Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
29
Ago 12
publicado por José Geraldo, às 20:40link do post | comentar
A memória especial de a ter beijado um dia
se apagou de mim sem pressa e sem pensar.
Rostos pálidos pintados em paredes brancas,
fadas esqueléticas que voam nuas pelo ar
— o passado é só mais uma entrega que faltou.

Eu podia ter perdido toda esta carne um dia,
e podia ter vendido até a vida desta casa,
mas só deixei levarem os meus sonhos embora
em embrulhos secos, cortados em pedaços
— se eu esquecesse tudo em que cria
então talvez eu poderia entender
a solidez das coisas e suas velocidades.

Espíritos malignos aparecem no terreiro um dia,
parecem vigiar enquanto os vizinhos superiores
armam algazarra no jantar à luz de tela.
Cabeças humanas jazem mudas sobre ombros
e vozes de mortos se expressam, murmuradas,
filtradas pelas paredes finas e o ar espesso.

Endureceu a liquidez com que se transbordava
uma alegria pequenina que ainda se agarrava
nas bordas do penhasco enquanto eu olhava.
Ficou a poça de alegria, tristemente transformada
na imagem da saudade que passou de ontem
e não me vale mais de nada.

As frases se achatam com seu peso contra mim,
ouço enquanto me atingem com essa culpa.
Tudo que passou foi minha arte, tudo parte
e a tarde seca sopra e arde pó vermelho por aí.
E por aí se perde um aparelho antiquado,
incomprimível de já tão pisado, se o encontram
vão achar até que eu queria preservá-lo.

22/11/1995 + 24/08/2012
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21
Ago 12
publicado por José Geraldo, às 22:22link do post | comentar | ver comentários (2)

Júlio era um “programa humano”. Esse era o nome pelo qual os líderes do Magistério Supremo os chamavam. Pessoas cujos cérebros haviam recebido, ao longo de uma vida inteira, informações subliminares destinadas a prepará-las para o momento em que o Grande Mestre resolvesse usá-las. Todos sabiam que os programas humanos eram amplamente conduzidos na Terra inteira e muitos os odiavam, mas vivia-se um tempo em que até odiar o Magistério já se tornara algo cuidadosamente controlado, pelo Magistério.

Sempre tivera a impressão de que o programa que recebia sem perceber toda  vez que ia à Escola, especialmente nas vezes em que estava só na Biblioteca, era de um tipo diferente, mais importante. Diziam que ele era apenas um convencido, mas ele nunca se importara: durante anos esperara pelo momento do Chamado, que nunca parecia vir. Até o dia em que o Mestre Local o chamou, instruiu-o a limpar os sapatos corretamente e vestir uma roupa mais casual, e então lhe destinou à mais difícil de todas as missões: Encontrar e Destruir o Último Reduto dos rebeldes.

Ninguém sabia onde ficava o Último Reduto. Esta era uma informação mantida em absoluto segredo pelo Magistério, supondo-se, é claro, que o próprio Magistério saberia. Mas o Magistério, logicamente, sabia tudo. Ou talvez não. Por um momento a certeza de Júlio quanto à Verdade dos Ensinamentos vacilou, mas ele se livrou de tais hesitações, argumentou contra sua falta de objetividade e começou a tentar lembrar os detalhes da missão, a fim de reencontrar sua identidade. Ao mesmo tempo, tentava detectar onde estava, saber se tinha chegado ou não ao seu destino.

Saíra da Terra em uma nave Columba-III, subluminal, como todas que ainda se construía. Alguns diziam que no passado houvera naves capazes de viajar acima da velocidade da luz, provavelmente uma lenda plantada pelos rebeldes. Ou talvez os humanos  estivessem perdendo seus antigos conhecimentos. Novamente Júlio sentiu o calafrio da dúvida. “Isto não é possível: sob a condução do Magistério o Conhecimento se multiplica.” Era uma frase feita, programada em sua mente desde a mais tenra infância. Uma frase que lhe dava conforto.

Ao despertar se sentira saindo de um sono de séculos, mas não se lembrava quanto tempo dormira. Na sua mente não havia noite anterior, nem planos para depois de acordar, o que era muito estranho, mas se lembrava que seu nome era Júlio e tinha uma missão: Encontrar e destruir.

Superou a força das lembranças e tentou acostumar-se com a luz abundante. Olhou em torno, mas da cama em que estava deitado não conseguia ver quase nada. Eram paredes verde-pálidas, inodoras. A janela, estranhamente pesada e tosca, não parecia de plástico nem de alumínio. Algum material estranho, meio esponjoso e não totalmente rígido. Estava fechada, bloqueando toda a luz, exceto por furinhos na parte superior, pelos quais se filtrava uma réstia azulada. O quarto era mobiliado apenas pela cama e por uma espécie de roupeiro feito do mesmo material da janela, diferentemente da cama, que parecia ser de aço, embora não muito puro.

Tentou erguer-se e descobriu que estava amarrado pelos tornozelos e suas mãos estavam presas à cabeceira e modo que não pudessem alcançar os pés. Esta descoberta o fez ficar sobressaltado.  Positivamente não o reconheciam como um Aluno. Conseguira reencontrar sua identidade. Isto lhe fez sentir-se melhor. Era um Aluno, mas havia sido tornado em Mensageiro. Mensageiro da Morte. Tinham-no enviado em animação suspensa dentro de uma nave automática do tipo Columba-III, para encontrar e destruir o Último Reduto dos Rebeldes.

Então perguntou-se onde estava: Tinha chegado ao Último Reduto? Tinha retornado à Terra? Ou estava delirando em seu profundo sono criogênico, talvez por indução de um processo de eutanásia desencadeado pelos sistemas automáticos da nave? Ainda precisava de mais informações para decidir no que crer. Então lembrou-se que não podia estar morto, não de acordo com as Lições. Se estivesse, deveria estar no Céu dos Heróis, sendo recebido por Deus.

Ouviu vozes aproximando-se. Como furtivo mensageiro, recolheu-se em uma posição relaxada e fingiu dormir.

Eram dois: um homem e uma mulher. Entraram no quarto. Com os olhos fechados, não conseguia vê-los, restava-lhe ouvi-los e sentir seus cheiros.

O homem tinha um cheiro estranho, ardido, lembrava alguma das fragrâncias padronizadas, mas não exatamente. A mulher era quase inodora, a não ser pelo distante e ácido perfume de alguma coisa que ele nem sabia o que era. Ambos falavam em voz baixa, pausada, mas ele não conseguia entender uma só palavra do que diziam. As palavras vinham ao seu ouvido como uma algaravia qualquer, mas as entonações não deixavam dúvida de que havia um diálogo racional e contido.

Sentiu a algo frio em sua axila direita: estavam-lhe tomando a temperatura. Outra mão o apalpou no abdômen. Entre risos, a voz masculina comentou alguma coisa talvez relacionada às microscópicas reações de seu corpo ao toque daquelas mãos estranhas.

Uma mão feminina o tocou na barriga. Reuniu todas as suas forças para tentar se segurar, fingir ainda que estava a dormir para tentar captar informações. A mão feminina, atrevidamente, deslizou para debaixo do lençol, em direção aos Lugares Interditos. Então foi impossível manter-se quieto. Fingiu acordar.

Estava diante de duas pessoas de aparência saudável, mas não muito natural. A mulher era loura e corpulenta, com seios avantajados. O homem era um tanto atarracado, grisalho e de poucos cabelos. Júlio nunca vira ninguém calvo. Devia estar em alguma região bastante remota, onde o Magistério é menos atuante e as pessoas chafurdam na ignorância.

Lembrou-se de estar em sua nave, em missão. Finalmente sua mente confusa completou o raciocínio suficiente para dar-se conta de que não se lembrava do dia anterior, nem dos anos anteriores, nem das décadas anteriores. Não havia o que lembrar. Passara décadas, talvez séculos, dentro de uma nave subluminal Columba-III, em busca de algum lugar perdido no cosmos onde estivesse o Último Reduto dos Rebeldes. Que deveria encontrar e destruir, de alguma forma que somente o programa posto dentro de si saberia lhe indicar.

Os visitantes o deixaram só. Por algumas horas permaneceu desastrosamente só naquele quarto isento de estímulos. A cabeça lhe doía, as pernas se revoltavam querendo levantar, as costas pareciam passadas em uma lixa. E do lado de fora, aqueles doces mas irritantes pequenos ruídos semi-musicais que iam e vinham, martelando seus ouvidos.

O que mais lhe deixava confuso era a profundidade da amnésia que lhe sobreviera durante a viagem. O destino para o qual sua nave fora programada  era distante para uma vida humana, mas os sistemas de suporte eram suficientes para mantê-lo vivo e saudável por mais que o dobro do tempo da viagem. E deveria acordar suavemente algumas semanas antes do pouso, estar pronto para descer desperto e cumprir sua missão. Mas não conseguia mais lembrar qual exatamente a sua missão. Sim, chegar até o Último Reduto. Mas e depois? O que um homem só poderia fazer para destruir um planeta?

Algumas horas depois recebeu outras visitas. Várias visitas. O homenzinho calvo trouxe cinco outros consigo, inclusive duas mulheres macérrimas e autoritárias, que, no entanto, o olhavam de longe, quase com medo. Por quase vinte minutos conversaram entre si naquela língua diabólica, ao mesmo tempo tão foneticamente próxima, tão musical, mas tão diferente de tudo que ouvira. Algumas vezes as frases pareciam encadear-se, quase fazendo sentido, mas depois degringolavam em longos pântanos inflados de consoantes.

Tinha a certeza de que seu destino poderia ser decidido por aquelas pessoas. A percepção de que o assunto era sério lhe dava um desconforto profundo. Uma vontade de pegar sua arma portátil e acioná-la. Mesmo tendo sido desenvolvida apenas como um  método de suicídio ritualístico, ela poderia causar um bom estrago naquela gente, se disparada a uma curta distância. Mas não seria com um tiro de pistola que destruiria o Último Reduto, por isso se conteve.

Por fim, um dos visitantes determinou alguma coisa que os demais concordaram como apropriada. A consequência disso, minutos depois, foi removerem as amarras que o mantinham preso à cama. Ao se mexer, então, descobriu que estava vestido apenas com uma espécie de roupão de tecido fino, mas engomado a ponto de ficar duro. Seu primeiro impulso foi o de atacar aqueles homens e desfigurá-los a unha se fosse preciso. Mas sua racionalidade, mesmo sob o efeito de anos de condicionamento, lhe dizia que demonstrar imediata hostilidade seria inapropriado, pelo menos enquanto não soubesse onde estava ou, mais importante, onde estava a bomba. Se é que havia uma bomba capaz de matar um planeta.

Levantou-se e começou a tentar caminhar pelo quarto. Haviam sido tantos os anos, ou séculos, que seus músculos estavam presos, tentavam desobedecer à sua ordem de levar o corpo a algum lugar. Algo dizia que demoraria ainda muito tempo a conseguir sair daquele quarto. Algo lhe disse que tentar atacar aquelas pessoas teria sido inútil e teriam interpretado sua hostilidade como um simples esforço de convalescente para erguer-se da cama.

Mas conseguiu caminhar depois de alguns momentos penosos, momentos durante os quais se sentiu como Bambi aprendendo a andar. A lembrança do filme que vira tantas vezes lhe deu mais determinação. Por fim, certificando-se de que não estava demasiadamente nu, resolveu sair pela porta, ver o que havia lá fora.

Durante todo este tempo os seis visitantes apenas observaram. Com curiosidade, como se ele fosse apenas um animal inofensivo. Será que não imaginavam que ele era o Mensageiro da Morte enviado pelo Supremo Magistério?

Abriu a porta e tentou caminhar pelo corredor. Era longo, pavimentado de ladrilhos cinzentos e gastos. Estava vazio e conduzia a um pátio iluminado pela mesma luz azul que filtrava pelos furos na janela do quarto. Seguiu apoiando-se na parede onde fosse necessário. Os seis o seguiam. Ao chegar ao pátio percebeu que era um estranho hospital o lugar onde estava: além de praticamente vazio, terminava em um jardim quase irreal.

O jardim era coberto por uma vegetação uniforme, verde-azulada. A intervalos regulares havia bancos pintados de branco-azulado nos quais os pacientes tomavam sol. O sol!

Ao vê-lo, pôde ter a certeza de que não estava na Terra. Não poderia estar, de forma alguma. No céu havia um grande sol vermelho, de brilho fraco e tamanho angular maior que o da Lua. A pino estava outro, este fortíssimo, azulado. Um sistema duplo? Ou apenas uma estrela vermelha localizada nas proximidades de uma gigante azul? Rígel! Era essa a lendária destinação dos Últimos Rebeldes. Aquele planeta era o Último Reduto! Havia chegado ao destino!

Não conseguiu segurar a felicidade. Ajoelhou-se naquele estranho gramado macio e gritou a plenos pulmões: «O Mensageiro Chegou para os Últimos Hereges!» Mas ao se levantar sentiu a boca amarga e a alma vazia, como um papel de bala que alguém descartou. Não conseguia entender o que devia fazer.

Uma mulher, de aspecto envelhecido, mas ainda bonita, voltou-se em sua direção. Estava, como várias outras pessoas, sentada num dos banquinhos azulados. Ela o olhou fixamente, por um momento, depois soltou uma gargalhada. Que irreverência! Uma rebelde insolente zombando de um Mensageiro da Morte! Júlio anotou mentalmente que a estrangularia com suas próprias mãos, tão logo tivesse novamente força nas mãos, antes de detonar o explosivo e acabar com aquele patético planeta.

Mas a mulher não se impressionou. Levantou-se de onde estava e veio em sua direção. A dois passos dele ela se deteve e fez o sinal secreto! Ela era uma irmã! Uma Mensageira também!

— Há quanto tempo está aqui, irmã?

Entre os iniciados não há necessidade alguma de formalidades. Mas ela não reagiu da mesma forma que esperara:

— Creio que uns dois anos, irmão, mas não deveríamos nos saudar antes?

Júlio se sentiu confuso. «Saudar» não era algo lhe fora ensinado como importante. A menos que ela fosse uma Mestra, mas ela só poderia ser, naquele tempo e lugar, uma Mensageira, como ele.

Deu-se conta, então, do estranho sotaque daquela mulher. Parecia pertencer a uma outra época, décadas ou séculos antes.

— Está aqui há tanto tempo e ainda não destruíste o Último Reduto?

— Não. Por que eu o destruiria?

— Esta é nossa missão. Para isso fomos enviados.

Ela gargalhou de novo, mas desta vez Júlio percebeu que era uma risada tão amarga quanto a bílis que lhe chegava à boca e o fazia querer vomitar.  Um brilho rutilante apareceu em seus olhos. Então ela se aproximou dele, de uma forma que os Mensageiros são ensinados a não fazer, pôs-lhe a mão no ombro e aproximou seu rosto. De alguma forma esse gesto não lhe causou a repulsa que deveria. Então ela sussurrou:

— Estou aqui há tanto tempo que nem me lembro mais.

Um Mensageiro não deve ter sentimentos de compaixão ou pena. Mas Júlio teve, mais por pressentimento, mais por senso de pura profecia, do que por realmente ter alguma empatia com a pobre.

Depois de tentar infrutiferamente comunicar-se com alguns dos outros que vagavam pelo jardim, retornou ao banco onde encontrara a mensageira. Ela ainda estava lá, os olhos protegidos do brilho selvagem da estrela miravam uma planta que parecia crescer a olhos vistos, ou apenas se agitava ao vento. Vento, a primeira vez em anos. Quando ventara pela última vez em sua vida? Todas as coisas boas da vida acontecem quando está ventando, lhe dissera uma tia, quando ainda era menino, quando nem fora selecionado. Duvidara dela: não ventara no dia em que seguira para a Escola.

— Irmã, que lugar é esse onde estamos? O que vamos fazer?

— Irmão — ela disse — tente se acostumar com a ideia de que está morto.

— Eu não estou morto!

— De uma certa forma sim. Eu e você estamos, somos Mensageiros da Morte.

— Sim, o Mensageiro morre para o mundo e nasce para Deus no exato instante em que se dedica.

— Não, irmão. Somos Mensageiros da Morte não mais porque a trazemos, mas porque viemos do Reino da Morte.

Não compreendo, irmã. Isto é uma heresia.

Ela lhe apontou para cima:

— Este não é o sol, e esta noite não terá as estrelas que você conhece.

— Sei disso, irmã, esta é Rígel, a gigante azul.

— Não, irmão, não é. É uma estrela azul, jovem e forte, mas não aquela que nos disseram. Esta é a estrela que iluminará o futuro da humanidade.

Seria possível? Algo dentro de si ainda se recusava a crer.

— Continuo não entendendo, irmã.

— A Terra, querido irmão, a Terra já não existe mais. A única humanidade que resta é a que a Terra rejeitou, a que colonizou as estrelas. E cá estamos, relíquias de um planeta morto, mortos andando entre os vivos, portando lembranças de um mundo que eles não conheceram. Irmão, eles nem sequer sabem que nós os odiamos.

— Isto é ótimo. Significa que não suspeitam de nada. Vamos agir.

Júlio havia sido programado muito bem, mas suas tentativas de dar prosseguimento ao programa eram apenas um disfarce para a confusão e o pavor que começavam a ser formar em sua mente. Talvez a distância do Magistério, o tempo passado no bojo de uma nave-baleia, como um Jonas tecnológico, não por dias, mas por séculos ou milênios, ou talvez as drogas desconhecidas que os médicos daquele lugar que lha haviam dado. Alguma destas coisas estava minando a frieza que lhe fora ensinada: começou a tomar consciência de coisas que sempre soubera, mas que nunca realmente assimilara. Sua viagem era sem volta, seu destino era a morte. Matar e morrer, ou apenas morrer. Aqueles que o enviavam sequer teriam o prazer de ver destruída a civilização herege. Seu projeto não tinha nenhuma dedicação real, era apenas um ritual vazio. Viera destruir um planeta, munido de uma pistola. Nunca lhe disseram nada sobre viver depois, sobre encontrar alguém ou tentar aprender uma língua nova. Não tinha consigo sua arma nem os seus implantes de lavagem cerebral. Sentia-se desprotegido e alienado, obrigado a pensar por si. E com que dureza pensava, ajudado por implantes biônicos que o faziam ter mais memória, pensar mais rápido, entrar em loops confusos de processamento os quais somente chutes irracionais solucionavam.

— O que você está fazendo aqui?

— Tentando aprender a língua deles, para convencer-lhes de que não sou louca.

— O que fizeram com a bomba?

— Venha comigo, vou lhe mostrar.

O hospital tinha apenas uma cerquinha baixa, do mesmo material das janelas. Nada impedia que se entrasse ou saísse, como se naquele mundo entrar e sair fossem coisas somente feitas quando e onde permitido. Mas a Mensageira não o levou para fora, mas para um canto do pátio onde havia um depósito de pedaços retorcidos de metal. Entre eles alguns cascos de bombas.

— Desde que aprendi a falar um pouco a língua deles, irmão, eu consegui entender alguma coisa.

— Se já sabe falar a língua deles...

— Falta-me convencer-lhes de que não sou louca.

— Quer ouvir o que descobri?

Júlio não queria. Queria matar alguém, queria destruir um planeta. Queria cumprir a missão de sua vida. Queria chorar porque de repente se dava conta de que não tinha sua vida, não tivera. Mas uma avassaladora impotência o dominava, talvez efeito daquele maligno sol azul. De repente não ouvia mais nem a irmã, nem a grama crescendo, nem as pessoas passando, nem o próprio coração batendo. Um escuro o cercou e o deitou no chão. No conforto calmo do chão. Mas não era o chão seguro da velha Terra, mas pedra dura de um chão alienígena, onde nem podia morrer em paz.

***

De trás das grossas janelas de vidro da sala de gerência o Doutor Pankoff observa o novo paciente interagindo com os demais. Seus colegas o observam, com um ar de seriedade científica mesclado a uma forma adulterada de compaixão.

— Quantos esse mês, doutor?

— Este foi só o segundo. Mas no mês passado tivemos nove.

— Não é curioso que tantos tenham aparecido em tão pouco tempo?

— Se os cálculos de nossos Antepassados estiverem certos… — os demais o encararam com reprovação pela ousadia, mas ele continuou — é de se esperar que esta onda Mensageiros da Morte recrudesça dentro de alguns anos.

— Eu nunca entendi este cálculo.

—  Nem eu. Por isso o benefício da dúvida. Afinal, não sou astrofísico. O que sei é que esses centenas de Mensageiros da Morte estão começando a se tornar um problema social. No começo eles chegavam tão raramente que quando aparecia outro o primeiro já estava morto ou muito velho; eles envelhecem cedo, como vocês sabem. Agora nós temos duzentos e quarenta pobres diabos mentalmente imaturos e confusos que se acham Destruidores de Planetas andando pelo jardim usando pantufas de lã e jalecos de algodão. Nenhum deles utilizável em qualquer atividade econômica, mas ninguém sonharia em simplesmente matá-los.

— Não é isso que nós fazemos. De forma nenhuma o fazemos. São seres humanos, primitivos, mas humanos.

— Mais do que isso: eles são um reservatório genético importante, de uma época em que nosso genoma ainda não havia sofrido influência da química deste planeta e dos raios de Rígel. Logo estaremos migrando para um lugar mais seguro, porque esta menina aí — ele indicou a estrela com o queixo — deverá esterilizar uma ampla região do espaço dentro de uns poucos milhões de anos.

— Mas para esta finalidade que o senhor está pensando, Doutor Pankoff, as amostras de sangue e cabelos coletadas já resolvem o problema… — atalhou uma Doutora Lamar de nariz adunco e expressão de quem seguramente jamais tivera um orgasmo na vida.

— Não exatamente da melhor maneira – insinuou Pankoff.

O Doutor Jones observou que, de fato, o genoma sintetizado perdia parte de suas características. Suas melhores características — observou Pankoff. Os outros fizem um constrangido silêncio, entre a reprovação e a incredulidade.

Quando todos saíram, após o esfriamento do assunto, o calvo médico se sentou em sua poltrona giratória à beira da janela e contemplou os pacientes, segurando entre os dedos, escondidos dentro do profundo bolso do jaleco, uma estranha medalha de resina que atravessara anos luz de espaço.

No jardim a conversa da Irmã com o recém chegado terminava. Ela vinha para a ala central sozinha, enquanto o apatetado novato caminhava sem rumo pelo gramado. Pankoff retirou do bolso a medalhe e contemplou nela a empalidecida imagem tridimensional de Alice. Pobre Alice. É lamentável que os padrões genéticos dos terráqueos lhes permitam viver tão pouco…


13
Ago 12
publicado por José Geraldo, às 19:27link do post | comentar
Certo escritor nativo de minha cidade natal tinha o hábito de responder, sempre que lhe perguntavam insistentemente se já havia lido o livro de algum jovem autor revelado recentemente, ou os originais submetidos por algum amador: «Eu ainda não tive tempo para terminar de ler Platão [ou Joyce ou Dostoiévski ou algum outro clássico] e você acha que eu já tive tempo de ler isso aí?» Lem­brei desta frase quando hoje tomei conhecimento da iniciativa Movimento em Prol dos Escritores Brasileiros Desconhecidos, divulgada pela Laura Bacellar (que me é tão desconhecida quanto eu devo ser para ela).


Existe um abismo conceitual e humano entre as duas posições. A primeira revela o pragmatismo de alguém que certamente valoriza a qualidade indis­pu­tá­vel dos trabalhos que sobreviveram ao teste do tempo, a segunda prefere a novi­dade. A primeira desconsidera o escritor enquanto ser humano dotado de emo­ções (que o levam, por exemplo, a pegar o seu original e submetê-lo ao crivo de alguém que tem fama de ser mal educado), a segunda se preocupa com tanta gente que está nas sombras enquanto o sol brilha lá fora. A primeira revela auto­ridade, no caso uma autoridade irrelevante, e a segunda revela empatia. Nenhuma das duas contém em si um juízo de valor sobre o que afirma priorizar, pois quem ainda não leu certo autor não tem base para emitir uma opinião sobre ele e quem prioriza os jovens talentos por serem jovens certamente está, entre os tra­ba­lhos lidos, dando atenção imerecida a alguns que mereciam mesmo a som­bra em que vegetam.

Em um mundo ideal não existiriam pessoas medíocres que humilham as outras através de comparações com o inatingível, especialmente considerando que o pró­prio autor em questão jamais esteve, nem jamais estará, aos pés do mais reles dos clássicos cujos nomes nos foram legados dos séculos anteriores. Mas tam­bém, em um mundo ideal, um trabalho não deveria merecer atenção apenas por ser novo. A verdade é que os livros, como quase todos os produtos culturais, são jul­gados principalmente por fatores extrínsecos: capas, temas da moda, sobre­nome do autor, vinculação a uma obra audiovisual, reputação (boa ou «nega­tiva»). Não acredito que a resistência que os novos enfrentam se deva à novi­dade, ou as pessoas estariam comprando os clássicos às toneladas, em vez de lerem J.K. Rowling e Augusto Cury. A questão é, na verdade, um problema de mar­keting.

Quando digo «marketing» eu não estou, de maneira nenhuma, querendo por qual­quer tipo de culpa no autor. Escritores escrevem, revisores revisam, editores edi­tam. Em um mundo ideal autores não editam, revisores não reescrevem e edi­tores não revisam. Mas não vivemos em um mundo ideal, vivemos em um mundo onde a realidade é o imperialismo cultural mal disfarçado, que faz com que uma composição de adolescente mal escrita adquira um status de best-seller em nosso país, mas as nossas próprias composições são encaradas de nariz tor­cido. Ianques e britânicos têm o direito quase exclusivo de escrever certos gêne­ros, e se você quiser praticá-los deverá, no mínimo, ambientar suas histórias fora do país ou anglicizar os nomes dos personagens. Na melhor das hipóteses, pelo menos fuja de nomes muito acentuados, como Conceição, Sebastião, Estêvão ou João. Esse é o mercado em que precisamos nos inserir: é um mercado pre­con­cei­tuoso, racista (ou, no mínimo, anglocêntrico), unilateral (por objetivar subjugar-nos, em vez de assimilar-nos) e amparado em uma imensa indústria cul­tural a que estamos todos expostos desde a mais tenra infância. Querer cul­par o autor tupiniquim por sua «falha» em atingir esse mercado é uma culpabi­li­zação descarada da vítima.

Portanto, quando a Laura Bacellar fala em valorizarmos o trabalho dos jovens auto­res — comprando-os, lendo-os, recomendando-os, falando deles, doando-os a bibliotecas etc. — ela está propondo uma atitude anticíclica. Considerando quão pequeno é o mercado editorial brasileiro (a ponto de obras se tornarem famo­sas por venderem poucas dezenas de milhares de exemplares) e tendo em vista o crescimento acelerado de nosso mercado consumidor nos últimos dez anos (que, infelizmente, ainda não teve impacto suficiente sobre as vendas de pro­dutos culturais, como livros) o que ela está propondo é capaz de fazer mesmo a diferença. Um número relativamente pequeno de adesões (alguns milhares) pode produzir algumas «marolas» de interesse, que levarão a pequenas mudan­ças de curso. À medida em que alguns resultados começarem a aparecer, talvez as editoras percebam que comprar o original de um autor brasileiro é mais lucra­tivo do que pagar os direitos autorais de uma obra estrangeira famosa e ainda custear tradução e revisão. Nesse dia os nossos autores deixarão de estar em desvantagem tão grande contra os enlatados. Continuarão tendo a pena­li­dade de serem menos conhecidos, mas serão mais baratos. Sendo lucrativos o bas­tante, isso já pode abrir inúmeras portas que hoje estão fechadas.

Agora, sinceramente, eu espero que estas portas venham a ser abertas para gente que escreve bem, o que exclui a maior parte da turminha que anda escre­vendo no Orkut e no Facebook.

11
Ago 12
publicado por José Geraldo, às 19:39link do post | comentar | ver comentários (3)
Esta semana, enquanto discutia a opinião de Paul Rabbit sobre James Joyce, acabei, sei lá como, psicografando Clarice Lispector. Se eu fosse espírita, esse seria um dos momentos em que eu me orgulharia de minha mediunidade. Com a vantagem de que o texto que escrevi expressa, praticamente sem ressalvas o pen­samento da autora — muito diferente das psicografias da moda, que em geral tem tanto a ver com a obra do autor espiritual quanto o proverbial ânus com as calças. Refiro-me a esta declaração de Clarice, numa de suas últimas entrevistas (agra­decimento a Victor de Toledo Stuani por me repassar o link e a transcrição):
"Eu não sou uma profissional, eu só escrevo quando eu quero. Eu sou uma amadora e faço questão de continuar sendo amadora. Profissional é aquele que tem uma obrigação consigo mesmo de escrever. Ou então com o outro, em relação ao outro. Agora eu faço questão de não ser uma profissional para manter minha liberdade."
Clarice estava se referindo ao papel que todos esperam que o profissional exerça, não só em relação ao nicho literário em que foi inserido ao longo do tempo, mas também em relação às opiniões e imagem que precisa manter em relação ao sistema. As mesmas ideias de Clarice eu expressei assim:

Equal é exatamente a diferença entre um escritor amador e um profissa? Pode parecer pouca, mas pare e pense, pense muito bem. Um autor amador como eu é um franco atirador. Eu escrevo o que quero, como quero. Publico no blog por­que quero, procuro editora na medida do possível e vou levando. Não preciso da litera­tura para nada além de satisfação pessoal (o que inclui o sonho de alguém algum dia notar que sou um gênio incompreendido e assinar comigo um con­trato de milhões de dólares e me dar um título honoris causa da Sorbonne).

Por isso eu posso ousar. Se ficar ruim, é porque é um trabalho amador. Se ficar bom, tapinhas nas costas e nem um centavo de reconhecimento. Posso também cri­ticar quem quiser, o quanto quiser (e bobo é quem se achar atingido por estas crí­ti­cas a nível pessoal), sabendo que minhas críticas «valem quanto pesam», ou seja, serão julgadas pela sua propriedade e não pelo meu currículo inexistente.

Não é a mesma coisa para um profissional. Ao se dedicar a literatura como meio de vida, como fonte permanente da grana que compra seu feijão (ou seu caviar, depen­dendo de quanto venda) o autor profissional passa a depender de vendas regu­lares. Isso inclui definir seu estilo, encontrar seu nicho, cativar seu público, etc. Não espere que um autor de FC, por exemplo, dê uma veneta de escrever poesia erótica, ou que um autor regionalista se meta a fazer FC hard. Eles até podem querer isto, mas o mercado não quer, o público leitor preconceituoso não quer. Poucos leitores de Stephen King leriam contos românticos de sua autoria. Pou­cos fãs de FC levariam a sério uma space opera de autoria de Rachel de Queiroz.

O mesmo se aplica às críticas: quando um autor famoso e profissional fala sobre lite­ratura as pessoas imaginam um mestre falando ex cathedra. Esse peso extra que as pessoas dão às opiniões dos profissionais faz com que elas não valham ape­nas o quanto pesam, valem o peso da vendagem, dos contratos, da publi­cidade, dos diplomas (mesmo honoris causa). Uma estupidez dita por um acadê­mico é estudada na imprensa. Uma crítica muito apropriada feita por um amador como eu será sempre entendida como uma ousadia inadequada. «Quem é você, seu bosta, para falar mal do livro do fulano?»

Isso significa que o autor que deseja ser profissional precisa começar a censurar-se. Precisa começar a enquadrar-se. «Erotismo demais para uma obra juve­nil», «ficção científica ambientada no interior de Minas Gerais é uma coisa ridícula», «ninguém está interessado em sua autobiografia». E o que já conse­guiu precisa policiar-se: «não fale mal de fulano, porque ele é um editor impor­tante», «faça algumas críticas elogiosas a sicrano e aumente suas chances de ir para a Academia»,«não diga uma coisa dessas, que isso pode ofender os res­pon­sáveis pelo sistema educacional».

Paul Lapine tem, entre suas raras qualidades, a liberdade de atacar o sistema. Porque o sistema foi lamber suas botas para dar um sopro de vida a uma Aca­demia caquética, cada vez menos relevante culturalmente e inflada de autores de nulo valor (como José Sarney (devidamente posto em seu lugar por Millôr Fer­nandes), Ivo Pitanguy (enquanto literato é um ótimo médico), Merval Pereira, Marco Maciel, Nélson Pereira dos Santos (apesar de ser um bom cineasta) e Eva­risto de Morais Filho. A verdade é que, por mais que eu deteste o trabalho de Pavel Krolik, ele é mais importante para a literatura do que todos esses juntos, e com um nariz de vantagem. Isso lhe dá a ousadia de falar mal de um dos santos do cânone ocidental, traduzido ao português por ninguém menos que Antônio Houaiss.

Minha opinião sobre Joyce, idêntica à de Paul Kaninchen, jaz amparada no sagrado direito de dizer bobagens que assiste aos amadores. Nós somos livres para não gostar do que não gostamos, não temos a obrigação de elogiar o que nos enfastia. Não somos maridos da grande literatura para suportá-la a todo custo.

Continuo, porém, mantendo a minha opinião sobre Ulysses, e não é um crítico britânico especialista em Joyce que vai me intimidar. Certamente há pessoas que gostam de Ulysses, tanto quanto há quem goste de vela quente e chicotada nas costas. De gustibus non eramus disputandum.

Há, porém, uma diferença fenomenal entre a opinião do Paolo Coniglio e a minha: eu desgosto de Joyce enquanto leitor, pois esse não é o tipo de literatura que me comprazo em ler (mas reconheço que Ulysses possui boas ideias, mistu­radas com outras horríveis e outras medíocres). Já o Pablo Conejo desgosta dele com a «otoridade» de um acadêmico, e um acadêmico precisa entender que nem todas as obras foram feitas para serem lidas pelo grande público, nem todo autor é assunto para se conversar na padaria. Se alguém me desancar pela minha opinião eu aguento o tranco sozinho e me refugio, acuado, na desculpa de que sou só um leitor, que também amadoristicamente escreve e palpita, mas o desancamento do Paul Konijn pelo crítico inglês salpica na Academia que o elegeu porque sugere que o mago é um simplório, um tosco, alguém que se iguala ao leitor de tabloides. Para vender ao leitor de tabloides, diga-se de pas­sa­gem. Um mercenário.

Na qualidade de não acadêmico e de amador, eu ainda tenho tempo de dizer boba­gens e não tenho assessoria que me impeça. O mesmo não se pode dizer de Paul Lapine, o prestidigitador. Que está começando a enfrentar, lá fora, o mesmo nível de rejeição nos meios literários de que já desfrutava por aqui. A ABL ainda se arrependerá de tê-lo eleito, mas não antes de arrepender-se de ter eleito o Merval.

URUBUSERVAÇÕES: Não é curioso que a ABL eleja com tanta facilidade polí­ti­cos e personalidades de direita, mesmo com nulo valor literário (além dos cita­dos, a Academia também já agraciou um general da Junta, o Aurélio Lira Tava­res, mas ignorou solenemente o Carlos Drummond de Andrade, que, afinal, era comunista).

Utilizei pseudônimos poliglotas para o autor em questão por duas razões. Pri­meiro porque ele é mais reconhecido por vender no mundo inteiro do que pelo valor de suas obras. Segundo que ele disse as bobagens que disse para se pro­mo­ver, obviamente, e eu não quero ajudar a encher a sua bola, nem mesmo se isso encher a minha também. Na qualidade de amador, reservo-me o direito disso.

08
Ago 12
publicado por José Geraldo, às 20:18link do post | comentar
Um breve levantamento histórico-cultural do vermelho (e da «ruividade») feito a pedido de uma amiga de cabelos encarnados.
As guirlandas e cachecóis vermelhos eram parte de costumes do casamento em muitas culturas. O vestido vermelho do casamento era moda em Nuremberg no séc. XVIII, mas esta tradição é desde as épocas romanas: As noivas romanas eram envolvidos em um véu vermelho impetuoso, o flammeum, para trazer amor e fertilidade. Os noivos gregos, albanianos e armênios ainda hoje usam véus vermelhos. Os nubentes chineses estão trajando vestimentas vermelhas para o casamento e são carregados durante a cerimônia numa maca vermelha. Os vizinhos trazem ovos vermelhos aos pares depois que uma criança é carregada.

A rosa vermelha é o símbolo do amor e da fidelidade. De acordo com a lenda grega as rosas vermelhas surgiram do sangue de Adonis que foi morto por um varrão selvagem em uma caça. Na mitologia grega a rosa era um símbolo para o ciclo do crescimento e da deterioração, mas também para o amor e a afinidade. A rosa vermelha era também dedicada a Afrodite, deusa grega do amor e à filha de Zeus e também a deusa romana Vênus. Por isso, ainda hoje, os casais de apaixonados se dão rosas vermelhas, que evocam afrodite, e não rosas brancas, que evocam Perséfone. Nenhuma namorada deseja a sorte de Perséfone, coitada. No Cristianismo a rosa vermelha é associada com a cruz e o derramamento de sangue (suplício).

Os israelitas, em épocas bíblicas, pintaram seus batentes com sangue vermelho para assustar demônios. Mais tarde os autores bíblicos associaram este hábito a algum ritual relacionado à fuga do Egito. O vermelho no Egito antigo era a cor do deserto e do deus destrutivo Seth que personificava o mal. Tanto assim que os egípcios desenvolveram várias fraseologias em torno do vermelho. «Fazer vermelho» era sinônimo de matar alguém; práticas demoníacas eram referidas como «negócios vermelhos». A salvação do mal era o objetivo do canto egípcio: Oh, Isis, salvai-me das mãos de todo o mal, demônio e coisas vermelhas!. Escribas egípcios usavam uma tinta vermelha especial para palavras malditas.

As qualidades boas e más são combinadas em Phoenix, o pássaro do fogo, um símbolo da imortalidade, mas também do sacrifício de si mesmo: a ave se consome dolorosamente em chamas para poder renascer rejuvenescida.

O cabelo da Virgem Maria era ruivo nas mais antigas pinturas e as vestes dos anjos eram vermelhas nas pinturas medievais. Somente mais tarde foram branqueadas. A conotação definitivamente positiva da cor vermelha originada com o caçador neolítico e continuou com os alemães antigos, começa mudar ao redor 1500 por influência bíblica.

O deus germânico Thor tinha o cabelo vermelho. Os animais vermelhos tais como o robin (não o parceiro do Batman, mas um passarinho de peito vermelho muito comum na Europa), a raposa e o esquilo eram criaturas sagradas de Thor. Os olhos de Wotan, deus germânico da caça (muitas vezes associado com Odin), eram descritos como de um vermelho chamejante. Com o advento do Cristianismo diminuiu o poder destes dois deuses germânicos. Foram transformados no diabo com seus cabelos e barbas vermelhos.

As mulheres de cabelo vermelho eram acusadas de serem bruxas e prostitutas e a papoula transformou-se numa flor do diabo.  A sexualidade foi associada também com o vermelho, e era demonizada. O cabelo da Virgem Maria ficou loiro por influência dos povos germânicos, em cujas línguas a mesma palavra que descreve a cor do cabelo louro claro também significa «bom, justo, honesto» etc. A Noruega teve um rei chamado Harald Harfagre («Haroldo Bom-Cabelo»). Quando um inglês quer dizer que uma pessoa é loura diz que ela tem «cabelo bom» (fair hair).


Os provérbios antigos discriminaram povos com cabelo vermelho ou barba vermelha. O hábito de escanhoar-se diariamente foi imposto entre os celtas para ocultar suas barbas ruivas. Tais preconceitos prevalecem ainda em algumas áreas rurais de Europa.

As deusas celtas são, em sua maioria, ruivas. O que não é de se espantar, dado o tipo étnico da região (norte da Inglaterra, Escócia e a Irlanda). Beltaine é reverenciada pelos longos e rubros cabelos. E esta é a deusa da procriação e fertilidade, tendo sua data festiva em maio. As Vésperas de maio são comemoradas com sacerdotisas ruivas e a cor vermelha se relaciona com a virilidade e coragem.

Beltaine foi sincretizada como Santa Brígida pela ICAR, mas a cor vermelha não é mais relacionada a ela e sim a São Jorge. Por quê? Porque a Senhora dos Exércitos, Andraste, é ruiva (não tanto quanto Beltaine) e ela é a deusa que oferece força e poder aos exércitos e os guia rumo à vitória. Claro que os misóginos cristãos não iriam querer associar lutas e guerras (atividades masculinas) a uma mulher. Andraste some e aparece Jorge da Capadócia, que sentou praça na cavalaria e séculos depois inspirou seu xará carioca a compor uma música muito boa.


Quando os Normandos (vindos da atual França, mas de etnia nórdica) começaram a adentrar a Inglaterra, a visão do vermelho começou a inspirar desconfiança e a coisa ficou preta para o lado de todo mundo. Vermelho era a cor predominante nos banners dos reis anglo-saxões e também nos pavilhões dos bretões celtas.

Entre nossos índios o vermelho, obtido do barro e da seiva de algumas plantas, como o pau-brasil, e de frutos, como o urucum, era pintura de guerra, simbolizava a prontidão para a morte.


Na heráldica o vermelho é uma cor característica da realeza mais antiga, de preferência daquela que herda seus títulos, por via direta ou indireta, do Império Romano (cuja cor oficial era o vermelho). Vermelha era a bandeira do Sacro Império Romano e também a do Império Bizantino. Boa parte dos estados europeus que ostentam faixas vermelhas horizontais (exceto a Áustria e a Polônia) evocam esta associação de forma oblíqua. Notavelmente isto se verifica nas bandeiras da Alemanha, da Rússia, da Holanda, da Croácia, da Sérvia, da Espanha, de Liechtenstein, de Luxemburgo e da Lituânia. No caso da Áustria, o vermelho evoca o martírio de um antepassado dos Habsburgos nas cruzadas. No caso da Polônia a origem é mais obscura e tem alguma coisa a ver com os brasões da Polônia e da Lituânia. Nas bandeiras tricolores verticais (como a francesa, a italiana, a belga e a romena) o vermelho significa a revolução, o levante do povo contra a opressão de uma elite (França, Bélgica, Itália) ou de forças estrangeiras (Romênia). Estas bandeiras foram adotadas no século XIX, muito antes que a Revolução Russa de 1917 consagrasse o vermelho como a cor da Revolução (com «R»).


Desde então o vermelho ganhou, especialmente na Europa e na América Latina, uma certa conotação esquerdista e rebelde. Da qual se aproveitaram os nazistas (com sua bandeira vermelha, que deu até nome ao jornal oficial do NSDAP) e outros, mas a fama do vermelho revolucionário alcança até mesmo a música popular brasileira, como nos versos de uma balada de Boi-Bumbá gravada nos anos 1990:

A côr do meu batuque
Tem o toque, tem o som
Da minha voz
Vermelho, vermelhaço
Vermelhusco, vermelhante
Vermelhão.

O velho comunista se aliançou
Ao rubro do rubor do meu amor
O brilho do meu canto tem o tom
E a expressão da minha côr
Vermelho!

Meu coração é vermelho
Hei! Hei! Hei!
De vermelho vive o coração
He Ho! He Ho!
Tudo é garantido
Após a rosa vermelhar
Tudo é garantido
Após o sol vermelhecer.

Vermelhou o curral
A ideologia do folclore
Avermelhou!
Vermelhou a paixão
O fogo de artifício
Da vitória vermelhou...(2x)

publicado por José Geraldo, às 00:40link do post | comentar | ver comentários (4)
Sempre tive reações indecisas diante de cada concurso literário de que ouvi falar em toda a minha vida. Uma das primeiras coisas que li a respeito de meu poeta favorito, Fernando Pessoa, foi que ele tirou o segundo lugar no único concurso de poesia de que participou em vida. Eu tinha meus dezesseis anos quando li isso numa biografia do Poeta. De lá para cá as notícias de concursos que dão errado não param de me perseguir, como a recente polêmica sob a premiação de Chico Buarque com (mais um) Jabuti, que acabou fazendo com que muitos autores e críticos relevantes botassem na imprensa o que, provavelmente, se diz na surdina: que os prêmios literários mais famosos servem mais para manter o interesse pelos autores consagrados (em um país onde a literatura concorre com peças de cultura pop válidas apenas por um verão) do que para identificar e estimular novos talentos.

Essa persistente percepção se aguça cada vez que leio o regulamento de um novo concurso, a ponto de eu já ter perdido qualquer interesse em participar de algum (porque participar envolve custos integralmente absorvidos pelo autor). Em geral, pelo que percebi, os concursos parecem dividir-se em quatro categorias:

  1. Os que não são concursos de fato, mas apenas pretexto para atrair autores que tenham dinheiro, mas não experiência, a publicarem por editoras que possuem muita experiência, algum dinheiro e nenhuma competência.
  2. Os que são obscuros demais para acrescentarem alguma coisa ao currículo do autor, fazendo-me pensar que se algum dia eu ficar famoso, os organizadores se promoverão dizendo que um dia me premiaram.
  3. Os que não estão interessados em identificar autores originais, mas autores capazes de cumprir as tarefas predeterminadas pelos objetivos comerciais da editora, como, por exemplo, produzir um conto com tantos mil caracteres sobre o tema fulano.
  4. Os que possuem regulamentos tão draconianos que explicitamente excluem a maioria dos autores que pretendem identificar e premiar.
Sobre os primeiros é melhor que não fale muito, e que sequer sugira nomes, embora os nomes sejam sussurrados nos fóruns da internet, porque não tenho dinheiro e nem disposição para enfrentar um processo por difamação. Especialmente porque alguns dos sussurros podem ser boatos movidos por interesses tão escusos quanto aqueles.

Sobre os segundos eu até poderia falar alguma coisa sem medo, mas sinceramente esses concursos são tão obscuros que eu precisaria gastar um bom tempo procurando informações sobre a sua existência a fim de poder tecer tais comentários. Mas se você conseguiu acompanhar a minha linha de raciocínio não precisa que eu dê exemplos.

Sobres os terceiros eu faço questão de falar, mesmo sabendo que perderei alguns amigos e fecharei algumas portas (mas fodam-se essas portas, pelas quais eu não quero entrar). Não citarei nomes (é verdade), mas as cabeças nas quais as carapuças servirem não ficaram felizes.

Sobre os últimos, por fim, é preciso que eu diga muita, mas muita coisa. Mas antes quero explicar esse negócio de «cumprir tarefas».

Acredito que a maioria das pessoas dotadas de talento literário teve problemas com seus professores de português e literatura. Millôr Fernandes orgulhava-se dizer que tirava notas horríveis em redação. Machado de Assis declarou-se um incompetente em língua portuguesa ao tentar ajudar um sobrinho a fazer os deveres escolares. Carlos Drummond de Andrade foi ridicularizado pela professora por ter escrito um conto fantástico (inspirado em Jules Verne), de forma não muito diferente do «Pink», personagem narrador da ópera rock The Wall, do Pink Floyd, que foi humilhado pelo mestre-escola por ter escrito um poema.

Não quero me ombrear com os autores famosos — no máximo com o Pink, que era um sujeito problemático e egocêntrico, com uma certa dificuldade com as mulheres e uma tendência a fazer péssimos poemas (rimando «jag-uar», «new car» e «ca-viar») — mas também já tive a minha cota de notas baixas em português e muita gente já ridicularizou o que escrevo. Se eu soubesse tocar guitarra ou liderasse meu próprio bando de skinheads, talvez eu atirasse em uma televisão, depilasse as sobrancelhas e enxergasse roedores nas paredes. Como o Pink, para você que não é fã de rock progressivo e não entenderia a piada.

O problema que as pessoas supostamente dotadas de «talento» têm com os professores de português é que, quando você acredita que está acometido desta condição literária você passa a ter o desejo de expressar-se, do seu jeito. Obviamente este desejo não combina com as tarefas que os alunos têm de cumprir para obter a nota. A redação que foi pedida era sobre «Como Viveríamos Sem Eletricidade», e não sobre o seu medo do escuro, filho. No meu caso eu digo com orgulho pueril que quase fui expulso da escola porque, para o dia da criança de 1984, ainda no ocaso da ditadura, eu entreguei à minha escandalizada professora de português, uma redação sobre controle populacional. Que era uma bosta, obviamente, como tudo que um aluno de 11 anos escreve, mas pelo menos tinha ousadia e originalidade. Inclusive por ter chamado a pílula pelo interessante eufemismo de «anticegonha».

Quando um escritor sai da escola, eu imagino, sente um bafejo de liberdade no ar. Não está mais obrigado a escrever respeitando limites de tamanho e ditames de assunto. Tanto quanto quem se forma em desenho não precisa mais usar papel quadriculado ou empregar o pantógrafo para calcular perspectivas. Finalmente vou escrever o que quero, do jeito que quero. Infelizmente o mundo não quer ninguém do jeito que cada um é, o mundo quer todo mundo devidamente harmonizado. Cada um no seu quadrado, uma música estúpida, mas que tangibilizou a ideologia conservadora de uma forma irrepreensível. Eis o que o mundo quer: Ado, a-ado, cada um no seu quadrado.

É que, depois de ter conquistado a maioridade e de ter a própria máquina de escrever (eu já celebrei isso, uma vez), você descobre que a sua liberdade de escolher o tema e determinar o tamanho é totalmente irrelevante porque o mundo não está procurando nada disso: o mundo tem um sapatinho de cristal e sai calçando por aí, se seu pé for do tamanho certo você sai do borralho e recebe seu grande prêmio. Para quem tem pés bonitos, mas do tamanho errado, o lugar continua sendo a cozinha.

Esses são os concursos que determinam tema e tamanho. Cada vez mais os seus editais se tornam específicos. Não basta que seja um conto do gênero «histórico», por exemplo, tem que ser histórico ambientado no interior do Espírito Santo na década de 1820. Não basta ser fantástico, tem que ser fantástico com um estilo prattchettiano, voltado para o tema dieselpunk e adaptado à realidade brasileira (ou búlgara, tanto faz, visto que nenhuma das referências culturais tem a ver com o ambiente onde tudo deve ser adaptado).

Não estou generalizando. Provavelmente o concurso promovido pela sua editora é diferente, não há necessidade de me processar. Eu estava me referindo apenas aos seus concorrentes, é claro.

O caso é que eu não tenho nenhum tesão para fazer composições de acordo com o tema «sugerido». Aliás, sugerido é o meu … de óculos: todas as vezes em que não optei por nenhuma das sugestões o meu texto foi rejeitado e tive que fazer outro. Só que, como não estou mais na escola e não tenho a necessidade de obter uma nota para passar de ano, não me importa se o meu texto não serve para a sua coletânea. Provavelmente sua coletânea não serve para mim também.

Mas chego, enfim (sim, sou prolixo e uso pontuação em excesso), ao assunto que me moveu a escrever esta diatribe: os famosos editais excludentes.

Imagino que as pessoas que escrevem tais editais imaginam que o Brasil seja a pátria da literatura e que exista um autor talentoso em cada quarteirão desse país, fora os que não são talentosos, mas sabem agradar o júri. E como existem tantos, é necessário que o edital, já de cara, se encarregue de inabilitar o maior número possível deles.

Há várias maneiras de se fazer isso. A mais comum é exigir o ineditismo. Dependendo do concurso, o ineditismo pode ser exigido para a obra apresentada ou até mesmo para o autor. A regra é clara:
Somente serão aceitas, no presente processo de seleção, obras literárias rigorosamente inéditas e que não tenham sido publicadas, mesmo parcialmente, de forma impressa ou virtual.
Não entendeu? Vou explicar.

Nesta nossa idade digital, em que todo autor obscuro que almeja alguma forma de divulgação pode encontrar leitores (ou até um editor) divulgando seus textos em redes sociais, fóruns ou blogues, os redatores deste edital ainda imaginam que exista o rigoroso ineditismo de uma obra literária. Qual autor escreve uma obra genial, digna de receber um prêmio relevante, e a mantém rigorosamente inédita, sepultada em uma gaveta, esperando um concurso?

Trata-se de uma regra tão absurda que me vejo forçado a imaginar que a) serão apresentadas, e eventualmente premiadas, obras não rigorosamente inéditas ou b) alguém, já predeterminado para ganhar, possui uma das raríssimas obras rigorosamente inéditas. A primeira hipótese é bastante plausível, especialmente se a obra em questão foi postada apenas em fóruns privados (não indexados pelas ferramentas de busca) ou redes sociais, ou publicada em revistas impressas de baixa tiragem e nenhuma relevância. A segunda hipótese é acintosa, mas eu nunca me esqueço de que vivo no Brasil.

Sobre a segunda hipótese, há que se ter em conta que a exigência de rigoroso ineditismo, obviamente, impede que alguém questione a decisão do júri. Seja qual for a escolha dos jurados, ninguém poderá argumentar que outra obra merecia mais o prêmio. Os editais de concursos literários aprenderam com os festivais musicais — e com o fiasco do concurso português que preteriu Fernando Pessoa. Hoje em dia o poeta não ganharia e talvez nem tivesse como provar que participou.

É por causa do rigoroso ineditismo que eu não posso participar de nenhum concurso literário. Ou pelo menos não me dou ao trabalho de fazê-lo para gastar dinheiro cumprindo as exigências e depois ser desclassificado sem nenhum aviso sequer (porque os concursos literários só dão satisfação aos premiados e você, que se inscreve, na maioria das vezes nem recebe uma confirmação de que sua inscrição foi aceita). Mas tem mais. Existem outras formas de excluir autores que não devem ganhar.

Uma delas é impor ao candidato uma peregrinação para inscrever o seu trabalho. Apesar de todo o avanço das comunicações, da confiabilidade do correio e da existência da internet, nada mais apropriado do que fazer um concurso aberto à participação de qualquer cidadão brasileiro, mas obrigá-lo a comparecer, em horário comercial, em algum escritório qualquer da cidade onde o concurso é sediado, para entregar pessoalmente sua obra.

Outra é determinar regras explícitas para a formatação do original. Claro que eu imagino que pessoas que terão de ler dezenas de livros de autores desconhecidos não ficarão felizes de lê-los impressos em cores, com fonte Comic Sans ou em formato de papel não padronizado. Mas há concursos que chegam às raias do absurdo no detalhismo, determinando a tipologia, o tamanho da fonte, as margens da área impressa, a localização da numeração de página, o espaçamento entre linhas, etc. Poderiam simplesmente solicitar o arquivo em formato digital e determinar o tamanho por uma simples contagem de palavras e caracteres. Mas dão-me a impressão de que algum estafeta, em alguma escrivaninha abarrotada, estará contando linhas e palavras com uma régua.

A tudo isto se junta a lenta constatação, compartilhada com a amiga Ilka Canavarro, de que a partir de uma certa idade as pessoas não se interessam mais pelo que nós temos a dizer, a não ser que tenhamos ficado ricos ou famosos. Algo que o Ronaldo Roque também já havia detectado.

Então, se já sei que não serei aceito nem premiado, se já sei que não estão mais interessados em um Novo Escritor que fez 39 anos, se já sei que ridículo ficar buscando a aprovação de um mundo que objetivamente já me rejeitou como autor; por que me desgastar formatando originais para concursos cujos editais parecem talhados para justamente excluir não a mim, pessoalmente, mas o tipo de pessoa que eu sou, no mundo de hoje?

Ah, me poupem de formatar meu romance de forma aceitável. Quer dizer que eu não tenho o direito de pegar um conto meu e expandir para um romance, pois isso não se enquadra no rigoroso ineditismo que o concurso exige? Para que vou me preocupar em viajar trezentos quilômetros para perder horas em uma fila, a fim de poder «protocolar» meu humilde edital, nas mãos de um/a recepcionista que não escreve? Provavelmente ele/a estará se sentindo incomodado/a com o volume inesperado de trabalho e o peso de tanto livro (para que esse pessoal escreve livro tão grosso, meu Deus?).

É muita humilhação para um autor amador, que realmente ama o que faz. É muita exigência para um assalariado que ousa escrever (isso não é coisa de trabalhador, quem tem que escrever sobre o povo é o rico que se interesse pelo tema). É muito obstáculo para quem divulga seu trabalho em busca de atenção, contatos e reconhecimento em vez de pedantemente pô-lo na gaveta à espera de um concurso. Isto é coisa de gente que vê a literatura como um ornamento na biografia, não como um objetivo pessoal.


Então, mais uma vez, declino de participar. Não que me julgue «acima» de concursos. Na verdade gostaria muito de estar neles. Mas julgo inútil tentar, visto que nos próprios editais estão estabelecidas condições que me excluem, de forma que eu só poderia participar mentindo (e expondo-me à humilhação de ser achado na mentira) ou submetendo obras feitas por encomenda. Só que não se encomenda, em trinta dias, oitenta páginas de prosa digna de ganhar um concurso.

Não fico, porém, prejudicado. Nunca tive grandes ambições com a literatura. Escrevo porque gosto e, embora goste da ideia de um dia fazer sucesso, não me sinto diminuído por não ganhar concursos. Fernando Pessoa nunca ganhou um.

05
Ago 12
publicado por José Geraldo, às 10:24link do post | comentar
Este texto é um trecho avulso do romance «Amores Mortos», que está em fase final de revisão. A história se passa entre 1984 e 2000 e neste trecho em especial está situada em 1994, pouco após o Plano Real. Oswaldo (variadamente referido pelos diversos personagens do livro como Vado, Vadico, Vadinho ou Valdo) é um sujeito que migra de emprego em emprego, por diversas cidades da Zona da Mata Mineira, geralmente trabalhando como representante comercial, vendedor de seguros ou funções assemelhadas. A história acompanha, de forma não linear, a sua vida amorosa, que incluiu mulheres de várias cores, idades e tem­pe­ra­mentos, e a sua busca pela paz interior, através de duas ou três religiões dife­rentes, inclusive atuando como pastor de uma pequena igreja em certa época e tendo um «papo sério» com Jesus no momento mais tenso de sua vida.
Ele parou o carro à sombra de uma árvore, como um espião faria, e abaixou até a metade o vidro. Passou os dedos pelos cabelos uma última vez, para ver se não havia nenhum desleixo excessivo, e olhou pela greta em direção à casa número 156. Tirou do bolso o pedaço de papel onde anotara o endereço e conferiu se não havia distraidamente invertido os números em sua lembrança e respirou fundo. A casa devia ser aquela.

A certeza acelerou o coração, fez amargar a boca, causou aquele aperto por den­tro que acontece nos momentos de grandes escolhas. Ainda poderia simples­mente ligar o carro e ir embora, depois ligar de volta dizendo que… sei lá, qual­quer coisa. Porém, se o fizesse, levaria meses ou anos ou vidas martirizando-se pela falta de ousadia. Decidiu que levaria a coisa toda até o fim.
Tudo começara semanas antes, quando começara a conversar por telefone com Mar­lene, que trabalhava no escritório de alguma das muitas lojas a que vendia. Gos­tara da voz, quisera conhecer o rosto, encontrara-o dentro de um envelope, dese­jara o corpo, deixara o emprego, mas levara o número e chegava então à casa onde ela o esperava. Marlene, auxiliar de escritório em alguma loja pequena, de uma cidade razoavelmente grande para oferecer anonimato, bastante perto para possibilitar aquela aventura.

Lamentou que os telefones celulares ainda fosssem tão caros, ou poderia ter um no porta-luvas para discretamente chamar-lhe e perguntar alguma coisa antes de descer. Ouvir a voz dela o ajudaria a ter mais coragem, ajudaria a borrar um pouco a imagem de Cândida de sua memória.

Por fim desceu, mesmo sem coragem e com as pernas bambas. Atravessou a rua depressa, com as costas queimando como se milhares de olhares mapeassem cada passo. Tocou a campainha e refugiou-se na sombra da soleira esperando que nem todas as pessoas daquele bairro, daquela cidade, do estado, do país, do mundo, do universo, tivessem visto, tivessem notado, tivessem anotado sua presença.

Ouviu passos, pés arrastados no chão. Calcanhar de chinelo batendo. Passos de velha, ou passos também tremendo. A porta se abriu e lá estava ela, a mesma Marlene da foto, ou quase ela. Os cabelos eram mais curtos, o rosto mais estreito, um cheiro que a mulher fotografada não tinha. Marlene sorriu-lhe dentes bonitos, sempre o grande medo que tinha nos primeiros encontros. E começou a destrancar os múltiplos cadeados que protegiam a entrada.

— Tanta tranca — perguntou-lhe — é seguro deixar meu carro na rua aqui nesse bairro?

— Provavelmente — ela disse com uma voz que mal lembrava a do telefone — eu é que sou meio desconfiada.

Aberto o portão, pisou pela primeira vez a casa dela. Piso frio, paredes manchadas pelo uso, um cheiro suave de lavanda, os móveis simples, sofá coberto por uma capa de tecido liso.

— Aceita um copo de água?

— Obrigado, claro, é… foi uma viagem longa.

Ela lhe indicou que se sentasse no sofá, o que ele fez com cuidado, escorregando como se aquele assento o rejeitasse. Ela veio com o copo de água e sentou-se ao seu lado, sorrindo sem jeito às vezes. Tomou a iniciativa de pegar suas mãos, estavam frias, eram magras, eram duras, terminando em unhas pintadas de vermelho escuro, que combinava tão bem com o tom moreno da pele.

— Você veio mesmo.

— Duvidava que eu viesse?

— Claro. Por que você viria?

Fez-lhe uma carícia no rosto macio, apesar de macilento.

— Porque lhe disse que queria vir, é suficiente.

Ela sorriu outra vez, olhando obliquamente para algum canto da sala que ficava em outro universo:

— É suficiente.

E deixou-se escorregar até mais perto dele, até suas coxas se encostarem, separadas pelo brim das calças. Oswaldo se sentia com dezessete anos, como sem­pre se sentia quando surpreso na vida. E a vida vivia a surprender-lhe.

Olhou de novo para o rosto de Marlene: era bonita, mas a sua expressão sofrida o desarmava.

Então ouviu uma terceira voz na casa. Arrepiou-se, fez menção de se levantar. Ela o segurou pela mão e surrou-lhe ao ouvido:

— Calma, é só a minha prima que veio pegar uns discos emprestados. Ela já está indo embora.

Oswaldo não se sentiu seguro com esse consolo, mas não tinha a chave da porta. Sentia-se um coelho pego numa armadilha. Da sala não podia ir a nenhum lugar, nenhum esconderijo a não ser suas mãos. Ouvia os passos da prima que vinha de dentro da casa com passos parecidos com os de Marlene e pensava se não poderia, talvez, desaparecer como um vampiro na fumaça. Não pôde. Ela veio, deu boa noite e dirigiu-se à cozinha, seguida de Marlene, saindo pela outra porta, que foi trancada depois.

— Pronto, querido — disse ainda a meia voz — agora estamos sós.

E sentou-se ao seu lado, oferecendo a segurança que tinha fugido dele ao ouvir a voz da prima. Beijou-o com lábios firmes, olhos fechados e a alma faminta. Oswaldo, então, relaxou e abraçou. Não dirigira quase cem quilômetros desde Juiz de Fora para acovardar-se facilmente. Qualquer coisa que tivesse de dar errado, já daria sem que pudesse evitar.

— Espero que sua prima seja péssima fisionomista — comentou, cedendo pela última vez à covardia.

— Você se preocupa demais, ninguém o conhece aqui na cidade, como você mesmo me disse. Sua mulher nunca vai saber.

Beijou-a por sua vez. Apertou-a num abraço que revelou quão pouca carne havia sobre seus ossos. Então ela o chamou:

— Vem.

Levantou-se do sofá e a seguiu pela casa, rumo ao quarto. Pelo caminho conhe­ceu onde habitava a voz doce que conhecera pelo telefone: um pequeno quarto com beliche, certamente o das crianças, um banheiro pequeno onde ele mal cabe­ria, um quarto abarrotado de roupas e espalhadas pelo chão, contendo uma máquina de costura, um quarto maior, de janela única, com um roupeiro imenso, uma cama que parecia feita para alguém muito maior que Marlene, tão miu­dinha.

— Quer tirar a camisa para não amarrotar?

— Não precisa.

Tão logo ele o disse, Marlene tirou as mãos de seu colarinho e as levou à própria cin­tura, tratando de abaixar as calças rapidamente, revelando-se para ele sem ceri­mônia. Oswaldo se sentiu ridiculamente tímido e foi tratando de desabotoar a camisa, o que só terminou de fezer quando ela já havia pendurado toda a roupa no cabide junto à porta, e ainda não acabara de despir-se e ela já estava toda nua, de pé com seus cento e sessenta centímetros de ousadia. Quando final­mente se desvencilhou das meias, última cobertura de sua carne, abriu-lhe os braços, envergonhado, como um frango exposto no balcão do supermercado.

— Espero que você não se decepcione — comentou, pensando nas próprias per­nas finas, na barriguinha de cerveja que começava a crescer e no tamanho do próprio pênis, que ela poderia julgar insuficiente, considerando toda a fami­li­a­ridade que parecia ter com essas coisas.

— Nem um pouco — ela respondeu, lançando-se contra seu corpo.

O contato com uma carne estranha o fez estremecer. Mas não dirigira por quase cem quilômetros para falhar tão cedo. Abraçou-a quase como se ela fosse uma criança, apesar de seus trinta anos, e a pôs de pé sobre a cama, a uma altura que per­mitia que suas cabeças estivessem no mesmo nível.

— Então, vamos com calma, que ainda é cedo esta noite.

— Mas é tarde na vida — ela respondeu, filósofa.

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