Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
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Abr 11
publicado por José Geraldo, às 08:54link do post | comentar

Não é a primeira vez que eu vejo esse tipo de opinião circular pelo mundo. Mas desta, como apareceu na Internet, percebi que era preciso comentar.

A história tem tantos lados quanto podemos imaginar. E, na boa, história exige mais compreensão do que estudo: decorar datas é mais fácil que compreender os fatos nelas ocorridos. Como todo mundo se mete a entender de história só porque viu… documentários, leu meia dúzia de livros tendenciosos e viu o horário político, a nossa ciência está jogada na lama.Mas, tudo nesse mundo tem salvação (assim espero)…

Esta é só uma pequena postagem no Facebook, mas ela reflete de várias maneiras a ideia distorcida que os brasileiros têm da História — e das ciências humanas também, de certa forma. O autor disso provavelmente imaginou que estava sendo um paladino da ciência, e é normal que pense assim, pois esse tipo de pensamento recebe aplausos fáceis, até mesmo entre os profissionais de ensino: é praticamente uma tradição de nosso país considerar as ciências humanas menos importantes, concepção cristalizada até nos quadros de horários de nossas escolas, nos quais Português e Matemática têm cinco aulas semanais, enquanto História e Geografia têm somente duas cada. Então o que esse rapaz disse é fruto de um sistema que ensina desde cedo a desconsiderar como “menos importantes” certas áreas do conhecimento humano. E as pessoas propagam isso, sem perceberem que estão papagaiando um discurso ideológico alienante e obscurantista. Vamos demonstrar as falácias deste raciocínio:

A primeira afirmação é que A história tem tantos lados quanto podemos imaginar. Dizendo desta maneira, a História (com agá minúsculo) fica reduzida a um simples “causo” de pescador, ou a uma Lenda da Mulher de Branco, que cada um conta como quer, mudando os detalhes conforme sua preferência. Claro que existe quem pense assim ou até quem faça isso, mas História (agá maiúsculo) não é isso!

Podem me acusar de positivista (o que, para os que, como eu, mamaram nas tetas do Marxismo, uma ofensa), mas acredito que a História é uma tentativa metódica (portanto racional) de buscar o conhecimento de um fato realmente acontecido. O fato é objetivo, positivo. O que pode variar é a interpretação dos dados que conduzem ao fato. Como a História é metódica (portanto racional, e nunca é demais repetir), há um limite para o tipo de interpretação que se pode dar aos dados, o que significa que não há infinitas versões possíveis de um mesmo fato. Pode haver certa controvérsia quanto a interpretação de um documento, porém somente serão historicamente válidas as teorias que seguirem certo método. Vamos dar um exemplo.

Se acharmos um documento datado de abril de 1500 no qual um arquivista português comunique ao rei de Portugal o episódio do “descobrimento” do Brasil, não podemos usar tal documento como “prova” de que, no século XV, os portugueses conseguiam navegar entre a Bahia e Lisboa, em suas caravelas, no prazo de nove dias, no máximo. As únicas hipóteses racionais serão aquelas que considerarem como erro a data do documento novo (ou do antigo, a Carta de Caminha), ou ainda as que considerarem que o Brasil já era conhecido e a viagem de Pedro Álvares Cabral foi só formalidade diplomática. Imaginar as caravelas singrando o Oceano Atlântico à velocidade de um petroleiro moderno não é algo aceitável. Tudo, claro, considerando que o documento encontrado não seja forjado.

Logo em seguida, vem a afirmação de que história exige mais compreensão do que estudo. À primeira vista é uma afirmação quase tautológica, mas não é nada inocente o que ela implica: que História não precisa ser estudada. Esta é uma opinião que encontra eco profundo no nosso sistema educacional, não só entre os alunos mas também — lamentavelmente — entre certos maus professores que veem a escola como uma rinha, na qual devem digladiar-se por espaço no horário e onde as matérias que são “mais importantes” precisam sempre ter a “prioridade”. Você não precisa “estudar história” se tiver algo abstrato como “compreensão” (que é um privilégio talvez inato, visto que não precisa ser adquirido pelo estudo). Os que tiverem “compreensão” não precisam estudar datas e nomes “chatos”. Eu já tinha falado disso anteriormente, num artigo sobre a cultura de aplauso da ignorância que existe no Brasil e nos “atalhos” que desenvolvemos para não termos que aprender. Claro que uma afirmação dessas é chocante, por isso deve ser atenuada com uma frase bacana: decorar datas é mais fácil que compreender os fatos nelas ocorridos. Curioso é que quem diz que é “mais fácil” decorar datas está justamente dando uma justificativa para não ter que fazer isso. E se compreender os fatos é mais difícil, a lógica seria então que a História fosse mais estudada, pois ninguém pode compreender o que não conhece (não existe sabedoria na ignorância). Vê-se, porém, pelo contexto, que não existe a preocupação em estudar mais, mas em “compreender mais”.

A frase a seguir chega mais longe na incongruência: Como todo mundo se mete a entender de história só porque viu documentários, leu meia dúzia de livros tendenciosos e viu o horário político, a nossa ciência está jogada na lama. Eu não consigo alcançar o que o autor desta frase quis dizer, mas fica parecendo (e devemos julgar as pessoas de acordo com o que elas dizem — e não com o que pensaram em dizer) que assistira a documentários, ler “meia dúzia de livros” e assistir o horário político (todas ferramentas que estão ao alcance dos interessados, graças à televisão por assinatura, às bibliotecas e a outras ferramentas de acesso público) não são meios eficientes para alguém chegar a “entender de história”. Há dois problemas com esta afirmação.

O primeiro problema é o elitismo, que já ficava evidente na afirmação anterior, sobre a “compreensão” em vez do “estudo”. Não adianta você recorrer aos meios populares de difusão de conhecimento, pois você não chegará a “entender de história” através deles. Para “entender de história” você precisa de outra coisa (que pode ser uma “sabedoria” inata ou algum conhecimento arcano, a que somente privilegiados podem ter acesso). A História se reveste, então, de uma aura mística, sagrada, alheia-se da “necessidade” do povo. E não custa nunca lembrar que o “povo” precisa aprender muita gramática e muita matemática e muita ciência.

O segundo problema está na parte final. Por que a nossa ciência está “jogada na lama” como consequência de “todo mundo” se meter a “entender de história” vendo documentários e lendo livros tendenciosos? Ora, bolas, porque estas pessoas que se metem a entender de História, evidentemente, não estão estudando matemática, português e “ciência” (às Ciências Humanas é muito comum que seja contestado o status). Veja só que coisa, esta gente que fica tentando “entender de história” é que está jogando a ciência na lama. Não, a culpa não do governo, que mantém um sistema educacional tão inepto que só pode ser de propósito, a culpa não é de nossa sociedade e seus valores, a culpa é, claro, de quem tenta ter acesso a um conhecimento que não é para o bico do povo. A culpa, é claro, é da vítima!

Mas ainda tem caroço nesse angu. Esta gente que “se mete” a “entender de história” costuma ficar de crista alta, reclamando da vida, apontando para certas coisas que não se deveria discutir. Teria sido bem melhor só estudarem português, matemática e “ciência”. Então, quando essa gente surge, discutindo temas difíceis, pondo pimenta no olho de quem não quer enxergar as raízes antigas de nossos problemas de hoje, é preciso desqualificar, é preciso rebaixar, é preciso viralatizar.

E aqui chegamos ao terceiro dos problemas implícitos nessa frase tão curta: a falácia de que, na impossibilidade de se ter o conhecimento perfeito, o conhecimento imperfeito não tem valor. Leia de novo e observe bem: Como todo mundo se mete a entender de história só porque viu documentários, leu meia dúzia de livros tendenciosos e viu o horário político…

Está bem claro aí que o conhecimento que se obtem assistindo documentários, lendo alguns livros e assistindo horário político é um conhecimento inútil por ser parcial. Empregando a reductio ad absurdum, pode-se dizer que é melhor ser analfabeto do que ler mal. Como o autor da frase certamente não cometeria a insanidade de estar de acordo com esta reformulação, imagino que negará ter querido dizer que o conhecimento incompleto obtido através de documentários, livros e “horário político” seria inútil. Mas, como dizia Nietzsche, o importante não é como você pensa, mas como você o diz.

Gostaria de dizer ao autor destas frases que eu não acredito que ele seja pessoa má, que defenda o obscurantismo ou algo assim. Estas coisas que ele disse não são, de fato, pensamentos seus, mas chavões populares em nosso país. Ele apenas papagaiou o que se diz por aí, possivelmente sem nem refletir sobre os nuances do que disse. Uma característica destes chavões é que eles simplificam os problemas e oferecem, então, explicações fáceis para questões difíceis. Existe uma ilusão entre os ignorantes de que existe um atalho para o conhecimento sem passar pelo estudo. O sonho das pessoas que ignoram uma matéria é conseguirem a esperteza de chegarem à outra margem do rio sem passar pela ponte. Assim, toda explicação simples fica rapidamente popular e aqueles que assimilam tais “verdades” se arraigam a elas porque ali acham o que antes lhes fazia falta. Através das explicações simples, o ignorante supera a sensação de insegurança. Ele então passa a encarar esta explicação simples como um verdadeiro artigo de fé.

Não pretendo me aprofundar sobre este mecanismo de crença, porque reconheço minha limitação nesse campo. O que digo é o que ouvi dizerem pessoas que sabiam mais do que eu. Quero apenas concluir dizendo que é preciso denunciar esta ideologia segundo a qual a História é uma espécie de “vale tudo”. Não há esperança para a educação no Brasil, nem mesmo para o ensino das matérias “importantes” enquanto nós encararmos o conhecimento pela ótica desta estratégia de “redução de danos”, que nos impele a evitar ao máximo a necessidade de aprender. É por isso que se “prioriza” matérias que são importantes, é por isso que existem os “macetes” de vestibular e concurso, é por isso que os livros de auto-ajuda fazem sucesso. Estudar e aprender são coisas tão horríveis na mentalidade do brasileiro, que é preciso evitar ao máximo. Vamos aprender o que é “importante” e não é preciso saber a matéria se você tiver os “macetes” da prova de múltipla escolha.

Só que tem uma coisa engraçada: quando você começa a “priorizar” conhecimentos, criando uma hierarquia de importância (na qual muita gente acha que História fica abaixo até do Ensino Religioso), você cria um efeito progressivo de downsizing que termina com o desmonte de todo o sistema. A escola que hoje não acha importante ensinar História, facilmente chegará ao ponto em que “ensinar” em si deixará de ser importante, desde que se consiga “socializar o aluno” e “instrumentalizá-lo” para o convívio enquanto cidadão de uma sociedade democrática.

Para terminar, um caso curioso, que muita gente deve lembrar. Há alguns anos, ainda no tempo em que fazia o “Caco Antibes” no programa humorístico “Sai de Baixo”, Miguel Fallabela protagonizou o anúncio de uma coletânea da Som Livre (hoje exorcizada da Web) que usava o slogan “O Melhor do Melhor, dos Melhores”. Acontece que era uma antologia de música clássica, em um álbum duplo. Se considerarmos que a música “clássica” abarca mais de cinco séculos de tradição e que algumas de suas obras possuem horas de duração, não é difícil imaginar que o resultado foi uma coletânea de vinhetas das grandes obras. Quem a comprasse ouviria apenas trechos soltos, e não as obras propriamente. Da mesma forma como você não fica conhecendo Beethoven só porque botou Für Elise como toque de seu telefone celular. Um sistema educacional que tão arbitrariamente discrimina entre as áreas de conhecimento pode acabar, como a Som Livre, produzindo uma coletânea de vinhetas, de pedaços amputados das obras originais. Vinhetas de conhecimento não ajudam ninguém a se tornar realmente competente e nem sábio. No máximo servem como toque de celular.


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