Minha peregrinação pela cidade de Malnéant ocorreu durante um período de minha vida não menos obscuro e dúbio que a cidade mesma e as regiões nebulosas em que se localiza. Não tenho recordação precisa de sua situação, nem posso lembrar exatamente quando e como cheguei a visitá-la. Mas eu tinha ouvido falar vagamente que tal lugar estava situado ao longo de meu caminho habitual, e quando eu cheguei àquele rio envolto em brumas que corre ao longo de suas muralhas, e quando ouvi além do rio o repicar fúnebre de muitos sinos, logo concluí que estava próximo a Malnéant. Ao chegar à colossal e cinzenta ponte que cruza o rio, poderia ter continuado à vontade rumo a outras estradas que conduzem a cidades ainda mais remotas, mas me pareceu que poderia entrar em Malnéant como se fosse qualquer outro lugar. E foi desta forma que pus o pé na ponte de arcos sombrios, sob a qual as águas negras corriam em impreciso fluxo, dividiam-se nas rochas e se juntavam outra vez, em silêncio, como o Estige e o Aqueronte.
Aquele período de minha vida, eu já disse, era obscuro e dúbio, ainda mais, talvez, por causa de minha necessidade de esquecimento, minha persistente e às vezes recompensada busca de obliteração. E aquilo que eu tanto queria esquecer, mais que tudo, era a morte da donzela Mariel, e o fato de que fora eu mesmo que a assassinara, tão certamente como se tivesse sido com as minhas próprias mãos. Porque ela me havia amado com um afeto mais profundo e puro e estável que o meu, mas meu temperamento instável, minhas ocasiões de cruel indiferença ou irritabilidade feroz, haviam partido seu calmo coração. Então foi desta forma que ela buscou o conforto de um lento veneno da alma, até finalmente ser posta a descansar nas trevas das criptas de seus ancestrais. Desde então eu me tornei um vagabundo, perseguido e sempre torturado por um remorso impiedoso. Por anos e meses, dos quais não estou seguro, eu vaguei de cidade a cidade do Velho Mundo, pouco me importando onde dava, se apenas vinho ou outros agentes de estupor estivessem disponíveis… E então eu cheguei, em algum momento de minha jornada indefinida, às vizinhanças lúgubres de Malnéant.
O sol (se alguma vez brilhou naquela região) estava oculto havia muito tempo, nem sabia quanto, em um céu de vapores plúmbeos, o dia estava feio e insípido, para dizer o mínimo. Mas então, pelo espessamento das sombras e das névoas, eu sentia que a noite estava chegando, e os sinos que ouvia, embora pesados e sepulcrais em seu repicar, davam ao menos a promessa de segurança pela noite. Então eu cruzei a longa ponte e entre o portão tristemente escancarado com um apressar de meus passos mesmo sem alegria no espírito.
O crepúsculo havia atingido além das muralhas cinzentas, mas havia poucas luzes na cidade. Poucas pessoas estavam pelas ruas, e estas seguiam seu caminho com uma pressa solene, como se em algum compromisso perigoso que não admitisse nenhum atraso. As ruas eram estreitas, as casas muito altas, com balcões que se projetavam e cortinas pesadamente cortinadas ou tolhidas de persianas. Tudo era muito silencioso, exceto pelos sinos, que repicavam recorrentemente, às vezes débeis e distantes, às vezes com um clangor alto e despertador que parecia vir praticamente de cima. Enquanto eu penetrava através das sombras das mansões obscuras, através das ruas das quais um certo crepúsculo surgia para envolver-me, parecia que eu estava indo para mais e mais longe de minhas memórias a cada passo. Por esta razão eu não perguntei de imediato pelo caminho de uma taverna, mas me contentei em errar cada vez mais pelo labirinto de edifícios, que se tornava mais cinza e mais vago em meio à escuridão progressiva e o nevoeiro, como se dissolvendo-se em olvido.
Eu acho que minha alma quase estaria em paz consigo, se não fosse o toque reiterado dos sinos, que eram como os que repicam pelo repouso dos mortos, e por isso me recordavam sempre aqueles que haviam tocado por Mariel. Mas sempre que eles pausavam, meus pensamentos escorregavam de volta à calma indolente, à segurança recuperada, à vaguidão circundante… Eu não tinha ideia do quanto penetrara em Malnéant, nem por quanto tempo eu vagara entre suas casas que pareciam não poder ser habitadas por ninguém a não ser os mortos em seu sono. Por fim, no entanto, eu percebi que estava muito cansado, e pensei em pão e vinho e uma cama para a noite. Mas em nenhuma parte enquanto andara eu percebera o letreiro de qualquer hospedaria, e por isso tive de perguntar a um transeunte qualquer a direção desejada.
Como disse antes, eram poucos os que estavam fora. Naquele momento, quando me decidi a dirigir-me a um deles, parecia que não havia mais nenhum e que eu andava de rua em rua em uma fútil procura de uma viva alma.
Finalmente encontrei duas mulheres, vestidas de cinzento tão feio e frio como as dobras da névoa, e totalmente veladas, que se apressavam com a mesma determinação fúnebre que eu percebera em todos os outros habitantes daquela cidade. Criei coragem para aproximar-me delas, perguntando se poderiam direcionar-me a uma hospedaria. Quase sem pausar e sem mesmo voltar suas cabeças, elas responderam: “Não podemos dizer-lhe. Somos tecelãs de mortalhas e estivemos ocupadas fazendo uma para a donzela Mariel.” Então, ao ouvir tal nome, que de todos os nomes do mundo era o que eu menos esperava ou queria ouvir, um calafrio inexplicável invadiu meu coração, e um terrível desânimo abateu-me, como se eu respirasse o hálito da morte. Era realmente estranho que naquela cidade em penumbra, tão distante no tempo e no espaço de tudo que eu fugira para esquecer, uma mulher houvesse morrido recentemente e seu nome fosse Mariel. A coincidência era tão sinistra que um medo ímpar das ruas por que andara nasceu subitamente em minha alma. O nome evocara, de forma mais irrevogavelmente fatal que o repicar dos sinos, tudo que eu desejara em vão esquecer, as lembranças que eram carvões em brasa em meu coração.
À medida que prosseguia, com passos que haviam se tornado mais apressados, mais febris até, que os da gente de Malnéant, eu encontrei dois homens, que estavam da mesma forma vestidos da cabeça aos pés de cinzento, e perguntei-lhes o mesmo que perguntara às tecelãs de mortalhas; “Não podemos dizer-lhe,” eles responderam. “Somos fazedores de caixões e estivemos ocupados fazendo um para a donzela Mariel.”
Enquanto falavam, e se apressavam, os sinos tocaram de novo, daquela vez muito perto de mim, com um tom maior de nebulosa e sepulcral ameça em seu repicar pesado. E tudo ao meu redor, as altas e nebulosas casas, as escuras e indefinidas ruas, as raras e espectrais figuras, tornou-se parte de uma confusão indistinta de medo, preocupação e pesadelo. Momento a momento, a coincidência em que tropeçara aparecia mais bizarra ainda de se aceitar, e eu me sentia então perturbado pela monstruosa e absurda ideia de que a Mariel que eu conhecera havia acabado de morrer, e que aquela fantástica cidade estava, de alguma maneira incompreensível, ligada à sua morte. Mas isto, é claro, minha razão rejeitava sumariamente, e eu repetia para mim mesmo: “A Mariel de que falam é outra Mariel.” E me irritava além de toda medida que um pensamento tão inadequado e ridículo continuasse retornando, mesmo que minha lógica o houvesse repelido. Não encontrei ninguém mais a quem perguntar o caminho. Mas por fim, enquanto lutava com minha sombria perplexidade e as memórias flamejantes, eu me achei parado abaixo do letreiro de uma hospedaria, castigado pelo tempo, cujas letras tinham sido quase apagadas pelo tempo e pelo mofo. O edifício era obviamente muito antigo, como todas as casas de Malnéant, e seus andares superiores se perdiam no redemoinho da neblina, exceto por umas poucas e furtivas luzes que brilhavam na escuridão que descia, e um vago e musgoso odor de antiguidade saiu para cumprimentar-me quando eu subi as escadarias e tentei abrir a pesada porta. Mas esta havia sido trancada ou bloqueada, então eu comecei a bater com meus punhos para atrair a atenção de quem estivesse dentro. Após muito tardar, a dor foi aberta, lentamente e a contragosto, e um indivíduo de aparência cadavérica apareceu, com uma grave expressão de desgosto ao ver-me.
“O que deseja?” Ele inquiriu, com uma entonação ao mesmo tempo brusca e solene.
“Um quarto pela noite, e vinho.” Eu pedi.
“Não podemos acomodá-lo. Todos os quartos estão ocupados pelas pessoas que vieram assistir às exéquias da donzela Mariel, e todo o vinho da casa foi requisitado para seu uso. Você terá de ir a outro lugar.”
Ele fechou rapidamente a porta em meu rosto ao dizer as últimas palavras. E eu tive de retomar minha perambulação, e tudo o que me perturbara antes foi intensificado umas cem vezes. As névoas cinzentas e as casas imprecisas estavam cheias da ameaça da lembrança: eram como tumbas traiçoeiras das quais os cadáveres das horas mortas surgiam para assaltar-me com suas presas e garras venenosas. Eu maldisse a hora em que entrara em Malnéant, porque me pareceu então que ao fazê-lo eu apenas completara um círculo funéreo e sinistro no tempo, e retornara ao dia da morte de Mariel. E certamente todas as minhas lembranças dela, de sua agonia final e de seu sepultamento, haviam assumido a vitalidade assustadora de fatos presentes. Mas meus pensamentos ainda mantinham, claro, que a Mariel que estava morta em algum lugar de Malnéant, e por quem todos aqueles ritos de exéquias estavam sendo cumpridos, não era a mesma donzela que eu amara, mas uma outra.
Depois de percorrer ruas que ainda eram mais escuras e estreitas que todas por onde passara, encontrei uma segunda hospedaria, ostentando um letreiro similarmente batido pelo tempo, e em todos os aspectos muito parecida à primeira. A porta estava bloqueada, e eu bati com força, e não me surpreendi de modo algum quando um segundo indivíduo, de rosto cadavérico, me informou em solene e sepulcral entonação:
“Não podemos acomodá-lo. Todos os quartos foram tomados por músicos e carpideiras que atuarão nas exéquias da donzela Mariel, e todo o vinho foi reservado para seu uso.”
Então eu comecei a temer a cidade ao meu redor com medo multiplicado: porque parecia que toda a ocupação da gente de Malnéant consistia em preparativos para o funeral da tal donzela Mariel. E começou a ser óbvio para mim que eu deveria perambular pelas ruas da cidade por toda a noite sem abrigo por causa dos mesmos preparativos.
Subitamente, um cansaço arrebatador se mesclou ao terror e à perplexidade de meu pesadelo.
Não continuara por muito tempo minha peregrinação, depois de deixar a segunda hospedaria, quando os sinos repicaram mais uma vez. Pela primeira vez, pude identificar sua origem: eles estavam nas torres de uma grande catedral que pairava imediatamente acima de mim na neblina. Algumas pessoas estavam entrando na catedral, e uma curiosidade, que eu sabia ser ao mesmo tempo mórbida e perigosa, me levou a segui-los. Lá eu senti de alguma forma que seria capaz de conhecer mais do mistério que me atormentava. Estava tudo em penumbra lá dentro, e a luz de muitos pavios mal conseguia iluminar a vasta nave ou o altar. Uma missa estava sendo rezada por padres vestidos de negro, cujas faces não podia divisar claramente, seus cantos pareciam palavras em um sonho, das quais nada ouvia, e nada estava visível de forma definida no lugar, exceto um féretro coberto de tecidos opulentos no qual jazia uma forma alva. Flores de vários matizes haviam sido salpicadas sobre o féretro, sua fragrância preenchia o ar com um langor sonolento, com um amortecimento que parecia drogar meu coração e minha alma.
As mesmas flores haviam sido postas no féretro de Mariel, e desta forma, por causa de seu perfume, eu fora, em seu funeral, abatido por um entorpecimento momentâneo dos sentidos. Vagamente eu percebi que alguém me acotovelara. Com olhos ainda fixos no féretro, eu perguntei:
“Quem é que jaz ali, por quem é rezada esta missa e tocados estes sinos?”
E uma voz lenta e sepulcral respondeu:
“Eis a donzela Mariel, que ontem morreu e que será amanhã enterrada nas criptas de seus ancestrais. Se é seu desejo, pode aproximar-se e mirar seu rosto.”
Então eu percorri o corredor da catedral, até junto do féretro, cujos tecidos opulentos caíam até a lousa fria. E a face daquela que lá jazia, com um sorriso tranquilo nos lábios, com doces sombras sobre as pálpebras fechadas, era a face da mesma Mariel que eu amara, e não de outra. As vagas do tempo congelaram seu fluxo, e tudo que era ou fora ou seria, tudo do mundo que existira além dela, tornou-se como sombras vacilantes, e da mesma forma que antes (passadas eras ou minutos) minha alma foi trancada no inferno de mármore do supremo luto e arrependimento. Eu não podia me mexer, eu não podia gritar nem chorar, porque minhas lágrimas se tornavam em gelo. E então eu soube com certeza terrível, que aquele único evento, a morte da donzela Mariel, tinha sido arrancado de todos os outros acontecimentos, tinha sido separado da sequência do tempo e achado para si um cenário de penumbra e solenidade adequadas, ou talvez até construído em torno de si aquela enorme e labiríntica urbe, para ali aguardar meu retorno em meio às névoas do esquecimento. Por fim, com um imenso esforço da vontade, eu retirei meus olhos dela, e deixei a catedral em passos apressados, apesar de tolhidos pelo chumbo de minhas pernas, para buscar uma saída daquele labirinto horrível de Malnéant, para procurar o portão por onde entrara. Mas isto não foi de forma alguma fácil, devo ter vagado por horas pelos becos, opressivos e sem saída como tumbas, e pelas tortuosas e convolutas vias, até que me achei em uma rua familiar e dela fui capaz de dirigir meus passos com alguma certeza. E um mormaço fraco brilhava através das nuvens de um dia amortecido e nublado que nascia além das névoas quando eu cruzei a ponte e cheguei outra vez à estrada que me levaria para longe daquela cidade infeliz.
Desde então eu tenho vagado por muitos lugares. Mas nunca mais procurei revisitar aquele reino antigo de nevoeiro e de neblina, por medo de que chegar outra vez a Malnéant e descobrir que sua gente ainda está ocupada com os preparativos para as exéquias da donzela Mariel.