Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
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Dez 11
publicado por José Geraldo, às 11:00link do post | comentar

À medida em que nos aproximávamos da cidade, sentíamos o ar mais opressivo, mais parado, mais agônico no peito, como se uma mão forte pousasse sobre nossos corações, segurando o tórax em cada inspiração. O ar parecia partido em flocos, granulando nossa visão, ou seria apenas a ilusão que a penumbra traz aos olhos despreparados de quem, como nós, viveu uma vida inteira sob luzes artificiais?

Quando chegamos à primeira rua, pudemos ver a primeira alteração significativa da realidade: tudo parecia muito abandonado, como se as coisas novas não fizessem mais sentido. Como se o tempo estivesse avançando rápido, ou recuando, como se uma espécie de putrefação tivesse vindo com os Estranhos.

O primeiro edifício significativo por que passamos foi uma oficina mecânica. Vários veículos ali estavam abandonados, alguns com as entranhas extirpadas, como pacientes em meio a uma operação. Minha reação diante deles foi paradoxal: fiz-lhes um respeitoso aceno e balbuciei uma oração automática. Na ausência dos cadáveres de seus donos eu reverenciava aquelas máquinas, que podiam servir-lhes de cenotáfios.

Mais abaixo pela avenida chegávamos ao estranho monumento a que chamáramos de "Caldeirão da Bruxa" quando crianças. Normalmente uma rotatória movimentada, com todo tipo de veículo chegando e saindo da cidade por ali. Mas desde nossa entrada na cidade já esperávamos que estaria silencioso e calmo de podermos andar pelo meio da pista. Foi só um pouco mais adiante que começamos a ver sinais preocupantes de coisas que haviam realmente acontecido: ossadas, humanos, caídas pelo chão, incompletas, com sinais de justiça sumária. Aqui e ali fogueiras extintas. A brancura daqueles ossos, quase luminosa sob a rara luz de uma noite de lua nova, me fazia pensar em seres asquerosos que os teriam limpado de uma maneira horrível.

Porém, na avenida não parecia ser possível que ainda acontecesse violência alguma. Passamos diante de uma padaria saqueada, imaginei os ossos do padeiro caídos por detrás do balcão. Um avental azul ensanguentando me fez pensar na balconista vesga que tinha um namorado tatuado e sonhos de se tornar dentista fazendo uma faculdade que não teria nunca como pagar trabalhando ali. Uma pequena tragédia terminada, certamente, com a chegada deles.

Foi então que Madalena, falando com cuidado para que as palavras mal fossem audíveis, me fez perceber o que eu já pressentia, mas não aceitava:

— Não vamos achar nada útil nessa visita.

— A não ser o que pudermos aprender, não é?

— A morte não ensina nada a quem morre.

Não lhe respondi, continuei olhando à esquerda e à direita, tentando imaginar lugares de onde pudesse extrair suprimentos ou objetos úteis. Mas suspeitava que cada faca estivesse cega, que cada lanterna estivesse quebrada, que cada pilha estivesse sem carga.

Porque era incrível a rapidez com que a decrepitude se instalara. Havia erva crescendo sobre os prédios e casas, arrebentando por entre os paralelepípedos, as raízes das casas estavam crescidas medonhamente e sombras escuras corriam pelos cantos, de sombra a sombra.

— Ratos…

Não eram ainda nem nove da noite quando chegamos à praça ao pé do morro e miramos as árvores que ladeavam a Catedral.

— Ainda tem coragem? — perguntou-me Madalena.

Não lhe disse que sim nem que não. Estava ocupando percebendo como o mundo andava estranho. Amassando folhas de árvores para ver se estavam mais secas, pisando no chão com força para ver se não estava esfarelando sob meus pés.

— Ratos, morcegos, insetos…

— Também percebi — ela disse — que tudo que era cultivado está morrendo. Flores plantações, toda forma de cultura. Mas não é surpresa isso, não há ninguém mais cultivando.

— Só não quero que o dia nos surpreenda nessa cidade de pesadelo. Vamos logo ver o que viemos ver, e embora depois.

Subimos o Morro da Catedral mais cuidadosamente ainda. Com o resto da bateria da máquina fotográfica eu registrava tudo que pudesse ser interessante, mesmo sem saber se um dia encontraria fotógrafo onde revelar as imagens ou mesmo computador para descarregá-las. Também evitava vê-las pela tela para não gastar a bateria. Não me lembro quantos flashes foram: havia, de fato, muita coisa interessante para se fotografar. Mas Madalena me chamou à razão:

— Podem perceber-nos pelo flash.

Guardei a câmera em minha sacola, com muito pesar, e continuei trocando passos mecânicos e decidos pelos degraus da escadaria acima. Como se tivessem me hipnotizado.

Chegando à praça percebemos, então, que não estava deserta como o resto da cidade. Apesar de escura como uma cisterna, havia nela um contínuo movimento de sombras fúnebres, cada uma parecendo ter algo a fazer num maquinismo infernal. Dezenas ou centenas de Estranhos perambulavam como formigas, entrando e saindo das ruas laterais, carregando pequenas sacolas e caixas. Foi só então que percebi que eles, apesar de sua aparência diurna formidável, eram pequenos e tinham uma forma quase humana.

A imensa porta da Catedral estava escancarada, abria-se como uma boca monstruosa em direção à cidade, como se faminta por ela. De dentro vinham murmúrios e sopros que pareciam musicais. E pelas portas laterais entravam e saíam os Estranhos, leves sobre o chão, como se já não pertencessem a este mundo.

Tive medo de que pudessem ver-nos. Madalena me abraçou, já temendo o momento em que todos nos cercariam para um linchamento ou pior, mas logo até ela se acalmou: aquelas criaturas passavam por nós sem perceber-nos, pareciam passar até através de nossos corpos, cegas e insensíveis à nossa existência, pelo menos enquanto não dizíamos nada. Não, não tive a coragem de dizer coisa alguma, muito menos Madalena.

Ela me levou pela beira da praça até o muro do Colégio, onde nos escondemos na sombra para descansar, ainda sem coragem de dizer palavra alguma. Depois me arrastou até uma das janelas, cujo vidral se quebrara com alguma pedra ou violência parecida. Dentro estava uma algazarra de mantos, albornozes e vestidos. Faces idênticas, plácidas, pálidas, contritas em alguma forma de emoção incompreensível. Todos vestidos de cores escuras e misturadas, como se um acidente de tinturaria houvesse manchado de luto todas as cores floridas.

Mas os Estranhos eram, como eu pude então perceber, pelo menos parecidos com humanos. Talvez humanos até! Mas como?

Permancemos ali, olhando para eles por quase meia hora. Não havia sentido no que faziam, no que diziam. Aos poucos o medo de que nos vissem foi passando, substituído pela impressão de que não nos veriam nem se deixássemos uma bomba na Catedral. Por fim, enjoado daquilo, puxei Madalena pela mão e saímos da praça.

Descemos de novo pela longa escadaria e passamos em frente à Prefeitura, em cuja fachada, pendurada como um corte de carne no açougue, estava imóvel e úmida, sem oscilar um milímetro no ar parado da noite, uma rota e suja Bandeira Nacional. Saudei o sofrido Pavilhão Auriverde com saudades do que ele representara, mas o que ali estava era o cadáver de um ideal antigo.

Quando já nos sentíamos totalmente perdidos, vimos uma luz brilhar na escuridão. Era uma luz pequena e rútila, que mal conseguia se filtrar por cortinas escuras e gretas, uma luz presa num porão. Procuramos em torno do prédio até acharmos uma porta. Com certa facilidade Madalena a abriu usando alguma coisa que extraiu de sua cabeleira, demonstrando habilidades que eu não conhecia.

Entramos pisando com leveza, tentando não acordar nenhum espírito do local, mas foi uma precaução quase desnecessária diante do ruído incessante que perpassava os corredores daquele prédio. O local havia sido uma escola, conforme me lembrava vagamente. Longos corredores cheios de eco, ladeados de portas que se sucediam como as notas de uma flauta, terminando em uma sombra sinistra, onde nenhuma estava aberta, mas apenas gretas de luz filtravam por ao rés do chão. Em condições normais, teríamos medo. Mas a certeza da morte nos havia despido disso. Tínhamos apenas cuidado e curiosidade.

A porta da primeira sala estava aberta. A luz que víramos não era de nenhuma espécie de lâmpada ou artefato de intenção semelhante. Provinha do zumbido de uma complexa aparelhagem de vidro e metal, que era manipulada com uma vagareza terna por mãos pálidas e magras, que saíam de albornozes escuros.

Havia vários dos Estranhos naquela sala, cumprindo tarefas diversas, todas de alguma forma girando em torno do misterioso maquinismo. Todos estavam completamente cobertos pelas roupas negras, todos tinham pesadas máscaras cobrindo suas faces, como a proteger-se da toxicidade daquela luz que nos atraíra. Olhando melhor, tive a impressão de que a palidez daquelas mãos não era natural, era do material com que haviam feito luvas, também para guardar-se dos efeitos daquele aparelho.

Madalena me puxou pelo braço, sinalizando à frente. Obedeci sem perguntar. Quando tomei o primeiro passo, um dos Estranhos olhou exatamente em minha direção, como se alertado pelo meu movimento, ou por algum ruído meu, ou pela simples agitação do ar. Eu me plantei, apavorado, sem conseguir erguer o pé para continuar andando. Porém, a expressão no seu rosto, se possuía uma, ficava oculta por detrás de uma máscara negra e brilhante que obscenamente evocava traços humanóides, mas não exatamente humanos. Direcionei toda a minha vontade para congelar os meus músculos e impedir que eu fraquejasse. Naquele instante o juízo me voltou e eu percebi o quanto fora louco de buscar entrar no antro dos Estranhos. Maldita a minha curiosidade. Eu não temia pela minha vida, mas por algo muito pior que poderia acontecer.

Aos poucos, a fixidez da expressão do Estranho, isenta de qualquer menção a levantar-se ou a chamar algum dos outros, pelo menos de forma visível, me fez ver que ele não estava me vendo. Talvez estivesse ofuscado pelo excesso de luz que havia naquela sala, ou talvez fosse mesmo cego. Sei que me mantive ali imóvel, segurando a respiração devagar, torcendo para meu coração bater o mais baixo possível. Minhas pernas começaram a doer, mas aquele olhar gélido ainda me encarava, e eu o encarava de volta, como quem mergulha no abismo. «Maldito, está esperando acostumar-se à luz para poder me ver.»

Fui salvo pelo que, na hora, pensei ter sido um simples acaso feliz: a máquina, por alguma razão, pareceu desconcertar-se e começou a produzir fumaça e forte cheiro de ozônio penetrou o ar. Seguiu-se uma série de silvos baixos e ritmados, como sussurro muito apertados. O Estranho volveu os olhos para a aparelhagem que começava a piscar em muitas cores e eu aproveitei aquela nesga de instante para avançar os pés e chegar a Margarida, que estava paralisada na sombra providencial entre duas portas. Mas ela certamente sabia, tão bem quanto eu, que a sombra nada significava para os Estranhos. Foi a minha vez de puxá-la pelo braço. Arrastei-a pela porta de banheiro. Não sei o que foi que me levou à conclusão, que se mostrou correta, de que o banheiro não teria nenhuma serventia para eles.

Encostei a porta com muito cuidado e ficamos sozinhos na privacidade precária daquele banheiro escuro. Sem podermos sequer sonhar a possibilidade de acionar um interruptor de luz. Tateei pelas paredes de azulejos e levei-nos até uma das privadas, no canto oposto, suficientemente distantes da porta para podermos ofegar em paz relativa.

Nenhum de nós tinha coragem de falar. O medo retornara. Os Estranhos tinham deixado de ser figuras fantasmagóricas de crepom negro que voavam sobre o vale, ou fantasmas de pessoas partidas, ou aparições inexplicáveis. Haviam adquirido uma apavorante materialidade, uma maldade que era difícil negar. Uma maldade que não derivava de suas intenções desconhecidas, mas de sua mera e total Estranheza.

Após conseguirmos regular um pouco a força da respiração, tratamos de sair da arapuca em que nos metêramos. Subimos em um dos vasos e alcançamos a janela. Com dificuldade a abrimos, mais por não querermos fazer nenhum ruído do que por sua resistência. E então saímos para o jardim da escola, próximos ao muro.

Para saltar o muro não tivemos tanto cuidado, mas tivemos a sorte de a escada do zelador ainda estar funcional, apesar da grossa camada de ferrugem que a cobria. Pisamos de novo em liberdade, a horrível liberdade, no gramado fedorento das margens do córrego. Felizmente ele era estreito e pudemos saltar à outra margem, escalar o barranco até a rua e tomar o caminho mais rápido para fora daquele inferno de cidade.

Andávamos devagar, querendo muito evitar que nossos calçados fizessem ruído no chão. A partir daquele ponto percebemos que muitas das casas ainda eram «habitadas» — se é que os estranhos podem ser considerados habitantes de algum lugar. Em uma das casas, pudemos ver, pela janela escancarada, um grupo deles examinando um violino, torturando-o para que produzisse grunhidos horrendos, para aparente satisfação do grupo. Estavam tão absortos nisso que não nos notaram passando. Tinham por aquele pobre violino um interesse que me pareceu tão genuíno e humano que quase tive esperanças.

Havíamos chegado à parte mais plana do vale onde a cidade se erguera. Ali era uma antiga praça de comércio, transformada num apinhado estacionamento onde os automóveis pareciam caramujos abandonados por moluscos mortos. Passamos por eles sem reverência, buscando sair da cidade pelo caminho mais curto. Quando pisávamos o asfalto, enfim, olhamos para trás e vimos todo o vale negro, sem luz nenhuma que denunciasse o frêmito ininteligível dos Estranhos. Erguia-se um sol mortiço detrás da Montanha, filtrando raios magros através de nuvens lerdas e gordas que se amontoavam no horizonte. Atravessáramos a cidade, a pé e temerariamente, em uma única noite.


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Eu tenho acompanhado esses casos, não só contra vo...
Lamento muito que isso tenha ocorrido. Como sabe a...
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