Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
30
Set 12
publicado por José Geraldo, às 14:59link do post | comentar

Desde que em entendo por gente eu me incomodo com o barbarismo. Quando era criança e ainda não falava inglês, incomodava porque eu me sentia excluído da conversa, como se aquelas palavras estranhas inseridas aqui e ali fossem abracadabras que me empurravam para fora do grupo. Mais tarde, depois que me tornei fluente em meu primeiro idioma estrangeiro, percebi que a maior parte dos que empregavam tal recurso estava fazendo pose, só isso. Pronúncia errada, contexto errado. Realmente usavam aquelas palavras e expressões como se fossem abracadabras: pelo choque sonoro e não pelo sentido.

Esse emprego proposital do idioma estrangeiro como uma ferramenta de exclusão ficou mais evidente para mim quando, aos vinte e quatro anos de idade, calhei de reencontrar na noite uma menina que havia sido minha coleguinha no cursinho de inglês. Foi ela que me reconheceu e me chamou para conversar. Estava cursando medicina na UFJF e namorava um carinha de fora da cidade, não sei se de Juiz de Fora mesmo ou de algum lugar mais longe. Alguma coisa em mim, não sei se foi o meu sotaque caipira, que eu nunca perdi, apesar dos diplomas, ou as botinas baratas que estava calçando, alguma coisa afetou o julgamento do namoradinho dela em relação a mim. Depois que já havíamos trocado algumas palavras ele se voltou para ela, simulando que só estava sendo carinhoso, e lhe disse: “honey, please, leave this clown alone and let's dance.” Ou algo assim. Minha amiga ficou lívida, mas eu fingi não ter entendido e ainda permaneci conversando com eles por uns dois ou três minutos antes de despedir-me dizendo “nice to meet you again, Fay, now I must go 'cause it's about the time for my date with a girl at the gate.” Ou algo assim. Só me lembro que saí dizendo que tinha de ir porque estava na hora do encontro que marcara com uma garota na entrada. Não sei qual a cara que o sujeitinho fez porque, naquele momento, eu já estava praticamente de costas para a sua insignificância.

Ao longo da vida eu fui consolidando uma decisão de que não repetiria essa atitude babaca de esconder-me atrás de uma língua estrangeira para me sentir superior a outras pessoas. Fiquei ainda mais firme nesta determinação depois de ler Guimarães Rosa, e entender a beleza do português coloquial como veículo do pensamento. Por fim, decidi que minha determinação de não empregar termos estrangeiros se estenderia também às minhas leituras, e passei a rejeitar autores que fazem uso de tal recurso. Porque existe, mesmo, uma modinha de dar nomes em inglês para blogues, ou a textos avulsos, como se isso fosse uma grife. Em geral esses blogues não têm um conteúdo interessante, mas isso nem me importa: pois mesmo que tivessem eu não estaria interessado em lê-los. Um conteúdo interessante, quando vem contaminado com algo que positivamente não me interessa, é algo que eu só lerei se estiver filtrado. Não tenho tempo para ser esse filtro, não me pagam para isso. Então prefiro limar quem traz esta influência para a página inicial do meu blogue. Censura? Uma escolha não é uma censura contra o que não foi escolhido.

O que podem dizer com alguma razão é que estou sendo quixotesco. Mas minha cruzada de bolso contra o que não gosto não desrespeita nenhum direito alheio: estou apenas exercendo a minha salutar prerrogativa de tentar reformar o mundo. É verdade que o mundo não é muito receptivo a reformas, mas dou minhas marteladinhas de ouro, esperando que a lataria torta entre no jeito.


23
Set 12
publicado por José Geraldo, às 21:31link do post | comentar
Um poema satírico inspirado por uma postagem de minha amiga Ana Feijó da Cruz no Facebook.

Eu juro
Sou de um tempo passado,
em que cupcake se chamava bolinho,
blush se chamava ruge,
van era furgão
sale era liquidação.

Nunca me ocorreu
chamar meu amor de love,
nem referência de benchmark,
nem interessado em stakeholder,
nem artigo de paper
e nem discurso de keynote.

Hoje vivo perdido
comendo cigarrette em vez de enroladinho.
Nunca mais vi jogarem bola ao cesto
e nem futebol de salão.

Acho estranho quando chamam
stickers de adesivos e
entrega em domicílio de delivery.
Especialmente se houver alguma coisa free
nos cookies que compro no shopping.

19
Set 12
publicado por José Geraldo, às 21:38link do post | comentar | ver comentários (1)

Não sou do tipo que aprecia auto-ajuda e detesto historinhas bonitinhas úteis para fazer team building (as coisas que eu detesto eu prefiro mesmo que tenham nomes em gringuês). Mas hoje ocorreu-me um fato que me fez querer escrever um texto que algum guru motivacional, especialmente desses que trabalham com equipes de venda, vai um dia pinçar e ler para seus discípulos. Sem me dar crédito, lógico, pois nesse negócio de auto-ajuda existe uma regra implícita que proíbe atribuir qualquer texto a um autor conhecido e vivo. Todas as histórias tem que ostentar a chancela de uma «antiga lenda», palavras de um «sábio chinês» ou «ensinamento religioso». Acho que mencionei que eu detesto esse estilo baboso e cheio de pretensão. Mas aí vai a historinha.

Ao sair do serviço, já quase seis horas, lembrei-me de que tinha marcada uma sessão de massagem, para aliviar minha retorcida coluna e minhas comprimidas veias. Porém, por uma dessas perversidades pequenas que a vida nos oferece, eu me esquecera completamente de trazer de minha outra casa um calçado esportivo, um chinelo de dedos que fosse. Como estou vivendo de segunda a sexta em outra cidade, a trabalho, eu não tinha a opção de ir buscar o que tinha esquecido. Vendo o comércio quase a fechar, entrei na primeira loja onde vi calçados, apontei para uma sandália franciscana e perguntei pelo preço e disponibilidade do meu número (43 para quem se interesse em saber). A vendedora foi remexer no estoque, procurando, e então decretou: infelizmente não tinha daquele tipo de calçado no meu número. Como nenhum sapato servia para o que eu queria fazer, agradeci e deixei a loja apressado, procurando outro lugar onde pudesse comprar uma sandália, ou calçado parecido.

Já havia percorrido uns quarenta metros e me aproximava de outra loja quando a vendedora me alcançou correndo, já quase sem fôlego, e me pegou pelo braço.

— Moço, como você anda depressa! Volta comigo, eu achei uma sandália do seu número. Estava caída no fundo da prateleira, mas ainda tinha.

Como não estou acostumado a ser tocado subitamente por pessoas desconhecidas, fiquei meio desconcertado com aquilo tudo.  Principalmente pela cena da vendedora esbaforida correndo pela rua para me pegar pelo braço. Voltei com ela até a loja e comprei a sandália.

Enquanto ela registrava a venda no cartão de crédito, já tendo conseguido superar a surpresa e me inserir na situação, senti-me na obrigação de lhe dizer o que eu estava pensando:

—Você está de parabéns, isso é que é uma vendedora. Foi buscar pelo braço o último cliente do dia, para fazer a última venda. Estou impressionado.

Na verdade se eu fosse dono de alguma loja na cidade eu a contactaria secretamente para oferecer um salário maior. Se eu fosse um comerciante, eu desejaria ter aquela menina vendendo para mim, e não para um concorrente.

Disse o que disse sem mais intenção que a de agradar a garota, que ainda estava descabelada e um pouco suada por causa da corrida, mas naquele momento eu não tive ideia do bem que lhe fazia, pois o vendedor que estava ao seu lado no balcão era o próprio dono da loja. Que deve ter passado a valorizar bem mais a sua funcionária depois de hoje.

Enquanto voltava para casa fui fazendo reflexões semelhantes às que os gurus de auto-ajuda para vendedores costumam dizer que fazem. Tentar extrair do caso alguma «lição de moral» que valha a pena mencionar em uma mensagem corporativa de correio eletrônico. Ocorreram-me três ideias perfeitamente adequadas ao contexto, e eu me descobri palestrando mentalmente para vendedores desavisados.

A maioria das pessoas que eu conheço jamais se exporia ao ridículo de sair correndo pela rua atrás de um cliente. É como se trabalhar fosse algo não merecedor de nossas energias. Pessoas que «soltam a franga» com duas ou três doses de bebida morrem de vergonha de abordar um cliente, gente que joga lixo na rua se constrange de correr atrás de uma venda. Aquela vendedora, porém, sentiu que naquele momento, em que estava trabalhando, a coisa mais importante de sua vida era trabalhar bem. Para isso ela não precisava matar ninguém, apenas recuperar o prejuízo de uma venda não feita por causa de uma distração.

A maioria das pessoas que eu conheço jamais cometeria um ato que revelasse para todos os colegas, e o chefe, um erro cometido. Mesmo descobrindo a caixa de sandália 43 no fundo da prateleira, prefeririam fingir não a terem achado para que ninguém soubesse que um cliente saíra da loja sem comprar o que queria por distração de quem lhe deveria vender. Aquela vendedora, porém, achou que muito mais importante do que impedir os outros de saberem de seu erro era fazer o certo. Se o seu chefe pensa como eu, ele deve preferir trabalhar com quem corre atrás de consertar o que errou do que com quem aparentemente não erra, mas nunca é visto correndo atrás.

Por fim, a maioria das pessoas não teria dado tanta importância ao último cliente do dia, a menos que ele viesse comprar dúzias do item mais caro das prateleiras. Muitos vendedores pensariam que «se ele não comprou aqui, também não vai comprar na concorrência, porque todo mundo está fechando». Talvez alguns pensem que o cliente pode voltar no dia seguinte, quando a loja abrir. Não sabem que há momentos em que no dia seguinte a compra pode ter deixado de ser necessária, ou o cliente pode ter achado outro lugar onde comprar.

Tenho a certeza absoluta  de que a maioria das pessoas não é como aquela vendedora, mas gostaria de tê-la trabalhando para si.


09
Set 12
publicado por José Geraldo, às 11:57link do post | comentar

A simples sensação de estar em uma cidade muito grande me assusta um pouco. Juiz de Fora é a maior cidade onde consigo me locomover sem ser acometido pelo pavor existencialista de subitamente deixar de existir, graças a uma facada no escuro, um carro bomba ou uma bala perdida. Cidades grandes têm trânsito confuso, motoristas nervosos que, do nada, podem descer de seus carros brandidos símbolos fálicos e ejaculando em projetis sua impotência diante do imenso pé da cidade, que os pisa e achata contra o solo. Cidades grandes têm exércitos de miseráveis famintos arrancando sua sobrevivência como podem, às vezes como não deveriam.

Mas quando ando pelas ruas de uma cidadezinha do interior, mesmo a centenas de quilômetros da minha, a sensação que tenho é de estar o tempo todo andando entre os braços abertos de amigos e parentes. O ritmo da vida vai devagar, como deve ser, ninguém parece andar armado, a não se precauções. Até os miseráveis são menos agressivos, porque são menos agredidos.

Cada vez que vou a um lugar pequeno eu tenho a certeza de que a salvação deste país, e deste mundo, reside na destruição deste monstro chamado metrópole, que encaixota os seres humanos em imensos depósitos numerados.

Salvar o mundo envolve remover o concreto e o asfalto, replantar um pouco da vida verde que havia antes, deixar os bichos pisarem a terra livremente, sem o risco de atropelamento por gente que tem pressa demais, e só um coração. Chamem-me idealista, mas quando eu penso no crescimento das cidades eu tenho medo, o medo que tem quem vê crescendo uma mancha de formato irregular em sua pele. A pele do mundo é como se fosse um pouco a minha pele. E as cidades, que um dia foram somente sardas, estão se transformando em tumores.


07
Set 12
publicado por José Geraldo, às 12:07link do post | comentar | ver comentários (3)

Apesar de identificado quase absolutamente com tudo quanto a esquerda representa, eu confesso que sou um coração que ainda se agita quando ouve o bater de um tarol. As comemorações da Independência evocam lembranças boas de minha infância, era uma ditadura, mas nós éramos felizes. Havia censura, mas o mundo era um pouco mais inocente, éramos meninos e tínhamos nossos ídolos. Meus amigos e eu sonhávamos em estudar no Colégio Cataguases só para podermos desfilar no Sete de Setembro envergando o uniforme de gala com colete de brim vermelho e gravata preta. Batíamos continência para a fanfarra do SENAI, vestida de dólmã e fazendo malabarismo com as baquetas.

Por tudo isso que vivi, pelos sentimentos de amor à Pátria que eu ainda tenho, e que não vou esquecer em troca de espelhos e tabaco, como muita gente que abana o rabinho, feliz, na frente de um gringo, por tudo isso eu hoje me senti injuriado como poucas vezes.

Minha filha estava escalada para o coral que cantaria o Hino Nacional Brasileiro diante da sede da Prefeitura. Pela manhã bem cedinho lá estava eu para vê-la em seu momento de brilho. Por um momento me afastei para ir ao banco comprar créditos para o celular e quando voltei, me vi diante de uma cena quase inacreditável. Enquanto as escolas faziam o aquecimento de suas fanfarras e as crianças se reuniam no palanquinho para o momento do Hino, começou um culto evangélico em alto volume em uma igrejola que funciona ali perto.

A falta de respeito demonstrada pelo (ir)responsável por aquele culto foi tão gritante que várias pessoas perceberam, não somente eu. As crianças dando as primeiras batucadas e os alto falantes ecoando a voz de narrador de futebol do pastor mastigando as sílabas e terminado, vez em quando, numa palavra reconhecível. Sequer percebi o momento em que o Hino Nacional foi cantado pelo coral infantil, porque aquele demente sem civilidade estava atrapalhando as solenidades com seu alto falante.

Não há absolutamente nenhuma desculpa para o que ele fez. Ele fez realmente com o objetivo de afrontar as festividades. Ele não pode alegar que não sabia que haveria solenidade porque todo mundo sabe que Sete de Setembro e feriado, e todo mundo sabe o que acontece nesse feriado. Esta é uma data que está loonge de ser «surpreendente». Não pode dizer que usou o alto falante porque as fanfarras estavam atrapalhando a reza porque lhe faltou o bom senso de antecipar ou adiar o culto, sabendo que era Sete de Setembro e haveria fanfarras. Em vez disso, o pastor preferiu o confronto, afrontando toda a comunidade ali reunida para o desfile e atrapalhando a solenidade do Hino Nacional.

Dirão que estou faltando com o devido respeito ao credo ou aos crentes representados naquela igreja. Pode ser. Mas que respeito aquela igreja mostrou para com a comunidade, as escolas, as fanfarras ensaiadas durante semanas, as crianças que cantariam o Hino, a Pátria representada naquela solenidade? Como podem querer respeito se não respeitam aos outros? Esta atitude, unilateral, grosseira, incivilizada e intolerante só serviu para mostrar quais são os valores ali cultivados. São os valores da imposição, do meu alto falante de milhares de watts gritando dentro do seu ouvido o que eu quero que você ouça, mesmo que você não queira. Jesus não merece seguidores assim, o Jesus que mandou pagar tributo a César e disse ao representante do Império Romano que seu reino não era deste mundo.

Minha revolta contra a afronta cometida por aquele pastor não é do tipo que será acalmada com um simples pedido de desculpas. Aliás, desculpas só servem para acalmar a consciência de quem errou. Para a vítima, só duas coisas servem: reparação e mudança. No caso é irreparável o dano, pois este Sete de Setembro foi irremediavelmente estragado naquela parte de sua solenidade. Mas seria bacana se no ano que vem os responsáveis por aquela igreja realizassem o seu culto um pouco mais cedo ou o adiassem para outro dia. Em respeito (que é bom e todo mundo gosta) não só à Pátria, mas às pessoas que acordam cedo para ver o desfile de seus filhos e para acompanhar o coral infantil cantando o Hino Nacional.

Os religiosos gostam de dizer que uma das importâncias da religião é ensinar «valores» aos fieis. Valores como respeito ao próximo, base de uma sociedade pacífica e estável. Respeito que os responsáveis pela organização daquele culto não manifestaram ter em relação a nós, que estávamos lá para ver os nossos filhos no desfile cívico. Alguns dirão que Jesus é mais importante do que isso. Mas nesse caso, se em nome de Jesus se pode abolir todas as regras de educação e civilidade, então o que impede que em nome dEle também se roube, se mate ou se cometa qualquer crime? E nesse caso, o amor de Jesus não fica reduzido ao mero do inferno, que gera uma obsessão egoísta de salvação, que não se importa com a sociedade? Que valores são esses? Qual a importância desta religião para a sociedade? Eis como uma religião se torna egoísta e monstruosa.

Não quero dizer que aquela religião em especial seja monstruosa, mas que os seus líderes não podem tolerar que floresçam nela atitudes egoístas e desrespeitosas para com o próximo, sob pena de se permitir que a monstruosidade medre. Se é verdade que Jesus quebrou as regras da sociedade ao curar no sábado, também é verdade que, além de tudo que disse sobre a convivência com o Estado (citado acima), ele também recomendou aos seus fieis que fossem mansos, «porque os mansos herdarão a terra».


05
Set 12
publicado por José Geraldo, às 00:53link do post | comentar
Tolkien dizia ter um «prazer secreto», verdadeira motivação por trás da escrita do «Senhor dos Aneis»: inventar línguas. É um passatempo muito antigo, diversão de grandes QIs. Nos seus primórdios, ainda não elevado ao estado de arte, produziu línguas pensadas para serem veículos neutros de comunicação internacional, como o esperanto. Posteriormente, constatada a inviabilidade de tal projeto (pois todos detestam unanimemente o esperanto), os fazedores de línguas passaram a ousar, e surgiram coisas diferentes.

Um linguista chamado Benjamin Whorf teorizou que as línguas poderiam condicionar o pensamento. Ele estava errado de várias formas, mas muita gente tentou experimentar isso criando línguas destinadas a mudar o mundo. Línguas feministas, línguas belicistas, línguas com semântica complexa, com gramática assim ou assado. Em geras estas línguas têm muito pouca inovação em relação à imensa riqueza das línguas reais que o mundo produziu, mas elas revelam o grau de cultura e o tipo de personalidade que o indivíduo que as criou possuiu.

Este foi, aliás, o ponto de partida segundo o qual um semiólogo atestou que J. R. R. Tolkien era racista. Como se não bastasse os seus heróis élficos serem «fair haired» (um termo inglês ambíguo que associa cabelos claros a cabelos bons) e o líder das forças do Bem ser o Mago Branco, ainda havia a «Fala Negra» (o «esperanto» das forças de Mordor). A língua dos elfos se caracteriza por sua pureza, enquanto as línguas dos homens, seres decadentes e transitórios, se contaminam com influências as mais diversas. Tanto o Quenya quanto o Sindarim (as duas principais línguas dos elfos) se baseiam em idiomas europeus (finlandês/latim/lituano e galês/holandês, respectivamente), mas a língua das forças do mal se inspira em dialetos do Oriente Médio.

Não chego a concordar que Tolkien fosse ativamente racista, apenas que ele não estava isento do racismo latente em sua época (nascido na África do Sul e contemporâneo da eugenia, do nazismo e da Ku Klux Klan).  Prefiro pensar que a «pureza» a que ele se refere é um tipo de coerência interna que muitas línguas parecem não ter, notadamente o inglês, que é tão esquisito que há uma corrente da linguística que o classifica como um «dialeto crioulo» do francês medieval, com substrato anglo-saxão, que passou por um processo de intensa eruditização por influxo do latim e de reempréstimos de termos anglo-saxões esquecidos. Pena que Tolkien se enganou quanto ao finlandês: hoje se sabe que menos de 10% do vocabulário desta língua de família fino-úgrica é autóctene, os outros 90% foram emprestados do alemão, do russo, do lituano e do sueco.

Bastaram esses poucos parágrafos para lhe sugerir o quanto é rico e interessante o tema das línguas imaginárias (conlangs, ou «línguas construídas», em inglês). Eu mesmo já me aventurei com uma, que se chamaria «nódico» e seria parte do cenário de um romance meu de ficção científica. Nos próximos dias vou compartilhar com vocês um pouco das características desse projeto.

03
Set 12
publicado por José Geraldo, às 08:27link do post | comentar

Esta noite sonhei com o meu melhor amigo. Não, não foi a primeira vez, apenas foi um sonho estranho o suficiente para merecer que eu o lembrasse. Um dia imagino que um semiólogo ou crítico queimará pestanas tentando decifrar-me a partir de textos como esse, então escrevo para dar-lhe trabalho. Ou para apenas me divertir lembrando.

Estávamos em uma fábrica, uma fábrica que estava prestes a fechar, mas os trabalhadores não sabiam disso. O ritmo de produção era tão frenético como sempre, os contramestres andavam de um lado a outro pondo na linha quem estivesse morcegando e caminhões chegavam e saíam trazendo ou levando matéria prima e mercadorias. Então, subitamente o Kid Abelha apareceu, com um palco montado sobre uma estrutura de aço, talvez um guindaste, e tocou os operários um rock denúncia que tinha uma letra mais ou menos assim:

Vocês que continuama vida sem saberLogo vão compreenderque as máquinas os usame o dono só quer ter.Mas um dia tudo passa,vai a máquina parar.A quem vão perguntar o que fazer,vocês que seguem sem ouvir.Surfar fora da ondanão é loucura nem azarFora da onda porque háum momento de prazer.Fora da onda, fora da onda,ou a onda vai passare deixar você pra trás.Crie sua onda, fora da onda.

Enquanto eu contemplava a cena perplexo pela ideia de o Kid Abelha fazer uma canção de conteúdo político-filosófico-existencialista (o que equivaleria ao Pink Floyd regravar Jorge Benjor), apareceu o meu amigo dizendo que a fábrica estava prestes a ser vendida para um ferro-velho chinês e que devíamos sair dali porque os empregados organizariam uma arruaça. Ante a menção de uma arruaça organizada eu decidi que precisava comprar pão.

Com o painel do carro cheio de pães das mais variadas espécies eu dei uma carona ao meu amigo, que disse que precisava ir para a terra colorida de cinza e rosa. Eu lhe dei a carona dizendo que ia passar por lá a caminho de Kashmir.

Enquanto atravessávamos uma ruela de casas todas velhas e parecidas, meu amigo pediu que eu parasse o carro para ele fazer uma visita. Desci com ele e encontrei três avós deitadas em três camas em um quarto nos fundos de uma das casas. A avó dele era uma delas (não avó real, mas uma arquetípica) e pediu-lhe pão.

Então eu lhe disse que era muito tarde para comprar pão e lhe dei um pacote dos que eu havia comprado, provando que nos meus sonhos mais estranhos eu planejo com antecedência as coisas que eu nem sei se vão acontecer.

 Saímos daquela casa nos sentindo um pacote de pão mais pobres, porque sabíamos que apesar de tudo a senhora ia morrer, e ainda nos culpariam por ter-lhe dado pão.

— Foda-se o que pensem — protestou o meu amigo. Eu não ligo para as convenções malucas desta sociedade decadente. Minha avó pode ter oitenta anos de idade, mas vou lhe dar pão se ela quiser.

A última coisa que me lembro era de ver a velhinha revirando os olhos enquanto passava manteiga num pão.

No minuto seguinte eu acordei com vontade de urinar. Fui ao banheiro aliviar-me e vi Gregor Samsa recolhido, com medo, atrás do cesto de roupas. Notei que suas anteninhas tremiam de medo de meus pés, então prometi que não o esmagaria: deixaria que minha filha fizesse isso de manhã quando o visse.

Deitei de novo, ainda com o pescoço doendo de ter datilografado uma carta testamento antes de pôr a gravata. De repente lembrei do rosto do padre e pulei da cama como se estivesse acordando.  Minha mulher disse que me chutou, mas eu só me senti caindo através de um céu cheio de travesseiros e me recolhi de novo até a manhã.


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