Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
27
Dez 12
publicado por José Geraldo, às 00:07link do post | comentar
Você não ouviu falar de Christopher Schewe. Dificilmente terá ouvido falar de “shoenice22” — seu nome de usuário no YouTube. Não perde grande coisa, mas a vida e as apresentações deste assim chamado “comediante” da internet podem servir de base para algumas reflexões interessantes sobre quão doentia é a psique coletiva da humanidade.

Sim, você que é bem informado provavelmente já tivera o primeiro vislumbre do real valor do ser humano ao saber que aproximadamente 55% de todo o tráfego da internet se refere a pornografia. Recentemente tomei conhecimento de informações mais precisas sobre o chamado “lado negro da web“, ou “Deep Web“, que corresponde a mais de 90% do conteúdo da internet, e é o domínio de toda espécie de seres ditos “humanos” (entre aspas) que nem deveriam ter o direito de estar vivos: traficantes de drogas, assassinos de aluguel, pedófilos, estupradores, traficantes de escravos, pervertidos sexuais, canibais etc.

Todas estas coisas existem porque há um público. Só quem pregou no deserto foi João Batista.

Mesmo na internet “normal” existem coisas que não parecem normais, que evocam o lado negro, ou simplesmente a filhadaputice encarcerada dentro de cada cavalheiro ou dama. E não é preciso procurar muito, porque parece que estamos chegando a uma “geléia geral” difusa, sem fronteiras entre o aceitável e o escroto.

Houve um tempo em que o povo não tinha nenhum controle sobre a programação do rádio ou da televisão que assistia.  As pessoas, sensatamente, sabiam que tudo aquilo era uma idealização da realidade — que, muitas vezes, recebiam a informação filtrada por olhos e mentes que haviam visto e pensado primeiro. Como dizia Raul Seixas: “Eu não preciso ler jornais, mentir sozinho eu sou capaz”. Sempre havia um tolo que acreditava na novela, mas era do tipo que a gente ria.

O povo, porém, consumia sem entusiasmo este feno pasteurizado que era produzido pelos meios de comunicação de massa. No fundo, as pessoas ansiavam por ver coisas mais viscerais. Lembro do entusiasmo com que meus coleguinhas de escola falavam dos golpes de “tele-catch” ou de filmes de terror como “Sexta Feira 13”, “A Hora do Espanto” e “Halloween”. Acredito até que foi o sucesso estrondoso deste último filme que impulsionou a popularidade das festinhas promovidas pelos cursinhos de inglês, que, enventualmente, sairam de lá e cairam no gosto do povo, como uma espécie de carnaval gótico fora de época.

No fundo sentíamos saudades dos monstros de circo e dos espetáculos extremos. Em séculos passados era possível ir à feira no domingo e ver uma bruxa sendo queimada ou um criminoso sendo estripado na praça. O populacho adorava estas cenas de sangue, nisso filmes históricos hiperviolentos, como “Coração Valente” não se enganaram.

Esse impulso inspirou Kafka a escrever uma de suas mais brilhantes histórias, “O Artista da Fome”, sobre um pobre diabo que atrai a atenção do público jejuando, possivelmente por dinheiro ou talvez por migalhas de atenção apenas. As pessoas querem vê-lo passar tempos cada vez maiores sem comer, trancado em sua jaula, como um miserável animal.

A Internet já nos brindou com algumas figuras tão melancólicas quanto o Artista da Fome, mas nenhuma tão semelhante a ele quanto “shoenice22”. Ele é o legítimo palhaço triste, em toda sua inglória. Com pouco mais de quarenta anos de idade, divorciado, pai de duas filhas, veterano da Guerra do Golfo, filho de hippies fumadores de maconha e concebido e criado num trailer sujo (suas próprias palavras, em um de seus primeiros vídeos). Seu rosto sempre crispado por uma agonia que pode ser física ou não, Christopher propõe e aceita desafios de seus “fãs” pelo mundo. Desafios que consistem em comer ou beber coisas que não deviam ser comidas ou bebidas, ou então comer ou beber coisas de uma maneira inatural e socialmente inaceitável.

Enquanto o francês Michel Lotito comia coisas (quase sempre de metal) cortadas em pequenos pedaços, ao longo de um grande espaço de tempo (levou dois anos para comer um monomotor Cessna 150), Christopher “ShoeNice” Schewe come coisas que possa cortar com os próprios dentes e engolir de forma rápida, filmadas em vídeos sem interrupção, que posta no YouTube com o subtítulo de “funniest man alive”. Mas não é engraçado.

Schewe já comeu uma barra de desodorante sólido, um rolo de papel higiênico, um cheeseburguer com plástico e tudo. Já bebeu vodca, absinto, álcool líquido e tequila. Já bebeu fluido de isqueiro e água de narguilé.

Eu deveria estar tecendo muitas considerações sobre ele, mas é tarde e meu cérebro já desligou. Continuo na quinta feira, amanhã.

21
Dez 12
publicado por José Geraldo, às 00:23link do post | comentar | ver comentários (2)
O vazio da existência exige que vivamos coisas grandes, posto que não somos grandes. Cada geração padece da crença de que o mundo está decadente e deseja viver tempos interessantes. Isso talvez seja uma explicação para a vontade que tanta gente tem de ver acabar-se o mundo, ou então é só um pretexto para eu postar alguma coisa hoje e atrair algum tráfego…

Para ser sincero, não acredito que tanta gente acredite no fim do mundo, sequer de brincadeirinha. Com tanta coisa séria para se brincar, a sedução do apocalipse acaba merecendo a mesma explicação que a crença propriamente dita nele. Por que, com mil cometas chamejantes, as pessoas querem tanto que o mundo acabe?

Com algum sentimento metafísico poderia eu dizer que isso reflete a dor da morte. Como no antigo filme de zumbis que me apavorou algumas noites da adolescência: «Por que vocês comem cérebros?» — pergunta o protagonista. «Para aliviar a dor…» — responde a zumbi semidestroçada que jaz amarrada sobre uma mesa. «Que dor?» — insiste o estúpido herói, merecendo morrer cedo para aprender a ser idiota. «A dor da morte» — responde ela.

Queremos o fim do mundo porque queremos acabar com a dor, a dor de estarmos vivos. O fim do mundo é um suicídio sem culpa e sem vergonha póstuma. Ninguém falará mal ou bem de você se a sua morte ocorrer no fim do mundo, ou numa guerra. As pessoas que se voluntariam para ambas as coisas estão pensando em aproveitar uma oportunidade única, a de se matarem sem ninguém achar feio.

Isto também vale para quem só curte a brincadeira. Curte porque sabe que é mentira, mas curte porque é uma mentira que é uma utopia. Ah, como seria bonito ver os reptilianos nos matando a todos com suas bombas atômicas, esterilizando o planeta para depois plantarem seus fungos. A única coisa que separa os malucos por apocalipse dos que fazem piadas com o apocalipse é que os primeiros acham que vai acontecer, enquanto os segundos sabem que não, mas gostariam que.

E isto nos leva de volta aos zumbis. E ao inexplicável fascínio que exercem sobre jovens que adorariam ver o apocalipse zumbi acontecendo bem no seu bairro, na sua rua, na praça de alimentação do seu shopping favorito. À parte o fato de que tal coisa não vai acontecer, nada diferencia esta gente dos alegres voluntários que marcharam para as carnificinas da Primeira Guerra Mundial cantando hinos patrióticos e pensando: «ó, que coisa mais bela estar vivo para entrar numa guerra».

Só que guerra não é tão engraçado, guerra está fora de moda. Afinal, se acontecer uma teremos que enfrentar países que nos exportam refrigerantes, brinquedos ou vinhos. Melhor pensar numa guerra difusa, contra um inimigo onipresente. Zumbis ou alienígenas, tanto faz, de qualquer forma é um tipo de fim de mundo, com a vantagem de ser em câmera lenta, para dar tempo de filmar e pôr na internet. E claro, ninguém acredita nisso, tanto quanto os jovens europeus de 1914 não acreditavam que fosse acontecer uma guerra, mas desejam que ela estourasse ainda durante suas vidas, para poderem pegar seus fuzis e assinarem seus certificados de alistamento.

Formas diferentes de desejar morte, mas eu acho mais honesto quem corta os pulsos, porque assume o que quer em vez de esperar uma desculpa sobrenatural para dar um ponto final em sua dor.

19
Dez 12
publicado por José Geraldo, às 22:33link do post | comentar
Na "praça de alimentação" de um grande shopping em uma cidade razoavelmente grande as pessoas, de vários tamanhos e cores, se amontoam em torno de mesas e competem pela atenção dos garçons. Termino de comer um sanduíche, sem me sentar e vou saindo daquela aglomeração opressiva quando percebo um diálogo divertido acontecendo numa das mesas. Aparentemente uma moça pedira licença a um desconhecido para se sentar em sua mesa, e ele aproveitara a oportunidade para apresentar-se e tentar alguma coisa.

A moça, de cabelos pintados de roxo/rosa/burro quando foge, parece mais preocupada em mastigar trocentas vezes os talos e folhas insossos pelos quais está pagando o preço de um prato gordo e nutritivo. Só ele, o estranho, fica sintonizado em outro canal. Enquanto ela ataca outro naco de brócolos com o garfo, fingindo-se interessada na parede pintada de curioso amarelo, o homem gesticula devagar, mas com amplitude, como se quisesse que ela acompanhasse cada dedo.


— Pois sou eu — ele explica. Nunca ouviu aquela minha música que estourou ano passado? Eu estou muito diferente da imagem no vídeo?

Ela o observa rapidamente. Está claro que não se lembra, que acha que o estranho de sotaque cantado e cabelos compridos é só um maluco que se acha celebridade.

A cena me captura a atenção. Simpatizo-me com o homem. Ele não é nem um pouco bonito, a sua fala denuncia uma cultura rudimentar, os seus modos são tímidos, a sua roupa não parece ser a de um astro da música. Mas ele tem um difuso ar "artístico" e os seus olhos contemplam a cabeleira afogueada da garota com um fascínio que o justifica.

Ela, porém, nem parece digna da atenção do pobre cantor anônimo. Embora bonita, ela tem um jeito comum, esquecível, anódino. Uma beleza que vai passar, e sem ela não ficará muita coisa digna de nota. Só que, enquanto jovem e com a tintura fresca na cabeça, ela se acha melhor do que ele, ou eu acho que ela se acha. Por isso ela o contempla com enfado, com um certo arrependimento de não ter comido em pé como eu, junto ao balcão. Pelo menos o funcionário do restaurante tem uma aparência mais moderna e descolada que o cantor, exibindo um cabelo armado e alguns brincos pelas orelhas e cara.

Resolvo traduzir minha simpatia num gesto. Aproximo-me da mesa, faço a melhor cara de surpresa que consigo fingir e digo, imitando uma certa alegria que eu não tenho muito:

— Não acredito! Mas você!… Você, aqui?

O cantor ergue os olhos dos peitos murchos de sua musa e me vê, diante dele, com uma caneta e um bloquinho de notas. Deve ser o primeiro autógrafo que dá nesta cidade, onde não o conhecem ainda. Ele estende a mão como quem tateia o futuro. Treme e treme mais. Mas quando se apossa da caneta, é como se tivesse pego uma espada mística para se transformar em um super herói. Enrijece a coluna, firma os dedos e perpetra os rabiscos que eu esperava.

— Muito bacana o seu novo DVD. Vai cantar na cidade hoje?

— V-vou, vou sim! — ele responde, positivamente embasbacado. Ali tem um cartaz.

Olho na direção indicada e vejo um pequeno anúncio em poucas cores, perdido numa pilastra.

— Vou estar lá para te ver, matar saudades do verão passado, sua música bombava lá na praia.

Despeço-me educadamente e saio de perto dos dois, com a certeza de que não compraria ingressos para vê-lo cantar, nem se fosse o último espetáculo da terra. Mas antes de sumir da vista, olho para trás e vejo o cantor, de óculos escuros, abraçado à garota de cabelos roxo/ruivos enquanto uma outra registra o momento para a posteridade.

18
Dez 12
publicado por José Geraldo, às 22:00link do post | comentar | ver comentários (2)
Frequentemente me pego repetindo em cochicho o que acabei de dizer em voz alta, se a pessoa a quem disse não continua por perto. Porque se ela estiver, então, costumo dizer a mesma coisa duas vezes, com poucos minutos de intervalo, para enfatizar o que estou dizendo. Geralmente uso uma frase para conectar, e então repito o que havia dito antes, com palavras ligeiramente diferentes, com poucos minutos de intervalo, só para enfatizar o que dizia.

Costumo ter animadas conversas comigo mesmo quando estou só. Estas conversas frequentemente se transformam em discussões, e já houve casos em que realmente fiquei de mal. Durante essas conversas é frequente que eu me diga coisas que não estava pensando ou encontre soluções miraculosamente para coisas que eu não estava sabendo resolver.

Quando estou escrevendo à mão, minha caligrafia muda o tempo todo. Sou incapaz de manter o mesmo padrão de tamanho de letra, comprimento de hastes, inclinação, separação silábica, formato das letras redondas, etc. Em uma mesma palavra costumo empregar dois tipos diferentes de “a”, “s” ou “r”.

Meus livros são ordenados na estante segundo um padrão de tamanhos e cores. Quanto mais alto o livro, mais para a beirada. Se dois livros forem de mesma altura, o de capa mais escura fica do lado “de fora” em relação ao centro da prateleira. Por sua vez, os meus discos são ordenados pela ordem cronológica em que foram lançados.

Devo ser o único bancário do Brasil que trabalha (frequentemente, mas não todo dia) de botinas. Gosto desse tipo de calçado desde que era adolescente e trabalhava na Cooperativa Agropecuária de Cataguases. Eu não tinha dinheiro para me vestir bem, então vivia com jeans velhos, botinas de couro e camisas brancas de algodão. Em meus sonhos eu me tornava um astro da música e esse tipo de indumentária se transformava na nova moda roqueira.

Todas estas pequenas excentricidades convivem com o fato de que sou incapaz de manter qualquer coisa organizada. Desde a minha estante de livros, que eu arrumo semestralmente, até a minha mesa de trabalho.

Esta desarrumação também é agravada pela dificuldade com que me livro de entulhos, bugigangas e velharias. Tenho ainda os carregadores de celulares que estragaram há anos, peças de computadores que nem possuo mais. Cabos e fios e caixas de aparelhos que nem lembro o que eram. Revistas que li uma vez e guardei pensando em deixar de herança para o futuro. Rascunhos de poemas e rabiscos genéricos sem nenhum sentido.

Cada vez que me mudo, tenho de rever esta desordem, e com grande dor no coração me desfaço de uma miríade de pequenas coisas — e me arrependo depois. Até hoje sonho em reencontrar nalguma caixa os dois retratos que fiz a lápis nos tempos de segundo grau, e que só sobrevivem na minha memória. Sem falar dos cadernos onde minhas amigas anotaram versos de Raul de Leôni, Vicente de Carvalho e Fernando Pessoa.

Sei, porém, que estas foram perdas irremediáveis, como as que só se pode ter na mudança. E não adianta ter saudade das casas em que não moro mais, dos livros que doei ou vendi, das palavras que disse e já não saboreio mais na boca, por mais que as cochiche. Por mais que eu lembre de manias antigas, não sou o mesmo que era, as coisas e as casas e as pessoas mudaram. Resta-me repetir palavras, fantasmas do que foi, e relembrar mentalmente  obras primas que não desenho mais.

15
Dez 12
publicado por José Geraldo, às 15:48link do post | comentar | ver comentários (1)
O homem triste vinha caminhando pela rua, com seu pesado terno de dois mil reais ao mês e sua lista de responsabilidades para penar. Consultava mentalmente em qual próxima casa teria de incomodar quando ouviu as crianças sentadas na calçada, curtindo o vento fresco do fim de tarde:

— Aquela nuvem parece um prato de macarrão.

Olhou na direção apontada pelo dedinho sujo. Olhou fixamente para tentar ver. Outra pequena voz interferiu:

— Aquela outra parece uma cabeça de bode.

Não, definitivamente não parecia com nenhum tipo de cabeça.

— E olhem só aquela lá que está perto do prédio azul!

Todos olharam e caíram na gargalhada:

— É uma bunda com um furúnculo, a bunda do Pedro com o furúnculo.

O homem triste suspirou. Não conhecia a história do pobre Pedro e seu abscesso no traseiro, não reconhecia nenhum formato de nádegas na nuvem que estava perto do prédio que se tornava azul apenas por ter as janelas desta cor.

As crianças continuavam gargalhando ante a visão de uma forma que existia em suas imaginações, e o homem triste, ainda mais triste, com uma vontade louca de largar a mala, despir o terno e mergulhar no rio sujo, como fazia quando criança, lembrou-se da frase dita certa vez por um fantasma no fundo de sua memória:

— Você deixa de ser criança quando toda nuvem passa a ter formato de nuvem.

11
Dez 12
publicado por José Geraldo, às 12:41link do post | comentar
Não há matemática que explique a poesia. Explicava a versificação. Mas versos são canteiros, não são a horta.
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03
Dez 12
publicado por José Geraldo, às 23:00link do post | comentar
Estas montanhas têm uma história, desde os tempos dos índios, desde antes do primeiro português cortar a primeira árvore. Eles vieram, viveram, morreram, viram o mal que havia e se foram, ficaram apenas alguns pobres puris isolados, entocados quase como bichos. Vieram os emboabas a caminho das minas, tentaram fixar-se aqui, mas não ficou nenhuma vila, queimaram todas as casas, sumiram no tempo como se nunca tivessem pousado, e a estrada real passou ao largo.

Minha avó costumava me contar que toda esta região era pacífica e silenciosa até a segunda década do século, que ela mesma viveu numa casinhola entre árvores, beijada pela sombra fria da mata. Mas veio o café, veio a guerra, a estrada de ferro, vieram as armas. Mataram os índios, abriram clareiras, começaram a produzir. Mas em pouco tempo a terra negou seu seio, os cafezais feneceram, os fazendeiros faliram. O povo restou pobre, em uma terra mais seca e nua. Os trilhos de ferro recuaram, abandonando estações ilhadas nas montanhas.


Nasci aqui, sentindo esse vento seco e duro que cresta a alma e corta a cara, que arranca as folhas das árvores, como se tentasse arrancar os homens da terra. Mas eles só sairão quando chegar a hora da colheita. Toda vez que eu olhava os morros erodidos, as encostas peladas, a terra retalhada com cercas e dividida em lotes de cores diferentes eu me sentia cúmplice dessa violência.

Este ano, porém, começou diferente. O cheiro do ar foi outro desde o início, os dias foram encolhendo, as noites ficando mais frias e quando eu olhava as bordas dos morros cortadas contra as nuvens eu tinha calafrios, temendo que essa Hora maldita estivesse a caminho.

Nas primeiras semanas eu me senti assim, sozinho. Não tinha coragem de falar com ninguém, porque desde menino tivesse essa fama de sensível, de fresco, de frágil. Nem os calos duros em minhas mãos, nem minhas botinas armadas com arame, nem o cheiro forte da terra em meu corpo conseguiram apagar as impressões que os outros tiveram de mim no dia em que saí de mim e disse aquelas coisas que ninguém nunca ousou repetir.

Mas quando o outono começava a envelhecer, notei que não era mais o único. Podia pressentir que os jovens estavam irrequietos  que os velhos estavam mais abatidos. Alguns sonhando em voar, outros querendo dobrar definitivamente as asas. Então senti voltando a mim a sensação, e os cheiros, que me abateram naquela tarde de criança. Eu pressenti a proximidade do escuro, eu enxerguei as dobras do destino direcionando o correr de nossas vidas para o canto da mesa, para a caçapa inevitável. Senti a Presença pela primeira segunda vez, mas não tive medo nem ódio, aliviei-me de toda irritação e adorei aquela época do ano.

Os Gonçalves então apareceram com a notícia de que estavam indo embora. Eles tinham uma fazenda grande, com várias casas, currais, tulhas, silos e cocheiras. Tinham feito um trabalho bonito, por vinte ou trinta anos, desde que o velho Nhonhô Gonçalves chegara de Itaperuna cheio de dinheiro, que as más línguas diziam ser mal havido, e comprora a terra de um colono antigo, que eu nem chegara a conhecer. Eles trabalharam muito, fizeram render o seu dinheiro, tinham vacas, tinham milharais, canaviais, um pomar que dava gosto. Então veio aquela seca longa do ano retrasado, emagrecendo o gado, matando o milho plantado, prejudicando a cana. E justo quando a seca acabava apareceu a praga da erva roxa nos pastos, intoxicando os animais famintos que comiam tudo.

Perderam muito dinheiro, tiveram que vender as vacas boas enquanto valiam alguma coisa, muitas morreram vacas de fome, muitas ficaram vacas maninas, cresceram bezerros de pelo ruço, novilhas de tetas murchas.  Um gado sem valor, em uma terra que precisava ser roçada de novo, com uma praga que ninguém sabe de onde veio, como se o próprio demônio tivesse passado semeando.

Agora estão finalmente vendendo, e é uma tristeza ver os garotos com os olhos cheios de água, tentando sorrir enquanto põem preço naquilo que nada paga. Dizem que vão comprar caminhões, ganhar a vida no transporte de carga. Enquanto eles falam eu escuto um vento soprando forte, um vento que arranca folhas das árvores. O vento que anuncia que chegou o tempo de colher. Os dias continuaram encolhendo, as noites ficando frias. Colheita no inverno, colheita mais amarga. Os jovens irrequietos, os velhos andando de cabeça baixa. Eu sei que a escuridão está mais perto, alguma presença está aqui. Parece que o clima mudou, mas eu não estou mais gostando dessa época do ano.

Sempre vivi nesta casa de fazenda. Hoje fazem dez anos que meu pai morreu. Foi num agosto ventoso como esse, talvez ali eu tenha ouvido esse vento pela primeira vez. Herdei esta terra, estas cercas, estas pobres vacas, companheiras de meu infortúnio, pobres reses que eu nunca consegui vender. Não sei bem do que eu vivo, o leite que tiro mal dá para comer. Tenho a herança de uma tia rica, o ódio de uma mulher que me deixou. Faz muito tempo que não tenho medo, muito tempo que não sentia nada mau. Tinha aprendido a conviver com esta terra, deixar crescer o mato, receber a chuva, proteger a ave, abrigar o bicho. Dizem na cidade que eu também virei meio bicho, só porque não consegui cortar a árvore que nasceu debaixo do Mustang que ficava na garagem. Garagem que já caiu de podre porque não a uso: por que me enjaular entre dobras de ferro e produzir fumaça ruidosa pelo mundo? Vou a pé aonde vou, e sempre é perto. Dizem na cidade que a lucidez também me deixou.

Os Gonçalves eram meus últimos amigos. Catarina a última mulher que não me achava louco. Teria sido minha esposa se eu quisesse, me ajudaria a cuidar de meus coqueiros, meus horta, minhas laranjeiras, de todos esses pássaros que pousam na varando cada silenciosa tarde. Eles me dão uma música melhor que qualquer rádio.

Ficará um buraco em forma de Catarina em minha vida. Um buraco na forma de cada amigo que vai embora, na forma de deus que nunca vi, na forma de cada alegria irrepetida que nunca descobri.

Então esta tarde veio o homem de longe, com cabelos penteados, camisa branca de riscado roxo. Enverga botinas pontiagudas, sem esporas, porque sua montaria é dessas de que não gosto.

Ele me falou de coisas que não entendo — como dinheiro, eucaliptos e carros. Fala em derrubar estas espertas, angicos, paineiras, jenipapos, imbaúbas e ipês. No lugar de todas estas cores e perfumes diferentes, uma árvore apenas há de imperar, com sua resina roxa, seu aroma doce.

“Apenas oito anos”, ele diz, “e pode-se vender a um preço exorbitante. Tão exorbitante, aliás, que eu estou disposto a contratar agora a venda, para protegê-lo da possibilidade de que em oito anos tanta gente tenha plantado que o preço nem seja mais exorbitante. Aproveite esta oportunidade única na vida, está na hora de ganhar dinheiro outra vez, sacudir a poeira desta terra adormecida.”

Eram palavras bonitas, mas eu só consegui me fixar nas listras roxas de sua camisa, pensar nas folhas roxas da praga que matou o gado dos Gonçalves e vai levando embora Catarina. Nada de bonito pode vir de alguém que usa roxo. Cor de morte, cor de hematoma, cor de luto de homem, pois homem não se veste de viúva.

“Uma terra tão grande normalmente a gente oferece em parceria, mas se o senhor preferir podemos fazer-lhe um preço muito bom por seus cento e vinte alqueires.”

Não, não venderei a terra, nem plantarei eucaliptos. Tenho trinta anos e ainda tenho alguns mognos para ajudar a crescer. Espero um dia estender minha rede entre os dois jacarandás que plantei na entrada do terreiro, como sentinelas a bloquear a entrada de qualquer carro.

“Sua propriedade vai ficar isolada entre todas as outras, única ilha de mato e pasto sujo num mar de montanhas verdejantes de reflorestamento.”

Que seja, mas há uma beleza nas ilhas. As únicas que eu conheço são as que existem no rio, que eu costumo contemplar quando vou à cidade receber alguma venda, verificar a renda que me legou a minha tia e fazer minhas compras. São pedaços bonitos de terra que resistem no meio do rio, deixando a água passar ao largo, a turbulência ir embora. Resistem à enchente até. Que seja, minha fazenda será uma ilha. E eu o habitante feliz, Robinson Crusoé eternamente a espera de que não me resgatem dela. Espero viver muito, tenho de me cuidar. Enquanto estiver vivo talvez consiga proteger o trinca-ferro, o mão pelada e a preá.

Que sopre o vento o quanto quiser. Que leve embora as folhas doentes das árvores. Pode ser o tempo de colheita delas, mas as folhas vivas, que ainda bebem a seiva da terra, estas não vão ser arrancadas pelo primeiro vento.

Quando ele foi embora eu senti a escuridão mais perto do que nunca. Senti uma presença estranha aqui por perto. Estava perto da noitinha, mas eu não tinha medo. Faz muito tempo que não acontece nada estranho, esta terra nunca me fez mal. Nunca fizera mal aos índios que ficaram, os que a entenderam.

Mas o calafrio continuou, uma sensação de algo forte caminhando entre os galhos emaranhados, algo acinzentado, peludo e frio. Não tenho medo, mas não saio à noite quando pressinto isso. Fico na varanda contemplando o escuro, e o escuro me contemplando com seus olhos amarelos, que às vezes piscam. Acho que o estranho não deveria ter sido tão ousado, não a ponto de vir aqui em carro conversível.

Os grunhidos que ouvia longe, contidos, pareceram mais perto. Os olhos não estavam me olhando enquanto eles estalavam na noite. Ouvi o motor de um carro acelerar ao máximo, bater contra a minha porteira com a força de quebrá-la, mas por felicidade desapareceu pela estrada aos poucos. Pude ouvir o motor um longo tempo, como se a distância não aliviasse o pé do estranho de camisa roxa. Que nunca mais voltou, nem voltaria sob a mira de uma espingarda.

Ele talvez não saiba, mas não deveria ter falado comigo tão ríspido. Todos me chamam de louco, mas ninguém me incomoda. Não desde que o filho do Gracindo, aquele idiota, veio tentar caçar minhas capivaras. Eu o proibi, adverti, implorei, mas ele me estapeou, abusando de sua força e me chamando de maricas. Entrou na mata e não voltou. Sua mãe só o viu de novo embrulhado em plástico preto, uma fotografia ampliada colada no lugar do rosto.

Tentaram me acusar, mas não havia como associar minhas mãos com aquelas marcas, meus dentes com aqueles nacos de carne arrancada. Mataram uma pobre onça nestas redondezas e deram o caso por terminado. Isso é o que a polícia diz, mas ninguém nunca mais entrou na minha terra pensando em caçar. O povo daqui é mais esperto que esses polícias que vem de Ubá ou Muriaé, e não entendem a língua da terra. A diferença é que eu, diferente do povo, não tenho medo. Não vou me deixar levar.

Os Gonçalves foram embora hoje. Estava lá na despedida, barbeado pela primeira vez em meses. Uma cena de fazer chorar, os pobres homens, despossuídos de suas vidas, condenados a vagar no mundo conduzindo máquinas, a maldição da terra. Catarina estava entre eles, parecia mais triste que todo mundo. Não fui o único a notar que lhe haviam dado remédio outra vez, e amarrado suas mãos e pés.

Voltei para casa triste, sentindo a vida me escapar. Sentei na varanda olhando a noite, ouvindo os curiangos no terreiro, e sentindo falta dos olhos amarelos que me acompanhavam nestas solidões frequentes.

Então ouvi de novo o grunhido, e tampouco tive medo. Tanto faz à vida, se a gente morre tarde ou cedo. Mas a fera não tentou morder, nem veio junto a mim. Apareceram os seus olhos, amarelos, na penumbra do terreiro. E no dia seguinte eu encontrei na horta um lenço arrebentado, como se tivesse amarrado os punhos de alguém.

02
Dez 12
publicado por José Geraldo, às 22:37link do post | comentar
Minha vida de solteiro não faz anos, faz meses. Melhor assim. A vida é curta demais para a medirmos em anos, décadas, séculos. Melhor pensar em termos mais exíguos. Em termos coisas próximas, curtas, fáceis de levar no bolso da alma como lembrança durante nossas andanças.

Estou solteiro desde que recebi minha promoção. Aluguei um apartamento na cidade onde assumi meu novo posto e minha mulher insistiu em ficar para trás. Primeiro foi para terminar o semestre das meninas na escola, depois para concluir o contrato temporário do emprego que conseguiu, depois para terminar o outro semestre, depois não sei mais o que será. Ela foi ficando e eu venho vindo.

Hoje minha segunda vida de solteiro completou sete meses. Não contei à minha mulher: esta comemoração, obviamente, eu só poderia fazer estando sozinho aqui em casa. Como todos os fins de semana, eu a fui visitar, mas voltei para casa no fim, para trabalhar no dia seguinte e dar seguimento a esta experiência estranha, que eu não tive quando menino.

São muitas as descobertas desta vida. Tentar fazer a própria comida, descobrir qual tipo de produto de limpeza adequado para retirar a inhaca de cada tipo de piso, como montar e desmontar sozinho os móveis para mudá-los de lugar cada vez que cismo de reorganizar as coisas, que veneno jogar nos vãos e corredores para evitar que entrem baratas e outros bichos.

Pela primeira vez na vida estou em uma casa com garagem anexa. Saio pela porta da frente e olho à esquerda e lá está meu carrinho, seus faróis me contemplam tristemente quando saio, implorando-me que o lave. Da última vez que tentei eu molhei todas as paredes e a minha roupa, mas ele continuou misteriosamente empoeirado depois que a água secou. Acredito que os carros, como os gatos, possuem uma aversão à água, que só com alguma habilidade se pode superar. Vou tentar de novo qualquer dia desses quando chegar mais cedo do trabalho, ainda de sol quente, pois não quero me gripar aqui nesta casa solitária. Tenho que me vacinar contra as situações em que desejaria alguém para minha companhia.

Tenho um quintal, também. Por enquanto ele está apenas exibindo um crescimento majestoso de ervas daninhas. Minha sogra, quando veio aqui, detectou a presença de plantas úteis também: batata doce, erva cidreira, hortelã pimenta, alecrim. Tenho dó de jogar herbicida e matar tudo. Comprei botas e luvas de borracha e vou arrancar as ervas com a mão, para preservar as plantinhas boas. Provavelmente terminarei nunca, mas ninguém tem nada com isso. Espero apenas ter sorte de terminar antes que o IBAMA declare meu quintal como “mata nativa em recomposição”.

Eu andava preocupado com a quantidade de insetos que frequentava a casa. Mas eles diminuíram significativamente desde que espargi inseticida pelos corredores laterais, na varanda dos fundos e na parte de fora das janelas. Ou talvez tenha algo a ver com os camaleões que apareceram. Camaleões adoram insetos, e eu gosto de camaleões. Se minha mulher ou minhas filhas estivessem aqui hoje, o pobre bichinho já estaria morto. Eu deixei sobras de bolo para ele. Se até logo à noite ele não tiver comido, vou varrer e jogar na lixeira do quintal para não atrair baratas.

Como a casa está vazia, vou me estimulando a comprar coisas para enchê-la: um capacho para a porta de entrada, um tapete antiderrapante para o banheiro, um baú de ferramentas para pôr num canto, uma mangueira de jardim para a torneira da varanda, aquela com que me molhei tentando lavar o carro. Minha cozinha está cheia de inutilidades úteis: queijeiras, pegadores de macarrão, saca rolhas, abridor de latas elétrico, biscoiteira, lixeira com tampa móvel. Algumas dessas coisas minha mulher nunca quisera comprar, achava-as inúteis quando a gente passava pela ala de utilidades domésticas do supermercado. Mas eu estou comprando de todas, e descobrindo suas utilidades. Coloquei o álcool em um borrifador (tenho três), eliminei o risco de acidentes e descobri como limpar o chão sem precisar enxaguar. Desajeitado que sou, essas pequenas descobertas me poupam tempo e trabalho. Só não consegui ainda descobrir o que vou fazer com tantos adaptadores de tomada e lâmpadas de formatos vários.

Terei, infelizmente, de comprar outro jogo de ferramentas. Não sei aonde foi parar a bolsa de veludo com velcro onde guardava as minhas chaves de fenda e de boca. Estou reduzido a um alicate, uma trena, um estilete e um martelo. Com eles eu monto e desmonto, prego e desprego. Uma beleza.

Mas beleza mesmo foi a faca de açougueiro com cabo de madeira que eu comprei ontem. Cheguei aqui hoje com a belezinha e já fui experimentado. Fiquei quase vinte minutos embevecido com sua eficácia ao cortar queijos (tenho seis tipos diferentes na geladeira), goiabada (experimentei uma fatia com cada tipo de queijo e realmente fica melhor com queijo minas frescal), frutas e até um trapo de pano de chão. Acho que vou comprar outros tamanhos de faca, também. Afinal, se preciso de várias chaves de fenda, de boca e de estrela, é inconcebível que uma faca de tamanho único sirva para tudo. Minha racionalidade masculina me diz que isto não faz sentido.

Esta dificuldade com os instrumentos, aliás. Nunca consegui entender as pessoas que cismam em usar as coisas de forma errada. Colheres são para líquidos, sopas e molhos. Garfos são para comida sólida. Facas são para cortar. Pegadores de macarrão são para pegar macarrão. Minha mãe, porém, punha uma colher para retirar o macarrão. Eu, particularmente, nunca consegui entender como ela conseguia servir-se usando aquela colher. Em minha casa este problema não existe: tenho pegador de macarrão, escumadeira de arroz, colher de feijão, queijeira, boleira, biscoiteira, saleiro, pimenteiro, azeiteiro, bule. Para cada coisa seu vasilhame ou utensílio. Um mundo ordenado, onde as coisas funcionam. Apenas se acumula lixo pelos cantos, copos sujos na pia e sujeira no tampo da mesa enquanto eu não resolvo varrer, lavar e limpar.

publicado por José Geraldo, às 16:35link do post | comentar | ver comentários (1)
Semanas depois de protagonizar o terceiro escândalo sucessivo relacionado ao Prêmio Jabuti, o “Jurado C”, o crítico paulista Rodrigo Gurgel, finalmente deu a sua versão dos acontecimentos. Foi justo a imprensa dar-lhe voz, depois das semanas que passou sendo malhado como judas em Sábado de Aleluia. O crítico teve sua oportunidade de dar suas opiniões, justificando-se ou não. Muita coisa ficou esclarecida, mas em outros casos a emenda foi maior estrago que o pé quebrado do soneto. Com a autoridade de ser a nulidade literária que sou, atrevo-me a comentar o que ele disse, mais uma vez me esmerando em meu trabalho de queimar todas as possíveis pontes que me fizessem cruzar o Rubicão literário.

A entrevista de Gurgel começou, como não poderia deixar de ser, com a justifica de seu voto. Continuo dizendo que a justificativa não convence, considerando que nenhum trabalho literário sério merece zero, porém, se não é convincente em relação à necessidade das notas zero, ou próximas de zero, Gurgel pelo menos explica seus critérios para alinhar os romances de acordo com a sua preferência:
Quando eu abri o papel, a primeira coisa que me chamou a atenção [na lista de finalistas] foi o livro do Wilson Bueno ["Mano, a Noite Está Velha", ed. Planeta], que eu havia colocado em último lugar, apesar de ter dado uma nota de oito e pouco. Se um livro que você colocou em último lugar está em primeiro na lista, a primeira reação é dupla: você pensa em reler alguma coisa do livro, para ver se o julgamento continua de pé.
Gurgel poderia ter continuado a pôr o livro em último lugar, sendo coerente com o que votara na primeira fase. Porém, mais do que classificar os livros de acordo com a sua preferência, o que é, na minha humílima e ignorante opinião, o papel de um jurado, o jurado resolveu ir além e confessa ter explorado deliberadamente as regras do concurso de forma a decidir o resultado segundo os seus critérios.

Ocorre que existe uma falha do processo de escolha do Prêmio Jabuti: ao permitir que os jurados, na segunda fase, tenham acesso à ordem de classificação obtida pelos finalistas, segundo a nota obtida na fase anterior, o sistema de escolha acaba induzindo os jurados a avaliar, na segunda fase, de uma forma subjetiva, atribuindo notas segundo sua “estratégia” para influir na classificação, em vez de imparcialmente atribuir conceitos conforme sua opinião a respeito de cada livro. Neste sentido, Gurgel se assume como o “malandro” que explora as falhas do sistema para seus próprios objetivos. No caso, objetivos que significam usar o seu voto para, isoladamente, determinar o resultado final. Não sou eu que estou dizendo, foi ele quem disse:
Essa mudança das notas deveria ter sido pensada. Quem estabeleceu a nova regra não fez as contas. Não pensou: “bom, quais são as situações que podem ocorrer?” Ou então acreditou que todos os jurados votariam sem compromisso.
A falha da organização do prêmio Jabuti foi, segundo o jurado, acreditar na imparcialidade dos jurados, acreditar que os jurados votariam sem compromisso. Esta também é a falha dos que não eletrificam as cercas de suas casas, dos que não põem trancas nos seus carros, dos que contam segredos para amigos, das namoradas que se deixam filmar por seus namorados. É, enfim, a velha fraqueza humana de confiar na confiabilidade do próximo. Em um mundo ideal ninguém precisaria se preocupar, porque as pessoas agiriam sempre com ética. Mas Gurgel não se prende a esses limites: “se me pedem para julgar e me dão os critérios, eu uso os critérios.”

O “jurado Carminha”, como chegou a ser apelidado nas redes sociais, estranha que escritores tenham estranhado as notas estranhas que ele atribuiu (sic):
O que, aliás, é o que mais me chama a atenção nas críticas que recebi. E as mais violentas foram de escritores. Eu acho interessante. Em nenhum momento passa pela cabeça deles que eles poderiam ser um dos livros escolhidos por um jurado que luta pelos livros de que gosta. Um jurado que não teme se comprometer.
Como Gurgel não é escritor, sua capacidade imaginativa é relativamente limitada. Se escritor fosse, saberia que por nossas cabeças certamente passou este cenário, de sermos beneficiados por um jurado como ele. Bem, eu já disse qual seria a minha gratidão a uma escolha segundo tal critério. Mas a questão é que a maioria de nós imagina, com nossa fértil criatividade, uma possibilidade muito mais interessante para o uso da “Estratégia Gurgel” (que entrará para a história com a mesma notoriedade da “Lei de Gérson”).

Imaginemos, apenas hipoteticamente, que a “editora fulana”, usando de argumentos exclusivamente artísticos e éticos (claro), “convença” algum jurado a induzir a escolha do livro “sicrano” do escritor “beltrano”. Neste caso, claro, em vez de usar seus poderes para justiçar os fracos e oprimidos da literatura, o hipotético jurado estaria apenas fazendo o jogo bruto das grandes casas literárias e seus “nomes de peso”. É por causa disso que os escritores estranharam o que houve, é por causa disso que eu repudiaria um prêmio assim escolhido, mesmo que fosse eu o escolhido, e é por isso que tenho a firme opinião de que concursos literários não avaliam o mérito das obras, mas apenas revelam os movimentos tectônicos da luta pelo poder no sistema editorial. Briga de cachorro grande, onde um vira latas provinciano como eu dificilmente entra, a menos que concorde em fantasiar-se de palhaço, segundo o estereótipo que se impõe das capitais.

A questão, seca e simples, é que, a partir do momento em que se detecta a existência de uma falha no sistema, e de alguém que a utilizou com sucesso para obter o que queria, não há como fechar a Caixa de Pandora. Ou a regra muda, ou ano que vem todos os jurados votarão com estratégia, mesmo aqueles que não pensam que a sua opinião deva prevalecer acima das demais. A falha não está na permissão de se usar qualquer nota, de zero a dez, mas, sim, em revelar aos jurados os livros escolhidos na primeira fase segundo uma ordem de classificação, que revela a tendência de voto do júri como um todo.

Mas Gurgel, como todo ser humano, não é totalmente uma coisa só. Se se revela limitado no aspecto ético, ele parece ter algumas opiniões sobre o sistema literário brasileiro que acabam sendo parecidas com as minhas. O meu medo é que elas também estejam erradas, e eu as vá elogiar aqui somente porque os preconceitos dele conferem com os meus.

A primeira destas opiniões ele expressa ao comentar, com desdém, a reação dos escritores às suas notas: “Os nossos escritores não estão acostumados a serem julgados. O nosso sistema literário está doente.”

Esta é uma afirmação que parte de um senso comum difícil de negar. Isto, claro, se vê a todo momento, até nos blogues. O autor brasileiro é “estrelinha”, sim. Desde o iniciante amador que escreveu um pastiche pobre de Crepúsculo até um medalhão acadêmico. O primeiro confunde crítica à obra com um desmerecimento de sua dignidade pessoal, argumenta com as suas limitações e o seu esforço para que lhe sejam perdoadas as falhas e a falta de imaginação. O segundo reage com prepotência, move seus “pauzinhos”, anota no seu caderninho, dá seus telefonemas e eventualmente até desce do Olimpo, tonitroante, para reduzir o ousado crítico “ao seu lugar”. Faz isso porque não se sente seguro de seu lugar. Alguns de nossos grandes luminares sabem muito bem que sua glória é postiça, que seu mérito é mais curto que seus casacos e, na hora do “vamos ver”, deixa suas quadradas bundas de fora. Sabem que estão sentados, mas não assentados, na imortalidade. Ou melhor, saberiam, se seu talento lhes permitisse compreender a diferença que faz uma letra “a”.

Sim, o escritor está desacostumado a ser julgado. Talvez até seja necessário que, ocasionalmente, alguém lhe dê um zero. Mas a escolha do Prêmio Jabuti não foi exatamente o melhor lugar nem circunstância para dar essa lição de moral nos medalhões. Porque por mais moral que a lição fosse, perdeu-a pela manipulação aética do resultado, com o pretexto diáfano de que os critérios permitiam. Nem tudo que é legal é justo.

Existem três parágrafos na entrevista de Gurgel que estão de tal forma coincidentes com as minhas opiniões que eu, que comecei este artigo criticando com dureza o jurado, já estou, neste ponto, querendo dar-lhe as mãos e convidar para um chope. Cito-os nos pedaços que mais me interessam:
Essas pessoas [que] têm a hegemonia ideológica nos cadernos culturais, nas poucas publicações literárias que nós temos, nas editoras de livros. Quando eles escrevem uma crítica, as preocupações deles são, primeiro, a questão formal, linguística. Há um exagero de preocupação em relação a isso.

Se você não inovar em termos linguísticos, se você não tentar recriar o Finnegan's Wake o livro já não é bom, ou é um livro tímido, que revela insegurança. O que nós poderíamos chamar de narradores tradicionais já são repudiados por princípio. […]

Em termos de crítica literária, a preocupação desses críticos, na verdade, não é primeiro com relação à forma: é exclusivamente com relação à forma. Porque eles partem do princípio de que a obra é autossuficiente. A obra não tem que dialogar com a realidade. A literatura não tem que dialogar com o mundo. Tem que dialogar com ela própria.
Eu acho muito bom que um crítico literário cutuque esse tumor, que eu, com minha ridícula atiradeira de raquítico Davi, já havia cutucado em 1997, aos 24 anos, na ingênua revista literária que fiz em Cataguases. Qualquer dias desses obterei acesso ao único exemplar restante dela, e republicarei aqui o meu ensaio “Literatura e Consciência”. Que contém parágrafos quase iguais a esses. O que eu não tinha, nem tenho hoje, é o conhecimento teórico suficiente para detectar a origem desse fenômeno:
O [crítico literário] Antonio Candido fala que o nosso sistema literário, no início, era assim: as pessoas que produziam eram as pessoas que consumiam. Esse é o nosso grande problema, nós não temos leitores. O escritor escreve para agradar o crítico, pra agradar o professor de teoria literária e para agradar os seus amigos.
Então ele precisa ser politicamente correto, precisa fazer experimentos linguísticos, esconder o narrador, abusar da metalinguagem. Precisa fazer do texto dele um resuminho daquilo que a vanguarda fez nos últimos anos, para agradar as pessoas. Se você não tem uma crítica que está disposta a agradar o público, numa linguagem que ele compreenda por que aquele livro é bom ou não é, você não forma leitores.
Eu já sabia que este tipo de literatura que frequenta os cadernos culturais tem um caráter esotérico, já sabia que não são formados leitores a partir de romances da chamada “alta literatura”. Sabia também que existe um lugar para esta literatura excelsa. O que eu disse na época, e repito hoje, é que essa forma de literatura não pode ser a única, porque ela não é porta, ela é esfinge. As pessoas não se atraem por esfinges. Alunos em fase de alfabetização não querem palavras cruzadas. Tanto quanto alunos de primeiro ano do conservatório não querem tentar tocar Tom Jobim ou Yngwie Malmsteem.

Ocorre que nosso país possui uma ideologia dominante que aspira ao pensamento único. Ao partido único, ao estilo único. Se você discorda de mim, então você está errado, você é um imbecil ignorante, você tem de ser suprimido. Não sabemos conviver com a diferença. Não temos um histórico de filósofos adversários que, depois de se xingarem pelos jornais, se encontravam à tarde nos cafés para jogar dominó e rir das polêmicas criadas em torno de si. Nossa tradição é de autores criticados xingarem os críticos, de críticos questionados fulminarem os autores, de autores experimentais criticarem os narradores “primários”, dos narradores primários pretenderem derrubar do Olimpo os acadêmicos. Nossa sociedade tem um espírito de rinha, não de disputa. Nossa ideologia é o MMA, que vença o melhor, o vencedor é quem ficar de pé. Não concebemos um tipo de vitória no qual o adversário permaneça digno.

Com isso não convivemos com a diferença, por isso nossa democracia é frágil, por isso nossa imprensa tende ao golpismo, por isso nossas instituições se corrompem, por isso nossos partidos almejam perpetuar-se a qualquer custo.

Por isso nossos críticos, incapazes de conceber que outros críticos possam dar valor àquilo que eles escolheram desprezar, se prestam a “usar os critérios” para determinar o resultado, tal como um político que se alinha com forças ocultas para dar um golpe de estado e impedir a vitória iminente de um adversário no pleito seguinte. Por isso Gurgel continua errado, mesmo dizendo coisas com que concordo. As coisas certas, quando convivem com um mal evidente, tornam-se instrumentos a serviço desse mal.

Portanto, quando Gurgel diz coisas que são obviamente verdadeiras, o que ele está fazendo é criar uma cortina de fumaça sobre o ato aético que perpetrou, abusando de sua condição de jurado.

Mas então chegamos ao fim da entrevista, e aí compreende-se finalmente, porque Gurgel cometeu o ato que cometeu. Ele se revela aluno de Olavo de Carvalho, o que é uma coisa inconfessável para uma pessoa de cultura. As peripécias de Olavão são inúmeras, desde provar que Newton estava errado em sua física até negar a validade da Teoria da Relatividade de Einstein (sendo que o dito filósofo não é nem físico e nem sequer possui um grau acadêmico de exatas). Some-se a isso o horror mórbido à mudança, sua rejeição à novidade, sua agressividade contra as utopias de esquerda e sua crítica paranoica ao “esquerdismo” e  temos provas suficientes de que ele não pode ser levado a sério por uma pessoa de cultura mediana. Olavão pertence ao seleto clube das pessoas que nunca erraram (pelo menos nunca o vi retratar-se de uma opinião ou expressar qualquer ideia sua de maneira menos enfática do que uma certeza absoluta). Não erra porque se coloca como verdadeiro Oráculo, veículo da verdade divina. “A hegemonia da esquerda foi lentamente construída”, diz Gurgel. Olavo traz a verdade súbita, o golpe da verdade, o golpe.

Golpe que o jurado C desfere contra seus desafetos literários, contra o “sistema” que rejeita. Olavo e Gurgel, cada um em seu papel, Dom Quixote e Sancho Pança, lutando contra os moinhos de vento do mal, para salvar o mundo, ou pelo menos a literatura, da unanimidade burra do esquerdismo.

E então me lembro que, no texto introdutório da entrevista, Gurgel revelara ao repórter seu novo projeto: Atualmente, desenvolve um projeto ambicioso: reler todo o cânon da literatura brasileira e submetê-lo a seu crivo em textos publicados no jornal “Rascunho”. O primeiro fruto, o volume de ensaios “Muita Retórica, Pouca Literatura - de Alencar a Graça Aranha” (Vide Editorial), foi publicado em agosto. 

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