Estava escuro ainda quando Manoel acordou. A cerração ainda recobria as encostas da serra e as estrelas estavam sumidas no meio de tanta umidade no céu. Mas tinha ficado difícil continuar dormindo, e ele não sabia porque. Dentro da barraca o frio não entrava tanto, o saco de dormir isolava bem a umidade, mas de alguma forma ele acordou e foi se sentar, ainda enrolado nos agasalhos que catou da mochila. Acendeu o fogareiro e começou a esquentar água para preparar um café solúvel. Reparou então que as outras barracas estavam vazias.
“Mas com mil diabos, aonde esse pessoal foi parar no meio da noite?”
Subitamente lembrou de um sonho que tivera, um sonho molhado com algum tipo de criatura sensual. Por alguma razão inexplicável, no sonho, os seus companheiros de acampamento fugiam esbaforidos, como ratos diante do ronronar de um gato esfomeado. Mas ele ficara. Sentiu retornar à boca o estranho gosto de água de mina, de caneca de latão, de colher oxidada. Gosto rico em ferro.
“Devo ter mordido o lábio, ou estou com as gengivas inflamadas outra vez.”
A água começou a formar bolhas na caneca.
“Onde estará o maldito pote de café?”
Saiu tateando pela escuridão, tentando que a pouca luz das labaredas lhe mostrasse o caminho. Então sentiu novamente arrepiar a nuca, uma sensação que lhe lembrou o sonho. Virou-se assustado, poderia ser uma onça. Mas não era, era só uma mulher. Uma mulher bonita, embora não extraordinariamente bela. A mulher do sonho — ora bolas! Tinha um ar de camponesa, as unhas malfeitas, o cabelo ligeiramente emplastado de umidade.
— De onde você veio?
A mulher não deu sinais de compreender o que ele dizia. Repetiu a pergunta. Ela pelo menos pareceu perceber que tinha sido uma pergunta. Disse-lhe algumas frases em uma língua desconhecida:
— Nu înţeleg ce spui, draga.
— Hem? O que…?
Então era uma gringa. Inútil esperar que ela mantivesse uma conversa normal. Aproximou-se do fogareiro e finalmente viu a lata de café, tombada junto à mochila de um dos companheiros de acampamento. Abriu-a e já se preparava para derramar um pouco na água que já estava prestes a ferver quando resolveu tentar alguma mímica para falar com a estranha. Esfregou a mão no braço, tentando dizer que estava frio e apontou-lhe a água quente e o café.
— Café?
— Da, o cafea mica. Vă rugăm să…
O café ficou pronto instantaneamente, tal como a embalagem prometia. Só não ficou bom. Mas no alto da serra qualquer bebida quente era maravilhosa àquela hora da madrugada velha.
Por alguma razão não conseguia evitar os arrepios na nuca e os nós na garganta. Tinha vontade de correr, de chorar ou de pelo menos dar um berro animalesco. Mas não o fazia. Não sabia porque deveria. Não conseguia entender como se segurava. Terminou de tomar o café, ainda esfregando os olhos para espantar o sono. A mulher ali estava.
Aproximou-se dela com cuidado e curiosidade e loucura. Ousou tocar seu queixo duro, era frio como uma das pedras. Puxou seu rosto para cima e mirou naqueles olhos que redemoinhavam como o Estige e o Aqueronte. Veio puxando lentamente para perto de si aqueles lábios rasgados na carne pálida. Ela não resistiu, ainda que o deslocar de seu rosto fosse pesado, e voluntário. Havia momentos em que até lhe parecia que era o queixo dela que empurrava a sua mão.
Dois pares de lábios se tocaram. A troca de calor parecia provocar oscilações coloridas em sua imaginação. Lembrou-se de uma letra de música, queria que o beijo nunca terminasse. “Estamos, meu bem, por um triz, pro dia nascer feliz.”
Seus olhos queriam fechar-se, mas sua mente, arrepiada como os cabelos de um cavalo assustado por um lobo, insistia que não. Então, por uma sorte destas que ampara aos tolos, conseguiu contemplar a própria mão e notou nela veias saltadas que antes ela não possuía. Então o sonho voltou com mais força à sua lembrança e descobriu por que todo o seu ser queria gritar e fugir da presença da estranha.
Atirou-se ao chão como pôde, desprendendo os seus lábios dos dela. Mas ela não o soltou. Apenas conseguiu, por efeito da surpresa, fazer com que o equilíbrio de ambos oscilasse no mesmo instante. Caíram sobre o fogareiro, o gás escapou e envolveu-os em chamas, brevemente. Ela o soltou, deixando um rugido demoníaco sair de sua boca. Enquanto ela gritava, rolou sobre a grama úmida, apagando as chamas. Ela batia as mãos contra as vestes negras, completamente atarantada.
Se tivesse juízo, teria fugido como os demais. Teria aproveitado o sol que dentro em pouco assombraria a paisagem, como prometia a nesga láctea no horizonte. Mas como fazer isso com aquela beldade? Encheu a caneca de água fria da fonte e atirou sobre ela, apagando as chamas.
Ela se calou, intrigada. Uma fumaça branca ainda subia do tecido, a pele estava avermelhada em vários pontos, talvez do fogo, talvez do jorro de energia adquirido. Um forte cheiro de cabelo queimado empestava o ambiente.
— De ce am fost salvat? De ce am fost salvat, draga?
Um comprido raio de sol atravessou as nuvens e atingiu a encosta da montanha desolada. A mulher deu um gemido e cobriu o rosto com os cabelos falhados pelas queimaduras. Depois disso Manuel não se lembra mais de nada. Lembra-se apenas de ter acordado com tapas no rosto e gotas de uma água fria que parecia flocos de geada que derretiam com o calor de sua pele.
— Quem é o veado que está me molhando…?
Nem acabou a frase. Os seus amigos estavam todos em volta, assustados.
— Que merda foi essa que você fez, Manuel?
O fogareiro estava derrubado, e um largo trecho de grama seca estava queimado.
— Vocês não tinham ido embora?
— Embora para onde? Acordamos com os seus gritos, maluco!
Manuel já se erguia, confuso e imaginando que estava louco. Então sentiu outra vez o arrepio na nuca, com uma força tão grande que era como se lhe socassem pelas costas: como não reparara antes em tantos fios grisalhos e tantas rugas de expressão no rosto dos colegas de faculdade? Olhou a própria mão, vincada de veias. E notou, com um horror que nem teve a coragem de mencionar, pedaços de tecido preto ao lado da pedra à beira do barranco.