Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
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Nov 12
publicado por José Geraldo, às 23:49link do post | comentar | ver comentários (2)
ou «Porque os discursos superficiais de ódio ecoam com tanto vigor»
Acabo de me deparar no Facebook com alguém compartilhando a pequena história em quadrinhos acima. Logo que a li percebi que ali havia assunto para mais do que meramente um «Curtir» ou um «Compartilhar», mesmo porque não me senti impelido a nenhuma das duas coisas. Como aquela rede social não é muito receptiva a elucubrações mais compridas, preferi postar aqui, mesmo sabendo que menos gente lerá, curtirá ou compartilhará.


A tirinha expressa, de fato, muito mais do que está dito nas palavras de seu protagonista: ela é a vingança, possibilitada pela instantaneidade do fluxo de informações na internet, daqueles que sempre detestaram a poesia, mas sempre tiveram esse ressentimento represado pela inexistência de um canal que o amplificasse e difundisse. Estas pessoas a quem chamo de «ressentidas» sempre existiram, não passaram a surgir ontem, e possivelmente existiam antes em número muito mais significativo em relação à população em geral.

Portanto, que ninguém interprete esse texto como uma catilinária contra nossos tempos e costumes. Limitar-me a isso seria, de fato, dar eco à crítica, pois seria uma defesa estúpida de algo que, por si, não carece de defesa. Aquilo que existe por si não carece de justificativas. As coisas não têm, em si, nenhuma razão moral de ser, como muito bem disse Nietzsche, em um aforisma que é útil em múltiplos sentidos: não existem fenômenos morais, apenas derivações (ou explicações, segundo algumas traduções) morais dos fenômenos. Muita gente «odeia» a poesia, e no entanto a poesia existe, permanece e existirá. Como disse Mário Quintana, «toda essa gente que fica atravancando o meu caminho, eles passarão, eu passarinho».

O que cabe ser dito é, de fato, tentar entender a consistência desse «ódio» (que vai entre aspas doravante, posto que não é um ódio de fato, mas uma coisa outra, que obedece a leis diferentes do ódio em si, que é uma reação irracional momentânea). É preciso que investiguemos a natureza desse ódio, agora que ele extravasa dos bueiros por onde corria, pois já não é possível ignorarmos que algo cheira mal nessa metafórica Dinamarca.

A principal manifestação do «ódio» à poesia se dirige não contra o texto em si, mas contra o «poeta», este ser esfíngico, admirado de uma forma torta e inadequada, a ponto de a palavra ter sido tomada como epíteto por compositores populares (nem sempre poéticos) e apropriada até mesmo em ditos populares: «fulano, calado, é um poeta». Este «ódio» é, de fato, apenas uma faceta da discriminação agressiva (ou «bullying» como hoje se diz) contra os tipos sociais divergentes de uma norma impositiva. Em uma sociedade como a nossa, na qual a cultura originalmente foi apenas um verniz de civilização, tangibilizado por um diploma devidamente europeu ou pela prática de costumes importados daquelas latitudes, sempre foi natural que certos comportamentos fossem circunscritos a certos grupos sociais. Assim como se espera que o negro seja malemolente, que o suburbano seja esperto, que o interiorano seja ingênuo e que o baiano seja indolente; nunca se esperou que alguém do povo possuísse, de fato, os tiques e taques privativos da elite, entre os quais diplomas, erudição e talentos artísticos. Pobre não faz arte, faz artesanato, não faz poesia, mas faz letra de música. Mais ou menos assim.

Exceções acontecem, quando devidamente legitimadas pela elite, que está frequentemente em busca de ídolos, como um Machado de Assis. Mas quando o talento, mesmo equivalente, não encontra essa legitimação, por alguma razão nem sempre inteligível, o pobre artista, além de fustigado pela pobreza que persiste, ainda sofre o escárnio de uma sociedade que vê nele como postiça e ilegítima a mesma atitude que louva como visceral e própria em um dos luminares escolhidos. Um breve estudo comparativo das obras e biografias de artistas malditos, como Lima Barreto ou Cruz e Sousa, por exemplo, nos deixa com a pergunta incômoda sobre o motivo de não terem sido aceitos por um sistema que aceitava gente de talento evidentemente menor.

As explicações estão dadas acima: residem na divisão de classes de cunho pós-escravagista, divisão que só permite a ascensão social daqueles que são, por alguma razão, «aceitos» pelo sistema. Daqueles que são «branqueados» no processo, tal e qual os pecadores são «lavados no sangue do Cordeiro» para poderem entrar no Reino dos Céus.


Este quadrinho, porém, vai mais fundo do que esta manifestação de escárnio contra os «patinhos feios», que sempre existiu e pôde ser sentida por todos nós que escrevemos, pelo menos uma vez ou duas na vida, a menos que tenhamos sido abençoados com uma idiotice beatífica que nos impede de enxergar o desprezo alheio, ou tenhamos adquirido um calo sensorial que nos insensibiliza para isso. Vai mais fundo porque ele não se limita a zombar dos que «ousam» ser poetas sem terem sido, previamente, autorizados a isso, por um concurso, uma editora, uma academia ou a bênção de um figurão das nossas letras belas. Zomba da poesia em si,  e isso nos exige uma reflexão além.

Por que alguém odiaria poesia, a ponto de execrá-la publicamente, dizendo que «limparia a bunda» com a obra de Augusto dos Anjos? A escatologia é um argumento fácil para quem não tem argumentos. O macaco atira excrementos nos visitantes do zoológico. Não obstante ele continua sendo o macaco,  e os visitantes continuam sendo os visitantes. Atirar excrementos não modifica a situação de submissão e desumanidade do símio enjaulado e nem desumaniza os visitantes, que poderão lavar-se depois e ter uma divertida história para contar. E limpar a bunda com a poesia de Augusto dos Anjos em nada a modifica, e nem à bunda de quem a usou para tal fim. Evidentemente essa manifestação bárbara de desprezo pela obra de alguém que morreu há tanto tempo expressa algum tipo de sentimento mais profundo e duradouro do que o desprazer de não ter gostado de um ou dois sonetos. Qual a jaula mental onde se encontra este ser que recorre a excrementos para agredir aquilo que não entende?

Vivemos atualmente uma fase perigosa no mundo, após tantas décadas de triunfo da ciência, com suas conquistas e perigos, com os dois gumes de seus conhecimentos, com a exigência de responsabilidade diante das múltiplas possibilidades de cada conquista nova. Parece que muita gente se assusta com a obrigação de escolher se vai usar a radiação para curar o câncer ou para causá-lo, se vai usar o foguete para nos levar à Lua ou de volta à Idade da Pedra. Diante desses dilemas, há hoje quem reaja ao modo do avestruz mitológico (não o real), que enfia a cabeça na areia diante do susto. Refiro-me à reação anti intelectual que grassa pelo mundo e que, apesar de nossa ignorância de periferia deslumbrada, não começou aqui.

O modo de pensar anti intelectual, não irracional, não confundam por favor, surgiu, de fato, nos Estados Unidos, nos anos sessenta, e hoje podemos ver com clareza como. Alan Bloom já o havia percebido em 1986, ano em que escreveu uma obra hoje esquecida, mas que devia ser mais lida: The Closing of the American Mind («O Fechamento das Mentes Americanas», traduzido porcamente para o português como «O Declínio da Cultura Ocidental», refletindo a subserviência do tradutor e editores, prontos a aceitar o império ianque não apenas como centro do mundo, mas resumo dele). O anti intelectualismo é a crença de que as imperfeições da ciência significam que as soluções científicas não devem ser buscadas. Houve vários momentos de triunfo desta mentalidade, e talvez o mais significativo tenha sido a «luta antimanicomial», que ajudou a desmantelar toda tentativa de abordagem e tratamento científico das patologias da mente em nome de uma filosofia segundo a qual os limites entre a loucura e a normalidade seriam uma convenção social. Ora, vivemos em uma sociedade, e quase tudo nela é convenção social. O triunfo do anti intelectualismo consiste em convencer-nos de que o fato de vivermos sob convenções significa que as convenções são arbitrárias e políticas baseadas nelas são injustas. Em vez de buscar aperfeiçoar as convenções, devemos aboli-las. Com toda sua virtude humanista, a luta antimanicomial abriu caminho para o questionamento da ciência enquanto alternativa viável de abordagem dos problemas sociais. Isto acaba sendo útil aos sistemas de poder, especialmente quando surgem indícios de ação humana na modificação dos padrões climáticos da Terra. Se a ciência está em xeque, então as decisões políticas não precisam considerá-la. Eis o monstro criado pela luta antimanicomial a longo prazo. Tal como não precisamos tratar dos loucos, pois a loucura é uma categoria arbitrária imposta pela cultura, também não precisamos evitar as modificações ambientais que inadvertidamente causamos por nosso estilo de vida, pois os modelos e parâmetros usados pela ciência para determinar a realidade destas modificações são também arbitrários e sujeitos a influências culturais.

O anti intelectualismo é um populismo filosófico. Nada afaga mais o ego instável do ignorante do que ser chamado de sábio. Chame um homem por aquilo que não é e ele se sentirá feliz, desde que acredite sinceramente que não há malícia de sua parte. Desde que ele esteja seguro de que a calúnia é imerecida e o elogio é verdadeiro. Do contrário, se supuser a calúnia uma realidade e o elogio, uma falsidade, reagirá com agressividade. Eu já havia notado isso em 2010, quando escrevi «O Sábio Louco e o Ignorante Vigoroso», pequeno texto no qual observei que, como disse Caetano Veloso, «Narciso odeia tudo que não é espelho». O ignorante odeia o sábio por ele ser sábio, mas quer ter, ele mesmo, o nome de sábio. Diga ao ignorante que o sábio não o é, mas ele sim, e, caso a afirmativa inspire confiança, o afago ao ego do idiota produzirá um deslumbre genuíno.

O ignorante precisa acreditar que não há prejuízo em sua ignorância. De outra forma, sente-se incompleto, precário. Para combater esta sensação de vazio, que o inquieta mas ele não sabe expressar, ele busca o elogio, busca a sensação segura de que «sabe». Venda a este cara a ilusão de que «sabe», de que «pode saber em apenas cinco lições» ou, melhor ainda, que «já sabe». Olavo de Carvalho acredita que conseguiu desmentir Newton e Einstein. Muitos são os que o elogiam, fazendo com que ele se sinta, de fato, um injustiçado pelo Nobel. Dão-lhe até medalha para melhorar a ilusão. Que se multiplica através dos excrementos verbais que ele difunde, e que são assimilados e replicados por outros que, tão vazios quanto ele, aceitamo como sucedânea do conhecimento a mistificação que ele divulga.

Este fenômeno é reforçado quando o ignorante possui algum conhecimento, mas só um pouco. Temei ao homem de um livro só, disse o santo filósofo. Ele não conhece, de fato, quase nada do mundo, mas domina tão bem seu quase nada que adquire uma certeza, uma autoconfiança que intimida. E agarra-se a esta migalha, que lhe confere autoridade.

E onde entra nisso a poesia? Pobre poesia, pobre e inútil poesia. Que sempre sofreu com esta pecha de inutil, e graças a Deus que ela o é. A pior coisa que pode acontecer à literatura é que lhe encontrem alguma utilidade. Não há maior tédio do que nos livros julgados os mais adequados pelo sistema educacional. Se tachados de «educativos» então, aí se encontra um indutor de letargia mais poderoso que a mosca tsé-tsé.

A poesia entra nisso como mais uma manifestação de intelectualidade. Se vivemos uma reação contra a intelectualidade que é útil (ninguém duvida das previsões do tempo, ora bolas, nem da capacidade voadora dos aviões e foguetes), quanto mais contra as pobres formas inúteis de intelectualidade! É muito fácil falar contra a poesia: é algo que poucos entendem, que raros gostam, que poucos praticam. É um saco de pancadas tradicional daqueles que sempre satirizaram os pendores de questionamento que brotassem da boca do pobre. A poesia é o senhor gordo e lento no qual o macaco consegue acertar mais excrementos.

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