Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
28
Nov 12
publicado por José Geraldo, às 20:44link do post | comentar | ver comentários (1)

Há momentos na vida em que você subitamente se dá conta de que as suas certezas viraram dúvidas, e tudo que era sólido parece poeira ao vento. Então você percebe que não adianta mais lutar, que a luta era uma violência inútil. Melhor render-se ao inevitável, flutuar na correnteza da vida, que todos sabemos para onde vai. Vai-se o anel, para a gaveta ou para o olvido, mas fica a mão inteira, e uma vida que resta.

Hoje foi um destes dias. Sinto-me imensamente triste, mas uma semente de alegria brilha sempre, porque descobrir a verdade, mesmo quando nos fere, é uma libertação. Cá estou nesta casa vazia, com meus raros móveis e meus sonhos — o tudo que me resta. A vida acaba de me roubar um pedaço do passado e um naco de futuro possível, mas não me roubou a esperança, essa coisa que ainda brilha no fundo do baú: pelo menos ainda é cedo.

Entendedores entenderão.

26
Nov 12
publicado por José Geraldo, às 20:22link do post | comentar

  • Em astronomia: “Mire na lua. Se errar, pelo menos estará entre as estrelas.”
  • Em política: “Cada povo tem o governo que merece.”
  • Em física: “Os opostos se atraem.”
  • Em economia: “Não me inveje. Trabalhe.”
  • Em matemática: “Vou rezar 1/3 para achar 1/2 de levá-la para 1/4 e ficar 1/1 com você.”
  • Em história: “Deus dá o frio conforme o cobertor.”
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24
Nov 12
publicado por José Geraldo, às 22:38link do post | comentar
Um humorista, não me lembro se britânico ou americano, certa vez definiu “colonização” como o processo através do qual um povo “insere” dentro de outro algo, que pode ser uma comunidade imigrante, uma indústria multinacional, um regime de governo ou outra coisa, e o faz de forma tão profunda que o povo “colonizado” passa a levar aquilo dentro de si, imperceptivelmente. À parte o caráter escatológico e sexual desta metáfora, ela serve bem para mostrar como, em pequenos gestos, as pessoas vitimadas pelo lento e quase imperceptível processo da colonização se tornam incapazes de perceber que se tornaram parte dele, também elas reforçando os mecanismos de dominação. Marx teria dito que estas pessoas, por estarem alienadas de seu papel na sociedade, não conseguem perceber como o seu papel na sociedade passou a ser utilizado por outras forças, sem o seu conhecimento e até de uma forma que elas não aprovariam se soubessem.


Neste blogue tenho frequentemente batalhado por migalhas de uma identidade brasileira, criticando subserviência desnecessária ou imitação sem sentido. Mesmo estas migalhas que eu aponto geram reações inamistosas. As pessoas não gostam que digam que foram “colonizadas”. Reagem, negam, agridem, tentam suprimir. Se possível, ignoram. Em geral, mesmo os meus leitores mais esclarecidos, me acham um paranoico  Talvez eu até seja. Mas mesmo um paranoico às vezes tem mesmo alguém atrás de si.

Hoje faço isso mais uma vez, pronto a ser chamado de diversos adjetivos. Quanto mais profunda a inserção do conteúdo estranho, quanto mais “colonizada” a mentalidade do indivíduo, maior seu empenho em negar. O viciado jura que cada gole poderia ser o último se ele quisesse que fosse. O colonizado jura que macaqueia a metrópole porque escolheu esse caminho por algum motivo.

Refiro-me ao capitão da seleção brasileira de futebol de salão que, ao voltar à sua cidade como herói do heptacampeonato mundial do esporte, apareceu no aeroporto trajando um uniforme da seleção estadunidense de pólo, com a bandeira ianque figurando proeminentemente e com as indefectíveis letras “U S A” pontificando acima desta. Ele já não é tão jovem para que digam que foi imaturidade, algo que o tempo supostamente conserta, mas certamente é inocente de uma forma lhe impede de ver além do imediato: ele sofre, como a maioria dos brasileiros, de uma profunda alienação em relação a seu papel no sistema de coisas. Não fosse alienado, ou estivesse assessorado por alguém que não seja, ele não teria usado, em momento tão importante de sua vida, uma camisa que glorifica um obscuro esporte praticado em outro país. Ao colocar aquela camisa sem pensar, o capitão de nosso escrete campeão passou subliminarmente a mensagem de que ele, o vencedor, idolatra, na verdade, um esporte e um país estrangeiros.

Dirão que foi humildade. Digo que foi só ignorância. As duas são muito parecidas na forma, diferem no conteúdo. O humilde recusa homenagens imerecidas, ou as transfere ao grupo. Um capitão humilde não teria desfilado em carro aberto com a taça, como ele fez, visto que esta pertence a ele tanto quanto a todos os demais integrantes do time. O ignorante comete erros que muitas vezes coincidem com as posturas dos humildes. O capitão, ignorando o simbolismo e o significado de sua própria conquista, maculou-a com uma demonstração de colonização cultural, ao usar aquela camisa.

Sim, eu sei que vocês não concordam. A maioria de vocês, mesmo não usando uma camisa como aquela, usaria outra camisa aleatória que poderia coincidir com alguma outra coisa que alguém criticasse. A maioria de vocês não teria a "sacada" de que o desembarque de um campeão é um momento para a história, que precisa ser planejado e que precisa receber um significado.

Esta é uma diferença importante entre nossos campeões e os dos outros. Nossos campeões adoram posar de super homens, reclamando das condições que enfrentaram, mesmo quando tiveram apoios importantes. O simples fato de eles viverem no Brasil já significa que não têm e nem poderiam ter condições semelhantes às dos atletas de países desenvolvidos. Então esta reclamação nem sempre é justa. Mas o que o capitão da seleção de futsal fez foi, para mim, um pouco pior: ele encarou sua conquista como algo que lhe pertence, pessoalmente. Por isso não planejou seu retorno triunfal, vestiu-se de qualquer jeito, com uma camisa que uma figura pública como ele nem deveria ter, e deixou-se fotografar para um momento que pode ficar na história usando uma camisa que alude à nação hegemônica do mundo.

Ficou feio para ele. E não espero que vocês concordem comigo. Afinal, vocês não acharam feio. Só lamento que tantas pessoas tolerem a insidiosa colonização a que somos submetidos.

23
Nov 12
publicado por José Geraldo, às 21:46link do post | comentar | ver comentários (4)
Ontem, já no comecinho da madrugada, terminei de assistir, via YouTube, o filme “Stalker”, dirigido Andrei Tarkovsky, filmado em 1979, a partir de roteiro escrito pelo próprio diretor, baseado no romance “Piquenique na Estrada”, dos irmãos Bóris e Arcádio Strugatsky, gênios da ficção científica soviética. Romance este que eu já havia comentado elogiosamente aqui, não faz muito tempo.

Desde que lera o romance e ouvira falar do filme, minha obsessão foi encontrar uma forma de assisti-lo. Ficção científica soviética é algo que me interessa muitíssimo (aliás, toda a cultura soviética me interessa demais). Tanto a escrita quanto a que for filmada, cantada ou declamada em versos. Gosto de ficção científica, e mais ainda da que se fazia por detrás da cortina de ferro. Acontece que filmes de arte não passam na televisão brasileira, essa autêntica máquina de fazer doido, o que não dizer, então, de um filme de arte soviético de 1979! Felizmente a produtora estatal soviética Mosfilm, que ainda existe, fez um favor à humanidade e está digitalizando e remasterizando todo o seu catálogo e colocando no YouTube. Eu já tivera a oportunidade de assistir um filme de terror soviético chamado “Viy”, de 1967 (futuramente falarei sobre ele) e a experiência da estética da Mosfilm me impressionara muito.

Eu não estava preparado, porém, para encontrar o que Tarkovsky entrega neste filme. Duvido que alguém esteja — e é difícil explicar exatamente que tipos de impactos o filme causa em quem leu o livro, sem estragar o prazer de quem se proponha a assistir o primeiro ou ler o segundo. Não quero estragar este prazer, por isso tentarei ser econômico em minhas descrições.

Começo falando da trilha sonora, que é uma atração à parte.  Eduard Artemiev compôs a música, tocada em sintetizadores e instrumentos étnicos, e também compôs os ruídos ambientes do filme.  Sim, todo o som do filme, exceto as vozes dos atores, foi “composto” e “tocado” por Artemiev em estranhos sintetizadores artesanais ou usando métodos primitivos mesmo, como tambores, metais, pedras e canos. E muita água. Não tem uma cena seca no filme inteiro. Todo mundo molhado, úmido ou mofado, o tempo todo. Na sequência de abertura ouve-se música, no resto do filme a “trilha” sonora, totalmente atonal e sem seguir nenhum ritmo musical específico, se dedica a acompanhar a ação, fazendo-se presente nos ruídos incidentais (nem uma pedra cai no chão com um som natural), na respiração dos personagens e em interferências sonoras distorcidas que lembram os momentos mais experimentais do Pink Floyd em “Ummagumma”. O fato de Artemiev também ter feito os ruídos (em vez de o sonoplasta capturá-los no ambiente, ou coisa assim) faz o filme ter uma atmosfera surreal, irreal. Um filme no qual os únicos sons naturais são as vozes dos atores é algo que soa “de outro mundo” — e esta foi exatamente a impressão que Tarkovsky quis causar: dentro da “Zona” os sons são surreais porque ali as leis naturais estão afetadas por algo que o homem não entende. É preciso falar, então, deste fenômeno.

No filme de Tarkovsky se fala muito menos da natureza da “Zona” do que no romance dos irmãos Strugatsky, que já não fala quase nada dela. Apenas um diálogo entre os protagonistas, no qual o “professor” explica ao “escritor” que a “Zona” é resultado de um fenômeno inexplicado, que originalmente se pensara ter sido a queda de um meteorito. Não tendo sido encontrado nenhum meteorito, e com as mortes de centenas de pessoas curiosas que a exploravam, o governo tentou destrui-la, mas não conseguiu, pois seus tanques e aviões não funcionaram bem, e foram abandonados por soldados apavorados. Desde então o governo cercou toda a “Zona” com arame farpado eletrificado e muros de cimento e a protegeu com uma patrulha de soldados com ordens de atirar para matar em todos que tentem entrar. Neste sentido, a “Zona” do filme se parece muito com Berlim Ocidental durante a Guerra Fria (um pensamento que não me ocorreu em momento algum durante a leitura do livro). Tarkovsky realmente tinha “cojones” se isso procede, e ainda os teria de qualquer forma, pois a semelhança, mesmo que involuntária, é evidente. Mesmo porque, no filme parece haver a sugestão de que a “Zona” é única.

No romance a “Zona” não é única: existem várias, todas elas alinhadas de maneira curiosa, no sentido da rotação da terra, segundo um padrão que é chamado de “Radiante de Pilman” (leia o livro e caia na gargalhada com a explicação desta expressão e com a história de sua descoberta). Além do mais, o seu caráter é bem menos ambíguo que o do filme: as “Zonas” são mesmo o produto de uma visitação alienígena (daí o título “Piquenique na Estrada”, que é outra ótima piada de humor ultra-negro que você entende lá pela vigésima página). Não existe qualquer sentido de que a “Zona” seja um lugar desejável para se entrar e quase ninguém quer ir lá: somente os “stalkers”, que são pessoas que adentram lá de forma semi profissional.

Muda também a motivação dos “stalkers”: no livro eles fazem por dinheiro, visto que em cada “Zona” podem ser encontrados objetos os mais diversos que alcançam alto preço porque são completamente inexplicáveis, como as garrafas que nunca enchem e as que nunca esvaziam (ambas chamadas de “ânforas”), entre outros. No filme eles levam pessoas desesperadas até o “Quarto”, um local dentro da “Zona” no qual os mais íntimos desejos de cada pessoa são realizados. O “Quarto” também existe no livro, mas não domina a ação da forma como ocorre no filme.

A ação do filme, aliás, é totalmente diferente do livro. A começar pelas visitas à “Zona”. No livro ocorrem duas: na primeira o “stalker” conduz o “professor” em uma busca por artefatos que serão estudados pelo Instituto Internacional para Pesquisas Extraterrestres (note que a afirmação de que as “Zonas” são o produto de uma visitação alienígena é explícita) e na segunda ele conduz o “escritor” (que é um personagem bem diferente) até o “Quarto”. A primeira visita ocorre quando o “stalker” ainda é jovem (aos 23 anos) e a segunda, quando ele já está envelhecido precocemente (aos 31 anos). O filme parece mesclar as duas visitas em uma só, transferindo o “professor” para a segunda e mudando o seu objetivo.

O tipo de ação também é diferente. O livro tem um ritmo de aventura, apesar da narrativa lenta — cheia de paradas para trocadilhos, piadas de humor negro sutilmente disfarçadas no subtexto ou meramente para descrições precisas dos arredores. O filme não tem nada disso. No livro há muitos personagens, ocorrem mortes trágicas, perseguições, prisões, brigas. No filme só vemos seis personagens e ação é toda concentrada em torno deles. Um filme fiel ao livro teria que ser cheio de efeitos especiais, para conseguir representar os inúmeros fenômenos e objetos existentes nas “Zonas”, como o “moedor de carne”, o “leito dos mosquitos” ou o “véu das fadas” (todos nomes que evocam a aparência, não a essência desses fenômenos). No filme nenhum destes fenômenos sensacionais ocorre: não há efeitos especiais quase, mas há sim, certos fenômenos claramente sobrenaturais, embora os personagens, às vezes, se recusem a admitir isso. Entre estes fenômenos está a voz sob a árvore, que amedronta o “escritor”, os morcegos na sala de sal e a brincadeira da filha do “stalker”. A grande diferença está no foco. O livro, apesar de ser feito com palavras, foca na evocação de imagens sensacionais, de outro mundo. O filme, apesar de feito com imagens, prefere evocar palavras. Os personagens do livro andam, pensam, agem, reagem. Os personagens do livro dialogam sobre seus dilemas existenciais, sobre a “Zona”, sobre suas expectativas, sobre seus medos.

Para alguém que busca um filme de ação, "Stalker" é uma decepção total. Mas para alguém que busca um filme realmente intrigante, que faça pensar e que mude seu modo de pensar, então não há filme melhor. As metáforas políticas e artísticas são constantes. Os personagens dialogam sobre temas universais. O diálogo entre o "professor" e o "escritor", à beira do "túnel seco" (uma ironia) é de um impacto profundo, especialmente se você também escreve.

Também é preciso mencionar a pequena "Macaca", a filha do Stalker. No livro ela é uma mutante de olhos negros (no sentido de "totalmente negros") e corpo coberto de pelos dourados, exceto pelas mãos, pés e rosto. Por isso, e também porque ela é extremamente ágil e muito lacônica, foi que a chamaram de "Macaca". No filme, paradoxalmente, ela é paralítica, tem olhos normais e não fala — embora ande o tempo todo coberta por véus, luvas e calçados, que só deixam de fora o seu rosto. Acho que a diferença entre as duas resume as diferenças entre o livro e o filme. O primeiro descreve muito, para trazer o leitor para dentro da história. Os personagens são explícitos, abertos. No filme, porém, que já tem o leitor no cenário e na história, os personagens se fecham, se protegem, revelam o mínimo. O livro procura convencer sobre a existência de coisas que não existem. O filme, partindo do pressuposto de que você acredita na existência de tudo, controla (ou melhor, sonega) as informações e ataca suas certezas, até que você comece a pensar uma coisa, e depois outra, e depois uma terceira. E quando termina, você não sabe se está realmente decepcionado ou se jamais esquecerá as imagens que viu e os diálogos que ouviu.  E se você acha que foi M. Night Shyamalan que inventou o final surpreendente, com "O Sexto Sentido", espere até ver a cena final de "Stalker", que contraria e decompõe boa parte do que foi dito pelos personagens e das conclusões que você foi tirando ao longo da narrativa!

Um último e macabro detalhe a respeito do filme é que ele foi todo rodado dentro das instalações abandonadas de uma indústria química estoniana, à beira do Mar Báltico. Uma região incrivelmente úmida, verdejante e bela. Ali, fábricas poluidoras e usinas nucleares em péssimo estado criavam uma paisagem de natureza semidestruída. Os lugares haviam sido abandonados porque eram imprestáveis para a vida humana — tal como a "Zona". Foi lá que Tarkovsky escolheu filmar. Entre rios cobertos de grossas capas de espuma marrom, pântanos pútridos, fumaças densas e chuvas ácidas. Uma "Zona" criada pelo desastre do homem, não pela interferência dos céus. E Tarkovsky submeteu seus atores, sem o uso de dublês, ao clima intratável  e à insalubridade do lugar, fazendo-os vadear por rios sujos, tatear por túneis por onde sabe Deus o que fora bombeado. Anos depois Tarkovsky, os três atores que interpretaram os personagens perambuladores pela "Zona" e vários técnicos de filmagem morreram de tumores os mais diversos. Posteriormente o governo russo divulgou documentos que evidenciavam que o lugar estava contaminado por plutônio de uma usina nuclar desativada e por produtos químicos altamente cancerígenos de uma fábrica de pesticidas que ainda estava em funcionamento parcial.

21
Nov 12
publicado por José Geraldo, às 20:30link do post | comentar
Ninguém vivia muito tempo para prestar atenção ao tempo, que era sempre o presente, cada vez que amanhecia. Significava que a noite terminara sem o encontro de uma fera, sem as garras gélidas da terra rasgarem. O passado só existia através do mito, das coisas acontecidas ninguém sabia quando, nem onde, nem com quem. O mito também era uma espécie de tempo coagulado, cíclico, interminável. Alguém poderia pensar que era horrível ser um deus, e ter que refazer a criação do mundo sempre, ter que viver sempre a fazer as mesmas coisas.

Mas quando justamente ninguém viveria muito tempo, era possível ainda viver com vagar. Diante de tão pouco tempo, a coisa sábia que se fazia era viver cada hora com a profundidade de uma pequena eternidade. E as semanas, passadas ao mito, se acumulavam na memória sem saudade. Saudade existe quando a gente descobre que o tempo passa. Jovens demoram nisso: nenhum jovem sabe que morrerá.

Cada nova civilização descobriu um modo de criar velocidade. Mas nenhuma conseguiu a perfeição antes da nossa: somos os animais mais velozes que já existiram. Temos pressa, muita pressa, porque vivemos muito. Parece um paradoxo, visto que os homens das cavernas viviam com um peso tão diferente. Mas nós temos essa pressa porque, por mais que tenhamos esticado o cordão da vida até rebentar por si, sem crime e sem doença, a verdade é que o tempo imenso que obtivemos nos parece pouco, porque sabemos que morreremos.

Nós, os velozes, somos os primeiros mortais inteiramente cônscios disso. Sabemos disso em nossos ossos, porque os nossos olhos e mentes ainda se recusam a crer. A saudade e a pressa existem porque somos muito velhos no mundo, porque temos muitos velhos. Na época em que não havia velhos, era como se ninguém fosse nunca morrer, como se cada óbito fosse uma fatalidade, uma interferência dos deuses, alguma coisa assim. Era uma espécie de imortalidade, que terminava sempre quando alguém ou algo interferia.

Não temos tempo para viver cada dia, porque temos uma vida inteira pela frente. Uma vida inteira significa toda a vida que se pode ter. Não há outra, não há mais, não há cheque especial no saldo dos anos, não há mais gasolina para a alma. O peso disso nos faz correr, e tudo se torna provisório.

17
Nov 12
publicado por José Geraldo, às 20:37link do post | comentar
Analisando as estatísticas deste blogue descobri que nas últimas semanas um número significativo de pessoas aqui chegou, vindas do Google, pesquisando a expressão «brontops baruq». Fiquei curioso de saber o que raios isso significaria e fiz a pesquisa. Estranhamente meu blogue não apareceu nos resultados, o que só aumentou minha estupefação. Mas descobri a existência de um blogueiro que usa este pseudônimo.

Bem o fato de um blogueiro usar um pseudônimo assim original, em vez de fingir ser gringo e se chamar de Johnny, me fez ter vontade de ler. Descobri que o cara escreve bem, lendo um ótimo comentário seu sobre os mata-borrões. Mas não há lá nenhuma referência ao meu nome ou ao nome do meu blogue.

Persiste então o mistério: como chegaram até mim digitando «brontops baruq» no Google?
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16
Nov 12
publicado por José Geraldo, às 23:27link do post | comentar | ver comentários (3)
Uma amiga postou hoje «numa rede social» (estilo Rede Globo de mencionar não mencionando) que estava com vontade de largar tudo e sumir. Minha primeira reação ao ler o seu comentário foi um pensamento singelo: por que pensamos sempre que, antes de fugir, temos de largar tudo. O que é esse «tudo» e o que representa esse «largar»? Fugir para onde?

Alguém já disse que a Aldeia Global significa que não haverá asilo para ninguém em lugar algum. A frase foi dita num contexto político, mas não é preciso ser um dissidente para se sentir desalojado neste mundo: aonde poderemos ir e achar a paz? Fugiremos para que parte do planeta? Por que não podemos levar «tudo» para lá?

Talvez seja porque exatamente «tudo» seja o que nos faz ter vontade de fugir. Temos «tudo», e isso significa uma falta imensa, um buraco indefinido, que em alguns tem a forma de Deus, em outros tem a forma de qualquer coisa que elejam como séria. Temos tanta coisa. Talvez sonhemos com uma época mais feliz, em que poderíamos carregar «tudo» em uma mochila e sair perambulando pelo mundo. Uma época em que éramos bosquímanos nos planaltos da África Austral, verdadeira felicidade.

Como eu poderia fugir amanhã pela manhã, se isso fosse necessário? Poderia eu desaparecer deixando para trás todos esses móveis, esse computador, minha coleção de discos de rock, minha pequena biblioteca, minha impressora laser, minha geladeira frost-free, minha televisão com tela de plasma de 36 polegadas? Poderia eu carregar meu aparelho de telefone celular, meu cartão de crédito, meus remédios controlados, meu fio dental mentolado e o papel higiênico macio? Quanto de minha vida cabe no meu carro? Poderia eu fugir num carro? Como pagar pela sua gasolina depois de alguns quilômetros?

Largar tudo e fugir, a suprema utopia. O único lugar aonde ainda podemos ir sem levar «tudo» é o túmulo, pois da vida só o «nada» se leva. Enquanto isso vivemos ancorados em nossos portos inseguros, amarrados a armários, fogões, fornos de micro ondas, baixelas de aço inox, e todos esses confortos.

Ontem à tarde, ao voltar de Leopoldina, topei com dois andarilhos pela estrada. Sujos, magros, despenteados, mas vestidos com alinho. Ele com um terno amarrotado e ela com uma roupa de estilo indistinguível. Caminhavam lentamente, com a pouca pressa de quem sabe que vai chegar, fatalmente. Iam trocando palavras e gestos de afeto. Observei-os pelo retrovisor até eles sumirem na curva: ali estavam dois que poderiam fugir largando tudo. Talvez até já tivessem largado. Até mesmo suas vidas. Vagam pelas estradas como fantasmas sem destino. Possuem o nada.

Não os invejei, porém. Gosto das minhas âncoras, de todos os certificados que coleciono em pastas bonitas. Gosto desta varanda. Não quero largar tudo e fugir, mesmo sentido o peso de todas estas coisas tolhendo as minhas pernas aos poucos, mesmo que tudo me afogue devagar, num mar de compromissos e contradições. Talvez a minha amiga, como eu, saiba que não é possível mesmo largar tudo, não sem largar a vida. Estamos condenados ao tudo.

10
Nov 12
publicado por José Geraldo, às 23:49link do post | comentar | ver comentários (2)
ou «Porque os discursos superficiais de ódio ecoam com tanto vigor»
Acabo de me deparar no Facebook com alguém compartilhando a pequena história em quadrinhos acima. Logo que a li percebi que ali havia assunto para mais do que meramente um «Curtir» ou um «Compartilhar», mesmo porque não me senti impelido a nenhuma das duas coisas. Como aquela rede social não é muito receptiva a elucubrações mais compridas, preferi postar aqui, mesmo sabendo que menos gente lerá, curtirá ou compartilhará.


A tirinha expressa, de fato, muito mais do que está dito nas palavras de seu protagonista: ela é a vingança, possibilitada pela instantaneidade do fluxo de informações na internet, daqueles que sempre detestaram a poesia, mas sempre tiveram esse ressentimento represado pela inexistência de um canal que o amplificasse e difundisse. Estas pessoas a quem chamo de «ressentidas» sempre existiram, não passaram a surgir ontem, e possivelmente existiam antes em número muito mais significativo em relação à população em geral.

Portanto, que ninguém interprete esse texto como uma catilinária contra nossos tempos e costumes. Limitar-me a isso seria, de fato, dar eco à crítica, pois seria uma defesa estúpida de algo que, por si, não carece de defesa. Aquilo que existe por si não carece de justificativas. As coisas não têm, em si, nenhuma razão moral de ser, como muito bem disse Nietzsche, em um aforisma que é útil em múltiplos sentidos: não existem fenômenos morais, apenas derivações (ou explicações, segundo algumas traduções) morais dos fenômenos. Muita gente «odeia» a poesia, e no entanto a poesia existe, permanece e existirá. Como disse Mário Quintana, «toda essa gente que fica atravancando o meu caminho, eles passarão, eu passarinho».

O que cabe ser dito é, de fato, tentar entender a consistência desse «ódio» (que vai entre aspas doravante, posto que não é um ódio de fato, mas uma coisa outra, que obedece a leis diferentes do ódio em si, que é uma reação irracional momentânea). É preciso que investiguemos a natureza desse ódio, agora que ele extravasa dos bueiros por onde corria, pois já não é possível ignorarmos que algo cheira mal nessa metafórica Dinamarca.

A principal manifestação do «ódio» à poesia se dirige não contra o texto em si, mas contra o «poeta», este ser esfíngico, admirado de uma forma torta e inadequada, a ponto de a palavra ter sido tomada como epíteto por compositores populares (nem sempre poéticos) e apropriada até mesmo em ditos populares: «fulano, calado, é um poeta». Este «ódio» é, de fato, apenas uma faceta da discriminação agressiva (ou «bullying» como hoje se diz) contra os tipos sociais divergentes de uma norma impositiva. Em uma sociedade como a nossa, na qual a cultura originalmente foi apenas um verniz de civilização, tangibilizado por um diploma devidamente europeu ou pela prática de costumes importados daquelas latitudes, sempre foi natural que certos comportamentos fossem circunscritos a certos grupos sociais. Assim como se espera que o negro seja malemolente, que o suburbano seja esperto, que o interiorano seja ingênuo e que o baiano seja indolente; nunca se esperou que alguém do povo possuísse, de fato, os tiques e taques privativos da elite, entre os quais diplomas, erudição e talentos artísticos. Pobre não faz arte, faz artesanato, não faz poesia, mas faz letra de música. Mais ou menos assim.

Exceções acontecem, quando devidamente legitimadas pela elite, que está frequentemente em busca de ídolos, como um Machado de Assis. Mas quando o talento, mesmo equivalente, não encontra essa legitimação, por alguma razão nem sempre inteligível, o pobre artista, além de fustigado pela pobreza que persiste, ainda sofre o escárnio de uma sociedade que vê nele como postiça e ilegítima a mesma atitude que louva como visceral e própria em um dos luminares escolhidos. Um breve estudo comparativo das obras e biografias de artistas malditos, como Lima Barreto ou Cruz e Sousa, por exemplo, nos deixa com a pergunta incômoda sobre o motivo de não terem sido aceitos por um sistema que aceitava gente de talento evidentemente menor.

As explicações estão dadas acima: residem na divisão de classes de cunho pós-escravagista, divisão que só permite a ascensão social daqueles que são, por alguma razão, «aceitos» pelo sistema. Daqueles que são «branqueados» no processo, tal e qual os pecadores são «lavados no sangue do Cordeiro» para poderem entrar no Reino dos Céus.


Este quadrinho, porém, vai mais fundo do que esta manifestação de escárnio contra os «patinhos feios», que sempre existiu e pôde ser sentida por todos nós que escrevemos, pelo menos uma vez ou duas na vida, a menos que tenhamos sido abençoados com uma idiotice beatífica que nos impede de enxergar o desprezo alheio, ou tenhamos adquirido um calo sensorial que nos insensibiliza para isso. Vai mais fundo porque ele não se limita a zombar dos que «ousam» ser poetas sem terem sido, previamente, autorizados a isso, por um concurso, uma editora, uma academia ou a bênção de um figurão das nossas letras belas. Zomba da poesia em si,  e isso nos exige uma reflexão além.

Por que alguém odiaria poesia, a ponto de execrá-la publicamente, dizendo que «limparia a bunda» com a obra de Augusto dos Anjos? A escatologia é um argumento fácil para quem não tem argumentos. O macaco atira excrementos nos visitantes do zoológico. Não obstante ele continua sendo o macaco,  e os visitantes continuam sendo os visitantes. Atirar excrementos não modifica a situação de submissão e desumanidade do símio enjaulado e nem desumaniza os visitantes, que poderão lavar-se depois e ter uma divertida história para contar. E limpar a bunda com a poesia de Augusto dos Anjos em nada a modifica, e nem à bunda de quem a usou para tal fim. Evidentemente essa manifestação bárbara de desprezo pela obra de alguém que morreu há tanto tempo expressa algum tipo de sentimento mais profundo e duradouro do que o desprazer de não ter gostado de um ou dois sonetos. Qual a jaula mental onde se encontra este ser que recorre a excrementos para agredir aquilo que não entende?

Vivemos atualmente uma fase perigosa no mundo, após tantas décadas de triunfo da ciência, com suas conquistas e perigos, com os dois gumes de seus conhecimentos, com a exigência de responsabilidade diante das múltiplas possibilidades de cada conquista nova. Parece que muita gente se assusta com a obrigação de escolher se vai usar a radiação para curar o câncer ou para causá-lo, se vai usar o foguete para nos levar à Lua ou de volta à Idade da Pedra. Diante desses dilemas, há hoje quem reaja ao modo do avestruz mitológico (não o real), que enfia a cabeça na areia diante do susto. Refiro-me à reação anti intelectual que grassa pelo mundo e que, apesar de nossa ignorância de periferia deslumbrada, não começou aqui.

O modo de pensar anti intelectual, não irracional, não confundam por favor, surgiu, de fato, nos Estados Unidos, nos anos sessenta, e hoje podemos ver com clareza como. Alan Bloom já o havia percebido em 1986, ano em que escreveu uma obra hoje esquecida, mas que devia ser mais lida: The Closing of the American Mind («O Fechamento das Mentes Americanas», traduzido porcamente para o português como «O Declínio da Cultura Ocidental», refletindo a subserviência do tradutor e editores, prontos a aceitar o império ianque não apenas como centro do mundo, mas resumo dele). O anti intelectualismo é a crença de que as imperfeições da ciência significam que as soluções científicas não devem ser buscadas. Houve vários momentos de triunfo desta mentalidade, e talvez o mais significativo tenha sido a «luta antimanicomial», que ajudou a desmantelar toda tentativa de abordagem e tratamento científico das patologias da mente em nome de uma filosofia segundo a qual os limites entre a loucura e a normalidade seriam uma convenção social. Ora, vivemos em uma sociedade, e quase tudo nela é convenção social. O triunfo do anti intelectualismo consiste em convencer-nos de que o fato de vivermos sob convenções significa que as convenções são arbitrárias e políticas baseadas nelas são injustas. Em vez de buscar aperfeiçoar as convenções, devemos aboli-las. Com toda sua virtude humanista, a luta antimanicomial abriu caminho para o questionamento da ciência enquanto alternativa viável de abordagem dos problemas sociais. Isto acaba sendo útil aos sistemas de poder, especialmente quando surgem indícios de ação humana na modificação dos padrões climáticos da Terra. Se a ciência está em xeque, então as decisões políticas não precisam considerá-la. Eis o monstro criado pela luta antimanicomial a longo prazo. Tal como não precisamos tratar dos loucos, pois a loucura é uma categoria arbitrária imposta pela cultura, também não precisamos evitar as modificações ambientais que inadvertidamente causamos por nosso estilo de vida, pois os modelos e parâmetros usados pela ciência para determinar a realidade destas modificações são também arbitrários e sujeitos a influências culturais.

O anti intelectualismo é um populismo filosófico. Nada afaga mais o ego instável do ignorante do que ser chamado de sábio. Chame um homem por aquilo que não é e ele se sentirá feliz, desde que acredite sinceramente que não há malícia de sua parte. Desde que ele esteja seguro de que a calúnia é imerecida e o elogio é verdadeiro. Do contrário, se supuser a calúnia uma realidade e o elogio, uma falsidade, reagirá com agressividade. Eu já havia notado isso em 2010, quando escrevi «O Sábio Louco e o Ignorante Vigoroso», pequeno texto no qual observei que, como disse Caetano Veloso, «Narciso odeia tudo que não é espelho». O ignorante odeia o sábio por ele ser sábio, mas quer ter, ele mesmo, o nome de sábio. Diga ao ignorante que o sábio não o é, mas ele sim, e, caso a afirmativa inspire confiança, o afago ao ego do idiota produzirá um deslumbre genuíno.

O ignorante precisa acreditar que não há prejuízo em sua ignorância. De outra forma, sente-se incompleto, precário. Para combater esta sensação de vazio, que o inquieta mas ele não sabe expressar, ele busca o elogio, busca a sensação segura de que «sabe». Venda a este cara a ilusão de que «sabe», de que «pode saber em apenas cinco lições» ou, melhor ainda, que «já sabe». Olavo de Carvalho acredita que conseguiu desmentir Newton e Einstein. Muitos são os que o elogiam, fazendo com que ele se sinta, de fato, um injustiçado pelo Nobel. Dão-lhe até medalha para melhorar a ilusão. Que se multiplica através dos excrementos verbais que ele difunde, e que são assimilados e replicados por outros que, tão vazios quanto ele, aceitamo como sucedânea do conhecimento a mistificação que ele divulga.

Este fenômeno é reforçado quando o ignorante possui algum conhecimento, mas só um pouco. Temei ao homem de um livro só, disse o santo filósofo. Ele não conhece, de fato, quase nada do mundo, mas domina tão bem seu quase nada que adquire uma certeza, uma autoconfiança que intimida. E agarra-se a esta migalha, que lhe confere autoridade.

E onde entra nisso a poesia? Pobre poesia, pobre e inútil poesia. Que sempre sofreu com esta pecha de inutil, e graças a Deus que ela o é. A pior coisa que pode acontecer à literatura é que lhe encontrem alguma utilidade. Não há maior tédio do que nos livros julgados os mais adequados pelo sistema educacional. Se tachados de «educativos» então, aí se encontra um indutor de letargia mais poderoso que a mosca tsé-tsé.

A poesia entra nisso como mais uma manifestação de intelectualidade. Se vivemos uma reação contra a intelectualidade que é útil (ninguém duvida das previsões do tempo, ora bolas, nem da capacidade voadora dos aviões e foguetes), quanto mais contra as pobres formas inúteis de intelectualidade! É muito fácil falar contra a poesia: é algo que poucos entendem, que raros gostam, que poucos praticam. É um saco de pancadas tradicional daqueles que sempre satirizaram os pendores de questionamento que brotassem da boca do pobre. A poesia é o senhor gordo e lento no qual o macaco consegue acertar mais excrementos.

09
Nov 12
publicado por José Geraldo, às 00:12link do post | comentar

O poetinha desceu do ônibus já suado e despenteado. O óculos empenado na cara, a camisa amassada pela viagem desajeitada, a umidade incomodando por debaixo da roupa, o hálito amargo devido ao nervoso e ao fígado. Bateu no peito para ter certeza de que seu poema, copiado com capricho na velha máquina de escrever, se encontrava ainda intacto. Não estava: tanto suor o amolecera. Retirou-o do bolso e desdobrou com cuidado, quase com lágrimas. O mesmo calor que o molhara não o secaria. Xingou algum palavrão absoluto, mas timidamente o fez. Preferiu cruzar a rua em direção ao humilde teatro onde teria lugar o concurso municipal de poesia, para o qual se inscrevera com aquelas gotejantes exalações das chagas de sua alma torturada. Esperava a glória, não meros três mil reais de prêmio. Mas na falta da glória, o dinheiro cairia bem. Não é verdade que se compra a glória com dinheiro, dinheiro é só uma desculpa que a gente usa, o consolo da glória inatingida, inatingível, definitivamente deixada em outra esquina, numa rua diferente da que tomamos, possivelmente noutro bairro, cidade ou planeta. Quando ganhamos dinheiro a saudade da glória dói um pouco menos, mas ainda dói.

Tinha “vinte e cinco anos de sonho, de sangue e de América do Sul” e “por força desse destino” ouvia o som dos gringos e lia a poesia dos mortos. Julgava-se inteligente o bastante: conhecia as antologias. Estava muito bem informado, de tudo que tocava no rádio ou saía no jornal. Estava na moda, em perfeita simetria com com a televisão e o cinema. Sei que, assim falando, dá para pensar que esse jeito era o óbvio de 93, mas de fato o poetinha era especial de uma maneira: não conseguira ser igual a todos os demais, então restava-lhe o destino de ser diferente. Não por escolha — que teria preferido uma cara mais bonita, uma família rica ou um pinto bem maior.

E estava ali diante do teatro municipal como se fosse receber um prêmio internacional.

Quando chegou ao outro lado da rua, já estranhando que houvesse tão pouca gente, percebeu que Isaura estava sob a sombra de um oiti, vigiando sua chegada como quem tocaia sua caça. Ele não a convidara, claro. Não supusera que poesia lhe interessasse mais do que a vida sexual das tarântulas. Mas ela soubera do concurso, de alguma forma, e viera. Sua primeira esperança foi o engano: talvez só fosse alguém parecida. Esperança falha:

—Boa noite, Isaura. Que surpresa vê-la por aqui?

—Boa noite, Cacai. Você não me convidou, mas eu vim.

—Desculpa não convidar, mas eu não sabia que você gostava de poesia.

—Eu gosto de você.

Então Isaura não viera atrás de poesia, viera mesmo para vigiá-lo, como imaginara.

—Veio sozinha?

—Desculpa não trazer plateia, querido, mas fiquei sabendo muito em cima da hora.

Tomou-a pelo braço e foi entrando. Isaura não era exatamente bonita, mas tinha um corpinho jeitoso, uma voz que não era excessivamente doce e uma dose cavalar de ciúmes injetada nos olhos.

Dentro do teatro fazia uma temparatura que agradaria a Lúcifer. Os ventiladores pareciam maçaricos e as janelas, bocas de fornalhas. Algumas senhoras da sociedade padeciam de leques fora de moda e de uma vontade impossível de falar, tão custoso o esforço de qualquer músculo naquelas circunstâncias. Por sorte anoitecia já, e logo aquele ambiente saariano melhoraria. Demoraria só o suficiente para sua camisa terminar de ficar molhada, seu cabelo arrepiado, seu rosto engordurado de transpiração, o papel ainda mais molengo e os óculos embaçados escorregando no nariz, querendo cair.

Sentaram-se o mais perto possível da porta, pois aquela parede do teatro ficava pelo menos meio oculta pelas copas gordas das árvores. Alguns loucos haviam se sentado junto à parede que acabara de receber o sol de toda a tarde. Mas eles não suavam tanto: não tinham vindo de ônibus e os tecidos caros de suas roupas eram mais porosos à temperatura.

O mestre de cerimônias subiu ao palco, fazendo o teste dos microfones e convidando quem ainda tivesse que entrar. Então apareceu gente de todos os lugares inimagináveis, bem poucos entrando pela porta frontal. Só faltou alguém entrar pela janela lateral, a que se debruçava sobre o fétido riacho, porque pelo menos de uma outra janela entrou alguém. Uma moça de vestido verde, cafona a ponto de parecer cortado de uma cortina velha, tomou a palavra e convidou os autores presentes a se dirigirem aos bastidores, para identificarem-se e tomar conhecimento do protocolo. O poetinha se levantou, pernas bambas e óculos quase caindo da ponta do nariz, e acompanhou-a, juntamente com vários outros, por uma porta ao lado do pequeno palco.

Os bastidores estavam razoavelmente frescos, graças a um aparelho de ar condicionado e ao isolamento termoacústico. Naquele ambiente tão controlado e silencioso o poetinha pôde contemplar os que, com ele, lutariam pela glória das musas.

Era um grupo bastante heterogêneo, com tantas idades, sexos e cores quanto possível. Havia um velhinho de terno que declamava em cochichos, parecendo ensaiar-se, uma garota que não parecia ter mais de quinze anos, um senhor gorducho que usava uma estranha camisa azul estampada de flores psicodélicas, um rapaz que aparentava algum tipo de deficiência mental, uma senhora empertigada, que olhava a todos com um jeito de professora, um sujeito cabeludo, desarrumado e de olhos tristes… e a moça de vestido azul voltou, pedindo a atenção de todos antes que o poetinha tivesse conseguido fixar-se mentalmente em cada um.

— Senhoras, senhores. Venham comigo.

Acompanharam-na até a orquestra, onde foram convidados a sentar-se.

— Permanecerão aqui aguardando a vez. Cada um se levantará quando chamado e se dirigirá ao palco, juntamente com os seus parceiros. Durante as apresentações, pedimos que os que estiverem aguardando, e os que já tiverem se apresentado, permaneçam em silêncio.

O palco, enfeitado de flores de plástico e papel crepom, tinha uma larga mesa para abrigar sete jurados. “Para que tantos?” — pensou o poetinha. Sentou num lugar tão obscuro quanto possível. Deu uma olhada para trás, para ver Irene lá, sentada e acenando. Os demais foram se aboletando cada um a seu gosto.

Resolveu que não os olharia. Fixar-se neles o faria nervoso. Abriu o papel e recomeçou a repetir os versos, que ele mesmo escrevera, mas que pareciam fugidios como se tivessem sido extraídos de uma bíblia marciana.

Não há um número de 0900para encomendar o que lhe falta,mas mesmo então mantenha calmae não quebre ainda o telefonese a noite conseguir inquietar-lhe.Ele é só uma máquina sem culpa,que por dinheiro você pode usar.Não há nenhum comando própriopara desligar da alma essa dor,mas ainda assim mantenha a calmae não quebre o seu computador.Se você lhe perguntar aonde irele não terá resposta para dar:ele é só uma máquina estúpidaque não mente para lhe agradar.Desligue a tomada da paredee todo o perigo vai passar.Não há nenhuma lata que contenhasabores similares ao amor que houve,mas não deprede nunca o mercadose o que mais lhe falta em casanão pode ser comprado lá.Ali é só um refúgio de consumo,templo de quem come em vez de amar.Está tudo certo se você sair,desde que não saia sem pagar.Mas não creia no que dizem esses rótulos,esqueça tudo, tudo está errado:nem prateleiras nem teclados lhe respondemse você lhes perguntar pelo passado.

Tinha receio de ter sido uma má escolha. Cada vez que olhava para trás, nos olhos do público pingado que comparecera, tinha menos certeza de que seus versos inquietos causariam bom impacto. A glória que lhe sorria em sonhos parecia rir-lhe então, e ria dele.

Chamaram a senhora com cara de professora. Ela subiu ao palco desvencilhando-se de uma bolsa que não teve aonde pôr, senão sobre a mesa do júri — pretexto para cumprimentar cada um, vários deles aparentando ser colegas seus na profissão. Postou-se como uma cantora de ópera, abriu os braços como uma estranha ave depenada que ainda quer voar, e começou a declamar versos duros, cortados a martelo e talhadeira, no material eterno da pedra: versos de soneto, mais perfeitos em suas rimas do que claros no que diziam. Terminou deixando em todos a convicção de que sua obra não tinha sequer um hemistíquio deslocado ou um hiato, essa indecência, mas ninguém conseguiu saber exatamente do que falara seu poema.

O rapaz que aparentava deficiência mental foi o segundo. Subiu ao palco ajudado por um bando de crianças e duas professoras de música com violões. As professoras dedilhavam peças pseudoflamencas enquanto as crianças, pelo menos aparentemente, tentavam cantar a Bachina número cinco de Villa-Lobos. Passado um minuto disto, o rapaz deu um desnecessário boa noite e uma criança descalça entrou no palco para lere o poema dele, alguma coisa singela que falava sobre andar descalço na grama. A ideia era piegas ao extremo, os versos eram de uma banalidade total. A menina que lia parecia tropeçar na falta de pontuação. Mas no fim ouviu-se uma salva de palmas ensurdecedora. O poetinha olhou para trás e viu umas dezenas a mais de pessoas: certamente parentes, conhecidos, professores, vizinhos, colegas do moço. Todos gritavam “Jair! Jair! Jair” como se os pés das musas tivessem tocado aquele palco.

Em seguida subiu o velhino de terno, que desfiou, no melhor estilo pregador de praça, uma chorumela religiosa que parecia interminável. E de fato era: ele extrapolou os cinco minutos dados a cada concorrente e, mesmo avisado duas vezes, ainda continuava. Por fim, pegaram-no pelo braço e o ajudaram a descer até seu lugar. Mesmo assim ele ainda andava olhando para trás, em direção ao microfone como a mulher de Ló sentindo saudades de Sodoma, e ainda defenestrando versos que já ninguém ouvia.

Seguiu-se uma sucessão de apresentações mais comedidas, umas duas ou três, todas tão sonolentas que o poetinha cochilou mesmo. Acordou com as palmas dadas à menina de quinze anos, que se curvava diante da platéia, imensamente agradecida, exibindo a bunda para os jurados, por causa de sua saia muito curta. O poeta maconheiro, que ainda não se apresentara, cometeu um ato de terrorismo poético que foi o melhor momento da noite: gritou à garota que agradecesse também aos jurados.

Talvez por vingança, ou sei lá o que, chamaram-no a seguir. Ele subiu ao palco acompanhado de um violão e de uma moça tatuada que lhe levou uma vara de incenso. Deixou-a acesa no chão e dedilhou o instrumento. Começou a declamar, deixando espaços compridos entre os versos, durante os quais as notas percutidas em cada sílaba ficavam reverberando misticamente no ar. Era um poema sobre natureza, discos voadores, sonhos, anjos, coisas psicodélicas e também sobre cogumelos e flores.

Então chamaram o poetinha. Subiu ao palco, amarfanhado e já malcheiroso de suor. Enquanto passava pelos bastidores deram-lhe uma cópia nova do poema, talvez por misericórdia. Mas ainda no caminho até o palco percebeu que haviam “corrigido” algumas coisas com que não concordava, então resolveu ignorar e lere mesmo a sua cópia molhada de suor, escondendo-a atrás da folha nova e rija que lhe haviam entregado.

Fechou os olhos e se imaginou sozinho no próprio quarto. O silêncio geral o ajudou. Olhou para os papéis, que tinha à mão esquerda, ergueu-os no ar e soltou. De repente teve a confiança de que precisava. As duas folhas, nova e velha, caíram dançando pelo ar enquanto ele declamava os versos devagar, parando nas ênfases, exaltando as metáforas, até as que não pusera lá. Como sempre, lembrou-se de fazer duas correções em trechos que soavam mal. Quando terminou, suando sobre as luzes fortes que iluminavam o palco, abriu os braços e se curvou, em agradecimento prévio aos aplausos que não vieram. Veio um silêncio quente, denso, úmido.

Ergueu-se meio eletrificado, mas embebido de uma decepção tranquilamente grande. Uma lágrima brotou escondida num canto do rosto, disfarçou-a limpando a testa e se vingou da moça de verde dando-lhe a mão suada para sair do palco.

O último a subir foi o senhor gorducho de camisa estampada. Este apareceu no palco verdadeiramente transfigurado. Durante o breve trânsito pelos bastidores, desabotoara a camisa e deixara ver sob ela uma outra, de malha, com uma estampa berrante que os óculos embaçados do poetinha não lhe deixaram ver direito. Ouviu-se música: um samba tocado com cuidado no piano do teatro, e o gorducho sapateou no ritmo justo.

O samba foi ralentando, adquirindo um outro andamento, ficando esvaziado como uma chuva que vai emagrecendo no fim da tarde. O homem abriu o peito que soou cavo e potente como um canhão, sua voz rasgou o teatro, com pouca ajuda do fraco microfone. E foi declamando uma série de trovas simples, com rimas do segundo verso com o quarto. Não parecia haver muito nexo entre elas, mas a última foi “matadora”, ao conseguir uma “improvável” rima do nome da amada Ivete com a necessidade de, por causa da distância, namorá-la pela internet. Uma onda de gargalhadas atravessou o teatro, dezenas de vozes de pessoas que achavam surpreendente alguma rima que não fosse do tipo “amor e dor”.

Os jurados, então, deram por encerrada a fase de apresentações e convidaram os presentes, autores inclusos, para o coquetel que estava servido na sala contígua. Após o coquetel seria feita a premiação.

O poetinha foi o último a deixar seu lugar. Não tinha vontadede comer ovo de codorna com fios de ovos, nem salaminho ao limão, nem azeitonas pretas no vinagre. Não beberia nada além de água com gás, possivelmente aceitaria uma rodela de limão no fundo.

Não aconteceu nada de extraordinário no coquetel, além do desfile de frivolidades simples. Meia hora apenas e os salgados se acabando quando finalmente anunciou-se o fim das deliberações dos jurados, que aparentavam a gravidade de quem vai condenar alguém à forca.

— Para o terceiro lugar— anunciou o mestre de cerimônias — Fabiana Lima, com seu poema “Amor aos Pedaços”.

O poetinha achou graça de darem um prêmio à menina. Valera a pena mostrar a bunda aos jurados, afinal.

— Para o segundo lugar, Ana Vicentina Gonçalves, com o poema “Face ao Estige”.

A professora conseguira impressionar aos jurados, afinal, com seu meticuloso exercício de versificação. Devia alguma coisa de genial naquele poema, apesar de soar tão duro. Era uma professora, afinal, e os jurados eram professores. Alguém devia representar a classe naquele concurso.

— Antes de anunciarmos o poema vencedor, gostaríamos de entregar um prêmio realmente especial, pelo conjunto da obra.

O poetinha olhou em torno, tentando adivinhar quem mereceria uma honraria tal. Haveria inadvertidamente entre os pretendentes ao prêmio algum que fosse acadêmico, ou que tivesse já vários livros publicados? Não, não era isso:

— Ao poeta Jair de Sousa Lima, que é um exemplo para todos nós.

Era o rapaz que aparentava deficiência mental. Ele subiu ao palco sorrindo meio abobado, acompanhado de várias outras pessoas, certamente parentes e amigos. Deram-lhe um bonito troféu, maior que os outros dois que já haviam sido entregues.

O poetinha, ainda se sentindo perdido no assunto, resolveu pedir ajuda ao único entre os candidatos que lhe parecia acessível, o poeta maconheiro:

— Quem é esse cara do prêmio especial? Não vi nada de extraordinário na obra dele hoje — perguntou em um cochicho.

— Ora, é só um portador de necessidades especiais que inscreveu alguma coisa no concurso. Para não serem crueis com ele patrocinaram esse prêmio.

— Mas isso não faz sentido, que espécie de concurso é esse em que a gente concorre contra alunos da APAE?

— É um concurso como qualquer outro, ou você acha que é melhor do que o garoto? Você só não tem uma APAE para estudar e uma família para lhe pagar um troféu.

O poetinha quis revidar, mas subitamente deu-se conta de que era aquilo mesmo. Quanto poeta do mundo se empresta a glória da escola onde comprou seu diploma, ou é propelido pelo dinheiro da família até as salas dos melhores revisores, aos selos das melhores editoras e às listas dos mais vendidos? Mais honesto aquele rapaz, que não o fazia por querer, e aquela família que tinha plena consciência de que estava apenas comprando horas de felicidade para ele. Melhor isso que a ilusão de ser um novo gênio literário só porque nasceu no lugar certo e estudou com pessoas influentes. Ou talvez estivesse ressentido, e o ressentimento nos conta mentiras para justificar nossa insignificância.

Por fim o mestre de cerimônias pediu a palavra para o grande momento da noite.

— Senhoras e senhores, neste momento gostaria de pedir uma salva de palmas para o nosso vencedor, com sua obra inovadora e surpreendente, Antônio Gomes e suas “Trovas para Ivete”.

O poetinha quase engasgou com a própria língua. O poeta maconheiro apenas ria.

— Como é isso? “Inovadora”? O cara escreveu umas trovas em redondilha!

— Fica calmo, rapaz, tudo é parte do jogo.

— Como assim, “surpreendente”? A única coisa diferente em todo o poema era a palavra “internet” no final, rimando com o nome da suposta amada dele, que ele só batizou assim por causa da rima!

— Não seja despeitado, o poema dele pelo menos todo mundo entendeu.

O poetinha se levantou para aplaudir, junto com os outros, e os foi acompanhando para fora, mortificado de sair do concurso sem prêmio nenhum, apesar da “obra prima” que arrancara das entranhas de sua própria alma enquanto o sambista gorducho amealhava três mil reais graças a cinco trovas simples sobre amar de longe uma tal de Ivete. Sentia-se ultrajado, esbulhado, feito de palhaço. Apenas o poeta maconheiro o ajudava a ter perspectiva:

— Você esperava o que, rapaz? Um concurso de poesia no interior, com um juri formado pela pequena burguesia local? Queria que dessem o prêmio a um forasteiro como você? Queria que dessem o prêmio a um pobre como um de nós? Que premiassem um poema inconformista, como o seu, ou como o meu?

— Olha, o problema não é eu ter perdido. O problema é “ele” ter ganhado.

— Foda-se isso, você ainda não entendeu para que você e eu servimos aqui? Nós somos só a escada em que eles sobem para ganhar seus certificados inúteis. Estamos aqui para dar brilho à cerimônia deles.

Mesmo assim, eu tenho a certeza de que meu poema era bom. Como não ganhei nada?

O poeta maconheiro o levou à janela que dava para o riacho fétido, o canto onde ninguém queria ir, mostrou-lhe as luzes da cidade e disse:

— Veja só, rapaz, tudo isso é ilusão. Ilusão, ilusão, tudo é ilusão. Eles fazem cerimônias, trocam certificados e títulos, dão-se prêmios, batizam ruas com os nomes de seus parentes. Mas depois eles morrem e fica só a placa na esquina, sem que ninguém saiba quem foi. Tudo é poeira no vento. Esse concurso, esse prêmio, até o dinheiro que o cara ganhou. E não pense que lhe adiantaria alguma coisa se você ganhasse. Adiantaria menos do que adiantou para o gorducho: ele vai beber esse dinheiro em uísque e deixar o troféu num canto da área de serviço. Mas você, faria o que com o troféu, o certificado e o dinheiro? Três mil não consertam sua vida, o certificado não lhe abre nenhuma porta, o troféu é um monstrengo horrível. Fique feliz de ter perdido, e aprecie a companhia.

— Que companhia?

— Você perdeu em ótima companhia nesta noite. Você perdeu em companhia de Augusto Frederico Schmidt, entremeado com versos de Péricles Eugênio da Silva Ramos, Rui Ribeiro Couto, Raul de Leoni e Alphonsus de Guimaraens.

— Você está falando do seu poema?

— Sim, claro. Uma colagem de versos absolutamente lindos, de poemas obscuros de autores absolutamente incontestáveis. E eles nem perceberam e nem premiaram.

O poetinha sorriu:

— Acho que ano que vem tentarei participar com umas traduções de Evgeni Evtushenko que estou tentando a partir do francês.

— Esse é o espírito, cara. Se você não pode ser rei, seja um bom bobo da corte, que é o único com permissão para rir do rei.

O poeta maconheiro recebeu o abraço de sua mulher e convidou:

— Vamos afogar esse seu ressentimento em uma copada generosa de vinho com catuaba?

O poetinha lembrou-se de Irene, acenou-lhe, e, claro, disse que aceitava.


03
Nov 12
publicado por José Geraldo, às 15:03link do post | comentar

Não é preciso explicar a piada, se você tenta é porque ela é ruim, ou então quem ouviu é um idiota. E não se esqueça que contar uma piada boa para um idiota é prova de idiotice também: o bom piadista adequa o chiste à capacidade do ouvinte, pois uma piada sobre queijos exóticos e filósofos alemães não funciona se você contar para o frentista do posto de gasolina enquanto ele calibra o pneu do seu carro.

Dito isto, é preciso acrescentar que, se não precisa de explicação, a piada também não precisa de desculpas. Se o seu ouvinte se ofendeu com a piada, então é porque você não soube adequar-se ao público. Antes de xingar o ouvinte de intolerante, infantil ou revoltado profissional, lembre-se que o incompetente foi você: se a função do humor é fazer rir, e você ofendeu em vez de alegrar, então os xingamentos todos são para você que contou para uma beata uma piada sobre Jesus e os apóstolos jogando pôquer.

Ambas estas coisas, por fim, devem ser ditas para que as pessoas pensem, porque parece que hoje em dia o humor perdeu um pouco o rumo. Antigamente a gente julgava a piada, e o piadista, pela capacidade de fazer rir. Se a piada fazia rir, então era uma piada. Se eventualmente ofendia alguém, pelo menos a piada era boa. Hoje em dia isso mudou, ninguém nem liga se a piada tem graça ou não, mas se você se ofende, mesmo que não se ofenda sozinho, mas acompanhado de uma multidão, mesmo assim ninguém culpa o piadista de ser incompetente: querem culpar o público, por supostamente ser «intolerante» ou levar o humor a sério demais. A essa gente que parece que pegou procuração para defender o humor idiota do Zorra Total ou piadistas preconceituosos como os «proibidões» do humor, um conselho: vão aprender o que é humor de verdade antes de saírem ofendendo o público. Humorista é artista, humorista cativa seu público porque precisa dele. Humorista se adapta aos tempos, porque se o povo não acha graça ele fica com cara de babaca em cima do palco, rindo da própria piada e tentando explicar. E não há xingamento que resolva, não adianta chamar o público de burro, de intolerante, de carola, de politicamente correto, de nada. Se ninguém acha graça é porque a piada é ruim. Se além de ninguém achar graça você ainda coleciona um monte de gente ofendida, além de contar piadas ruins você ainda é um mala, do tipo que ofende os outros. E não adianta se esconder atrás da desculpa do humor para continuar destilando sua intolerância, seu racismo, sua idiotice genérica.

Piada não é escudo para babaquice. Tanto quanto a licença poética não desculpa péssimos versos. Se você conta boas piadas, ou faz boa poesia, adquire um crédito que lhe permite ofender algumas pessoas, ou quebrar algumas regras. Mas se a sua piada é um saco, se o seu verso é uma porcaria, então você não tem porra de crédito nenhum, tem mais é que aguentar calado as críticas. E sabe por que? Por que os bons humoristas e os bons poetas AGUENTAM. Eles aguentam as críticas calados porque sabem que seu trabalho os redime. Se milhões de pessoas riem de uma ótima piada, então os dez ou vinte que se ofenderam ficam com vergonha de criticar. Você não precisa defender uma boa piada: se está precisando defendê-la, ou defender-se, é porque a piada é ruim e você é um péssimo humorista.

Tendo dito isto, encerro recomendando a esses molequinhos criados com leite de pera e ovomaltine que acham que são engraçados porque ofendem aos outros: vocês precisam assistir muito humor de qualidade. Monty Python, Trapalhões, Três Patetas, Hermes e Renato, Jô Soares (do tempo do «Viva o Gordo»), George Carlin, Chris Tucker, Bill Cosby e muita gente mais (até o TV Pirata, o Dóris Para Maiores e o Casseta e Planeta dos primeiros anos).

Achar que as piadas fazem rir quando ofendem é como achar que as pessoas riem mais quando as piadas são contadas aos berros e relinchos, como fazem os atores do Zorra Total, que atuam gritando, como se assim pudessem forçar as pessoas a rir. É como achar que acrescentando palavrões ao texto ele fica mais humorístico, como fazia o Ary Toledo em seus shows dos anos 80, em que cada piada era pontuada por um palavrão cabeludo. Mas isso não é verdade: palavrões, gritos e ofensas são apenas instrumentos, que podem estar presentes, mas que, por si só, não fazem rir, a menos que sejam usados com economia.

E tendo dito tudo isso, finalmente peço que pensem um pouco (se bem que «pensar dói») e redefinam suas prioridades. Porque vocês não estão defendendo o humor, estão defendendo a ofensa e a vulgaridade usando o humor como desculpa. Ao fazerem isso, abrem caminho para justamente que se ataque o humor, usando a ofensa e a vulgaridade como justificativa. Não reduzam o humor à estatura de sua cultura e de sua inteligência.


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