Nietzsche colocou em seu livro Assim Falou Zaratustra um subtítulo interessante: «um livro para todos e para ninguém». Trata-se de uma declaração quase esfíngica: como um livro pode, ao mesmo tempo, ser destinado a todo mundo e a ninguém? A solução do enigma surge quando você analisa o livro em si, pelo seu conteúdo e pela sua forma. Quanto à forma, é um livro para todos devido ao estilo bíblico e linear da narrativa (sim, embora escrito por um filósofo, trata-se de uma narrativa): supôs o autor que estas escolhas tornariam o livro acessível a praticamente todos os que fossem alfabetizados. Por isso «um livro para todos». No entanto, o conteúdo desta obra é particularmente difícil, por lidar com dilemas existenciais cuja própria reflexão é rejeitada por estes seres cordatos que habitam as civilizações, esse homo vulgaris que persegue a gratificação de seus desejos imediatos tal e qual um cão correndo atrás do próprio rabo. Por isso é um livro para ninguém.
Há certos assuntos sobre os quais falamos que deveriam ser também agraciados com um subtítulo equivalente: para todos, porque é perfeitamente possível falar deles de uma forma que muita gente entenda; para ninguém, porque é quase impossível achar quem se interesse por eles. Um de tais assuntos é a política.
O lugar comum (que é o sistema através do qual pensam, de forma quase exclusiva, as pessoas sem imaginação e/ou sem inteligência própria) dita (no sentido de «ditadura») que «político é tudo safado» — talvez porque as pessoas que assim o dizem espelham os políticos em si mesmas. Embora eu não ponha a mão no fogo por nenhum político, essa afirmativa é preguiçosa e burra. Preguiçosa porque é um preconceito e porque exime quem assim pensa da obrigação de informar-se (ai, isso envolve ler, ah, e ler dói), de refletir, de discutir e de concluir. É muito mais fácil dizer que todo político é safado e não ter que se dar a esse trabalho.
Como vocês já devem ter percebido, existe uma estreita relação entre a nossa postura diante dos livros e as causas desse desastre que é a nossa política. Nosso povo lê pouco, e por ler pouco ele não sabe quase nada daquilo que não diga respeito ao seu horizonte imediato. E por ser ignorante daquilo que não lhe diz respeito de forma direta, ele não é capaz de discutir a política.
Acontece que os ignorantes não vão querer admitir isso. No fundo, apesar do desprezo verbal pela cultura que vive na boca de muita gente, ser ignorante não é bonito. Então é preciso sentar em cima desse rabo grande e peludo e fingir que ele não existe. A incompetência de ter uma discussão sobre política é mascarada pelo desinteresse, justificado pela constatação, necessariamente desinformada, de que todo político é safado.
O curioso é que essas pessoas que assim pensam estão duplamente equivocadas. Não apenas estão partindo para uma conclusão preconceituosa (porque é uma generalização desinformada), mas estão abordando o problema pelo lado errado: política não se faz de cima para baixo. É perfeitamente justificável a sensação de que nós não temos nenhum tipo de controle sobre o que pensam e fazem os políticos nas altas esferas do poder. Mas eles não chegaram lá de paraquedas, eles passaram por um longo processo, que muitas vezes começou numa candidatura à vereança em sua cidade. E é nesse momento que a política distante se torna próxima que vemos, com maior vergonha, o quanto as mesmas pessoas ignorantes são também desonestas.
Safado é povo, não o político. O político é safado porque ele é parte do povo. Talvez se os nossos políticos fossem estrangeiros eles fossem menos safados (ou mais). Mas como eles são brasileiros como nós, eles são tão safados quanto somos, na média.
Safado é o eleitor que vende seu voto em troca de cimento, de um emprego, de gasolina, de um par de tênis ou de dinheiro. Quem prostitui a sua opinião em troca de vantagens imediatas (tal qual o macaco da fábula, que vende a cauda por um pão) não tem moral para acusar os nosso políticos de coisa alguma.
Safado é o eleitor que se orgulha de ser parte do curral eleitoral de um político: «aqui no bairro tal a gente vota é no fulano», ou «sicrano é o candidato da cidade X». Abdicando da própria opinião e aceitando ser levado no cabresto (como burro que é), esse eleitor vai reclamar do que?
Essas coisas que eu disse acima não são filosofias profundas, dignas de um Nietzsche, de um Schopenhauer ou de um Espinoza. São coisas simples e claras que para concluir basta você pensar com calma e somar dois com dois. No entanto elas serão incompreendidas e rechaçadas. A transparência do raciocínio será rejeitada pela oposição do conteúdo ao que é confortável ao leitor. «Eu fiz isso, diz minha memória. Eu não posso ter feito isso, diz meu orgulho. Por fim a memória cede».
Por isso estas palavras que disse são para todos e para ninguém. São para todos porque qualquer um que saiba ler as lerá e compreenderá. Para ninguém porque com elas não ganharei nenhum seguidor no blogue, não farei nenhum amigo, não receberei sequer um elogio, não mudarei a postura de um eleitor sequer. O ser humano nunca muda, de fato: apenas se torna, cada vez mais, aquilo que é. A única mudança possível é a que se faz nas gerações futuras, através da educação de nossos filhos. Esta é a tragédia da humanidade: os estúpidos têm mais filhos e têm mais tempo para ensinar.