Por um momento minha mente foi preenchida por muitos pensamentos, de forma que eu fui incapaz de fazer qualquer coisa a não ser contemplar às cegas o que havia diante de mim. Eu parecia submerso em um mar de dúvidas e espanto e lembranças tristes.
Foi só mais tarde que deixei a minha estupefação. Olhei em torno, ainda confuso. Então tive uma visão tão extraordinária que, por um instante, mal pude crer que não estava mais perdido nas visões tumultuadas de meus pensamentos. Do verde reinante havia surgido um rio ilimitado de globos que cintilavam suavemente — cada um deles envolto em um velo maravilhoso de nuvens puras. Eles se estendiam, tanto acima quanto abaixo de mim, até uma distância desconhecida, e não apenas ocultavam o brilho do Sol Verde como forneciam, em seu lugar, uma luminosidade terna que se difundia em torno de mim, tal como nunca vira, antes ou vi depois.
Logo em seguida notei que havia em torno de tais esferas uma espécie de transparência, quase como se elas fossem formadas de cristais, dentro dos quais brilhava uma radiação sutil e contida. Elas se moviam através de mim continuamente, flutuando adiante a uma velocidade não muito grande, como se tivessem toda a eternidade diante de si. Por um longo tempo eu contemplei e não pude perceber um fim para elas. Às vezes eu parecia distinguir faces em meio à nebulosidade, mas estranhamente indistintas, como se fossem parcialmente reais e parcialmente formadas da névoa através da qual se mostravam.
Por um longo tempo eu esperei passivamente, com uma sensação de contentamento crescente. Eu não tinha mais aquela impressão de inexprimível solidão, em vez disso eu me sentia como se estivesse menos só do que estivera por vários kalpas1 de anos. Este sensação de contentamento aumentou tanto que eu teria ficado satisfeito de flutuar em companhia daqueles glóbulos celestiais para sempre.
Eras se passaram, e eu passei a ver as faces sombrias com frequência crescente, e também com mais definição. Se isso se devia a minha alma ter ficado mais em sintonia com seu ambiente, isso eu não posso dizer — mas provavelmente foi por isso. Mas, sendo assim ou não, naquele momento eu só tive a certeza do fato de que eu estava me tornando constantemente mais consciente de um novo mistério ao meu redor, que me sugeria que, na verdade, eu havia penetrado as fronteiras de alguma região inimaginável, algum lugar ou forma sutil e intangível de existência.
A enorme torrente de esferas luminosas continuava passando por mim a uma frequência invariável, incontáveis milhões, e ainda continuava, sem mostrar sinais de estar por terminar, ou mesmo diminuir.
Então, quando estava sendo silenciosamente levado pelo éter inefável, senti uma atração súbita e irresistível na direção de um dos globos que passavam. Num instante eu me vi ao lado dele. Então eu deslizei para dentro, sem experimentar a menor resistência, ou qualquer discrição. Por um breve momento eu não pude ver nada, e esperei curiosamente.
De repente eu tomei consciência de um som que rompia a imobilidade inconcebível. Era como o murmúrio de um grande mar calmo, um mar que respirava em seu sono. Gradualmente a névoa que obscurecia a minha visão começou a se dissipar e eu finalmente repousei a minha vista sobre a silenciosa superfície do Mar do Sono.
Por um instante eu contemplei e mal pude crer que estava vendo corretamente. Olhei em torno. Lá estava o grande globo de fogo pálido, nadando, como o vira antes, a uma curta distância acima do horizonte embaçado. À minha esquerda, longe dentro do mar, eu descobri então uma linha débil, como uma cerração fina, que eu acreditei ser a margem, onde eu e meu Amor nos havíamos encontrado durante um daqueles maravilhosos períodos de vagar da alma que me haviam sido concedidos nos velhos dias da terra.
Uma outra memória, uma bem perturbadora, me veio também: da Coisa Disforme que havia assombrado as margens do Mar do Sono.2 O guardião daquele lugar silencioso e sem ecos. Estes e outros detalhes eu lembrei, e soube sem dúvida que estava olhando para o mesmo mar. Com a certeza, fui preenchido por uma sensação de total surpresa, alegria e tensa expectativa, imaginando que talvez estivesse por ver o meu Amor outra vez. Atentamente olhei em volta, mas não pude ver sinal dela. Por isso eu me senti momentaneamente sem esperanças. Ferventemente orei e procurei ansiosamente por ela… Como o mar estava inerte!
Abaixo, bem abaixo de mim, eu podia ver as inúmeras trilhas de fogo variável que haviam me chamado a atenção da outra vez. Vagamente eu me perguntei o que as causaria, e também me lembrei que tinha pensado em perguntar delas à minha Querida, bem como muitos outros assuntos… e tinha sido forçado a deixá-la antes de lhe dizer a metade do que gostaria de ter-lhe dito.
Meus pensamentos me retornaram de um salto. Eu percebi que algo me havia tocado. Virei-me rapidamente. Ó Deus, Tu foste realmente misericordioso! Era Ela! Ela me olhou nos olhos, com um olhar desejoso, e olhei para ela com toda a minha alma. Eu gostaria de tê-la abraçado, mas a pureza gloriosa de sua face me manteve afastado. Então, de dentro da névoa ventosa, ela estendeu seus queridos braços. Seu sussurro chegou até mim, suave como o ruído de uma nuvem que passa. “Querido!” foi o que ela disse. Isto foi tudo, mas eu a ovuira, e por um momento eu a tive em meus braços — como havia rezado para ter — para sempre.
Ela logo falou de muitas coisas, e eu a ouvi. Eu teria voluntariamente feito isso através de todas as eras que ainda passariam. Às vezes eu sussurrava-lhe uma resposta, e as minhas palavras traziam-lhe à face do espírito outra vez um tom indescritivelmente delicado, o florescer do amor. Depois eu falei mais à vontade, e ela ouviu cada palavra e respondeu, deliciosamente, de forma que eu me sentia realmente no Paraíso.
Ela e eu, e nada mais a não ser o vácuo silencioso do espaço para nos ver, e somente as quietas águas do Mar do Sono para ouvir-nos.
Muito antes a multidão flutuante de esferas envoltas em nuvens tinha desaparecido no nada. Assim, nos contemplava apenas a face das profundezas sonolentas, e estávamos sós. A sós, Deus!, e eu bem gostaria de ter estado assim sozinho no além, e nunca me sentiria solitário! Eu a tinha, e mais do que isso, ela tinha-me. É, o meu eu envelhecido pelas eras. E com tal pensamento, e alguns outros, eu espero existir através dos poucos anos que ainda podem estar entre nós.3
1 No Hinduísmo e no Budismo, o termo kalpa é usado para denominar uma era. No Hinduísmo, “kalpa” é o “dia de Brahma” e dura 4,32 bilhões de anos. No Budismo são definidos quatro tipos de “kalpas”, com duração variável, e a extensão total do mais longo deles vai além da duração concebível do próprio universo, atingindo 1,28 trilhões de anos. Considerando que o “kalpa” menor duraria cerca de cem anos apenas, fica difícil imaginar que espaço de tempo estava sendo referido pelo narrador neste ponto. Aparentemente estes termos eram razoavelmente conhecidos pelo público leitor de Hodgson; ou ele esperava que fossem, pois empregou a palavra sem deixar nenhuma nota de rodapé explicando seu significado — Nota do Tradutor.
2 Hodgson optou por truncar a narração do Capítulo XIV, de forma que boa parte dos acontecimentos a que o narrador se refere como tendo acontecido no Mar do Sono são ainda desconhecidos para o leitor — Nota do Tradutor.
3 Este capítulo encerra a chave de uma parte muito significativa do universo ficcional de William Hope Hodgson. Como vemos, ele propunha uma ficção que incorporava a ciência (ainda que a ciência que ele usou esteja hoje obsoleta) e certos conceitos religiosos. Aqui temos uma proposição de que a alma do ser humano é realmente uma entidade separada do corpo físico, imortal e que preserva a inteligência e a memória do indivíduo. Junte-se a isso a frequencia com que o personagem ora, e as repetidas evocações do nome de Deus, e percebemos que o autor era profundamente religioso, e possivelmente via em sua obra uma tentativa legítima de reimaginar a mitologia escatológica das religiões num contexto científico. O sucesso de tal empreitada, cabe ao leitor e à crítica definir — Nota do Tradutor.