Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
27
Jan 13
publicado por José Geraldo, às 14:40link do post | comentar
Esta página registrará atualizações na disponibilidade da versão impressa da minha tradução do romance “A Casa no Limiar”, de William Hope Hodgson.
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    26
    Jan 13
    publicado por José Geraldo, às 00:24link do post | comentar | ver comentários (7)
    Uma das maiores dificuldades que há no mundo é a de se ensinar. Quem tenta ensinar geralmente se expõe. Não raramente surge a cobrança da legitimidade: Como você quer me ensinar a falar inglês sem ser nativo? Como vai me ensinar música se toca toscamente esse violão? Como vai me ensinar a dirigir se tem carteira de motorista e seguro de automóvel há dez anos e o seu bônus é zero? Como vai me ensinar a desenhar se os seus personagens parecem tortos no papel?

    Mas os questionamentos não acabam junto com a fase da falta de legitimidade (que chega ao fim por preguiça do aprendiz, que se conforma em não achar instrutor melhor, ou porque aceita que, afinal, nem é preciso saber fazer para ensinar a fazer). Depois que as pessoas resolvem ouvi-lo surge o desafio do poder, e você pode começar a escrever besteiras, desnudando-se de uma forma que não queria. Infelizmente o mundo já não é mais tão escasso de crianças de cinco anos dispostas a apontar que o rei desfila peladão.

    Esta semana está bombando nas redes sociais o caso de uma editora que teria postado em seu saite, sob o título de «Dicas Para Escrever um Romance», uma curiosa peça, de autoria de uma certa Thayane Gaspar (quem?) que incluía conselhos polêmicos, como:
    Seja original, e para isso fique longe de outros livros. Em total abstinência literária. Será como se só existisse seu romance no seu mundo, do mesmo jeito para o mocinho, só existe a mocinha.
    Inspiração é o estado de sintonia entre sua alma e você, é o momento em que a alma consegue se expressar verbalmente. Por isso, busque coisas que evoquem esta sintonia: uma música, um lugar, uma foto que mexa com você. Fique perto dessas coisas, e dê voz à sua alma, e não a force, ela só fala o necessário e quando necessário.
    Descreva o mínimo possível a aparência dos personagens. É como se eu fizesse apenas o contorno de seus desenhos e passasse a tarefa adiante, para o leitor. Esse é o trabalho deles. O meu é dar vida a sentimentos, sonhos e histórias. E o nosso trabalho é, que juntos, façamos essas pessoas reais dentro de nossas mentes.
    Esses três parágrafos (transcritos ipsis litteris) nos revelam muita coisa sobre Thayane Gaspar, sobre a Modo Editora (que muito antes de ter publicado esse texto havia endossado a autora) e sobre o tipo genérico de escritor que tem procurado as nossas editoras. Mas revela também sobre o arquétipo de literato que vem sendo transmitido em nosso país, de geração a geração. Um dos muitos arquétipos nocivos (ou seja, «preconceitos») que expressam o nosso atraso mental coletivo.

    O que Thayane está expressando neste texto é o que ela, certamente, tem dentro de si: a concepção da literatura como o resultado de uma inspiração superior, e não um trabalho com as palavras, algo que exige «inspiração», mas não «transpiração» (não force muito), e que não dialoga com o mundo real (como se só existisse seu romance no seu mundo), mas com um mundo de fábula, uma torre de marfim onde o escritor, este oráculo dos deuses, produz sua obra. Dentro de sua torre de marfim o autor não precisa dialogar com a cultura na qual está imerso (ou não, isso depende de cada um), mas com um plano mais elevado (fisica e espiritualmente) de onde misteriosamente vem a tal «inspiração» (ela só fala o necessário e quando necessário).

    Esta personificação da inspiração como algo alheio ao autor, e independente de sua vontade, busca, claro, valorizar o produto obtido como algo que não estaria ao alcance de «qualquer um». Faz parte da mitologia literária nacional imaginar o autor como uma espécie de Escolhido, portador de um dom gratuito de Deus ou da natureza (ou de Satanás, se tiver fechado um pacto numa sexta feira numa encruzilhada sacrificando um bode).

    Tão importante é esse trabalho (quase no sentindo umbandista do termo) a que se dedica o Autor (com letras maiúsculas, pois ele é um ser iluminado), que ele não deve perder tempo com detalhes trabalhosos, como descrições. Não é trabalho do autor descrever narizes, imaginar cores, catalogar características, saber tamanhos. O trabalho do Autor é «dar vida» (tal como um Dr. Frankenstein que lida com memórias e inspirações, cadáveres de emoções e sensações) a «sentimentos, sonhos e histórias». 

    A autora, apesar do desastroso modo como apresenta o conceito, está, de fato, buscando ser moderninha, ao ecoar a tese da obra literária como um processo aberto, do qual o autor não tem controle, e no qual cabe ao leitor um processo de co-criação durante a leitura. Conheço apenas vagamente o conceito, que meu amigo João Francisco diz originar-se em Roland Barthes (autor de que li um excelente livro certa vez e depois esqueci benditamente cada linha). O que ela não sabe é que ninguém razoavelmente culto ousaria dizer que o autor devia se abster de criar, confiando que o leitor criaria o que faltasse. Parece óbvio que, se o leitor estivesse dispostos a tanto, e soubesse tanto, não haveria necessidade de se valorizar tanto o Autor e sua Inspiração (que o diabo os carregue se eles não servem para produzir bons livros). Thayane não percebe que seus conselhos se chocam uns contra os outros, porque ela tenta harmonizar seus preconceitos arquetípicos com doutrinas filológicas modernas e um pouco de justificação das próprias limitações.

    Por fim, a abstinência literária (sic) recomendada pela autora ecoa este privilégio, ao negar a importância, ou o valor, da influência de uma obra sobre outra. Mais que isso, supõe a autora que, por não ter lido outros romances, você não os imitará. Esta afirmativa revela uma profunda ignorância dos mecanismos da literatura, pois ela desconhece a existência de modelos mentais que condicionam a estruturação narrativa até mesmo de pessoas iletradas: os causos contados pelos pitorescos matutos do interior não são menos estruturados do que os bons romances, apenas estão vazados numa linguagem não padronizada e padecem, devido ao contexto oral e informal, de uma série de elementos «poluidores» que desviam seu foco e seu fluxo, dificultando uma linearidade maior. Desconhece, ainda mais, essa continuidade estrutural entre a literatura oral e a literatura escrita, visto que mesmo os que não leiam livros terão acesso à primeira através mesmo de fatos prosaicos, como a repetição de notícias de jornais. E o mais curioso é que justamente esse conceito vem corroborar uma antiga tese provocativa que circulava nas redes sociais: a de que o autor brasileiro não vende porque não escreve bem, e não escreve bem porque é um bronco sem cultura (mais sobre isso no final).

    Evidentemente uma postagem tão desinformada acaba por lançar fortes dúvidas sobre quem a escreveu. Eu nunca tinha ouvido falar de Thayane antes (isso não é problema, visto que ela dificilmente terá ouvido falar de mim), mas agora que a conheci por este texto, terei muita dificuldade para levá-la a sério. Se não por suas contradições e erros oriundos de desinformação ou falta de jeito, certamente por não conseguir pontuar corretamente um texto de três parágrafos.

    No começo eu dizia que a postagem também revela algo sobre a Modo Editora. Refiro-me ao fato de que a Editora tenha não apenas aceitado difundir um conselho tão tosco, mas que não tenha sequer corrigido o uso de vírgulas no texto. Obviamente a Editora Modo não acha importante corrigir vírgulas, tanto quanto a autora não acha importante descrever personagens, ou ter uma bagagem literária. Imagino que, se não corrigiu vírgulas em três parágrafos, não as terá tampouco corrigido nas dezenas ou centenas de páginas de «Princesa de Gelo», a obra que Thayane produziu.

    O problema não está em haver uma editora que dá vez e voz a depoimentos como esse, se fosse uma voz isolada isso não teria nenhum problema. O problema está em haver uma massa crítica de pessoas que acredita nesses conselhos e os põe em prática. Porque Thayane não inventou isso. Por mais que se esforce em «ser original» enterrando a cabeça na areia para não conhecer o resto da literatura universal, a verdade é que esses conselhos são a condensação de um estado de espírito amorfo que vem se formando nas redes sociais há pelo menos uns seis anos. A ideia de que ler outras obras «contamina» o talento do autor é antiga, e eu mesmo já escrevi aqui, há dois anos e meio, sobre o mito do autor genial que não lê.

    O caso me faz lembrar a parábola cristã do Guia Cego. “Porventura pode um cego guiar outro cego? Não cairão ambos no barranco?” (Lucas, VI, 39). Se Thayane padece destas deficiências (mais do que o uso das vírgulas, a crença em preconceitos infundados e um conhecimento porco de teoria literária), como pode ensinar a seus leitores como produzir romances perfeitos? A questão da legitimidade urra aqui com uma força ensurdecedora. É aceitável que o professor não saiba fazer, mas saiba ensinar. O técnico de futebol ensina o jogador a jogar sem que ele mesmo saiba dar um drible num cone. Mas é inaceitável que um mestre não tenha nem a prática e nem a teoria. Esse mestre é um guia cego, e todo aquele que o segue vai para o barranco junto com ele.

    E para o barranco segue uma multidão de jovens autores brasileiros, que publicam por editoras que os iludem com capas bonitas, noites de autógrafos e estandes em feiras, que afagam seus egos e ordenham seus bolsos enquanto desperdiçam belas árvores. Autores que acham que serão originais caso se tranquem num quarto, de preferência antes de terem lido qualquer coisa.


    Quando a polêmica se instalou, a Modo Editora removeu de seu site o arquivo de imagem que continha os conselhos da Thayane, mas continuam lá outros conselhos igualmente inacreditáveis. Tamara Ramos, por exemplo, dá os seguintes conselhos:
    Um bom autor precisa conhecer os grandes clássicos da literatura nacional e internacional e deve estar atento às tendências do mercado literário.
    Parece ser um conselho sensato, ainda mais em comparação com o de Thayane, mas não tem a mais remota base factual. Porque se tal conhecimento amplo fosse «preciso» para um bom autor, a grande maioria dos clássicos não teria razão para ser lida. Os autores clássicos não conheciam os grandes clássicos (o próprio conceito de «clássico» é uma invenção bastante recente) e até muito recentemente inexistia um «mercado literário» para se prestar atenção.

    É certo que conhecer os clássicos não faz mal, mas é errado imaginar que somente um douto literato sabe fazer boa literatura. Esse é, aliás, o motivo pelo qual a acusação de que o autor brasileiro escreve mal porque é inculto não passa de uma trollagem tosca. Há bons autores que tem uma cultura imensa, mas há tantos outros que adquiriram a cultura apenas na forma de uma biblioteca, enquanto que alguns autores genuinamente incultos produziram livros interessantes. A falha está em enxergar uma relação de causalidade entre quantidade e qualidade. Algumas pessoas precisam ler alguns bons livros para conseguirem escrever alguns bons livros, outras precisam ler muitos, e muitas não escreveram bons livros nem que leiam cada página jamais impressa, em cada língua do mundo. A chave está em aproveitar o que se tem, tal como é impossível gastar um bilhão de reais, também é impossível tirar proveito de ter lido dez mil romances clássicos.

    Mais do que recomendar o conhecimento dos clássicos como uma estratégia para buscar um nicho de mercado, Tamara acredita que exibir cultura cativa o leitor:
    Para começar o processo da escrita de um romance, um autor necessita de uma grande bagagem literária e cultural. Isso enriquece o texto e conquista os leitores.
    Novamente ela confunde quantidade com qualidade. Exibir uma grande bagagem cultural não necessariamente enriquece o texto, na maioria das vezes apenas o torna pesado, intimidador. Depende do talento do autor para dosar e apresentar essa bagagem. Porque, definitivamente, não é a bagagem literária do autor que conquista o leitor. O que conquista o leitor é o livro ser bom, ou, pelo menos, atender às suas expectativas do que seja «bom» (e tanto há quem goste do olho como da remela).

    O caso é que Tamara sabe disso. Tanto que escreveu em outra postagem sua «não tente um estilo forçado ou literato». Ora, então por que escreveu que uma grande bagagem literária e cultural enriquece o texto e conquista os leitores? A resposta é simples: também Tamara está divida entre a teoria que aprende na faculdade (onde lhe ensinam sobre literatura, mas não ensinam literatura) e os seus antigos preconceitos. A faculdade lhe diz que o autor culto produz uma obra mais densa e de qualidade, mas ela sabe, instintivamente, que a maior parte das obras citadas como exemplo na faculdade são verdadeiros soníferos, do tipo que, como disse Millôr Fernandes, «quando você larga não consegue mais pegar.»

    Entre Thayane e Tamara eu acredito que a segunda tenha escrito um livro melhor. Não só porque não levou rasteira das vírgulas, mas também porque ela me passou um conflito mais profundo entre o que lhe dizem e o que ela quer. Um conflito que pode levá-la a uma reflexão de valores mais amadurecedora do que uma abstinência literária para preparar o corpo para o nascer do pão do espírito.

    Mas ambas, ambas, são vítimas de uma Editora que atira seus autores aos leões, sem dar-lhes nenhuma assessoria. As duas viraram vítimas das redes sociais porque se expuseram com opiniões caracterizadas, respectivamente, pela ignorância e pela incoerência. Uma editora que realmente cuidasse da carreira de seus contratados não permitiria que elas postassem aqueles conselhos, possivelmente não permitiria nem que publicassem os seus livros. Mas o que fazer se há tantos jovens iludidos pela cobiça do distintivo duvidoso de «escritor» a ponto de justificar o florescimento do mercado de «fábricas de fábulas» que temos visto acontecer? Se a Modo não publicasse, haveria alguém para publicar, e outro lugar onde as duas pudessem guiar rumo ao barranco quem as quisesse seguir.


    EM TEMPO: Contrariamente ao que muitos podem pensar, eu não sou nenhum guia cego porque não estou aqui ensinando ninguém a escrever. Como não tenho essa proposição, não tenho o ônus de justificar minhas ideias. Esse ônus pertence a quem pretende ensinar “como”. E se alguém segue minhas ideias, lamento dizer que tal atitude só poderá levar meu seguidor pelos caminhos que trilhei e ao destino a que cheguei. Parágrafo adicionado em 26/01/2013 às 21h00.

    23
    Jan 13
    publicado por José Geraldo, às 20:00link do post | comentar
    Um dia, conversando casualmente com o meu amigo e também escritor Emerson Teixeira Cardoso, ele me contou uma história curiosa que se passou com ele nos anos 1960, época em que era ator amador em nossa Cataguases natal. Uma história cuja moral, se é que existe alguma, demorei muito para entender.

    Era de um grupo não apenas amador, mas também autodidata, que encenava peças diversas na base do amor e do instinto. Certa vez, enquanto ensaiavam para a montagem de “Rinoceronte”, do Eugène Ionescu, calharam de ter a ideia de escrever ao então famoso dramaturgo romeno exilado em Paris, autor da peça. Não sei como conseguiram o endereço, mas conseguiram, e um dos membros do grupo sabia francês, coisa que se sabia naquela época muito mais do que hoje.

    Após várias hesitações sobre o conteúdo da carta, que acabou sendo um trabalho escrito a muitas mãos, decidiram que a carta seria mais ou menos assim. Começariam se apresentando como um grupo de teatro amador, localizado no interior do Brasil, em uma cidade que tinha, à época, cerca de 30 mil habitantes. Depois de enfatizarem que tudo o que sabiam de teatro haviam aprendido dos livros que haviam lido sobre o assunto e das peças que haviam ousado encenar, descreviam com minúcias as dificuldades por que passavam e a incompreensão que enfrentavam (e apesar de tudo uma peça teatral daquelas deve ter tido mais público em 1969 do que teria hoje, na mesma cidade, já crescida e mais “desenvolvida”). A carta concluía com uma pergunta ao dramaturgo, como se ele fosse uma espécie de oráculo: “o que devemos fazer?”

    A resposta de Ionescu veio quase três meses depois, quando a peça já tinha sido apresentada todas as duas ou três vezes que poderia ser. Era uma frase única, seca, isolada no centro de uma folha de papel ofício:

    « tuez-vous »

    Meu amigo me contou que todos ficaram perplexos com aquele imperativo formidável pousado na página como um abutre, sutil como uma chifrada de rinoceronte. Não sei se meu amigo já desenvolveu uma teoria sobre as motivações do conselho de Ionescu, ou mesmo se existe uma razão para ele, além do mau humor de um exilado que devia receber centenas de cartas de fãs cada dia.

    De fato, tendo refletido posteriormente sobre o enigma desta frase, ainda mais pela carga de gravidade que a exiguidade lhe empresta, eu desenvolvi uma teoria, que vai muito ao encontro (e às vezes de encontro) de certas ideias que eu advogo desde os tempos da revista literária trem azul.

    Ionescu, ao tomar conhecimento da existência, no interior do Brasil, de um grupo de pessoas que se dedicava a estudar teatro a partir de livros e montar precariamente as peças teatrais escritas por famosos dramaturgos como ele, deve ter se sentido bastante incomodado com a pergunta que ainda hoje não quer calar em mim quando vejo algo equivalente: o que essa gente pensa que está fazendo?

    Veja bem você, vivendo em uma realidade tão específica, e tão oposta à Europa do pós-guerra, enfrentando tantas restrições que te impedem de efetivamente ter acesso à cultura cosmopolita, em uma sociedade que de forma alguma valoriza seu esforço ou compreende o seu trabalho. Se tudo que você faz é tosco, se os seus aplausos são a compaixão de amigos e parentes, se o seu entendimento de teatro se limita aos livros, se seus meios lhe obrigam a improvisar, deformando a cenografia pensada pelo autor etc. Se esta é a sua realidade, você tem mais é que se matar mesmo. Se você vive de costas para a cultura do seu país e busca, ainda que instintivamente, a aprovação de um autor que, por mais talentoso que seja, pertence a outro continente, e praticamente a outro século, então você está se anulando para poder abrir espaço para a imitação do outro. Se você se anula, você se mata metaforicamente. Se você já está morto, matar-se não é uma violência tão maior. Acabe, então, com o serviço já começado. Mate-se.

    “Matar-se” adquire, então, um caráter de libertação. Ionescu sabia que os jovens não se matariam por causa de sua frase (que se matassem, porém, se quisessem, que ele provavelmente nem ficava sabendo). Mas ao serem provocados desta forma, certamente eles tiveram uma sacudida que lhes fez pensar muito sobre suas vidas, sua cultura e seus valores.

    Talvez tenham se tornado como aquele que, porém, recusa-se a obedecer a esta ordem e, em vez dela, brada de volta aos modelos e ídolos, cuja aprovação inutilmente buscara:

    « je tuerai vous »

    Com esta determinação em mente, seguir a vida fica mais fácil, porque temos uma desculpa para vivermos. Se não temos um norte, fica fácil seguir o conselho de Ionesco, aliás, o seguimos em modo automático o tempo todo. Talvez, se o norte for firme e a vontade vier acompanhada de algum engenho, talvez não seja preciso confrontar assim, mas com uma frase mais sutil:

    « je survivrai »

    Porque, talvez, a melhor reação diante de uma determinação que nos destrói não seja destruir o que nos ameça, mas sobreviver. Às vezes a destruição do inimigo nos destrói também.

    Pensando desta forma, quer tenha Ionesco pensado assim ou não, o conselho adquire um caráter de verdadeiro oráculo, e os jovens cataguasenses acabaram tendo na mão o direcionamento que esperavam, apenas não da forma que queriam.

    22
    Jan 13
    publicado por José Geraldo, às 21:24link do post | comentar
    O texto a seguir, originalmente escrito e publicado por mim em 1997, na Revista Literária Trem Azul, representou a minha “Declaração de Princípios” literários, minha carta de alforria em relação aos autores que eu lia e imitava servilmente, em relação às opiniões dos críticos que eu lia e seguia sem questionar. A partir do instante em que entre para o projeto da revista, decidi romper essas amarras mentais e explicitar o que eu queria. Se foi bom ou foi ruim, o importante é que papel eu consumi.

    Por que fazer literatura? Não há resposta bastante abrangente que resuma a experiência de escrever. A obra é um orgasmo — alguém já disse — mas orgasmo é um instante fugidio, é como tentar tocar o intangível e, após tê-lo vislumbrado muito perto, quedar esvaziado. Por que, então, amamos? Igualmente não há resposta. Todos se sentem tristes após o sexo, o orgasmo é um vazio que nos preenche inteiramente. Nem para o amor e nem para a literatura podemos encontrar uma explicação racional. A não ser o gozo do instante: a obra terminada é um amor que se acabou.

    Qual a necessidade de se fazer literatura num mundo como o nosso? Simplesmente façamo-la como sempre foi feita: a partir da realidade e dos sonhos dos seres humanos. Buscando realizar a partir deste material comum alguma coisa nobre. Hoje em dia, no entanto, é quase impossível surpreender. Antigamente, ainda que fossem pedras, havia alguma reação à obra de arte. Para nós, porém, restou só a indiferença: tudo o que se faz cai no esquecimento como uma goteira dentro de um buraco fundo. A liberdade tornou ultrapassadas todas as rebeldias.

    Talvez, então, seja uma forma de rebeldia tentar encontrar uma alternativa a esta dissolução em que vivemos. Não tenho medo de vir a ser chamado de piegas: quem tem um mundo de experiências para mostrar não precisa restringir seus sentimentos diante da exiguidade das possibilidades da moda, deve buscar quaisquer recursos que possam trazer o que tem dentro de si a uma forma palpável. Os defeitos do ser humano devem transparecer no que escreve: a perfeição fria é característica de quem não se importa com as imperfeições do mundo.

    Sempre se deve olhar para o passado, pois é de lá que vêm as novidades. O futuro é provisório, e ser escravo dele é viver na incerteza. Os delírios futuristas de décadas atrás hoje nos parecem risíveis porque se tornaram despropositados. Ninguém é capaz de prever o futuro como será realmente. Por isso, uma literatura sem raiz é uma literatura que se torna rapidamente obsoleta: surfar nas predições do futuro sem um pé na terra é uma temeridade para quem tenta e uma perda de tempo para quem acompanha.

    Ainda mais se considerarmos que mesmo um frágil poema tem um valor sólido se possuir alguma coisa de verdadeira humanidade agregada a si. É claro que a sinceridade não o salvará automaticamente para a arte, mas não é de Arte que eu estou falando:1 é da necessidade, inerente ao ser humano, de criar algo de que possa se orgulhar. Contemplar o que se fez é uma realização quase plena de uma forma de comprovar nossa humanidade. Por que, então, devemos pensar primeiro se o que estamos criando está contido e previsto nos cânones da arte formal?

    Quem expressa o que pensa já se salva da multidão silenciosa e dá passos firmes rumo aos cinco estágios da reflexão consciente.  

    Receber, sem preconceitos, o novo e o velho, sem a pretensão de já saber de véspera, afinal, a busca do homem não tem limites.  

    Interiorizar o lido, não deixar que atravesse a mente sem deixar sinais. Significa a capacidade de recordar. Muitas pessoas são incapazes de dizer, minutos após a leitura, o assunto do texto lido.

    Discernir, que é compreender o real sentido por trás das palavras do texto,2 vendo nele mais do que simplesmente palavras distribuídas num espaço.3

    Discutir, ou seja, não aceitar pura e simplesmente tudo o que se lê. Ter algo a dizer, ainda que não muito apropriado. Articular o próprio pensamento em palavras desenvolve a inteligência, ainda que esse pensamento não valha muita coisa no princípio.

    Produzir.  Eis o essenciol, o coroamento do lnteligência humana: saber dizer ou escrever porque concordo ou não.

    É claro que nada disso pode ser obtido através de uma arte que exagera a forma exterior e pouca importância dá ao conteúdo.
    O problema é que quem for capaz destes cinco estágios será um cidadão na mais complete acepção da palavra, e um cidadão consciente é uma ameaça a este estado de coisas em que vivemos. Deve ser por isso que tudo neste país propaga, intencionalmente ou por incompetência, a alienação. Certamente porque a liberdade de pensamento é a única liberdade a todo prova. A única cuja posse não nos podem revogar se não estivermos nos comportando direitinho.

    E o que tudo isso tem a ver com o que eu quero produzir? Muito mais do que eu mesmo possa prever. A minha literatura quer falar do vida humano que nos tem sido roubada pelo mecânico quotidiano de nossos tempos. Eu quero abandonar a página impressa e recolocar o poema em suas fundações orais. E a clareza é essencial porque ainda não inventaram uma telepatia eficiente. E se fivessem inventado, seríamos todos boçais incapazes de racionalizar os pensamentos, confiantes na automática compreensão de nosso indefinido sentimento pelos outros.

    É na literatura que o homem tem o seu sonho de Ícaro: escapar dos vermes que o aguardam transcendendo o breve e leve sopro dessa vida através de sua obra. No concretismo, no entanto, o homem está preso pelo rigoroso espaço da página impressa. O conforto dessa estética pouco nutritiva é que, sendo quase incompreensível , o escritor não corre o risco de sofrer reparos procedentes. 0 mais terrivel é que são tachados de arcaicas as pessoas que ainda sobem ler e escrever numa linguagem humana, enquanto se celebra a anarquia de fotos retocodos e colagens indefiníveis e a solidão de poucas palavras no meio de uma grande página quase em branco. Assim, lentamente, vão roubando do povo o acesso à cultura.

    Curiosamente, a erudição valorizada hoje em dia não está mais baseada no conhecimento da literatura, mas no domínio de irrelevantes detalhes semióticos ou biográficos. Rebusca-se nas entrelinhas sentidos ocultos ao ponto de quase se esquecer o explicito e julga-se mais importante definir se Thomas Mann era homo ou hetero do que proporcionar ao publico a oportunidade de lê-lo.

    Tenho dito, aguardo as pedras.

    1 Precisamos escrever mais livros ruins para que o solo da literatura fique fértil para as obras primas nascerem. Esterilizar a terra a espera do fruto perfeito é uma futilidade.

    2 Ou imaginar que existe um.

    3 Esta frase é uma estocada no concretismo, que dá grande relevância justamente à distribuição visual das palavras.


    20
    Jan 13
    publicado por José Geraldo, às 22:42link do post | comentar
    Há momentos na vida em que nos surpreendo com coisas simples, quase a ponto de algum «suor dos olhos» me embaçar a visão. Sou do tipo emotivo a ponto de não gostar de filmes de guerra para não ver carnificina, mesmo que fictícia, e costumo achar finais felizes para meus personagens. Quão mais emotivo não sou quando me deparo com pedaços de minha própria memória recuperados por pessoas com quem interagi!

    Há poucos minutos vi na barra lateral deste blogue um link para o blogue parceiro «Chicos Cataletras», um e-zine literário de minha cidade natal, Cataguases. Ali estava o chamado para um mergulho em meu passado: a Revista Literária Trem Azul, de 1997.


    Caro leitor, é até complicado controlar esses borbotões de lembranças. Eu tinha 24 anos, muitas ideias e hormônios, muita ingenuidade na cabeça e nenhuma experiência de mundo. Fiz uma revista literária em parceria com o meu amigo Emerson Teixeira Cardoso. Nós dois no conteúdo, com a ajuda de outro amigo meu, o Salvador Márcio (ah, Sassá, saudades daqueles nossos papos sobre música na varanda da casa dos seus pais, bons tempos aqueles!). A revista foi inteiramente digitada no Word 97 (o último grito em termos de edição eletrônica da época) e fotocopiada digitalmente em 100 exemplares pela extinta Tipografia Monteiro. Custou exatamente 300 reais a impressão, o que significava que, pelo preço de capa, teríamos 100 reais de prejuízo se vendêssemos TUDO. Bem, conseguimos alguns patrocínios (70 reais no total, se não me engano) e não, não vendemos tudo.

    Mas esse singelo trabalho, adornado por nossas inocentes obras e por colaborações de amigos próximos (Waltencir Oliveira, Antônio Jaime) ou distantes (Ronaldo Cagiano), nos levou longe. Tivemos a ousadia de mandá-lo para gente de toda parte. Até para Cuba, Espanha, Itália, Argentina e Estados Unidos. Conseguimos contatos com escritores, chamamos a atenção a ponto de o número dois crescer imensamente. Esse foi nosso erro.

    Contando com as vendas e os patrocínios, tivemos apenas 50 reais de prejuízo. Com a inflação adicionada isso daria uns 125 reais em dinheiro de hoje. Mas a ideia de crescer rápido nos fez ter prejuízos grandes com os números dois e três, o que impediu que a revista se estabilizasse.

    Duas coisas curiosas sobre esta revista. A primeira é que ela parece bem mais bonita e agradável do que os números seguintes, feitos com mais «profissionalismo». A segunda é que eu não possuo esse número em meu arquivo pessoal. Sobreviveu apenas um exemplar, no arquivo pessoal do Emerson, isso se ninguém a quem a gente a enviou tiver guardado. Pode ser a revista literária mais rara do Brasil!

    Esta revista teve uma linda capa desenvolvida a partir de uma pintura  em estilo naïf feita por uma garota natural de Astolfo Dutra, chamada Daniela (por onde andas, ó Daniela?). A pintura monocromática (preto e branco), em guache sobre papel canson, não existe mais, a menos que o Emerson a tenha salva em seus arquivos também. Se ele não a tiver, resta dela apenas este testemunho na capa da revista.

    Como eu não tenho esse exemplar comigo, não tinha (até ontem) acesso ao original de meu ensaio «Literatura e Consciência» (meu ato inaugural de rebeldia, ao atacar o Concretismo e o elitismo de nossa literatura). Cheio de marxismo cultural e de ingenuidade em estado bruto, este texto certamente não seria escrito por mim hoje (embora eu continue cheio das mesmas coisas que o inspiraram), mas mesmo assim eu queria muito tê-lo no meu blogue. E graças à iniciativa do Chico Cataletras eu poderei tê-lo.

    publicado por José Geraldo, às 11:21link do post | comentar | ver comentários (1)
    Conforme já havia prometido na época em que terminei a tradução desse romance fantástico escrito pelo britânico William Hope Hodgson e publicado em 1907, estou finalmente disponibilizando um e-book oficial com o texto completo. Demorei todo este tempo porque, como não estava enxergando nenhuma reação do público ao meu trabalho, não supus que houvesse demanda por isso. Porém, ao descobrir recentemente que a obra estava ganhando pernas na internet, resolvi cumprir a promessa e ei-lo: o e-book.

    ATENÇÃO: Disponibilizada edição impressa do texto corrigido.


    Por enquanto está sendo disponibilizado apenas o formato ePUB, mas até o final da próxima semana deverei providenciar o livro também em PDF e MOBI. Tentarei colocá-lo na Amazon e na Barnes & Noble (Kindle e Nook, respectivamente) e certamente o colocarei na Lulu.com, onde tenho uma conta.

    Aqueles que baixaram as versões não autorizadas, em lugares como o site ebookbr.com.br, aviso que ainda vale pena deletar e baixar de novo, agora a versão oficial, por várias razões:
    1. Correção segundo a nova ortográfica do português. Mais de 420 erros de digitação (ou de ortografia mesmo) foram corrigidos em todo o texto.
    2. Apresentação melhor. Como eu limpei o código HTML antes de gerar o e-book, o resultado é um visual mais agradável, organizado e limpo.
    3. Correção do título. A obra teve o título corrigido para «A Casa no Limiar», que é mais correto de acordo com o sentido do original («The House on Borderland»). 
    4. Texto Completo. O novo e-book contem um poema de Hodgson a seu pai (incluído na edição original como dedicatória). Alguns parágrafos acidentalmente excluídos também foram recuperados.
    5. Licenciamento correto. Imagem de capa devidamente licenciada do Creative Commons e conteúdo distribuindo respeitando a licença do meu blogue.
    6. Embora muita gente não dê importância a isso, você estará apoiando meu trabalho e me estimulando a contribuir mais traduções. Respeite o esforço de quem compartilha conteúdo livre.
    O licenciamento desta tradução é, e sempre será, gratuito. Minha remuneração é a divulgação do trabalho, e deste blogue.

    15
    Jan 13
    publicado por José Geraldo, às 01:18link do post | comentar | ver comentários (1)
    Você certamente não lembra, porque hoje este blogue tem muito mais leitores do que no começo de 2012, mas há aproximadamente um ano eu me perguntava se valia a pena manter um blogue literário. Minha conclusão foi de que não valia, pois o trabalho divulgado aqui não estava atendendo a nenhum dos objetivos que eu tinha em mente: não estava aumentando a minha notoriedade, não me estava gerando receita e nem me angariando elogios. Entretanto eu não me dava ainda por vencido e, apesar da sensível queda na quantidade de postagens ao longo do ano de 2012 (uma queda de mais de 50% em relação ao ano anterior), segui tentando encontrar meios de atrair visitantes e me estabelecer como um “blogueiro de sucesso”, mas, de fato, não tinha muita esperança de ir longe.

    Esta relativa desatenção fez com que eu acabasse não concluindo o projeto de formatar e publicar o e-book da tradução do romance «A Casa no Fim do Mundo», de William Hope Hodgson. Fui deixando no limbo porque não via resultados decentes em termos de visitas ou receita.

    Qual não foi a minha surpresa ao descobrir, porém, neste fim de semana, que alguém havia preenchido esta lacuna e feito o e-book da tradução. Com uma capa até bonita, e ele havia “caído na rede”, sendo distribuído por vários sites e blogues literários nacionais.

    Foi um misto de espanto, supresa e frustração. Porque, afinal, este fato demonstrou a qualidade da obra original, a solidez de minha tradução e o interesse do público pelo trabalho. E eu já nem esperava mais por isso. Mas frustração também, porque as mesmas pessoas que haviam criado o e-book, retirando o conteúdo deste blogue, haviam-no feito sem respeitar a única condição imposta por mim à cópia de conteúdo. Como está no rodapé: Permitida a reprodução exclusivamente mediante citação da fonte, com link. Para maior clareza eu ainda incluí no menu de navegação à esquerda o link da licença Creative Commons que eu aplico a todo o conteúdo que publico aqui, que é a CC-BY-NC-ND. Explicando:
    • CC = Creative Commons, esta é uma licença padrão, que permite a reprodução sem custo do conteúdo aqui divulgado.
    • BY = quer dizer que eu estou pedindo que minha autoria seja mantida, e que isto seja feito cumprindo condições que eu posso especificar.
    • NC = permito o uso, mas não permito que sejam criadas obras comerciais, ou auferido lucro de qualquer forma, sem negociação prévia comigo.
    • ND = non-derivative, quer dizer que eu não autorizo a apropriação de minha obra como parte de uma obra alheia.
    Essencialmente isto quer dizer que todos os e-books que foram feitos estão em violação da licença que aplico ao meu trabalho. Certo, eles estão copiando algo que eu permito que seja copiado. Certo, eles estão mantendo a menção de minha autoria; mas apenas internamente no arquivo, e não incluem o link, que eu exijo como vinculação da autoria. Certo eles não estão ganhando dinheiro com os e-books, pois me consta, até agora pelo menos, que toda a distribuição é gratuita. Mas, porém, no entanto, todavia… 

    A licença CC-BY-NC-ND proíbe a criação de obras derivadas sem a minha autorização. O e-book (seja mobi, seja e-pub, seja pdf) é uma obra derivada. Ainda mais porque nas “propriedades” do e-book quem aparece como “autor” do arquivo é um tal de Augusto. Então Augusto criou o e-book a partir do texto por mim publicado. Pronto, criou uma obra derivada. Violou a licença Creative Commons.

    Ao fazer isto, o “Augusto” me roubou da única remuneração que eu peço em troca de meu trabalho, que é a divulgação do link de meu blogue, para que todos que gostem do trabalho venham aqui procurar outros trabalhos meus. Veja bem, o que eu estou pedindo não é muito, é quase nada, eu estou praticamente mendigando um link que me ajude a difundir meu nome e que me atraia alguns caraminguás em AdSense. Mas nem isso me foi dado.

    As pessoas que fizeram este e-book nunca imaginaram que, talvez, possivelmente, o cara que gastou mais de duzentas horas traduzindo esse livro poderia querer alguma coisa em troca? Dificilmente, eles pensaram, sim. Mas preferiram ignorar, preferiram pegar o meu texto, formatar  e distribuir sem nem perguntar o que eu achava. Que não tenham posto o link é um erro desculpável, afinal nem todo mundo lê letras miúdas, mas que tenham feito a publicação e a divulgação sem sequer me avisarem é de uma falta de elegância muito grande. Há quanto tempo a minha tradução anda rolando na internet sem eu saber?

    Como quantificar o prejuízo que me foi causado? Se tudo o que eu queria era que a minha tradução divulgasse o meu nome e o meu blogue, como quantificar o que eu deixei de ganhar desde que o e-book saiu? É impossível dizer quanto foi (foi pouco, mas foi alguma coisa). O que importa é que, em essência, a atitude do criador do e-book foi uma violação da licença (muito permissiva, mas ainda assim uma licença) que eu pus em meu trabalho. Violação de licença e falta de respeito. Mas parece que o autor não merece respeito, né? Se tá num blogue então tá liberado para copiar e usar à vontade, não é?

    Depois de horas regurgitando a minha decepção, resolvi reclamar em alguns dos blogues que me citavam. Não todos, só alguns. Porque já era tarde da noite e eu estava com sono. Reclamei da ausência do link, fui meu grosso em dois ou três casos, mas não fui exatamente articulado, e não me expliquei tão bem.

    O resultado foi alguns dos blogueiros me responderem, recebi resposta por e-mail, por comentário neste blogue, por Facebook. Todos se isentando de responsabilidade por distribuírem o e-book, alguns me chamando de grosso, embora dois ou três afirmassem entender a minha frustração.

    Devo dizer que me arrependo de algumas das coisas que escrevi ontem, sim. Pensando bem, a culpa dos blogueiros que divulgam esse e-book pirata é menor do que a do seu autor original, o tal “Augusto”. É certo que os blogueiros deveriam, ou pelo menos, poderiam, ter verificado alguma coisa a respeito da tradução, pesquisado no Google pelo nome do tradutor, etc. Com pouco esforço chegariam até este blogue, e até mim como o tradutor. Mas é certo, também, que estão de tal forma acostumados a “passar adiante” o que pegam, e muito do que pegam é pirata, que perderam o hábito, se um dia o tiveram, de considerar a situação dos autores das obras que divulgam.

    Talvez, para alguns deles, “autor” seja uma figura abstrata, morta ou morando no estrangeiro, que só se representa através de agentes e advogados, figuras detestáveis por si. Não lhes ocorre, talvez, que o “autor” possa ser um cara como eles, que eles poderiam encontrar na rua, que eles poderiam adicionar no Facebook e que um dia poderia chamar-lhes e dizer: “ei, cara, você se apropriou indevidamente do meu trabalho”.

    Reservo para o final a última afirmação: como a licença CC-BY-NC-ND foi violada, o resultado é que as condições que permitiam a cópia gratuita, não tendo sido atendidas, não vigoram. Portanto, a utilização deste conteúdo de forma não autorizada recai sobre a velha lei do direito autoral. E, desta forma, o e-book passa a ser um e-book pirata. Não é preciso que a obra original seja vendida caro para que uma cópia não autorizada mereça este adjetivo. Pode-se fazer cópias piratas daquilo que é gratuito também. Neste caso, foi feito.

    Todo aquele que está de posse deste e-book está, na verdade, com um trabalho derivado de uma obra minha, derivação esta que não é autorizada e é, portanto, ilegal segundo a legislação brasileira de direito autoral, que segue os termos da Convenção de Berna. Trata-se de uma apropriação indevida e desrespeitosa de um trabalho feito com desprendimento e com carinho, cuja única remuneração esperada era um link para este que vos escreve.

    Um link.

    Somente um mísero link. E o Augusto não foi capaz de atender isso.

    Se ele pelo menos tivesse me escrito para contar do que pretendia fazer, eu lhe teria esclarecido sobre como fazer certo. Talvez até o ajudasse a fazer.

    Mas, ah, um link é muita coisa. O autor não tem o direito de exigir tanto, é falta de educação reclamar por causa disso. Afinal, o que vale uma porra de um link? O que vale essa merda desse seu trabalho, afinal, quem você acha que é, José Geraldo, seu grosso, seu caipira convencido!

    13
    Jan 13
    publicado por José Geraldo, às 10:57link do post | comentar
    O prédio das repartições municipais era bonito, histórico, razoavelmente bem depredado e detestável. Entrei pela porta de madeira bruta, entalhada a machado, em busca do departamento de arrecadação do imposto predial e territorial urbano, onde deveria tentar obter, pela quarta vez em trinta dias, uma certidão negativa que me habilitasse a hipotecar a minha própria casa para poder custear o tratamento da doença terminal de minha mulher. Um dia falarei sobre isso, sobre a obrigação que temos de dilapidar o futuro dos filhos para fingir que tratamos da morte inevitável dos vivos, tudo porque a sociedade nos culpará se sobrarmos razoavelmente ricos depois de uma desgraça na família.

    Impus ao meu rosto a melhor seriedade que ainda podia fingir, mascarando bem o alívio de saber que o sofrimento da querida Estela não duraria muito mais, e talvez nem fosse preciso usar a certidão. Somente assim, preparado para o luto, eu poderia transitar entre os conhecidos sem olhares reprovadores.

    A sala do departamento de arrecadação era caracterizada pelas cadeiras desconfortáveis, de madeira nua e irregular, e pelo verniz meloso que estragava as calças de quem se sentasse durante muito tempo. Ainda teríamos muitos meses a esperar de pé até que os pobres peões de roupa suja e costas cansadas fossem curtindo o excesso de verniz até aquela cobertura caramelenta se transformasse numa sebosidade escura e segura. Lá dentro não havia senão um ventilador, que girava exclusivamente pelo amor de gastar alguma eletricidade, visto que a velocidade de grama crescendo com que girava não servia nem para refrigerar o próprio mecanismo. A sala de espera, dotada do conforto luminoso de amplos janelões de vidro que davam para o pôr do sol, estava separada do gabinete do oficial por uma porta que dava para uma sala refrigerada. O expediente começava ao meio-dia.

    Ainda achei um lugar para me recostar próximo à parede oposta à janela. Se fosse atendido rápido ainda teria a bênção de não ter que aturar o sol das três horas. Teria ficado recostado lá, em cômodo silêncio, se não tivesse entrado o Rogério Justo, que eu não via há tanto tempo que mal lembrava seu rosto. Ele tinha sido um grande amigo de meu pai quando eu era menino, fora responsável por alguns bons presentes que ganhei de aniversário, e por muitas vezes que ele chegou em casa tarde e com cheiro de cachaça, para desespero de minha mãe. Felizmente meu pai nunca chegara sem dinheiro no bolso. Jogava, mas incrivelmente ganhava sempre mais do que perdia, e sempre voltava das noitadas quite com a despesa: o lucro gasto em bebida e salgadinhos. Andava afastado desde que meu pai se tornara abstêmio e ele não, mas ainda se cumprimentavam quando se encontravam pelo mundo.

    Estávamos ainda nos cumprimentando quando Eleonora Gomes entrou, carregando um grosso envelope nas mãos. Tinha as unhas pintadas de rosa claro e um par de óculos em uma armação que combinava tanto com elas quanto com o tom dos sapatos, o tipo de luxo que ostenta cuidado obsessivo com a aparência. Era uma das conhecidas que fizera em minha carreira de representante comercial. Conhecida apenas. Mantenho distância de pessoas complicadas, especialmente as ricas. Levo uma vida simples e bastante sozinha. Gosto assim.

    Achei-a bastante tranquila, apesar da recente perda de uma prima e o seu gênio, inalterado. Depois de breves minutos alternando entre respondê-la e ao Rogério, dei-me conta da falta de educação que estava cometendo:

    — Desculpem-me a falta de educação, eu nem me lembrei de apresentá-los. Eleonora, esse é o Rogério, amigo de minha família, lá de São Pedro. Rogério, essa é a Eleonora, filha do Joaquim Gomes, lá de Leopoldina.

    Eles se cumprimentaram cortesmente, com a urbanidade comercial e neutra que se espera nos dias de hoje. Deixei-os à vontade para darem continuidade à conversa, porque estava mais preocupado com a minha vez na fila do que com qualquer assunto que eles pudessem começar. O sol ia avançando pelo chão, como uma doença que se espalha, e a a fila andava lentamente demais. De vez em quando eu interrompia minha preocupação para dar um ou outro empurrão no assunto. Numa dessas vezes o empurrão funcionou tão bem que eles entraram numa conversa que tardou quase meia hora, e me colocou no meio:

    — Você sumiu de Leopoldina, Eleonora.

    — Estou agora vivendo em Governador Valadares. Meu marido está trabalhando com mineração por lá, temos uma empresa grande, que presta serviços à Vale do Rio Doce.

    — Interessante, dizem que aquela região voltou a crescer bastante nos últimos dez anos — comentei, sem nenhuma intenção especial.

    Foi a deixa para que ela começasse a falar sobre as maravilhas de lá, do pleno emprego, das oportunidades de negócios, do fluxo de pessoas e coisas. Eu até comecei a ter vontade de abandonar o meu emprego e ir para lá também. Felizmente eu sabia que ela era dada a exageros, especialmente quando falava de si mesmo e de suas infinitas qualidades. A menção de que o marido estava no ramo de mineração acabou atraindo Rogério para o assunto:

    — Eu também estou no ramo — ele disse. Mas claro que não tenho uma empresa grande. Aliás, eu não trabalho diretamente com minério, eu alugo caminhões para as mineradoras.

    — Pois é, menino. Lá em Valadares o negócio tá crescendo tão depressa que está faltando caminhão. E os que aparecem estão cobrando um horror. Meu marido está tentando conseguir 150 caminhões trucados para transportar minério, mas se for pagar o preço que andam cobrando ele não vai conseguir ter lucro. Você não conhece, por acaso, quem possa nos arranjar esses caminhões?

    — Uai, eu posso — disse o Rogério. Eu arranjo esses 150 caminhões para você. E eu sei quanto andam pagando por lá. Eu faço por vinte por cento a menos se me der um contrato.

    Eu me assustei um pouco com a afirmação do Rogério, que não me parecia ser o dono de tanto caminhão, especialmente numa cidade tão pequena quanto São Pedro.

    — Mas, Rogério. Você tem tanto caminhão assim, homem? Com cento e cinquenta caminhões dá para levar embora São Pedro inteira!

    — Uai, só eu tenho uns vinte a meu serviço, e eu arranjo o resto com amigos, parentes ou conhecidos. Fácil.

    — Não vai sobrar um caminhão num raio de noventa quilômetros se você arranjar 150 caminhões para ela.

    Rogério ficou um pouco ofendido com a insinuação. Mas reafirmou que conseguia.

    — Passe o seu telefone, por favor — pediu a Eleonora.

    Rogério não se fez de rogado e cantou o número de um telefone móvel. Ela tomou nota dele em uma folha avulsa de papel, retirada de dentro da bola, mesmo estando com o próprio celular à mão. Anotar um telefone num pedaço avulso de papel é desejar perdê-lo, para ter a desculpa de não ligar. Desculpa talvez desnecessária, pois um número citado tão depressa talvez estivesse errado.

    Estávamos nisso quando chamaram a senha do Rogério para um dos dois guichês de atendimento, e logo a minha. Saímos de lá, separadamente, para resolver nossos problemas pessoais, deixando Eleonora com o telefone anotado e aquele seu belo sorriso escancarado.

    Nunca soube se ela ligou, ou se o número estava certo. Porque eu mesmo não tomei nota dele. Só sei que continuou duvidando que haja tanto caminhão em São Pedro, ou num raio de noventa quilômetros. Tanto quanto duvido que Eleonora tenha uso para 150 trucados em seja qual for a empresa de seu marido. Ela é dada a exageros, só não contava que a gente de minha terra fosse dada a mais. Com 150 caminhões trucados não sobrava nenhuma casa em São Pedro. Não sobrava, talvez, nem a Pedreira Velha.
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    05
    Jan 13
    publicado por José Geraldo, às 23:40link do post | comentar
    Uma das afirmativas mais recorrentes nos debates políticos e culturais que ainda ocorrem dentro e fora da internet é justamente que não é possível fazer uma crítica qualificada de um autor cujo trabalho não conhecemos o suficiente. À primeira vista é uma posição inatacável, mas eu não gosto de posições inatacáveis em um debate, a menos que elas sejam fundamentadas em fatos. Inatacável é a realidade. Argumentos são apenas argumentos. Ao longo da vida tenho tido a oportunidade de verificar que argumentos inatacáveis nada mais são do que argumentos revestidos de respeitabilidade para ocultar suas fraturas lógicas.

    Esta afirmação, em especial, é uma legítima «faca de dois gumes» e é muito perigoso aceitá-la como verdadeira sem um pouco de discussão. Por um lado, é verdade que é preciso embasamento para poder comentar (a favor ou contra) uma determinada proposição. Por outro lado, no entanto, é sempre muito fácil desqualificar uma crítica com o argumento de que o autor dela não leu o bastante do autor criticado. Quanto é o bastante?


    Ninguém nunca terá lido toda a obra de um autor, provavelmente nem mesmo os seus fãs. Raros marxistas terão lido todo «O Capital», por exemplo, e dos que leram uma parte grande terá entendido bulhufas. Além disso, o que nos obriga a ler toda a obra de um autor que nos causa repulsa apenas para termos o direito de criticá-la? Será que uma pessoa que deteste o mago manda-chuva só pode criticá-lo depois de ter lido cada um de seus textos, até aquelas bostinhas que ele publica diariamente em alguns jornais? Penso que não. Assim como é possível analisar eficazmente as características gerais da sociedade a partir de estatísticas originárias de pesquisas por amostragem, é perfeitamente possível analisar as ideias ou a qualidade de um autor conhecendo uma parte de seus textos e algumas de suas ideias.

    Exigir um conhecimento total (ou pelo menos muito abrangente) é um tipo de apelo às lacunas, e não é justo. Envolve um tipo de crença no poder da obra “revelada” do “mestre”. A resposta sempre está no livro que o crítico não leu. “Fulano de Tal não gostou do Magnífico, mas se pelo menos tivesse lido o livro beltrano poderia ter finalmente entendido as ideias extraordinárias dele.”

    O que se tem aqui é a esperança de que, se o crítico por acaso ler todos os livros do autor, a convivência com o pensamento do Profeta obrará a conversão de mais um adepto. Mises certamente não leu toda a obra de Marx para escrever sua desqualificação dele, mas os marxistas são convidados a ler quase toda a obra de Mises antes de poder criticá-lo: podemos considerar justa esta exigência? Será que é necessário ler toda a obra de um autor para ter um bom ou pelo menos razoável entendimento dela? As contradições só estão visíveis para quem conhece cada jota e cada til?

    Penso que se uma obra é tão complexa que só pode ser de fato compreendida pela sua leitura completa ou muito abrangente, então o autor é falho em seus objetivos. Por mais que os detalhes possam se perder nas resenhas, se a obra não sobrevive nelas, pelo menos enquanto conceito, o autor claramente falhou em alguma coisa. Resenhas não são tuítes. De fato “Guerra e Paz” é “sobre a Rússia”, mas uma resenha honesta diria bem mais que isso. E se da resenha não pudermos inferir a qualidade da obra original, a falha está na resenha. Há resenhas escritas para louvar, e outras para danar.

    Comece a ler uma obra literária, se até a quinquagésima página ela não conseguiu  lhe fazer gostar, por que a obrigação de ler até a quingentésima? Por masoquismo? Existem livros que, como famosamente disse o Millôr Fernandes, “quando a gente larga não consegue mais pegar.” É justo criticar acerbamente estas obras, mesmo tendo lido só até a vigésima página; mesmo porque não seria necessário todo este esforço para fazer um elogio à mesma obra.

    Fica ainda mais fácil se a obra não for literária, mas técnica. Leu alguns artigos do autor expondo suas teses e conseguiu detectar “bullshit”? Por que supor que a leitura de mais artigos mudará o efeito? Quantos dedos do gigante precisamos puxar para dirimirmos a suspeita de que é um gigante mesmo, em vez de um anão?

    02
    Jan 13
    publicado por José Geraldo, às 01:09link do post | comentar | ver comentários (1)
    Faz alguns dias que eu comecei a analisar o caso de Christopher Schewe, um idiota americano que aparece no YouTube comendo ou bebendo coisas com uma voracidade de avestruz no cio. Passou o fim de ano e eu me detive mais churrasqueando e entupindo os cornos de cidra barata e cerveja do que pensando no que continuar escrevendo sobre o tal babacão. Perdi a onda. Não vou continuar. Pensar em gente imbecil me imbeciliza, me estressa além da conta.

    Vocês que já ouviram falar do cara, já devem estar procurando por suas aventuras na internet, inclusive seu famoso vídeo da ingestão de uma garrafa inteira de absinto (que seu fígado descanse em paz, Chris).

    Depois de passarem por esse ordálio estúpido e sem razão, sugiro que se perguntem por que motivo esses conteúdos esdrúxulos atraem tanta atenção. Tanto filme bom para se ver, tanto livro legal para se ler, tanto blog como o meu ou melhor, e a audiência da internet vai para vídeos de um americano retardado que enfia uma garrafa de Coca Cola de dois litros pela boca adentro  e vai arrotando pela beirada da boca enquanto se enche daquele lixo tóxico com cor de chorume.

    Se você assistiu a todos os vídeos que mencionei (e dos quais eu só ouvi falar através de comentários, depois de ter assistido o da Coca Cola e o do absinto) e alguns outros mais, saiba que você é parte daquilo que está errado no mundo. Sinta-se feliz em ser um semeador do apocalipse.

    Mas pelo menos vá rindo enquanto semeia. O mínimo que um idiota merece é todos reconheçam sua idiotice. O suicídio é a eutanásia do imbecil.

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