Prólogo para um romance de ficção científica iniciado em 1999, que eu nunca procurei terminar porque descobri que J.G. Ballard já havia escrito uma história parecida demais.
As ruas são perigosas. Sair de casa envolve sempre riscos. Por isso procuramos fortalezas, compartimentos isolados para nossos sonhos estanques. Moro em um edifício preparado para isso. Nele moram comigo cerca de mil pessoas, mais ou menos, todas em apartamentos parecidos, de duas ou três peças. Moramos aqui há mais de quinze anos e mesmo depois aqui ainda estão os que não moram mais: em uma necrópole subterrânea geometricamente organizada. Moramos aqui e mal saímos. Trabalho e lazer podem ser achados aqui mesmo: escritórios, ginástica, locadora de filmes, parque aquático coberto, salão de jogos, restaurante, lanchonete, bar dançante, café, salão de beleza, parquinho infantil, lojas de conveniência. São vários os tipos de empregos que podemos ter, graças à internet, trabalhando na segurança de nossos cubículos pessoais. As antenas que nos conectam ao mundo ficam num último andar tão fortificado que é mais fácil chegar nele de helicóptero do que por elevador ou pela escada. Obviamente nem todos têm a sorte de trabalhar dentro de casa: os que se dedicam a atividades braçais precisam sair, outros saem porque já não confiamos que os de fora entrem trazendo-nos entregas de comida, remédios ou outras coisas. Faz quinze anos que este prédio existe, investi nele economias de duas vidas: a minha e a de minha mulher. Tenho quarenta e seis anos, nenhum filho, um emprego péssimo.
Sou guarda de segurança. Agora sou guarda de segurança. Escolhi este emprego, talvez na espera de que o risco de morrer me faça querer viver melhor. Melhor, não mais. Saio de casa diariamente, quando o sol já está descendo pelo horizonte como uma bolha de ar em uma janela manchada de sangue, do sangue de Joana, do sangue que espirrou de seu peito. Joana, meu mais precioso tesouro, guardado devidamente numa urna de prata, selada com cera, no fundo de uma gaveta, no fundo de meu coração. Sou guarda de segurança, desde que não consegui proteger Joana.
Digo que «saio», mas não exatamente assim. Um túnel me conduz do térreo a uma estação de metrô. Vários túneis, vindos de outros grandes prédios, que se erguem como uma floresta de árvores sem galhos no planalto. Edifícios para assalariados, como o meu, não são mais construídos a torto e a direito, mas apenas onde chega a linha subterrânea, cada vez mais difícil de expandir. A estação quase nunca está cheia, raramente está deserta. Sei que todos os que nela aparecem são controlados e escolhidos, observados e medidos. Mas quando ela está vazia eu tenho medo de olhar no rosto de quem esteja lá comigo. Tenho medo porque o mal pode ser tanto um mendigo quanto um vizinho. Mendigos tem olhares perdidos e mentes amargas. Vizinhos têm armas.
O trem sai da estação e passa por um pátio ferroviário imenso, onde se encontram trilhos que vêm de outros lugares, levando gente como eu, e gente diferente. Os trilhos eletrificados com milhares de volts impedem que os fantasmas que perambulam pelos pátios, sob a luz cancerígena do sol, tentem entrar. Os trens têm anteparos de metal, desenhados para erguer e atirar para o lado os obstáculos que podem ficar sobre os trilhos. Só raramente vejo algum, quase sempre tenho pena.
Mendigos, prostitutas e marginais se aglomeram por ali, agitando bugigangas, braços e armas na esperança de fregueses, clientes, vítimas. Meu trem não para nestas estações externas, suas janelas à prova de bala estão sempre cerradas. Mas há os outros trens, vindos dos bairros pobres, com janelas quebradas, com a obrigação de parar em cada estação. Eles fornecem a razão de ser destas pessoas que se derretem sob o sol.
A cidade hoje é muito diferente do que era no século em que nasci. As largas avenidas não existem mais. O trânsito não funciona mais. O louco que tentasse utilizar um veículo de superfície pelas ruas não chegaria longe: ou seria vítima de uma colisão, pois já não há sinais nem regras, ou será atacado por facínoras. Não há mais um mercado para carros roubados, mas o motorista pode ter uma moeda no bolso, para justificar a bala que o bandido atira, e o metal da máquina vale algo para a reciclagem. Nem se comente o que pode acontecer a tal incauto se esbarrar em um dos milhares de pedestres que vagueiam por todo lado sem seguir a mais simples regra de bom senso: estranhos frutos pendem, às vezes, das raras árvores, frutos que frequentemente dão também em postes. Mesmo sobrevivente a todos esses contratempos, o infeliz que tente brincar de motorista não chegará ao fim da viagem na posse de todos os seus bens, quiçá nem de suas roupas. Então, tragédia maior, sem seus trajes cidadãos, seus documentos, seu cartão, seu crachá… Como poderá provar que pode entrar nas zonas reservadas, retornar à própria casa?
Os únicos veículos que andam pelas ruas pertencem à própria gente que nela ainda vive. O tráfego é irracional e os acidentes acontecem o tempo todo. Discussões e dúvidas se resolvem a bala ou a faca. Veículos inutilizados são abandonados pelas calçadas, depenados até os ossos de metal ficarem sob o sol, depois serrados aos pedaços, como a carcaça de um animal grande atacado por formigas carnívoras.
No passado a polícia ainda vinha buscar os raros e ousados criminosos que rompiam os sistemas de segurança. Mas isto foi ficando cada vez mais difícil, a ponto de cada agente ter que vir debaixo de uma armadura. Mesmo em grupos e portando armamento pesado era frequente que voltassem carregando um cadáver. Essa dificuldade de abordar o habitat dos bandidos levou à solução natural: cercas melhores e a ordem de matar quem não esteja autorizado a estar onde esteja. A ordem é que o bandido não chegue e voltar, assim não é preciso ir buscar.
Eu me lembro vagamente, quando ainda era uma criança, de uma época em que as casas tinham portas para as ruas e era possível chegar em todos os lugares. As pessoas costumavam usar bicicletas móveis como transporte: eu mesmo tinha uma prometida para quando meu pai ganhasse um aumento. Mas o agravamento da situação levou o governo a isolar certas áreas das outras, criando fortalezas cada vez mais densas. Compartimentos cada vez mais estanques. A única área livre onde se pode ainda ter a sensação de andar pelas ruas é o centro. Ele foi cercado por um muro alto de pedra, envolto por um campo minado, com guaritas de segurança e luzes fortes. No centro ainda se pode andar por ruas, mas não em bicicletas móveis: há muita gente que precisa andar, muito transporte. Não há espaço para isso, seria estranho perder pedalando um tempo que poderia ser cortado ao meio ao pegar a esteira certa e o elevador direto. Ninguém por lá anda a esmo: todos têm uma direção e cada um conhece o seu caminho, o seu restaurante. Mesmo no centro é relativamente perigoso andar à toa.
Mas se você for rico o bastante, poderá alugar um carro elétrico, com uma carroçaria que imita os antigos sedãs de luxo, e fazer um passeio, romântico ou familiar, pelos parques e praças. Alguns ao lado do centro, outros um pouco mais longe, mas unidos a ele por estreitas passagens por onde se pode ter a antiga sensação de dirigir em uma rodovia sob o sol. No parque ainda se pode tomar sorvete, pedalar no lago um barquinho em forma de cisne, sentar à sombra de uma árvore e desfrutar de minutos relativos de silêncio. Anualmente faço isso. No silêncio entre as árvores escuto a voz de Joana, lembro de quando nos conhecemos num parque desses, numa época em que ainda era aberto.
Pouca gente vive no centro. Somente alguns saudosos do passado, que querem ter a sensação de um jardim privado, de uma varanda para a rua ou da contemplação do trânsito. Custa caro, o conforto é menor que em qualquer apartamento, mas os que ainda insistem dizem que vale a pena. Eu pagaria o aluguel de uma dessas casas antigas se pudesse, para ter meu próprio carro elétrico na garagem, um canteiro de rosas na frente e uma churrasqueira no fundo para passar domingos em família. Pagaria se tivesse uma família. Nenhum aluguel seria caro para isso.
Em vez disso eu vivo nas entranhas de um edifício sem alma. Para onde volto cada noite em busca do fantasma de Joana. Volto, deito-me na cama sem fechar a janela e tento sentir o frio, deixo a luz acesa para dissipar a treva. Não sei aonde pode estar Joana, certamente não em meus sonhos. Trabalho com estranhos, minha tarefa atirar nos que tentam entrar. Tenho vergonha deles, tenho vergonha disso. Guardo meu uniforme num armário no serviço para que ninguém veja o que sou. O monstro que sou. Não salvei Joana, mas mato os sonhos de outras pessoas.
Não sei quanto tempo ainda vou aguentar. A alegria é uma bolha de ar que já chegou no parapeito da janela. O sangue de Joana escorre lentamente, me lembrando que em breve eu vou também, e não haverá nenhum Paraíso para mim, monstro que sou. Arrasto minha carcaça pelo mundo, por entre corações vazios e olhares gelados. Solitário. Essas pessoas me olham como quadros nas paredes. Mas seus olhares me seguem, às vezes, fazendo-me sentir que estou nos corredores de uma mansão mal assombrada. Um coração sem resposta, um homem sem filho, sozinho com suas lembranças. Talvez essas pessoas me reconheçam. E nenhuma sequer me odeia.