ensino da língua portu...
Chico e Caetano, respectivamente, com os "eco...
Vai sair em inglês no CBSS esta sexta-feira... :)R...
pesquisar neste blog
 
arquivos
subscrever feeds
blogs SAPO