Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
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Jan 13
publicado por José Geraldo, às 23:40link do post | comentar
Uma das afirmativas mais recorrentes nos debates políticos e culturais que ainda ocorrem dentro e fora da internet é justamente que não é possível fazer uma crítica qualificada de um autor cujo trabalho não conhecemos o suficiente. À primeira vista é uma posição inatacável, mas eu não gosto de posições inatacáveis em um debate, a menos que elas sejam fundamentadas em fatos. Inatacável é a realidade. Argumentos são apenas argumentos. Ao longo da vida tenho tido a oportunidade de verificar que argumentos inatacáveis nada mais são do que argumentos revestidos de respeitabilidade para ocultar suas fraturas lógicas.

Esta afirmação, em especial, é uma legítima «faca de dois gumes» e é muito perigoso aceitá-la como verdadeira sem um pouco de discussão. Por um lado, é verdade que é preciso embasamento para poder comentar (a favor ou contra) uma determinada proposição. Por outro lado, no entanto, é sempre muito fácil desqualificar uma crítica com o argumento de que o autor dela não leu o bastante do autor criticado. Quanto é o bastante?


Ninguém nunca terá lido toda a obra de um autor, provavelmente nem mesmo os seus fãs. Raros marxistas terão lido todo «O Capital», por exemplo, e dos que leram uma parte grande terá entendido bulhufas. Além disso, o que nos obriga a ler toda a obra de um autor que nos causa repulsa apenas para termos o direito de criticá-la? Será que uma pessoa que deteste o mago manda-chuva só pode criticá-lo depois de ter lido cada um de seus textos, até aquelas bostinhas que ele publica diariamente em alguns jornais? Penso que não. Assim como é possível analisar eficazmente as características gerais da sociedade a partir de estatísticas originárias de pesquisas por amostragem, é perfeitamente possível analisar as ideias ou a qualidade de um autor conhecendo uma parte de seus textos e algumas de suas ideias.

Exigir um conhecimento total (ou pelo menos muito abrangente) é um tipo de apelo às lacunas, e não é justo. Envolve um tipo de crença no poder da obra “revelada” do “mestre”. A resposta sempre está no livro que o crítico não leu. “Fulano de Tal não gostou do Magnífico, mas se pelo menos tivesse lido o livro beltrano poderia ter finalmente entendido as ideias extraordinárias dele.”

O que se tem aqui é a esperança de que, se o crítico por acaso ler todos os livros do autor, a convivência com o pensamento do Profeta obrará a conversão de mais um adepto. Mises certamente não leu toda a obra de Marx para escrever sua desqualificação dele, mas os marxistas são convidados a ler quase toda a obra de Mises antes de poder criticá-lo: podemos considerar justa esta exigência? Será que é necessário ler toda a obra de um autor para ter um bom ou pelo menos razoável entendimento dela? As contradições só estão visíveis para quem conhece cada jota e cada til?

Penso que se uma obra é tão complexa que só pode ser de fato compreendida pela sua leitura completa ou muito abrangente, então o autor é falho em seus objetivos. Por mais que os detalhes possam se perder nas resenhas, se a obra não sobrevive nelas, pelo menos enquanto conceito, o autor claramente falhou em alguma coisa. Resenhas não são tuítes. De fato “Guerra e Paz” é “sobre a Rússia”, mas uma resenha honesta diria bem mais que isso. E se da resenha não pudermos inferir a qualidade da obra original, a falha está na resenha. Há resenhas escritas para louvar, e outras para danar.

Comece a ler uma obra literária, se até a quinquagésima página ela não conseguiu  lhe fazer gostar, por que a obrigação de ler até a quingentésima? Por masoquismo? Existem livros que, como famosamente disse o Millôr Fernandes, “quando a gente larga não consegue mais pegar.” É justo criticar acerbamente estas obras, mesmo tendo lido só até a vigésima página; mesmo porque não seria necessário todo este esforço para fazer um elogio à mesma obra.

Fica ainda mais fácil se a obra não for literária, mas técnica. Leu alguns artigos do autor expondo suas teses e conseguiu detectar “bullshit”? Por que supor que a leitura de mais artigos mudará o efeito? Quantos dedos do gigante precisamos puxar para dirimirmos a suspeita de que é um gigante mesmo, em vez de um anão?

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