Em um mundo eternamente provisório, efêmeras letras elétricas nas telas de dispositivos eletrônicos.
30
Jul 11
publicado por José Geraldo, às 00:30link do post | comentar

Para autores, em sete lições

  1. Não os escreva.
  2. Se porventura acabar escrevendo algum, jogue-o fora.
  3. Se por razões pessoais não conseguir jogá-lo fora, esconda-o.
  4. Se tiver de publicar, não faça de seus amigos os seus fregueses. Amizade e negócios não combinam.
  5. Se vender a amigos e eles elogiarem, não peça detalhes. Evite a decepção de descobrir que estão elogiando porque são amigos, mas nem leram.
  6. Somente se pedir detalhes (oh, ousadia!) e eles disserem coisas que fazem sentido, suspeite que o livro seja mesmo bom.
  7. Nesse caso, chore os que jogou fora.

Para leitores, em dez lições.

  1. Leia a sinopse. Se a sinopse já é um ruim, imagine o livro.
  2. Não ligue para o prefácio. Prefácios são escritos por amigos, ou por alguém pago para isso.
  3. Desconfie dos livros que têm longas introduções e apêndices, a menos que o nome do autor seja John Ronald Reuel Tolkien. Se precisam de muita explicação, é porque não conseguem explicar-se por si mesmos.
  4. Antes de ler um livro de setecentas páginas escrito por um desconhecido, escreva aquele livrinho de cem páginas que ele também escreveu. Quem escreve mal um livro de cem páginas, dificilmente se sairá melhor num outro mais longo.
  5. Evite livros que tentam atingir vários públicos ao mesmo tempo. Imagine um automóvel ao mesmo tempo econômico, compacto, fora-de-estrada, familiar, de luxo e esportivo.
  6. Desconfie de livros ambientados em lugares inventados: é um truque fácil para esconder a preguiça de pesquisar sobre lugares reais ou a falta de vivência real do autor.
  7. Quando o autor diz ostensivamente que o livro é resultado de anos de trabalho, ele está implorando que você goste.
  8. Desconfie de apelos emocionais (livros que falam de algum lugar pobre, da guerra que está na moda ou de lugares recentemente focados pela “caridade” internacional.
  9. Fuja de livros que têm muitos erros de ortografia. Se a editora não corrige o que é mais fácil de detectar, então esqueça revisão estilística, aconselhamento editorial ou uma política de seleção focada na qualidade.
  10. Nenhum livro de auto-ajuda presta. Eu disse “nenhum”. Isto inclui este em que você está pensando e também aquele que mudou a sua vida, e também aquele que todo mundo leu. Se acha que presta, talvez seja hora de variar suas leituras. Quem só come arroz provavelmente não imagina o gosto que feijão tem.

17
Abr 11
publicado por José Geraldo, às 16:09link do post | comentar

Quando eu era criança, ser chamado “caipira” era praticamente um xingamento. Equivalia a ser chamado de “ignorante”, “abobalhado” ou “ingênuo”. Piadas de caipira eram muito mais fortes que as de português. Talvez isso se explique pelo fato de que nós, os habitantes da Zona da Mata de Minas Gerais sermos descendentes de colonos provenientes, principalmente, das terras fluminenses, gente mais ligada à “Corte” e ao exterior. Nós da Zona da Mata de Minas Gerais vivíamos de costas para Belo Horizonte e o resto do estado, olhando com saudade para o litoral. Nós reclamávamos de viver numa terra de montanhas, adorávamos vargens, viajávamos à praia nas férias e aprendíamos a chiar o esse com poucas semanas de convivência. Caipiras eram os outros, e música sertaneja (uma concessão para uma minoria de aborígenes que viviam nos cantões), coisa que só se ouvia de manhã cedinho em nossas rádios. Torcíamos para os times do Rio de Janeiro, acompanhávamos revoltados o noticiário policial carioca, vivíamos a dizer que não queríamos nunca viver no Rio de Janeiro. Só que era mentira, claro.

Só que isso tudo foi nos anos oitenta, no século passado. E desde então muita coisa mudou. Quase ninguém mais acomapnha rádio em ondas médias (a gente ouvia Rádio Globo, a Tupi, a Mundial e a Eldorado), pouca gente lê jornais (Jornal do Brasil, O Globo, o Dia, Jornal dos Sports e Jornal do Commercio) e a televisão via satélite, com programação neutra, nos afastou do contato imediato com os anúncios das lojas cariocas. Hoje conhecemos as grandes, essas que aparecem na programação nacional, mas ninguém mais ouve falar de lojas como a Impecável Maré Mansa (que patrocinava um famoso programa humorístico na Rádio Tupi, e posteriormente na Globo), ou a R. Pinto (“que canta de galo com preço de milho picado”, uma presença indefectível na Rádio Relógio Federal, “cultura e hora certa a cada minuto”, “… você sabia?”).

Nada poderia ser mais estranho à cultura carioca do que a cultura caipira. O carioca é cosmopolita, olha para o mundo, conhece vários tipos de gringos, tem hotéis, teatros e museus. O caipira, recatado, olha em volta de si, desconfia do mundo lá fora, cheio de pessoas diferentes e mal-intencionadas. Toda a cultura do carioca gira em torno da espontaneidade, da alegria. A cultura caipira gira em torno da formalidade, do respeito, da religiosidade. O carioca é esperto, o caipira é heroico. Nunca as rádios do Rio tocavam música caipira. Para o carioca, o caipira é um enigma, um selvagem, talvez uma relíquia, possivelmente um fóssil. O carioca ri do caipira. O caipira ignora o riso, tal como o visitante do zoológico não liga para a gargalhada do macaco. Dois mundos que existem de costas um para o outro, quando se encaram não se reconhecem.

A gente só podia ouvir música caipira em ondas curtas, nas rádios de Belo Horizonte (Inconfidência, Itatiaia e Atalaia, as principais), nas de São Paulo (Record, Globo, Aparecida) ou de Goiânia (Anhanguera). A transmissão chegava com muitos assobios por causa da interferência. Afora isso, havia o programa “antropológico” da manhã de domingo (o “Som Brasil”), no qual Rolando Boldrin (a princípio) ou Lima Duarte (pouco depois), fantasiados de Mazzaropi, apresentavam artistas folclóricos. A música caipira só tinha lugar nos canais de televisão quando era mostrada como como folclore.

“Mas a tal música caipira não é folclore?” Deve alguém estar perguntando. Depende do ponto de vista. Se considerarmos que o samba é o “folclore carioca”, então música caipira é folclore também. Mas se pensarmos no folclore como uma coisa distante e quase morta, que precisa ser preservada através de programas governamentais, então ela não é isso. Pelo menos não naquela época. O gênero caipira era a expressão artística do Brasil rural, do Brasil do planalto, do Brasil sem mar, do Brasil português. O Brasil de antes do imigrante, o Brasil de antes da cultura de massa. Para os que viviam esse mundo, o gênero caipira era tão espontâneo quanto uma roda de pagode o é para cidadão carioca.

Mas nos anos oitenta do século xx, esse Brasil estava morrendo rápido, com a migração para as grandes cidades e com a eletrificação dos grotões. A alfabetização e a entrada da televisão eram forças irresistíveis, diante das quais o Brasil caipira recuava sempre mais para longe. Triunfava o cosmopolitismo do carioca, definhava o brio conservador do caipira. O Brasil caipira aprendeu a rir, esqueceu a viola e começou a perder o sotaque. E aqui, onde o sotaque nunca foi forte, resta pouca lembrança dele.

Curiosamente, nesse processo em que a cultura caipira desaparecia, as ondas culturais se chocavam e os fluxos se invertiam. A televisão passou a repetir o sinal vindo de Belo Horizonte, o rádio deixou de ser popular e a internet criou um canal direto com o mundo, sem precisar fazer escala no Rio de Janeiro. Com isso, fica até parecendo que estamos mais longe de lá, que até estamos em outro estado. Junto com os telejornais belo-horizontinos, vieram também os jogos de Atlético e Cruzeiro, que começaram, aos poucos, a dividir torcida com Flamengo, Vasco da Gama, Fluminense e Botafogo. Hoje já não estamos de costas para Minas Gerais, porém, a verdade seja dita, Minas Gerais ficou muito mais parecida com o Rio de Janeiro, até na violência urbana e na cultura de massas. Minas Gerais não é mais caipira, mesmo ainda estando cheia de cidadezinhas drummondianas.

Ficou mais fácil rejeitar a identidade “caipira”, e tudo que ela acompanha. Nós somos diferentes, somos descendentes de colonos da “corte”. Nós não falamos “engraçado” e nem nos vestimos de um jeito ridículo (que, aliás, nunca passou da caricatura inventada pelo cineasta e ator ítalo-brasileiro Amacio Mazzaropi). E como nós rejeitamos a identidade caipira, por causa destes aspectos que julgamos ridículos, rejeitamos junto com ela a cultura tradicional que a ela se liga. Vivemos estas montanhas, mas não olhamos para elas: queremos o mar distante, o além-mar se possível. O que está próximo não nos interessa. “Nem no passado nós fomos caipiras”.

Mas por que essa rejeição. O que era tão horrível no mundo caipira, para merecer que o rejeitássemos tão completamente. Não tenho gabarito suficiente para dizer isso, mas tenho as minhas opiniões. O Brasil caipira representa algo que o Brasil resolveu superar: o caipira é discriminado porque nós temos vergonha de nossas raízes indígenas, africanas e portuguesas. Rejeitamos o caipira porque o nosso objetivo é a assimilação no globalismo: não gostamos de nossa cara, então queremos fazer uma plástica que nos deixe com cara de um ator americano. Não queremos ser morenos, queríamos ser louros escandinavos. Nós não gostamos do Catolicismo “supersticioso” e nem da Umbanda primitiva, queremos a “reza forte” e “fashion” das igrejas “fast-food” importadas com franquia e tudo lá dos Istêitis. Nossos nomes são difíceis de pronunciar (pelos americanos) então queríamos outros, mais “internacionais”, como Johnny, Peter, Richard, Michael ou David. E como não sabemos inglês, acaba ficando Jhone, Piter, Rikky, Maicon e Deyvid. Temos vergonha da viola e da botina, mas não temos vergonha de agradar gringo na praia para ganhar trocado, como macacos de realejo. Temos vergonha da música caipira, porque fazia chorar e pensar, mas não temos vergonha de rebolar para o riso do mundo.

Hoje descobri que sou caipira, que ainda estou ligado a essas coisas antigas e a uma forma tramontana de pensar. Estou aqui, entrincheirado nas minhas montanhas, olhando desconfiado para os perigos que vem debaixo, lamentando que não tenha suficiente azeite para enfrentar todo o assédio que vem pela frente.


17
Fev 11
publicado por José Geraldo, às 16:06link do post | comentar
Em resposta a alguém que disse: «Se é mensagem positiva, me interessa.»

Não há uma saída fácil,
tua fé não vencerá os muros e
a ingenuidade não lhe servirá de escudo
quando vierem as botas e os rifles
quando caírem as mãos sobre ti.

Não há uma resposta fácil,
tua força não dobrará as regras e
os teus sorrisos não lhe comprarão simpatia
quando os dedos apontarem para ti.

Lá fora não jaz o cadáver de Deus:
mataram-no com um tiro no escuro,
mas ele não caiu, nem se ouviu nenhum grito.
O tiro apenas ecoou na noite muito longa
e os campos não amanheceram diferentes.
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14
Mar 10
publicado por José Geraldo, às 07:46link do post | comentar

Quando eu era moleque o terror de todo mundo era o “tarado”, esse estranho e incompreensível ser que habitava os romances de Nélson Rodrigues e Adelaide Carraro. As pessoas usavam a palavra como se fosse um codinome do capeta: “Fulano é um tarado” era uma ofensa pior do que dizer que era comunista. Aliás, os comunistas eram vistos como demônios exatamente por serem tarados (“comem criancinhas”, “amor livre”, etc.). Quando alguém mencionava a palavra, instintivamente punha as mãos para trás, num singelo gesto de proteção.

Hoje em dia a palavra está meio esquecida, ninguém mais tem medo de “tarados”. Eu mesmo já ouvi mulheres dizerem que preferem encontrar um tarado do que um assassino pela frente (quando eu era menino era o contrário: todo mundo jurava que preferia morrer do que perder para o tarado alguma coisa que não se devia falar).

O tarado ficou até romantizado: não foi uma louca, mas uma psicóloga que se apaixonou pelo maníaco do parque e casou com ele dentro da cadeia. No Pará um desses grupos tecnobregas decretou: “Sou um psicopata mas tenho muito amor para dar”. Desde que o tarado não desfigure nem mate ele é visto apenas como um pobre ser carente em busca de pregas desavisadas para afogar dramas existenciais e traumas de infância.

Na verdade é até desejável ser tarado. Quantas moças não matam de inveja as amigas dizendo: “meu namorado é um tarado”. Nos anos setenta até as prostitutas tinham medo dos tarados, hoje as moças de família sonham com um, de preferência que tenha emprego estável e cara de ator da Globo. O tarado está para a imaginação feminina assim como a mulher ninfomaníaca bissexual está para a do homem, e em ambos os casos a realidade não é exatamente como a imaginação.

É uma era de extremos, a mesma juventude que gosta de tarados exige um cervejão geladão e vai descendo até o chão na rebolação exagerada do último ritmo do verão. Ser tarado deixou de ser caso de polícia e virou obrigação. Seja um tarado você também ou vão achar que você é gay, como aconteceu comigo.

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19
Abr 09
publicado por José Geraldo, às 22:24link do post | comentar

Existe uma certa magia nas grandes, labirínticas cidades. Uma magia que seduz principalmente aos jovens acostumados aos horizontes curtos de Minas Gerais, onde o hábito de contemplar montanhas bloqueia os voos da imaginação da maioria que não ousa escalar até os topos para descortinar uma vista desafiante. E certas cidades possuem um ar ainda mais labiríntico e um fascínio ainda mais palpável do que outras, tal é o caso de Juiz de Fora, com seus quarteirões em formatos estranhos, variando entre quadrados, paralelogramos e triângulos, com suas avenidas retas e, mais que tudo, suas galerias convolutas que escondem lojas e outra galerias que escondem lojas e outras galerias, que escondem, no fim de corredores onde nunca o sol chega diretamente, lugares inauditos, cheios de experiências que fazem as pupilas do jovem interiorano se expandirem.

Existe uma destas que parece a entrada de um estranho universo de fantasia, o portal para um tempo-espaço onde as leis da Física e o rumo da História seguiram uma direção alternativa. Você entra ao lado do Cine Central, passa por entre as mesas de um restaurante, penetra por um sombrio corredor meio iluminado por lâmpadas fluorescentes onde abundam lojas pequenas, com amplas vitrines de vidro que expõem desde discos a roupas, tudo de estilos que destoam do comum. As pessoas que frequentam este lugar possuem um modo próprio de vestir-se, maquiar-se e cortar o cabelo. Usam acessórios e tatuagens que podem chocar até aos olhos de alguém acostumado a lugares e mentes pequenas.

Mas não é exatamente nesta primeira galeira que se acha aquilo que me levou a escrever. Se você chegar ao fim dela, perceberá que ali há uma bifurcação, duas galerias dentro do fim da primeira galeria. E cada uma destas galerias possui outra bifurcação no final, segundo me disseram, e é possível que este esquema fractal se reproduza ao infinito levando a outras dimensões até. É possível porque nunca fui verificar e o desconhecido esconde a possibilidade do impossível.

Nem está neste improvável labirinto que me contaram, está, em vez disso, em uma escada estreita que aparece no meio da galeria inicial, à direita. Subindo por ali, não há elevador, chega-se a outra galeria na sobreloja, onde há outros cômodos comerciais abrigando vários tipos de negócios e ócios e também portas vazias que eu nunca abri, outras escadas que parecem e não parecem existir. Está aqui, no segundo andar deste prédio tão no centro e ao mesmo tempo tão distante. Foi neste lugar que uma vez eu vi a livraria dos livros impossíveis, a biblioteca dos livros que ou não foram nunca escritos ou restaram esquecidos. Infelizmente tal biblioteca já não estava mais lá da segunda vez que a tentei visitar, em companhia de um cético amigo meu chamado Carlos – que descrê até de Deus, mas estava disposto a crer em coisas místicas porque estas, sim, são a verdade. Subi em companhia do Carlos, querendo mostrar-lhe o lugar como se tivesse sido uma descoberta equivalente à da pólvora:

— Você tem que ver isso, Beto. É o lugar mais estranho onde já estive. Parece que lá não existe.

Beto disse que acreditaria em minha palavra:

— Eu não estou vindo com você para ter a prova, porque confio no amigo. Estou vindo porque o lugar de que você fala é algo que eu gostaria muitíssimo de ver.

Eu o encontrara casualmente naquela manhã, enquanto tomava um café e comia uma fatia de broa de fubá em um bar qualquer da Rua Halfeld. Éramos amigos de muitos anos, mas fazia um bom tempo já que não nos víamos. Por isso ele, que me viu pelas costas antes que eu o notasse, fez questão de entrar, cumprimentar-me e pedir para si um café também. Gastamos uma boa hora ali, conversando animados sobre os anos que vivêramos em separado, adiantando planos e, na maior parte do tempo, pondo em revista perspectivas realizadas ou não desde que nos faláramos da outra vez.

Não sei direito como foi que o assunto da Livraria surgiu. Lembro-me vagamente de um comentário, não sei dele ou meu, sobre livros que têm títulos fantásticos mas são tão ralos e ruins de conteúdo que parece, às vezes, que não mereciam ter sido escritos, que deviam ter ficado no belo título sonhado por um autor mais talentoso em sinopses do que em textos. Não sei nem mesmo se esse comentário aconteceu ou se minha memória seletiva deturpou o registro da conversa inserindo esta explicação racional para o fato de, apenas saídos do bar, termos subido a rua juntos, entre gargalhadas, como dois colegiais narrando peripécias de fim-de-semana, e entrado pela obscura galeria. Só sei que começamos nosso périplo com um convite meu, cujos termos ainda tenho em mente:

— Então tem um lugar, aqui bem perto, que você gostaria muito de conhecer. Vamos lá comigo. Eu o conheci por mero acaso, não sei exatamente o que estava procurando. Entrei por uma galeria e peguei uma escada. De repente eu estava no corredor do segundo andar, entre a Rock Mania e algumas lojinhas de artesanato, e ao dobrar a esquina vi uma porta entreaberta, com um cartaz improvisado em sulfite, afixado com fitas adesivas, escrito com pincel atômico verde, em letras que imitavam cursivas medievais ou incunábulos da Renascença: “Livraria Futuro do Pretérito”.

— “Futuro do Pretérito” é mesmo um nome genial para uma livraria. Se eu visse esse cartaz pensaria de imediato que era uma livraria onde se vendem livros que teriam sido escritos.

— Você é mais perspicaz do que eu, Beto. Já lhe disse isso um monte de vezes. Eu não tenho a sua imaginação esperta e admirável, sou apenas um ledor compulsivo que já não fantasia. Por isso, quando vi aquele cartaz na porta, a última coisa em que pensei foi em algo que deixasse de ser normal. Entrei pensando que encontraria ali apenas livros comuns.

— E não foram livros comuns?

— De forma alguma. Quando entrei havia ali apenas uma fileira de estantes, todas iguais, de madeira escura, todas cheias de volumes dos mais variados estilos. Capas de couro, de cetim, de papel-cartão, de papel-vergê. Coloridas, monocromáticas, em tons de cinza, em toda variedade de projetos gráficos que se possa conceber. Comecei a andar por entre as prateleiras fascinado por aqueles livros tão bonitos. Havia alguns grossos como bíblias, outros finos como folhetos. Os títulos vinham em variadas fontes, desde desenhos rebuscados, góticos, barrocos, renascentistas, bauhaus ou modernistas, até sóbrias letras humanistas, transicionais ou textuais.

— E eram livros bons?

— Ah, essa é a pergunta que vale um milhão. Eu não sabia e nem tinha como saber, pois ao examinar, um a um, aqueles livros todos ali colecionados, eu não consegui encontrar, entre eles, sequer um título de que ouvira falar, embora alguns até soassem familiares, embora alguns autores até fossem conhecidos.

— Nenhum livro conhecido? Que espécie de livraria poderia ser essa?

— A princípio eu imaginei que aqueles livros fossem obras raras, dessas edições de poucas centenas de volumes que algumas editoras fazem, geralmente edições luxuosas, ilustradas, autografadas pelos escritores. Por isso eu logo supus que havia encontrado um tesouro. Senti algo doer em meu bolso, só de imaginar quanto me custariam aqueles livros, mas tinha uma vontade feroz de comprar alguns deles. De voltar sempre e comprar mais, mesmo sem ainda saber de que se tratava.

— Mas por que você queria comprar se não conhecia? Eu teria querido conhecer primeiro.

— Você é um maldito cético, Beto. Você exigiria enfiar o dedo nas chagas de Jesus para crer na Ressurreição.

— Mais que isso, exigiria um DNA.

Assim gargalhamos e chegamos à escada. Enquanto subíamos os dois lances de degraus, sem pressa como dois amigos que matam saudades antigas, eu continuei a dar detalhes do caso da livraria.

— Eu queria comprar, Beto, porque aqueles livros tinham títulos fascinantes, capas belíssimas, sinopses que prometiam leituras arrasadoramente interessantes. “Dias de um Futuro Perdido”, “Anjos ou Estranhos”, “Deuses que Morrem”, “A Árvore de Gelo”, “A Morte é o Parto do Futuro”, “A Velha Face do Novo Mundo”, “A Vida Secreta do Homem Público”, “Um Beijo à Margem da Meia-Noite”, “Viagens Desafortunadas”, “O Sacrílego Outono”, “Isto Que Este Livro Não É”, “Atos e Efeitos da Sincera Arte de Fingir”, “A História Eu Conto Depois”, “Lágrimas de um Matador de Sonhos”!

— Caramba! Que títulos! Alguns aí eu até teria vontade de comprar mesmo. E sobre o que eram esses livros?

Parei com Carlos, em frente à Rock Mania, e apontei para o corredor, à direita, onde ficava a livraria. Aproveitei mais alguns minutos para terminar de contar, entre cochichos, minhas impressões.

— Bem, aqui a coisa começa a ficar estranha. Alguns livros tinham sinopses na contracapa. Sinopses que prometiam mundos e fundos. Outros não tinham nada ali, apenas outra figura, ou um curioso espaço em branco, ou meramente recoberto por uma cor ou textura. Folheei alguns daqueles livros tentando descobrir do que se tratavam e, para meu espanto, em sua maioria eles estavam inteiramente em branco. Alguns tinham números de páginas, outros tinham títulos de capítulos, raros tinham algum capítulo escrito no início, pouquíssimos tinham outro no fim também, outros tinham apenas um índice, alguns tinham até prefácio mas não tinham texto, vários continham rabiscos irados e borrões, ou então páginas amassadas com fúria.

— Amigo, o que você tinha bebido nesse dia? Será que não batizaram sua cerveja com absinto ou com ácido?

— Não bebera nada, a não ser água mineral Hélios, e a tampinha não estava violada.

— Mas isto que você está me contando não faz nenhum sentido!

— Pode ser difícil de crer, Beto. Mas fazer sentido faz. Afinal, era a “Livraria Futuro do Pretérito”, o lugar onde estão expostos os livros que os autores nunca terminaram, os livros que teriam sido escritos, que seriam publicados, que poderiam ter sido os mais vendidos, que teriam transformado desconhecidos em celebridades, obras que teriam revelado novos gênios, talvez até algum Nobel literário para o hemisfério sul.

Meu amigo sorriu, desacreditando com todas as suas maquinações céticas. Acenou decididamente um “não” com a cabeça enquanto inspirava forte e declarou, como São Tomé diante de Jesus:

— Eis algo que só acredito vendo.

— Pois é ali, vamos até lá que, de repente, até aquele seu livro está à venda junto com os outros.

Estendi o braço convidando-o ao primeiro passo e ele, como ousado descrente que sabia ser, praticamente me deixou para trás. Dobramos a esquina e lá estava a porta, entreaberta, ainda com as marcas da fita adesiva que não me deixavam mentir, mas sem cartaz algum escrito em letras fora de moda.

Empurrei a porta e constatei, com irremediável desolação, que o lugar estava deserto, as paredes recém-pintadas e o chão, coberto de jornais antigos, cheios de notícias que ninguém mais queria ler.

— Parece, meu caro amigo, que a sua livraria não está mais aqui.

Eu não tinha o que dizer, meu rosto estava quente como se uma malária impiedosa me tivesse contaminado. Saí de lá derrotado, sentindo até vertigens. Meu amigo, solícito como só os bons amigos sabem ser, percebeu minha consternação total e tentou desviar o assunto:

— Pelo menos a gente veio parar aqui, e veja que discos interessantes estão à venda. Parece que relançaram a coleção do Jethro Tull.

Satisfeito em poder falar de Jethro Tull eu puxei a porta e fui saindo, não antes de olhar de novo para dentro daquela maldita sala comercial. Ao fazê-lo, notei, com o coração batendo arrebentado e fora de ritmo, que as manchetes dos jornais pareciam ter saído do mesmo universo que produzira os curiosos livros que ninguém escrevera: “Juscelino Recebe a Faixa de Jango e Promete Fazer o País Avançar Mais Cinquenta Anos em Cinco”, “Etiópia Lidera Cúpula Africana e Isola Ditaduras”, “Reino do Havaí Comemora 200 anos de Independência”, “Polônia Concede Cidadania Plena aos Alemães de Gdańsk”.

Ainda tive tempo, antes de fechar a porta, de notar no cesto de lixo, rasgado em pequenas tiras, um cartaz amarelado escrito em verde. Não tive nenhuma curiosidade de tentar saber o que nele estava escrito. O Futuro do Pretérito sempre fora o meu tempo verbal mais odiado, e eu acabara de ter mais imensas razões para aprofundar o meu ódio. Fechei a porta do Futuro do Pretérito e fui comprar as versões “remasterizadas” dos antigos discos do Jethro Tull.

Mas desde então fico imaginando se esta curiosa livraria não perambula pelas cidades do mundo, exibindo para quem queira ver o fracasso de autores que tiveram excelentes ideias mas não conseguiram transformá-las em nada mais que sonhos de livros que teriam centenas de páginas, bonitas capas e prefácios de amigos famosos. Talvez algum dia eu a reencontre em minha cidade. Talvez o leitor a encontre em algum lugar discreto de sua cidade.

Se isto ocorrer, não faça como eu. Compre um livro para ver o que acontece.


23
Fev 09
publicado por José Geraldo, às 19:20link do post | comentar

Shaul pensa no buraco negro que se aproxima, interrompe o gole de uísque para pensar nos tentáculos da destruição que se espraiam pelo cosmos em direção à Terra, prestes a engolfá-la em breve. Esse pensamento parece arejar sua mente com uma rajada de lucidez. De repente tudo se revela tão instável, e cada vez mais próximo.

— Há muitos anos — confessa a Randall — eu conheci uma garota lá em Minas Gerais. Era uma pobre coitada que vivia com a avó caduca e três irmãos excepcionais. Mas que bonita era a Romilda! Seu pai e mãe ainda eram vivos, eram gente simples, da roça, gente trabalhadora e honesta. E eu, um estrangeiro pálido em uma terra onde cabelos ruivos são mais ou menos como antenas de marcianos…

— Não me diga que vocês se envolveram?

— Sim!

— Shaul você não me parece o tipo de homem que seduziria uma pobre camponesa e a abandonaria. Nem mesmo uma camponesa goy com antecedentes genéticos tão aparentemente desfavoráveis.

— Isso foi antes destas leis eugênicas, bem antes. Naquele tempo as pessoas se acasalavam como animais, e o Estado mantinha a sobrevida dos subprodutos.

— Você era então pouco mais que um moleque, as leis eugênicas estão em vigor no mundo todo há quase quarenta anos!

— Digamos que minha genética me beneficia, Randall. Eu sou bem mais velho do que você acha que eu sou. Mas não tenho o hábito de exibir minha carteira de identidade somente para resolver discussões de bar.

— O que houve entre vocês?

— Ora, o que poderia haver? Ela fascinada por mim, pelo estranho alienígena de cabelos vermelhos que nunca saía ao sol e que falava com um sotaque engraçado. Eu me deixei fascinar por ela, a estranha camponesa de cabelos pretos, mãos calejadas e lindo sorriso. O curioso é que hoje nem lembro mais da aparência dela.

— Ficaram pouco tempo juntos, então?

— Pouco, apenas o suficiente para eu ter que pagar pensão a um bastardinho.

Randall ficou chocado com a maneira como Shaul se referia ao próprio filho, e à mulher com quem o tivera:

—Shaul, eu não consigo ter sua frieza. Para mim toda mulher com quem transei, a menos que tenha me dado ótimos motivos, é como se fosse uma amiga. Eu respeito cada mulher com quem trepei como se fosse a minha esposa.

— Você é um bobo, Randall.

— E você um niilista.

Riram e continuaram bebendo cachaça com limão, sem preocupar-se com azia ou coma alcoólico. Não havia futuro mesmo.

— Quando ocorrerá a colisão, Shaul?

— Não sei, Randall. Ninguém sabe. O que sabemos é que ela é inevitável e que a essa altura nenhum artefato construído pelo homem conseguiria superar a velocidade de escape necessária para sair do horizonte de evento do buraco negro. É o fim, amigo.

— Como não percebemos antes?

— Randall. Você nunca entenderá. Você não é astrofísico como eu, mas um mero jornalista perseguidor de personalidades.

— Mas sou esforçado nas minhas histórias.

— Então aproveite que eu estou escancarando para o mundo esse segredo. Ninguém tinha como saber porque o buraco negro era suficientemente pequeno para ocupar uma região pequena do céu, menor que uma ponta de agulha, mesmo magnificado 100 vezes. Além disso, ele produzia uma lente gravitacional. Você sabe o que é isso, não sabe?

— Continue falando, Shaul. O que eu não souber eu pergunto depois ou então vejo na enciclopédia.

— Muito bem. A lente gravitacional o tornava invisível. Somente percebemos que havia algo errado quando as primeiras perturbações gravitacionais começaram a ocorrer, ainda na nuvem de Oort. Mas demorou quase uma década para que ele se aproximasse o suficiente para que pudesse ser detectado.

— E o que vai acontecer?

— A humanidade está prestes a descobrir, dentro de poucos anos, o que realmente acontece dentro de um buraco negro. Isso se as perturbações gravitacionais não provocarem colisões catastróficas entre os planetas. Com sorte seremos ejetados do sistema solar e ficaremos perdidos no espaço interestelar por alguns milênios até, talvez, sermos capturados por outra estrela. Estas catástrofes, qualquer delas, podem ocorrer até antes do próximo drinque, só no ano que vem, ou daqui a vinte anos. A única coisa certa é que as crianças que hoje nascem nunca chegarão a ter carteira de motorista.

Randall sopesou seu copo recentemente cheio de cachaça, lambeu a fímbria de açúcar na borda e perguntou outra vez:

— E enquanto a catástrofe não vem. O que pretende fazer?

— Muitas coisas que não tinha feito antes. Talvez até procurar pela Romilda.

— O buraco negro… De que tamanho é?

— Não sabemos. O buraco inicialmente detectado desapareceu diante dos instrumentos quando o Grande Colisor de Hádrons mediu pela primeira vez sua influência. Mas continuamos sentindo a presença de alguma coisa grande que se aproxima.

Randall agradeceu a entrevista e saiu, enigmático e calmo, levando seu furo de reportagem. Shaul Reismann o observou tomar um táxi e desaparecer na noite. “Esse tolo goy não acreditou em uma vírgula do que eu disse” — constatou.

Uma dançarina se aproximou, usando uma fantasia felina, com rabo grosso firmado por um arame. Tinha cômicas orelhas presas à cabeça por um arco de plástico. Acompanhou-a desde o momento em que a viu surgir dos infectos fundos da baiúca, passando através da cortina de contas de plástico como se através de um esfíncter. Tinha um sorriso assustador e seus olhos verdes artificiais eram um anúncio do que era oferecido por sua púbis e embalado por sua roupa ridícula. Saulo a cobiçava apenas pela beleza do rosto, apenas pelo que passa. O eterno não tem graça quando morreremos amanhã.

— Deseja alguma coisa especial hoje, gringo?

Shaul ajuntou seus rudimentos de português para murmurar um agradecimento que quase a ofendeu. Não se sentiu mal com isso. Tinha nojo daquela mulher pública e malemolente cujos abraços eram feitiços pestilentos que destruíam famílias e reputações.

Em algum lugar no fundo de sua contraditória mente a outra metade de sua personalidade teve uma ereção ao ver a felina afastar-se, maravilhou-se com seu perfume de xampu de farmácia. Essa metade era lúcida, sabia que somos precários e que amanhã não existiremos. Essa metade sabia que no fundo todos, belos e feios, sujos e limpos, estaremos idênticos além do horizonte de eventos. Essa metade acenou para a mulher com uma desculpa. E foi ela que a abraçou de um jeito que namorados antigamente faziam.

— O que é isso, darling? – ela se surpreendeu.

— Perguntou se preciso de algo especial hoje. Bem, preciso. Quero alugar uma amiga.

— Uma amiga? Para quanto tempo?

— Não sei, talvez só por hoje, talvez por dezessete anos, onze meses e nove dias, ou seja, até eu morrer.

— Ai, que complicado!

— Não precisa explicar. O que quero é que você venha comigo, ouça minha música, me deixe fazer carinho nos seus cabelos, chupe o meu pau devagar e termine a noite sem me roubar nada. Quanto custa isso?

A mulher o olhava atônita, certamente pensando que ele era um desses maníacos estrangeiros que vêm ao terceiro mundo brincar de estripar gente nos submundos. Saiu de perto dele sem dar preço e sem olhar de volta.

“Não sei — disse Shaul consigo mesmo – se foi algo que eu disse ou se realmente o que eu quero não tem preço.”

Saiu de lá com uma lata de cerveja na mão, andando devagar pela noite da Lapa. Àquela hora a Associated Press já estaria divulgando ao mundo todo que o cientista desaparecido fora encontrado bêbado e com a barba por fazer em um bar do Rio de Janeiro. Talvez o maldito Randall até tivesse coragem de contar a história do buraco negro, ou talvez a vendesse para um tablóide.

“Ainda bem que não vou morrer virgem e com hemorróidas — filosofou enquanto acenava para as putas da rua.”

O céu não dava nenhuma notícia do iminente cataclisma. Estava tão brando como normalmente o céu das cidades é, leitoso e sem estrelas. Pensava nas fronteiras do espaço desconhecido, nas dobras do improvável, onde se escondia o misterioso corpo celeste negro e invisível que crescia à medida em que se aproximava, trazendo consigo o inarredável fim de tudo. “A última violência da natureza contra o homem.”

— No fim, não conseguimos nocautear você, sua vagabunda. O que é uma reles poluição atmosférica contra esses tentáculos de morte que você joga contra nós?

Brandiu os punhos contra o céu, os olhos marejados de lágrimas. Pela primeira vez na vida sentiu remorsos por Romilda, pelo filho cujo nome nem sabia, aliás, nem o sexo. De repente, diante da perspectiva de morrer tão logo, certas coisas pareciam tão eternas, tão importantes. Alugaria um carro no dia seguinte e tentaria encontrar a minúscula cidadezinha onde ela morava. Tentaria saber como estava, como estava seu filho. Decerto estavam bastante bem, pois lhes mandava mensalmente o equivalente a três salários mínimos do Brasil. Com esse dinheiro, e mais o que o resto dos moradores da casa recebesse, de aposentadoria ou de salário, certamente a criança teria tudo do bom e do melhor. Talvez até um pai. Uma mulher com três salários mínimos de renda é um excelente partido em lugar pequeno. Instintivamente voltou a odiar Romilda. Mas depois teve a certeza de que alugaria mesmo o carro.

Lembrou-se de uma antiga palestra que ouvira de ums física indiana durante umas férias que tiraram em Fiji:

— Tudo o que somos já foi parte de alguma outra coisa, deste planeta, em outro momento no passado. Cada átomo já esteve em cada lugar que você vê, se você pensar na escala de bilhões de anos que é o tempo que a Terra tem durado. Hoje você é você, mas seus átomos já foram lava, dinossauros, árvores, fezes, asteróides… Eu penso que talvez esta seja uma forma racional de conciliar o conceito hindu de transmigração com a ciência.

Na época Reismann apenas sentira asco de pensar que os átomos de seu corpo já haviam sido todo tipo de coisas nojentas. Especialmente os átomos de carbono. Estes não são mesmo confiáveis.

Chegou ao hotel e subiu até seu apartamento. Despiu-se e tomou um longo banho. “Para que economizar água? Logo não existirá mais água nem aquecimento global, nem nada para me atazanar a consciência.” Enquanto se enxugava o telefone tocou. Era Randall.

— Como me achou aqui nesse hotel?

— Tenho minhas fontes, Shaul. Quer jantar comigo hoje?

— Por que eu quereria jantar com um cara que conheci hoje?

— Sei lá, esse cara não ter mais ninguém conhecido no Rio de Janeiro é uma boa razão para você lhe dar uma recepção civilizada.

— Tudo bem, mas que seja no restaurante do hotel mesmo.

Eram onze da noite quando Randall chegou. Desta vez não estava fantasiado de turista americano.

— Certamente você já deve ter conhecido algum brasileiro, e certamente um de bom coração.

— Por que?

— Porque já lhe explicaram como se vestir nesse país sem ser visto como um palhaço gringo.

— Ora, eu posso ter sido um palhaço gringo quando arrumei minha mala, mas eu aprendo rápido observando os outros.

Era verdade. Seus óculos discretos e a feliz coincidência de ser negro o tornavam indistinguível de um brasileiro, desde que não abrisse a boca, pois só sabia falar um carregado scots.

A única mulher no saguão era uma africana alta que falava aos cochichos em seu telefone celular.

— Aquela mulher, Randall. Você a conhece?

— Já a notei. Não conheço.

— Tenho certeza de que é uma agente de algum serviço.

— Como sabe disso?

— A gente fica vidente quando sabe que vai morrer.

— Shaul, em nome desses velhos tempos…

Reismann ergueu o brinde mecanicamente.

— Você está querendo alguma coisa, Randall. Eu pressinto.

— Sim. Quis falar com você por causa de algo que me ocorreu. Se é verdade que é impossível observar o estado de um objeto a nível quântico sem mudar sua trajetória, e impossível observar sua trajetória sem mudar eu estado, não será que a observação do estado desse buraco negro o desviou de sua trajetória original? Qual é o tamanho dele? Quanta energia seria necessária? Quanticamente falando não se pode interagir sem influência.

— Randall, você é um jornalista. Não é um físico. Então não se preocupe com esses detalhes. Você nem sabe calcular, talvez ninguém saiba sem a ajuda de um poderoso computador. E eu nem tenho os dados completos comigo.

— Você quer que eu não me preocupe, mas esse “pequeno buraco negro” vai destruir o mundo.

— Mesmo assim é uma péssima ocasião para querer aprender sobre o assunto.

— Não existe ocasião ruim para aprender, Shaul.

— Antes da morte.

— Se fosse assim não valia a pena aprender nada. Toda a vida de um ser humano é “antes da morte”. Shaul, são dezoito anos. Vamos fazer o que nesses dezoito anos. Esperar a morte chegar?

— Bem, Randall. Uma coisa eu sei. Quero morrer antes. De preferência, bêbado.

E virou a dose de cachaça pura que o garçom lhe trouxera.


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Fechei para textos de ficção. Não vou mais blogar ...
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Lamento muito que isso tenha ocorrido. Como sabe a...
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